sexta-feira

BEASTS OF NO NATION

BEASTS OF NO NATION (Beats of no nation, 2015, Netfliz Films, 137min) Direção: Cary Joji Fukunaga. Roteiro: Cary Fukunaga, romance de Uzodinma Iweala. Fotografia: Cary Fukunaga. Montagem: Pete Beaudreau, Mikkel E.G. Nielsen. Música: Dan Romer. Figurino: Jenny Eagan. Direção de arte/cenários: Inbal Weinberg/Katie Hickman. Produção executiva: Nnamdi Asomugha, Bill Benenson, Laura Bickford, Todd Courtney, Fiona Drukenmiller, Pauline Fischer, Donna Gigliotti, Mark Holder, Kristina Kendall, Elizabeth Koch, Tommee May, Peter Pastorelli, Elika Portnoy. Produção: Daniel Crown, Idris Elba, Amy Kaufman, Riva Marker, Daniela Taplin Lundberg. Elenco: Idris Elba, Abraham Attah, Emmanuel Affadzi, Ricky Adelayitor. Estreia: 03/9/15 (Festival de Veneza)

Chocante, triste, revoltante, realista e brutal. Não são poucos os adjetivos que se aplicam a "Beasts of no nation", primeira produção da Netflix a ser lançada nos cinemas - simultaneamente com sua disponibilidade em streaming e depois de uma jornada por festivais internacionais (Telluride, Toronto, Londres e Veneza, de onde saiu com dois troféus). Boicotado por quatro das maiores cadeias de exibição nos EUA justamente por essa particularidade, o filme de Cary Fukunaga acabou por ver suas chances de brilhar no tapete vermelho do Oscar desmancharem no ar graças às regras anacrônicas da Academia, que ignorou inclusive o prêmio do Sindicato de Atores oferecido a Idris Elba - também indicado ao Golden Globe de melhor ator coadjuvante. Na verdade, quem se prejudicou mesmo foi a própria Academia, que perdeu a chance de mostrar-se antenada com as novas tendências do mercado e ainda por cima reconhecer um dos filmes mais fortes da temporada 2015, uma obra de impacto imediato e permanente, um dos retratos mais doloridos da perda da inocência que o cinema já foi capaz de conceber.

Baseado em um livro de Uzodinma Iweala, "Beasts of no nation" se passa em um país da África cujo nome nunca é mencionado - mas é evidentemente calcada nos conflitos armados de Serra Leoa e Libéria, que convulsionaram parte do continente no final dos anos 90 e início dos 2000. Sem preocupar-se em buscar explicações para a situação ou tentar informar o público sobre o contexto de tamanha violência, o roteiro segue rumo oposto, concentrando-se em fazer com que seu protagonista mirim, Agu, seja os olhos e o coração da plateia: ao diretor interessa apenas as consequências que os acontecimentos tem na alma de seu pequeno personagem, a princípio apenas testemunha das atrocidades cometidas em nome da "liberdade" e, aos poucos, agente fundamental de tais crueldades. Com uma câmera nervosa e sem medo de explorar os mais escuros desvãos de um conflito desumano e grotesco, Fukunaga dá um salto de qualidade em sua filmografia, construindo uma obra de tensão constante e consistência dramática tão intensa pela qual é praticamente impossível ficar indiferente.





Agu, o protagonista interpretado pelo impressionante Abraham Attah, começa o filme como uma criança normal e feliz, apesar da pobreza e da constante sombra da guerra civil que o rodeia e à sua família. Quando finalmente ela chega até sua pequena comunidade, sua vida é transformada radicalmente: separado da mãe e da irmã, testemunha da execução do pai e do irmão e escondido na floresta, ele é encontrado pela milícia do temido e respeitado Comandante (Idris Elba), um homem carismático e contundente, que não demora em fazer de Agu um de seus meninos-soldados. Responsável pela munição do grupo - formado por alguns homens e várias crianças armadas de fuzis, facões e pistolas -, Agu administra seu dia-a-dia de forma a não perder de vista seu objetivo de reencontrar a mãe, mas não consegue deixar de testemunhar cenas de extrema violência por parte de seus novos companheiros. Sua inocência, no entanto, não demora a sofrer duros golpes: obrigado a cometer sua primeira morte, abusado sexualmente e convivendo com o constante medo de ser morto em algum confronto, ele consegue abrir-se somente com outro menino, Strika (Emmanuel Nii Adom Quaye), que não fala e divide com ele a angústia de não saber os rumos de seu futuro.

Orquestrado com segurança e uma sensibilidade que contrasta radicalmente com seu teor violento e cruel, "Beasts of no nation" é um filme difícil de ser digerido. Não apenas por contar uma história de doer o coração - e Fukunaga constantemente lembra o espectador de que seus protagonistas mirins são, apesar de tudo, apenas crianças - mas também por retratar uma realidade ao mesmo tempo muito distante e bastante próxima. É doloroso assistir os detalhes da transformação de um menino ingênuo e festivo em praticamente uma máquina de matar, com a inocência estraçalhada pelos vestígios de sangue que encontra pelo caminho - e o monólogo final de Agu, então, é de revoltar o mais tranquilo dos espectadores, por explicitar, através de algumas poucas palavras, o abismo social que faz do ser humano um animal. E para isso, contribui a atuação impecável de Idris Elba, que faz de seu Comandante um personagem dúbio e repleto de nuances - ora um idealista fervoroso, ora um monstro capaz de cooptar crianças e metamorfoseá-las em criminosos de guerra. Essa inteligência em ser um filme que é um retrato doloroso da perda da inocência e ao mesmo tempo uma denúncia política de grande relevância é que faz de "Beasts of no nation" um programa imperdível! Dói, mas é inesquecível!

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