quarta-feira

O DIREITO DO MAIS FORTE É A LIBERDADE

 


O DIREITO DO MAIS FORTE É A LIBERDADE (Faustrecht der Freiheit/Fox and his friends, 1975, City Film/Tango Film, 124min) Direção e roteiro: Rainer Werner Fassbinder. Fotografia: Michael Balhaus. Montagem: Thea Eymesz. Música: Peer Raben. Figurino: Helga Kempke. Direção de arte: Kurt Raab. Produção: Rainer Werner Fassbinder. Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Karlheinz Bohm, Peter Chatel, Adrian Hoven, Christiane Maybach. Estreia: 15/5/75 (Festival de Cannes)

Um dos mais importantes representantes do Novo Cinema Alemão - surgido na influência da Nouvelle Vague e de grande importância cultural nas décadas de 1960 e 1970 -, Rainer Werner Fassbinder sempre recusou-se a rótulos. Com mais de 40 obras no currículo, transitou entre filmes de gângsteres, épicos sobre as consequências da II Guerra, adaptações teatrais e melodramas, sempre ressaltando nelas o aspecto humano das relações e suas fissuras. Polêmico na frente e atrás das câmeras - com uma legião de detratores que rivalizam com o amplo número de admiradores -, o diretor/ator/produtor/roteirista morreu em 1982, aos 37 anos de idade, deixando para trás algumas produções cruciais para a filmografia de seu país, mesmo que controversas e incômodas. Uma delas, "O direito do mais forte é a liberdade" é sintomática: uma história forte e contundente sobre a futilidade e a fragilidade dos vínculos emocionais no mundo homossexual que critica, ao mesmo tempo, a sociedade em geral e o mundo gay em particular. Amargo, pessimista e sem firulas estéticas e/ou narrativas, o filme que levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Chicago de 1975 mantém uma dolorosa atualidade que apenas comprova a visão incisiva do diretor sobre o mundo que o rodeava.

O próprio Fassbinder assume o papel principal do filme, Fox Biberkopf, um jovem homossexual que, depois da prisão do amante, vê sua vida transformada com uma vitória na loteria. Oriundo da classe operária e sem qualquer tipo de sofisticação (social ou cultural), ele se envolve com Eugen (Peter Chatel), o herdeiro de uma empresa em constante crises financeiras. Sentindo-se deslocado com a vida de luxo do novo namorado, Fox se deixa manipular por ele, aceitando suas aulas de etiqueta e se afastando, mesmo contra a vontade, de sua antiga vida operária - o que inclui sua vulgar irmã, Hedwig (Christiane Maybach). Tentando encaixar-se em uma vida que não é sua, Fox sente dificuldade em equilibrar seus desejos de ascensão e sua real personalidade - e conforme sua relação com Eugen vai se aprofundando, mais explorado ele passa a ser (pelos sogros, pelos supostos amigos e até pelo namorado).

 

Com uma estética crua que foge do sentimentalismo e se dedica a contar sua história com o mínimo de recursos artificiais, Fassbinder constrói, aos poucos, uma fábula melancólica que examina, sem meio-termos, a mediocridade da classe burguesa alemã e a futilidade do universo gay masculino, perdido em um mundo de aparências e promiscuidade. Não é uma imagem agradável, e sendo o diretor homossexual assumido - ainda que repleto de incoerências em sua vida pessoal -, não deixa de ser também um retrato bastante acurado e negativo. A coragem de Fassbinder reside em escolher como algozes não uma sociedade homofóbica e preconceituosa (apesar de haver, subrepticiamente, uma crítica a ela), mas sim os próprios homossexuais: enquanto Fox serve como a vítima ingênua e quase romântica - cuja generosidade acaba por ser sua maior tragédia -, Eugen e seus amigos (em níveis diversos de frivolidade e apatia) se mostram parte integrante de um sistema cruel e impiedoso. Se os gays mostrados no cinema dos anos 1970 se dividiam entre a caricatura e a violência - quando não eram apenas sacos de pancada ou condenados a desgraças variadas -, no filme de Fassbinder eles assumem papel de domínio e livre arbítrio, com tudo que isso tem de bom e de ruim. Fox não deixa de ser um anti-herói - apesar de sua generosidade, ele nunca abandona seu desejo quase patológico de ascender social e culturalmente, o que acaba por vir a ser sua tragédia -, mas o roteiro jamais cai na armadilha de fazer dele um mártir inocente. O final (em imagens secas, mas dolorosas em sua realidade) apenas enfatiza o tom cruel imposto desde suas primeiras cenas, e deixa um gosto amargo na boca do espectador - mas em hipótese alguma busca a emoção fácil.

