FAHRENHEIT 451 (Fahrenheit 451, 1966, Anglo Enterprises, 112min) Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, romance de Ray Bradbury. Fotografia: Nicolas Roeg. Montagem: Thom Noble. Música: Bernard Herrmann. Figurino: Tony Walton. Direção de arte/cenários: Syd Cain. Produção executiva: Miriam Brickman. Produção: Lewis M. Allen. Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring. Estreia: 07/9/66 (Festival de Veneza)
Em 1953, o escritor Ray Bradbury imaginou um futuro distópico onde livros seriam proibidos pelo governo e incinerados pelos bombeiros, impedindo a população a ter acesso a qualquer palavra escrita. Alguns anos mais tarde, seu romance, batizado de "Fahrenheit 451" - em teoria, a temperatura necessária para a combustão das publicações - chegou às mãos do francês François Truffaut, notoriamente avesso a ficções científicas, e transformou completamente a opinião do célebre cineasta. Apaixonado pelo conceito da trama concebida por Bradbury e certo de que poderia fazer dela um filme memorável, Truffaut passou os próximos seis anos em busca de financiamento para o projeto. Nascia então seu primeiro - e único - filme falado em inglês. Lançado no Festival de Veneza de 1966, "Fahrenheit 451" é um clássico por excelência: inteligente, perturbador e emocionante, se mantém como uma crítica feroz ao totalitarismo ao mesmo tempo que convida o público a uma poética homenagem à literatura e seu poder transformador.
Antes de chegar às telas, porém, "Fahrenheit 451" mostrou-se um desafio dos mais trabalhosos para o inveterado cinéfilo, colaborador assíduo do prestigioso "Cahièrs du Cinéma" e já consagrado por filmes como "Os incompreendidos" (59) e "Jules e Jim: uma mulher para dois" (62). Não apenas o financiamento demorava a sair, mas também seu elenco dos sonhos parecia impossível de escalar. Para os dois principais papéis femininos, por exemplo, Truffaut queria a francesa Jean Seberg e a americana Tippi Hedren, mas viu seu desejo frustrado em dose dupla: Hedren estava ocupada com Alfred Hitchcock e Seberg (estrela do seminal "Acossado", de Jean-Luc Godard) foi considerada um nome pouco comercial pelos produtores. Nem mesmo Jane Fonda acertou sua participação e a contratação de Julie Christie para ambos os papéis (pela metade do cachê cobrado então pela atriz), ao contrário de ajudar, só complicou ainda mais a situação: sua presença causou a defecção do ator Terence Stamp - escolhido para interpretar o protagonista, Montag. Ex-namorado de Christie, o ator inglês não ficou confortável com a ideia de trabalhar com ela - especialmente quando havia a forte possibilidade de, fazendo dois personagens em cena, a bela Christie roubar a atenção. O resultado foi uma tremenda dor de cabeça aos produtores, que passaram a cogitar nomes tão diversos quanto Montgomery Clift, Marlon Brando, Paul Newman, Jean-Paul Belmondo, Charles Aznavour e Peter O'Toole - até que Truffaut finalmente bateu o martelo com Oskar Werner... e se arrependeu amargamente.
Não foi a primeira vez que cineasta e ator trabalharam juntos - ambos foram parte fundamental do sucesso de "Jules e Jim". Mas certamente Truffaut jamais imaginaria que a parceria outrora tão feliz se tornaria motivo de tanto desgosto. Com visões completamente opostas a respeito da forma como retratar o bombeiro Montag - personagem principal e que serve de ponte entre o filme e o público -, diretor e ator entraram em frequente rota de colisão durante as filmagens, e o próprio Truffaut declarou posteriormente que só não chegou a ponto de desistir do projeto devido à sua paixão pela história e pelo tempo que havia gasto na pré-produção. A situação ficou tão delicada que os dois chegaram a ficar sem dirigir a palavra um ao outro durante as duas últimas semanas de trabalho - some-se a isso uma crise nervosa de Julie Christie e as dificuldades do diretor em comunicar-se em inglês enquanto trabalhava em Londres e chega a ser quase um milagre que "Fahrenheit 451" tenha sido completado - e indo ainda mais longe, tenha ficado tão bom. Com o roteiro escrito em inglês por Truffaut e Jean-Louis Richard (que não dominavam o idioma e não ficaram totalmente satisfeitos com o resultado final), a adaptação do romance de Bradbury acerta em todos os aspectos - como cinema, como crítica social e como transposição de uma obra literária para as telas.
A criatividade de Truffaut começa já nos créditos de abertura: uma vez que no universo proposto pelo roteiro a leitura é algo proibido, não há letreiros e sim uma narração em off apresentando o elenco e a equipe técnica. Logo em seguida, o público passa a conhecer uma sociedade opressiva e totalitária, onde a população vive à mercê de um governo que proíbe o consumo de livros - e incentiva as denúncias contra aqueles que desafiam as leis. Nesse universo quase asséptico intelectualmente, a única função do corpo de bombeiros é justamente incinerar todos os livros descobertos e impedir que outros meios de comunicação senão a televisão sejam acessíveis como meio de informação. O protagonista, vivido por Oskar Werner, é Guy Montag, um desses bombeiros, um profissional dedicado e à espera de uma promoção que está em vias de chegar. E é justamente nesse ponto de sua carreira que Montag é surpreendido por um novo sentimento: fascinado pela bela Clarisse (Julie Christie), ele se vê subitamente curioso em conhecer o prazer da leitura, para desespero de sua mulher, a fútil Linda (também Christie). Tentado a mergulhar cada vez mais em um novo ambiente (onde o livre-pensar é uma realidade e o idealismo intelectual é capaz de forjar mártires orgulhosos), Montag descobre que seus fechados horizontes podem transformar-se em infinitas possibilidades - mas, para isso, precisa escolher entre a vida que leva e os perigos do não-conformismo.
Visualmente interessante - ainda que pareça um tanto datado - e contado em ritmo fluido e envolvente, "Fahrenheit 451" é uma obra-prima. Nem mesmo os embates dos bastidores foi capaz de minar o que há de mais brilhante no filme: sua mensagem de amor à liberdade e à literatura. Um pouco incômoda em seus momentos iniciais - até que a plateia finalmente compreenda exatamente o que está acontecendo - e fascinante em seu terço final, quando Montag descobre um novo caminho para sua vida, a obra de Truffaut sobrevive ao tempo como uma das mais importantes ficções científicas do cinema moderno (mesmo que abra mão de alguns elementos icônicos do gênero, como a violência e os efeitos visuais abundantes, que transformariam os filmes das décadas seguintes mais e mais parecidos com videogames do que com cinema). Felizmente a ideia de Mel Gibson em refilmá-lo não vingou: dificilmente alguém seria capaz de ser tão competente em transmitir as ideias do romance de Bradbury do que Truffaut foi em seu único filme em língua inglesa.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
domingo
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