quinta-feira

DIFERENTE DOS OUTROS

DIFERENTE DOS OUTROS (Anders als die Andern, 1919, Filmmuseum Munchen/Richard-Oswald-Produktion, 50min) Direção: Richard Oswald. Roteiro: Magnus Hirschfeldt, Richard Oswald. Fotografia: Max Fassbender. Montagem: Stefan Drossler, Klaus Volkmer. Direção de arte: Emil Linke. Produção: Richard Oswald. Elenco: Conrad Veidt, Fritz Schulz, Reinhold Schunzel, Anita Berber, Magnus Hirschfeldt. Estreia: 28/5/19

Quando se fala no ator Conrad Veidt, a primeira lembrança que surge remete a suas participações em clássicos do expressionismo alemão, como "O gabinete do Dr. Caligari" (1920) ou "As mãos de Orlac" (1924). O que talvez poucos saibam é que Veidt, nascido em 1893 e que também deixou sua marca em Hollywood ao participar do inesquecível "Casablanca" (realizado em 1942, um ano antes de sua morte), pode ser considerado o primeiro ator do cinema a ter interpretado um homossexual no cinema. Era o ano de 1919, o Código Penal alemão via as práticas homossexuais como um crime e, antes que o Partido Nazista tomasse oficialmente o poder, em 1933, o médico judeu Magnus Hirschfeldt trabalhava arduamente para, através do cinema, educar a população a respeito do assunto daquilo que era considerado, além de crime, um desvio de caráter e uma doença. Um de seus filmes (como roteirista e como ator, interpretando ele mesmo em sequências didáticas mas jamais desinteressantes) é "Diferente dos outros", produzido e dirigido por Richard Oswald e que, ao contrário do que se poderia esperar, fez enorme sucesso nos cinemas germânicos, permanecendo em cartaz por quase um ano - até ser censurado e ter suas cópias destruídas pelo governo. Restaurado por um projeto da Universidade da Califórnia, ele se mantém, mesmo incompleto, como uma prova inconteste da coragem de Hirschfeldt e Oswald em explorar um assunto ainda hoje cercado de preconceito e mitos.

Tudo bem que, cem anos depois do lançamento de "Diferente dos outros", algumas das teorias de Hirschfeldt se mostram um tanto obsoletas, como a que pregava a existência de um "terceiro sexo" - que serve de argumento em uma de suas discussões no filme e que era criticada até mesmo pelos próprios homossexuais da época. Porém, como documento de um período histórico e parte de um esforço para tirar a aura de marginalidade que pesava sobre os ombros da comunidade gay, é uma obra de suma importância - e que só chegou viva aos dias de hoje por um golpe de sorte: misturada a uma série de outros filmes sobre saúde produzidos pelo médico, uma cópia do filme (ainda que não inteira) escapou da fogueira na qual outras obras infelizmente foram destruídas. Sua restauração - que substitui as cenas perdidas por fotografias ou letreiros explicativos - pode não servir para a apreciação da obra como um todo, mas serve perfeitamente bem como uma amostra significativa de suas qualidades dramáticas e objetivos sociais.


Conrad Veidt interpreta Paul Korner, um famoso e celebrado violinista clássico que aceita ensinar ao jovem Kurt Sivers (Fritz Schulz), fã ardoroso de seu trabalho. Não demora para que os dois se apaixonem, mas o romance, é claro, tem inúmeros obstáculos: a família do rapaz quer que ele se case, porque deseja que ele se comprometa com uma garota rica; a irmã dele também se apaixona pelo violinista; e um chantagista, Franz Bollek (Reinhold Schunzel), aproveita-se da situação para pressionar Paul a lhe dar dinheiro em troca de silêncio. A partir daí, o roteiro recorre a flashbacks que relembram a adolescência de Paul (quando ele começa a sentir-se atraído por rapazes) e a explicações didáticas e científicas a respeito da homossexualidade (com a participação do próprio Magnus Hirschfeldt como ele mesmo, um médico procurado pela família de Kurt para curá-lo do que consideravam uma doença). O visual do filme é velho conhecido dos fãs do cinema expressionista alemão, repleto de sombras e atores com maquiagem pesada - que lhes dá, de imediato, a definição sobre suas personalidades. A trama soa melodramática, com direito a tragédias e romance proibido, mas cabe perfeitamente nos objetivos do filme e ganha na performance de Veidt um tom de dignidade e classe que remete mais a óperas do que a telenovelas. E, de quebra, desafia o preconceito com um discurso final inspirado (e inspirador!)

Um século separa a estreia de "Diferente dos outros" do período de obscurantismo e discriminação que ameaça se estender sobre o mundo. Nesses cem anos, muitos avanços foram feitos em relação à forma como a homossexualidade é vista e tratada (no cinema, na televisão, na literatura e na vida real), mas não deixa de ser triste e assustador perceber o tanto de retrocesso que, ao mesmo tempo, a sociedade vem testemunhando. É fundamental que filmes como este sejam conhecidos e celebrados como bandeiras de luta e que sirvam como argumento na batalha contra a homofobia. Afinal, como o próprio Magnus Hirschfeldt declara em cena, "haverá tempos em que tais tragédias não mais existirão. Em que o conhecimento superará o preconceito, a verdade superará as mentiras e o amor triunfará sobre o ódio." É chocante perceber, portanto, que um século depois, tais palavras ainda soam como utopia...

Um comentário:

Paulo Alt disse...

Owwnnnn... me sinto parte do blog assim :p
As palavras finais do filme me fizeram pensar da mesma forma. Parece que ainda nos encontramos em 1919.
zukm.t

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