"O direito do mais forte é a liberdade" não é, nem de longe, o filme mais famoso e celebrado de Fassbinder - "As lágrimas amargas de Petra Von Kant" (1972), "O casamento de Maria Braun" (1979), "Lili Marlene" (1981) e "Querelle" (1982) são facilmente suas obras mais conhecidas. Porém, é inegável que encapsula boa parte de suas obsessões como cineasta. Se não se sai exatamente bem como ator - e nem tem um carisma forte o bastante para angariar a simpatia incondicional do público -, ao menos como diretor ele atinge seu objetivo de incomodar e questionar o status quo. É uma característica marcante de sua filmografia - e justifica a importância de seu nome dentro do cinema alemão.

terça-feira

PARENTE É SERPENTE


PARENTE É SERPENTE (Parenti serpenti, 1992, Clemi Cinematografica, 105min) Direção: Mario Monicelli. Roteiro: Carmine Amoroso, Suso Cecchi D'Amico, Piero De Bernardi, Mario Monicelli, estória de Carmine Amoroso. Fotografia: Franco Di Giacomo. Montagem: Ruggero Mastroianni. Música: Rudy De Cesaris. Figurino: Lina Nerli Taviani. Direção de arte/cenários: Franco Velchi/Livia Del Priore. Produção Giovanni Di Clemente. Elenco: Tommaso Bianco, Renato Cecchetto, Marina Confalone, Alessandro Haber, Cinzia Leone, Eugenio Masciari, Paolo Panelli, Monica Scattini, Pia Velsi. Estreia: 26/3/92

Um dos mais celebrados cineastas italianos do pós-guerra, Mario Monicelli forjou seu nome na história graças a filmes que entraram para o inconsciente coletivo das plateias, como "O incrível exército Brancaleone" (1966) e "Quinteto irreverente" (1982), que explicitam seu estilo direto e sardônico ao retratar personagens banais e frequentemente falíveis. Com três produções indicadas ao Oscar de melhor filme estrangeiro - "Big deal on Madonna Street" (1958), "A grande guerra" (1959) e "The girl with a pistol" (1968) - e outras duas indicações à estatueta de roteiro original, Monicelli construiu, em mais de seis décadas, uma filmografia dedicada a prescutar a alma humana, sempre de forma bem-humorada mas paradoxalmente carinhosa. Sem pensar em aposentadoria mesmo na idade em que muitos já estavam descansado e contando o vil metal, ele surpreendeu a todos quando, em 1992, aos 77 anos, lançou mais um de seus petardos. Irônico e quase amargo, "Parente é serpente" tornou-se mais um de seus sucessos, dessa vez mirando sua atenção a um símbolo da estabilidade da sociedade: a família.

Subvertendo o otimismo e a delicadeza de filmes de Natal - aqueles com finais felizes e recheados de boas intenções -, "Parente é serpente" é narrado pelo pequeno Mauro (Riccardo Scontrini) , que com seu ponto de vista ingênuo não percebe o quão frágil é a aparente normalidade de sua vasta família - idiossincrática, um tanto hipócrita e repleta de pequenos atos de mesquinhez, disfarçados por uma religiosidade tradicionalista e uma série de rituais anuais. É no Natal que acontece um dos raros encontros de todas as ramificações do clã dos Colapietro - pais idosos, quatro filhos de meia-idade e dois netos em fase de transição (de graus variados) para a adolescência. Saverio (Paolo Panelli) e Trieste (Pia Velsi) vivem sozinhos na casa onde criaram os filhos e que não pode ser exatamente descrita como confortável - o aquecimento é falho, as acomodações nem sempre são ideais e sua distância das casas dos rebentos é um incômodo pouco mencionado. Para comemorarem a data festiva, todos se reúnem. A filha mais velha, Lina (Marina Confalone), mãe de Mauro, é hipocondríaca e mal consegue esconder uma certa inveja da cunhada, Gina (Cinzia Leone), uma mulher sofisticada que não se conforma com a falta de vaidade da única filha, Monica (Eleonora Alberti) - que sonha ser bailarina mas não abre mão dos prazeres da gula. A irmã de Lina é Milena (Monica Scattini), que sofre com a incapacidade de engravidar e com a possibilidade de tal problema afetar seu casamento com o suave Filippo (Renato Cecchetto). O único solteiro do grupo é Alessandro (Eugenio Masciari), um professor que mora sozinho enquanto não encontra "a mulher certa". O reencontro, marcado pelos tradicionais momentos nostálgicos, pela missa do galo e pela comilança generalizada é finalizado, no entanto, com uma bomba detonada pelos patriarcas: com medo das limitações que os anos vindouros podem trazer, eles resolveram - unilateralmente, é claro - que irão morar com um dos filhos. Cabe aos rebentos apenas decidirem qual deles será o felizardo a ter a vida alterada pela nova configuração familiar.

