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FLORENCE: QUEM É ESSA MULHER?

FLORENCE: QUEM É ESSA MULHER? (Florence Foster Jenkins, 2016, Qwerthy Films/Pathé Pictures International/BBC Films, 111min) Direção: Stephen Frears. Roteiro: Nicholas Martin. Fotografia: Danny Cohen. Montagem: Valerio Bonelli. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Consolata Boyle. Direção de arte/cenários: Alan MacDonald/Caroline Smith. Produção executiva: Christine Langan, Cameron McCracken, Malcolm Ritchie. Produção: Michael Kuhn, Tracey Seaward. Elenco: Meryl Streep, Hugh Grant, Simon Helberg, Rebecca Ferguson, Nina Arianda, Stanley Townsend. Estreia: 23/4/16 (Festival de Belfast)

2 indicações ao Oscar: Atriz (Meryl Streep), Figurino

Em 1994, o cineasta Tim Burton retratou, em seu sublime "Ed Wood", a história de um diretor de cinema cuja paixão pela arte era tamanha que o impedia de perceber a absoluta falta de qualidade de seus filmes - e que, após a sua morte, passou a ser considerado unanimemente como "o pior diretor da história do cinema". A história de Florence Foster Jenkins - socialite nova-iorquina que virou tema de uma produção do inglês Stephen Frears - pode não ser exatamente igual, por questões econômicas, sociais e pela diferença no objeto da paixão, mas tem suas similaridades. Incapaz de perceber a si mesma como uma péssima cantora lírica (sendo que péssima, no caso, é eufemismo), Jenkins usava seu dinheiro para financiar compositores e saraus em uma Nova York ainda sofrendo com a II Guerra Mundial - e, de quebra, se autopromovia em pequenas apresentações e até mesmo em disco. Objeto de adoração por amigos e de deboche quase explícito por quem a conhecia somente através de seu suposto dom, ela chegou a lotar o Carnegie Hall, em um show para o qual distribuiu mil convites para soldados americanos. A música era seu grande amor - assim como o marido mais jovem, St. Clair Bayfield - e essa relação íntima e feliz é o tema de "Florence: quem é essa mulher?", comédia dramática que rendeu à Meryl Streep a vigésima indicação ao Oscar de sua carreira, uma marca impressionante que não comprova apenas seu imenso talento mas também o prestígio gigantesco dentro da indústria hollywoodiana.

Exercitando sua veia cômica ao mesmo tempo em que encontra o tom dramático certo para os momentos mais emocionantes de sua personagem, Streep faz uso também de seu vasto carisma para compor uma Florence que transita sem descanso entre o naturalismo e a quase caricatura. Esse equilíbrio - que já vem no roteiro fluido de Nicholas Martin - esbarra apenas na direção um tanto pesada de Stephen Frears. Veterano com duas indicações ao Oscar no currículo - por "Os imorais" (1990) e "A rainha" (2006) - e eclético por natureza, a ponto de adaptar escritores tão díspares quanto Chorderlos de Laclos (em "Ligações perigosas", de 1988) e Nick Hornby (em "Alta fidelidade", de 2000), Frears parece não saber exatamente se prefere imprimir um tom de pastiche à trajetória da protagonista ou concentrar-se em seus dramas particulares (como a sífilis adquirida no primeiro casamento e a relação aberta com o segundo marido). Essa dubiedade - talvez proposital - acaba por dificultar uma entrega completa do público, que gargalha facilmente com o timing cômico perfeito de Streep mas estranha quando a trama escorrega, sem aviso prévio, para o dramalhão. Sorte que Frears sabe escolher seus colaboradores como ninguém, e "Florence: quem é essa mulher?" é exemplar em cada um de seus quesitos.


A reconstituição de época - dos cenários sofisticados ao figurino de Consolata Boyle, copiado das extravagantes roupas da personagem-título, também indicado ao Oscar - é primorosa: a Nova York dos anos 40 é retratada com riqueza de detalhes e um requinte que poderia tranquilamente uma outra nomeação à estatueta dourada. A trilha sonora de Alexandre Desplat faz-se notar apenas quando necessário, deixando que as óperas amadas por Florence ilustrem com mais frequência sua trajetória. E a fotografia acinzentada sublinha a opressão dos anos de guerra, situando a narrativa em um período histórico bastante específico, em que nem mesmo a beleza da música e da arte eram suficientes para fazer esquecer o sangrento conflito na Europa. A atmosfera de festa da alta sociedade em que circula Florence e seus amigos contrasta com a dureza do front - que só chega até eles pelo rádio e pela presença constante de soldados (objetos de admiração e caridade por parte da socialite, que nem por isso deixava de ser alvo de seus comentários debochados). O clímax do filme - o concerto de Florence no Carnegie Hall - é representativo: estão na plateia a alta sociedade nova-iorquina, celebridades (a atriz Tallulah Bankhead, o compositor Cole Porter) e o povo (representado pelos soldados), e no palco, a diva de meia-idade sem noção de sua falta de talento e seu fiel escudeiro, o desajeitado porém competente Cosmé McMoon (Simon Helberg, da série "The Big Bang Theory", e indicado ao Golden Globe de ator coadjuvante). É um encontro e tanto, resumido na declaração da vulgar e emergente Agnes Stark (Nina Arianda): "Não riam! Ela está cantando com o coração!".

Essa grande mensagem do filme - a de que a paixão e o amor podem ser mais importantes que o talento e a afinação - é que faz de "Florence" uma obra tão simpática e calorosa (apesar de estar longe de ser um dos melhores trabalhos de seu diretor). É difícil não se deixar conquistar pela personagem principal, por sua química com o marido adúltero porém carinhoso (que marcou a volta de Hugh Grant ao cinema e lhe rendeu uma indicação ao Golden Globe) e sua relação com o novato Cosmé, a princípio abismado com o fato de ninguém falar a verdade à sua nova patroa mas logo envolvido por seu sentimento de absoluta devoção à música. A interrelação entre os três personagens centrais é o que há de melhor no filme de Stephen Frears - uma conexão impecável que o torna agradável e encantador a ponto de ter seus pecadilhos deixados de lado. Um belo e descompromissado entretenimento!

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