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A GAROTA NO TREM

A GAROTA NO TREM (The girl on the train, 2016, DreamWorks, 112min) Direção: Tate Taylor. Roteiro: Erin Cressida Wilson, romance de Paula Hawkins. Fotografia: Charlotte Bruus Christensen. Montagem: Andrew Buckland, Michael McCusker. Música: Danny Elfman. Figurino: Michelle Matland, Ann Roth. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/Susan Bode Tyson. Produção executiva: Celia Costas. Produção: Jared LeBoff, Marc Plattt. Elenco: Emily Blunt, Justin Theroux, Haley Bennett, Rebecca Ferguson, Luke Evans, Lisa Kudrow, Édgar Ramirez, Laura Prepon, Allison Janney. Estreia: 20/9/16

Sucesso absoluto de vendas, com mais de 3 milhões de cópias vendidas somente nos EUA até julho de 2015, o romance "A garota no trem" não demorou para chamar a atenção da sempre carente de criatividade Hollywood. Não era para menos: além da popularidade do livro (que fatalmente levaria seus leitores às salas de cinema), a trama criada pela escritora inglesa Paula Hawkins servia perfeitamente a uma adaptação cinematográfica, com suas personagens complexas e surpreendentes e um final inesperado e imprevisível bem ao gosto do público médio. O resultado nas bilheterias não desanimou o estúdio responsável pelo projeto - a DreamWorks - e mais de 170 milhões de dólares foram arrecadados pelo mundo, um resultado bastante satisfatório quando se trata de um filme adulto, sem efeitos visuais elaborados ou grandes nomes no cartaz. Estrelado por uma fabulosa Emily Blunt - indicada ao BAFTA (o Oscar britânico) e ao prêmio do Sindicato de Atores - e dirigido com segurança por Tate Taylor (cujo "Histórias cruzadas" foi indicado ao Oscar de melhor filme em 2012), "A garota no trem" é uma adaptação fiel e inteligente, que explora as maiores qualidades de sua origem literária enquanto brinca com todas as possibilidades do cinema de gênero, prendendo a atenção até seus minutos finais sem deixar de lado o cuidado com as nuances dramáticas de seus personagens - todos repletos de mistérios, segredos e mentiras que vão se revelando aos poucos diante dos olhos do espectador.

Mantendo no filme a estrutura do livro, composta por três diferentes pontos-de-vista e com idas e vindas no tempo para confundir o público com pistas que podem ou não levar à solução de um possível crime, "A garota no trem" envolve já desde as primeiras cenas, que mostram o desequilíbrio físico e mental de sua protagonista, Rachel Watson (Emily Blunt, caprichando na interpretação sem cair no exagero): abandonada pelo namorado, Tom (Justin Theroux), e sendo obrigada a ver sua felicidade com a nova mulher, Anna (Rebecca Ferguson) e seu bebê - que moram na casa que compraram juntos - a jovem passa os dias dedicada a dois atos pouco saudáveis. Primeiro, está cada vez mais entregue à bebida, entornando doses violentas de vodca que a fazem inclusive ter lapsos de memória. Em segundo, ela passa diariamente diante da casa de Tom - e é essa rotina aparentemente banal que irá mudar completamente o rumo de seus dias. Na casa ao lado da de Tom, mora um casal apaixonado e atraente, que representam para Rachel a vida que ela gostaria de ter. Obcecada pela jovem bela e loura, Rachel fica chocada quando, um dia, a vê aos beijos com outro homem - e logo em seguida fica sabendo que ela desapareceu misteriosamente. O bizarro sentimento de traição - afinal, como ela poderia ter estragado a vida tão perfeita que tinha apenas por um caso qualquer? - logo dá lugar à sensação de que, na noite do desaparecimento de Megan Hipwell (Haley Bennett), alguma coisa aconteceu também com ela. Só o que ela recorda é de ter tentando falar com a desaparecida - e de ter acordado na manhã seguinte machucada e sem lembranças completas. Com medo de ela mesma ter feito algo errado, Rachel inicia uma busca desesperada por seus momentos no dia do crime - e se envolve tanto com o marido de Megan, Scott (Luke Evans), quanto com seu psiquiatra, Kamal Abdic (Édgar Ramirez), com a intenção de encontrar a verdade.


Exatamente como no livro, "A garota no trem" dá voz às três mulheres que são a engrenagem da narrativa. Como um quebra-cabeças angustiante e tenso, Rachel, Megan e Anna fornecem peças que se completam e/ou contradizem, de acordo com o desenrolar da engenhosa trama de Hawkins, que mistura com destreza temas delicados como abuso doméstico, alcoolismo, obsessão e traumas emocionais em um atraente pacote visual - cortesia da bela fotografia que se utiliza de sombras e luzes difusas para recriar em imagens o opressivo universo de Rachel, em que a verdade e a imaginação se sobrepõem sem ordem e métrica. A edição ágil e urgente também colabora para a sensação de perigo constante que envolve os personagens, em um trabalho instigante que desorienta a plateia até o terço final, quando finalmente tudo se encaixa e a verdade vem à tona - não com a mesma força do livro, mas ainda assim potente o bastante para não decepcionar a quem ficou quase duas horas tentando descobrir se Rachel realmente matou a mulher que admirava (ou isso foi ato de algum dos homens que a rondam no presente e no passado). Um conjunto bem azeitado entre direção, roteiro, técnica e principalmente elenco - que, a princípio, seria bastante diferente do que chegou às telas.

Emily Blunt sempre foi a primeira escolha de Taylor - apesar de ter sido em Michelle Williams que a autora do livro pensava quando criou a personagem. O mesmo não pode ser dito do restante do elenco, todos importantíssimos para dar vida ao roteiro de Erin Cressida Wilson mas cujos atores participaram de uma intensa dança das cadeiras. Primeiro foi Chris Evans quem abandonou o projeto, culpa de sua participação no filme "Um laço de amor", e foi substituído por Justin Theroux, mais conhecido como o marido de Jennifer Aniston. Em seguida foi a vez de Jared Leto, que faria o papel de Scott, marido da mulher desaparecida e que, assim como Chris, teve problemas de agenda e abdicou do papel - deixando-o para Luke Evans, conhecido dos fãs de filmes de ação por seu trabalho nos capítulos 6 e 7 da série "Velozes e furiosos" e nos dois últimos filmes da trilogia "O Hobbit". Por fim, a atriz que viveria um dos mais cruciais da trama (o da complexa e misteriosa Megan Hipwell) acabou sendo a jovem Haley Bennett, revelada ao público como uma Britney Spears genérica na comédia "Letra e música" (2007) e que estava saindo das filmagens do remake de "Sete homens e um destino". Ficando com o papel que teve Margot Robbie e Kate Mara como possíveis donas, Bennett demonstra um talento insuspeito, oferecendo à sua personagem uma gama de emoções capaz de apavorar gente muito mais experiente. Quase uma antítese de Rachel Watson, sua Megan Hipwell vai sendo desvendada gradualmente à plateia - e no final ela acaba sendo a grande surpresa de um filme que, contrariando a lógica dos grandes estúdios, tem como protagonistas três mulheres comuns, dotadas apenas de sua força inerente e sua coragem. Nada mal para um filme-pipoca!

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