 

A partir do anúncio feito por Saverio e Trieste, o tom de "Parente é serpente" fica ainda mais amargo - apesar de não abandonar o humor, dessa vez com origem em uma série de revelações inesperadas e um ritmo mais apurado. Se até então as rachaduras na estrutura familiar estavam disfarçadas pelas regras de etiqueta natalina e os ressentimentos pareciam definitivamente enterrados, a notícia dada pelos pais transforma a aparente cordialidade fraternal em um campo de guerra. Cada um tem seus motivos para não desejarem a convivência diária com os genitores - que vão desde a falta de espaço e privacidade até a possibilidade de terem descobertos seus segredos mais profundos. Os embates - até então discretos e embalados pelo senso de preservação - se tornam mais raivosos (e por consequência mais propensos à agressão). E ninguém parece disposto a abrir mão das pretensas liberdades, nem mesmo com a chance de ficar com o apartamento prometido como forma de abono. E é nesse ato final que a ferocidade do humor de Mario Monicelli fica ainda mais evidente, desvelando sem medo a hipocrisia que cerca os núcleos familiares: os diálogos (deliciosos em sua sordidez) encontram eco em uma direção de atores precisa, que explora o melhor de cada um dos atores, dando a todos um momento de brilho. Como em uma boa peça de teatro, o roteiro vai crescendo até o clímax - uma mescla surpreendente de ironia e melancolia que encerra a narrativa com chave de ouro, além de reforçar o impecável tom de humor sombrio.

Mesmo não sendo o mais popular ou influente filme da carreira de Monicelli, "Parente é serpente" é uma produção que jamais envergonha sua obra pregressa. Inteligente, sarcástico e dotado de uma boa dose de cinismo, o resultado final conquista ao revelar em seus personagens (falíveis, dúbios, capazes de grandezas e mesquinharias) um espelho dos espectadores. Sem heróis ou vilões, o filme se utiliza do humor como ferramenta para discutir - sem falsos moralismos - as relações familiares, a velhice, a intolerância e a superficialidade da vida de aparências. O final - que flerta com o absurdo, mas sempre com os pés firmes no chão - é um primor de coragem mesmo em um mundo ainda longe das limitações do politicamente correto. É Mario Monicelli em seu melhor!

segunda-feira

QUANDO UM HOMEM AMA UMA MULHER

 


QUANDO UM HOMEM AMA UMA MULHER (When a man loves a woman, 1994, Touchstone Pictures, 126min) Direção: Luis Mandoki. Roteiro: Ron Bass, Al Franken. Fotografia: Lajos Koltai. Montagem: Garth Craven. Música: Zbigniew Preisner. Figurino: Linda Bass. Direção de arte/cenários: Stuart Wurtzel/Kara Lindstrom. Produção executiva: Ron Bass, Al Franken, Simon Maslow. Produção: Jon Avnet, Jordan Kerner. Elenco: Meg Ryan, Andy Garcia, Lauren Tom, Philip Seymour Hoffman, Ellen Burstyn, Tina Majorino, Mae Whitman. Estreia: 29/4/94

Por incrível que pareça - levando-se em conta o quanto o filme em si não é nada memorável e pouco acrescentou às carreiras dos envolvidos -, a ideia central de "Quando um homem ama uma mulher" surgiu de um rascunho de dez páginas escritas por ninguém menos que Orson Welles. Isso mesmo: o homem responsável por abalar a indústria do cinema com seu "Cidadão Kane" (1941) foi quem escreveu os primeiros rascunhos do filme lançado em 1994 e que conta a história de uma família ameaçada pelo fantasma do alcoolismo. Parte das tentativas de Meg Ryan em abandonar a imagem doce de estrela de comédias românticas, no entanto, a produção dirigida pelo inexpressivo Luis Mandoki não encontrou seu público e, se não foi um fracasso imenso nas bilheterias, tampouco tornou-se um sucesso comercial. Em parte por culpa do tema sombrio - ainda que revestido de uma leveza típica dos filmes Disney (através da Touchstone, sua subsidiária para filmes adultos) -, em parte pela falta de ousadia em mergulhar mais fundo no tema, o filme de Mandoki fica no meio-termo entre o que é e o que poderia ter sido. Pode emocionar aos mais sensíveis, mas sua superficialidade não deixa de incomodar.

Assumindo um papel que foi pensado para Debra Winger (e que também foi oferecido à Michelle Pfeiffer), a adorável Meg Ryan deixa de lado sua persona agradável e encantadora para dar vida (e lágrimas) à Alice Green, uma mãe de família dedicada que esconde, por trás de seus modos gentis e carinhosos, um vício quase paralisante por álcool. Quem sabe de seu problema é Michael (Andy Garcia), um piloto de avião que passa seus dias tentando encobrir as crises da mulher - às vezes sutis, outras bastante violentas. Suas filhas pequenas, Jess (Tina Majorino) e Casey (Mae Whitman), são testemunhas dos acessos da mãe, e sofrem a cada discussão entre os pais - além de serem potenciais vítimas da violência que pode surgir a qualquer momento. Depois de uma crise particularmente grave, Alice aceita ir para uma clínica de reabilitação - mas seu retorno acaba tendo efeitos colaterais graves em sua relação com o marido: antes o pilar que mantinha a família de pé, o responsável e amoroso Michael se vê repentinamente sem função na dinâmica da casa e o casamento encontra, então, uma nova ameaça.

 

Não é que o filme de Mandoki seja exatamente ruim. O problema é que, comparado a outras (e mais corajosas) produções sobre o mesmo tema, "Quando um homem ama uma mulher" empalidece irremediavelmente. Não há, nele, a sensação de urgência de "Farrapo humano" (1945) e "Vício maldito" (1962), que não à toa são referenciais em relação ao assunto. "Despedida em Las Vegas", que seria lançado no ano seguinte, também tem a ousadia que lhe falta, ao mergulhar Nicolas Cage em um espiral de desespero poucas vezes agradável ao olhos do espectador. Visualmente asséptico e emocionalmente superficial, o resultado final soa mais como uma telenovela do que como cinema - para isso conta também o roteiro quadradinho, escrito pelo vencedor do Oscar (por "Rain Man", de 1988) Ron Bass: a relação entre o casal de protagonistas, por exemplo, nunca atinge todo o seu potencial dramático, sendo ofuscado em diversas ocasiões pela dupla de atrizes mirins que interpretam suas filhas. Por mais que a intenção seja retratar o estrago feito pelo vício em um núcleo familiar, não deixa de ser frustrante ver o esvaziamento de uma questão tão séria em uma realização tão pouco ousada e que prefere o melodrama a discussões mais contundentes.

Nitidamente se esforçando em demonstrar uma nova faceta de seu talento, Meg Ryan nem sempre dá conta do recado, muitas vezes caindo na armadilha do exagero que o papel cria a cada cena - mas é louvável que leve a sério sua tarefa (a ponto de ter sido lembrada pelos colegas com uma indicação ao Screen Actors Guild). Andy Garcia, por sua vez, faz o que pode com um personagem que é praticamente o apoio para as crises de Ryan - é de se imaginar como Tom Hanks, a primeira escolha para o papel, se sairia em cena ao lado de Debra Winger. E no elenco coadjuvante, um jovem Philip Seymour Hoffman mal consegue destacar-se, assim como a veterana Ellen Burstyn - mal-aproveitada como a mãe de Alice. Amparando-se na força do tema, mas sem conseguir desenvolvê-lo a contento, "Quando um homem ama uma mulher" é um filme sobre alcoolismo para quem não tem a intenção de vê-lo com toda a feiura e dor que ele traz.

ELVIS

 


ELVIS (Elvis, 2022, Warner Bros/Bazmark Films/Roadshow Entertainment, 159min) Direção: Baz Luhrmann. Roteiro: Baz Luhrmann, Craig Pearce, Sam Bromell, Jeremy Doner, estória de Baz Luhrmann, Jeremy Doner. Fotografia: Mandy Walker. Montagem: Jonathan Redmond, Matt Villa. Música: Elliott Wheeler. Figurino: Catherine Martin. Direção de arte/cenários: Catherine Martin, Karen Murphy/Shaun Barry, Beverly Dunn. Produção executiva: Toby Emmerich, Kevin McCormick, Andrew Mittman, Courtenay Valenti. Produção: Gail Berman, Baz Luhrmann, Catherine Martin, Patrick McCormick, Schuyler Weiss. Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Richard Roxburg, Kelvin Harrison Jr., Kodi Smith-McPhee, Chaydon Jay. Estreia: 25/5/2022 (Festival de Cannes)

8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Austin Butler), Fotografia, Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som, Maquiagem
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator (Comédia/Musical): Austin Butler

Quem conhece a filmografia do cineasta australiano Baz Luhrmann sabe que não se poderia esperar que "Elvis", seu longa-metragem sobre o rei do rock, fosse uma cinebiografia convencional e quadradinha. Rejeitando (pero no mucho) quase todas as regras de um gênero que raramente se arrisca a inovações, Luhrmann não se restringe a encapsular, em pouco mais de duas horas e meia de projeção, os 42 anos do célebre cantor: embaralhando todas as cartas à sua disposição - graças a uma edição magistral e a um roteiro que não se prende a cronologias -, o homem que deu ao mundo o visceral "Moulin Rouge: o amor em vermelho" (2001) faz a sua homenagem não apenas ao artista Presley, mas também ao homem Elvis, à força transformadora e rebelde da música e - por que não? - a um período crucial da história sócio-política dos EUA, quando figuras seminais como Martin Luther King e Robert Kennedy dividiam espaço com personalidades infames como Charles Manson. Além disso, foge do previsível ao centrar seu foco na relação entre o cantor e seu empresário/mentor/amigo/algoz, Coronel Tom Parker - interpretado com a garra de sempre por um irreconhecível Tom Hanks (vítima de críticas pouco simpáticas por parte da imprensa).

Narrado por Parker - o que oferece uma dose a mais de ironia e cinismo à trajetória do rockstar -, "Elvis" percorre o caminho de Presley desde o começo de seu sucesso até sua trágica morte, em agosto de 1977. No entanto, o roteiro passa ao largo de momentos cruciais à carreira do protagonista - como sua carreira em Hollywood -, para concentrar-se em suas relações interpessoais (com os pais, com o empresário, com Priscilla) e em suas tentativas de fugir das regras morais de uma sociedade conservadora e racista. Isso não quer dizer, no entanto, que Luhrmann prive a plateia de números musicais: eles existem e são avassaladores, especialmente graças ao trabalho impecável de Austin Butler no papel-título. Praticamente desconhecido do grande público - apesar de ter o cultuado "Era uma vez.... em Hollywood" (2019) no currículo -, Butler foi a escolha perfeita do diretor: seu desempenho evita as armadilhas que uma mera imitação poderia trazer e envolve o espectador (e os fãs) ao iluminar um ser humano palpável e com sentimentos reais, a anos-luz de qualquer caricatura. Seja no palco, recriando as polêmicas coreografias que tanto incomodavam os puritanos, ou nos bastidores, em momentos mais intimistas, o jovem ator faz esquecer que, a princípio, pouco lembra fisicamente o verdadeiro Elvis. Sua entrega - que lhe rendeu um Golden Globe e uma merecida indicação ao Oscar de melhor ator - é o maior trunfo de um filme que tem muitos deles.
 
 
É inegável que "Elvis" peca na maneira de informar ou detalhar situações importantes da vida e da carreira de seu protagonista - a impressão é que muita coisa passa correndo na tela, mal dando tempo ao público de entender tudo de forma consistente. Porém, levando-se em conta o estilo festivo e espalhafatoso de Baz Luhrmann, tudo faz sentido. Um celebrante do kitsch desde seu primeiro trabalho para as telas - o cult "Vem dançar comigo" (1992) -, o cineasta encontrou no universo feérico das apresentações do cantor um terreno fértil para exercitar suas obsessões visuais. Não para menos, conta com sua fiel escudeira, Catherine Martin, na concepção artística do projeto - casada com o diretor desde 1997 e com quatro Oscar na prateleira (por "Moulin Rouge" e "O grande Gatsby", de 2013). Juntos, eles imprimem em seus filmes um estilo único, facilmente reconhecível e controverso: a cada fã deslumbrado com seus exageros estéticos, há um detrator insatisfeito com tamanha opulência. Tal divisão está, inclusive, no cerne de "Elvis": tudo que faz da filmografia de Luhrmann uma exceção dentro da indústria hollywoodiana está presente em seu sexto longa, para o bem ou para o mal. Em sua obra não há espaço para elocubrações psicológicas ou aprofundamentos dramáticos - o que importa é o que está diante dos olhos do espectador e como isso pode lhe afetar emocionalmente. Em "Elvis" isso está patente em cada escolha estética, em cada ângulo de câmera, em cada corte de edição. Interessa a Luhrmann soterrar a plateia de informações visuais e sonoras, para conduzí-la a uma viagem sinestésica. Quem iniciar o filme procurando uma narrativa comum certamente irá levar um choque. Quem sabe com quem está lidando vai se confrontar com uma produção caprichada, tecnicamente irrepreensível, emocional e reverente - à obra de Presley, à sua figura como ser humano e, aplausos a isso, à importância da cultura negra para sua música e seu sucesso.

"Elvis" é um grande filme. Tem defeitos claros - quem não conhece direito a história do roqueiro provavelmente ainda ficará com uma série de perguntas ao final da sessão -, mas tem qualidades o bastante para amenizar qualquer pecadilho. E, como bom produto cultural, despertou uma nova geração de fãs e reconquistou aqueles que o tempo havia espalhado pelo caminho. Merecidamente indicado a oito Oscar (incluindo melhor filme), acabou atropelado por uma alucinação coletiva chamada "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", mas qualquer fã de cinema é obrigado a reconhecer que é muito superior em todos os quesitos. Mais uma vez Baz Luhrmann foi roubado - e assim como aconteceu com "Moulin Rouge", ficou de fora dos candidatos à estatueta de melhor diretor. Coisas da Academia!

sexta-feira

ATAQUE DOS CÃES


ATAQUE DOS CÃES (The power of the dog, 2021, Netflix/BBC Films, 126min) Direção: Jane Campion. Roteiro: Jane Campion, romance de Thomas Savage. Fotografia: Ari Wegner. Montagem: Peter Sciberras. Música: Jonny Greenwood. Figurino: Kirsty Cameron. Direção de arte/cenários: Grant Major/Amber Richards. Produção executiva: Rose Garnett, Simon Gillis, John Woodward. Produção: Jane Campion, Iain Canning, Roger Frappier, Tanya Seghatchian, Emile Sherman. Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemmons, Kodi Smith-McPhee. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Veneza)

12 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Direção (Jane Campion), Ator (Benedict Cumberbatch), Ator Coadjuvante (Jesse Plemons/Kodi Smith-McPhee), Atriz Coadjuvante (Kirsten Dunst), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Som

Vencedor do Oscar de Direção (Jane Campion)

Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Direção (Jane Campion), Ator Coadjuvante (Kodi Smith-McPhee)

Quem conhece o cinema da neozelandesa Jane Campion sabe que o que lhe interessa é o turbilhão interno de seus personagens. Mesmo quando o sexo está ameaçando romper o verniz de civilidade que revestem seus protagonistas é o que se passa além de seus desejos carnais que chama a sua atenção. Foi assim, por exemplo, com a pianista muda que redescobre o prazer e o amor no mais inesperado momento, no premiado "O piano" (1993) e com a dama da sociedade que se vê alvo de uma armadilha engendrada por seu marido e sua melhor amiga, em "Retrato de uma mulher" (1996). E é assim também em "Ataque dos cães", que estreou no Festival de Veneza de 2021 e imediatamente despertou comentários entusiasmados que o levaram a merecidas doze indicações ao Oscar: a despeito de parecer, a princípio, apenas uma desconstrução dos cânones do western, a história da relação doentia/intrigante/imprevisível entre dois irmãos e a mulher que surge entre eles é um estudo sombrio sobre ciúme, vingança e intolerância, contado com o estilo quase contemplativo de Campion - desta vez centrando sua trama em um protagonista masculino.

Afastada do cinema desde "O brilho de uma paixão" (2009) - como diretora esteve envolvida apenas com a minissérie "Top of the lake", entre 2013 e 2017 -, Jane Campion voltou à cena no auge de sua força narrativa. Explorando o romance de Thomas Savage como ponto de partida, a cineasta/roteirista nada contra a corrente do cinema de fácil digestão ao criar uma teia de sentimentos escondidos, sensações recalcadas e meias-verdades que vão se avolumando até o final - um clímax poderoso, mas de uma sutileza tal que deixa no espectador a dúvida sobre seus reais desdobramentos. O roteiro de Campion é repleto de silêncios avassaladores, sublinhados pela bela trilha sonora de Jonny Greenwood e, enfeitado pelas deslumbrantes paisagens da Nova Zelândia (fazendo as vezes do estado de Montana, cenário da trama), conduz o público a um labirinto de intenções escusas e atrações dúbias: seus personagens não são unidimensionais, seus desejos quase nunca se revelam facilmente e muitas das aparências enganam - essa é "a força do Cão" do título original, a capacidade que o demônio tem de disfarçar sua real face até que seja tarde demais. O teor fatalista do enredo - que pode até soar como uma tragédia grega - encontra na direção suave de Campion (premiada com uma estatueta da Academia) a tradução ideal: mesmo que imprima um ritmo bem mais lento do que a média do cinema contemporâneo, a realizadora acerta em cheio em não apressar o desenvolvimento de seus personagens e de suas ações, oferecendo a eles (e a seus intérpretes fabulosos) espaço suficiente para que jamais pareçam gratuitos ou incoerentes.

 

O personagem principal do filme é Phil Burbank (Benedict Cumberbatch em mais um desempenho memorável): fazendeiro bruto, quase irascível e pouco dado a sutilezas, ele desperta a antipatia imediata da independente Rose (Kirsten Dunst), proprietária de um restaurante de beira de estrada, ao implicar com os modos delicados e sensíveis de seu filho único, Peter (o ótimo Kodi Smith-McPhee). A relação pouco amistosa entre eles não impede, porém, que Rose aceite o pedido de casamento de George (Jesse Plemons), irmão de Phil, e se mude com ele para a fazenda que ambos dividem. A aparente falta de educação de Phil contrasta radicalmente com a delicadeza de Rose e Peter - e logo um clima de constante tensão se instala na propriedade. A dinâmica entre o quarteto só começa a mudar quando Phil inicia uma aproximação com Peter - um caminho sem volta que leva a uma tragédia inesperada, com raízes ocultas em um passado infeliz e (mal) enterrado.

O elenco escolhido por Campion é abismal - não por acaso seus quatro atores centrais chegaram a indicações da Academia. Mesmo sem precisar de longos diálogos, todos eles são capazes de expressar uma vasta gama de emoções - seus olhos, seus gestos e seus silêncios transmitem toda a angústia que circunda a existência de seus personagens. Kirsten Dunst surge como a peça inicialmente frágil em uma disputa de poder e testosterona que só pode acabar mal, mas são Benedict Cumberbatch e Kodi Smith-McPhee que roubam a cena. Seus embates são fascinantes e carregados de uma tensão cujo tamanho vai crescendo até o ponto de explodir - uma explosão que, inteligente e sutil, Campion impede que contradiga o tom delicado do filme até então. Pode até decepcionar a quem espera algo mais radical, mas não trai a essência tanto da produção em si quanto da filmografia de sua criadora. "Ataque dos cães" é um filme para poucos - como o são todos os filmes anteriores de Jane Campion - que recebeu um merecido Oscar por seu meticuloso trabalho. Mas é, também, uma pérola, que se sobressai diante da mesmice de boa parte do cinema contemporâneo hollywoodiano - e uma senhora bola dentro da Netflix, cada vez mais se firmando como espaço para grandes diretores (como Martin Scorsese, Alfonso Cuarón e David Fincher) que buscam liberdade artística.

quinta-feira

SORTE NO AMOR

 


SORTE NO AMOR (Bull Durham, 1988, MGM, 103min) Direção e roteiro: Ron Shelton. Fotografia: Bobby Byrne. Montagem: Robert Leighton, Adam Weiss. Música: Michael Convertino. Figurino: Louise Frogley. Direção de arte/cenários: Armin Ganz/Kris Boxell. Produção executiva: David V. Lester. Produção: Mark Burg, Thom Mount. Elenco: Kevin Costner, Susan Sarandon, Tim Robbins, Robert Wuhl, Trey Wilson, William O'Leary. Estreia: 15/6/88

Indicado ao Oscar de Roteiro Original

Eu acredito na igreja do beisebol. Tentei todas as grandes religiões e a maioria das pequenas. Adorei Buda, Alá, Brahma, Vishnu, Shiva, árvores, cogumelos e Isadora Duncan. Eu sei coisas. Por exemplo, que há 108 contas no rosário católico e há 108 pontos em uma bola de beisebol. Quando soube disso, dei uma chance a Jesus. Mas não deu certo entre nós dois. Deus pôs muita culpa em mim. Eu prefiro metafísica a teologia. Veja, não há culpa no beisebol, e nunca é chato, o que faz dele algo parecido com sexo. Nunca houve um jogador que dormiu comigo e não teve o melhor ano da carreira. Fazer amor é como acertar a bola: é preciso apenas relaxar e se concentrar.

A profissão de fé de Annie Savoy não se refere apenas a sexo e beisebol. Lúcida, bem-resolvida, dona da própria liberdade e do próprio corpo, ela é praticamente uma lenda junto ao Durham Bulls, onde é conhecida por seu ritual anual de escolher um jovem jogador para manter sob sua proteção - sexual e culturalmente falando. Normalmente no controle da situação, ela se vê, no começo da nova temporada, presa a uma inusitada configuração: enquanto se dedica a transmitir sua experiência ao jovem Ebby LaLoosh (Tim Robbins) - um novato tão talentoso quanto prepotente e ligeiramente burro -, ela se percebe surpreendentemente atraída pelo quase veterano Crash Davis (Kevin Costner), contratado justamente para amenizar os rompantes rebeldes do colega mais novo. Contrariando todas as expectativas, Crash resiste ao magnetismo sexual de Annie - principalmente por não ver o sexo com o pragmatismo da bela professora - e acaba por forçar um inesperado triângulo amoroso que afeta até mesmo o desempenho do time no campeonato.

"Sorte no amor" é um caso raro dentro do cinema hollywoodiano: um filme sobre beisebol que não fracassou nas bilheterias. Mesmo longe de ter sido um estouro comercial avassalador, o filme de Ron Shelton teve êxito o suficiente para encorajar os estúdios a apostar no gênero depois de várias tentativas infrutíferas de repetir nas telas o êxito dos estádios. Amparado em um roteiro simpático e agradável - indicado ao Oscar - e no carisma de seu trio de atores principais, o misto de comédia, romance e esporte caiu nas graças das plateias e da crítica sem medo de demonstrar-se uma produção adulta, com um público-alvo bem definido e sem ceder ao humor fácil ou vulgar: apesar de o sexo ser um elemento fundamental para a história, Shelton o utiliza de forma bem-humorada e quase ingênua. A opção de enfatizar o tom cômico da trama (Annie ensinando poesia e literatura a seus amantes, enquanto explora seus dotes físicos; um jogador entrando em campo vestindo roupas íntimas femininas) sobre a sensualidade pura e simples é um acerto - e ninguém melhor que Susan Sarandon do que encarnar ambos os lados da equação.

 

A princípio recusada pela Orion Pictures sob a alegação de ser velha demais para o papel principal (aos 41 anos!!), Sarandon cala a boca de qualquer opositor assim que entra em cena, com sua personalidade fascinante e exuberante. Não é difícil compreender porque tanto Crash - com sua vasta experiência sexual - quanto LaLoosh - no auge de sua libido juvenil - caem de amores por ela e são capazes de sair no braço por sua atenção. Dando início a um período brilhante de sua carreira (que culminaria com um Oscar por "Os últimos passos de um homem", de 1995), Sarandon enche a tela de um carisma raro - não à toa seu parceiro de cena Tim Robbins apaixonou-se por ela durante as filmagens e casou-se com ela. Certamente nenhuma das outras atrizes sondadas para viver Annie Savoy seria tão perfeita - nem Debra Winger, nem Kelly McGillis, nem Glenn Close e nem Kim Basinger. Nem mesmo a bela Michelle Pfeiffer, não aceita pelo estúdio pelo motivo radicalmente oposto ao de Sarandon (a saber, ser considerada jovem demais para interpretar a calejada fã de beisebol). E, por mais talento que todas elas tenham, química não se encontra em qualquer esquina - e é o que mais se vê entre os três protagonistas.

Kevin Costner, entrando na curva ascendente que lhe renderia uma penca de Oscar por "Dança com lobos" (1991), não é um grande ator, mas seu charme de bom moço caiu como uma luva em sua interpretação do certinho Crash Davis - ainda que outros atores tenham sido cotados para tal, como Jeff Bridges, Nick Nolte, Don Johnson, Richard Gere e Mel Gibson (além dos absurdamente inadequados Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger). E se Tim Robbins - então na flor dos 31 anos de idade - não tinha exatamente o tipo de galã tradicional, encontrou em Ebby LaLoosh um veículo ideal para exibir o timing cômico que chegaria ao ápice em "As aventuras de Erik, o viking" (1989) e o talento para produções menos óbvias, como "Alucinações do passado" (1989). Juntos a Susan Sarandon, são eles que mantém o interesse em "Sorte no amor" mesmo por aqueles que não fazem a menor ideia de como funcionam as regras de beisebol - ou não estão nem um pouco inclinados a saber. Feito para os fãs do esporte, mas sem ignorar o vasto público que não o é, Ron Shelton realizou o melhor filme de sua carreira e um dos melhores do gênero.

terça-feira

O FILME DA MINHA VIDA

 


O FILME DA MINHA VIDA (O filme da minha vida, 2017, Bananeira Filmes/Globo Filmes/MGM, 113min) Direção: Selton Mello. Roteiro: Selton Mello, Marcelo Vindicato, romance "Um pai de cinema", de Antonio Skármeta. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Marcio Hashimoto. Música: Plínio Profeta. Figurino: Kika Lopes. Direção de arte/cenários: Claudio Amaral Peixoto/Monica Delfino, René Padilha, Claudio Amaral Peixoto. Produção executiva: Vânia Catani, Selton Mello. Produção: Vânia Catani. Elenco: Johnny Massaro, Selton Mello, Vincent Cassel, Bruna Linzmeyer, Bia Arantes, Ondina Clais, Martha Nowill, Rolando Boldrin, Erika Januza. Estreia: 03/8/2017

A família é sempre um elemento crucial no cinema de Selton Mello. Desde que iniciou sua carreira como cineasta - com o denso "Feliz Natal" (2008) -, o também ator, roteirista e produtor passou a direcionar sua câmera a personagens mergulhados em dúvidas existenciais e questões mal resolvidas com aqueles que, dividindo o mesmo sangue ou não, fazem parte de seu entorno sentimental. Seja através da claustrofobia de seu primeiro trabalho ou da terna nostalgia de seu filme seguinte, "O palhaço" (2011), a filmografia de Selton espelha, de forma poética e por vezes dolorida, a preocupação com o mais íntimo de seus protagonistas, frequentemente atormentados por fantasmas pessoais. É o que acontece também em "O filme da minha vida", sua terceira incursão na cadeira de diretor: baseado no livro "Um pai de cinema", do chileno Antonio Skármeta, o filme é a história do amadurecimento (amoroso, sexual, profissional) de um jovem abalado pela inexplicável falta de um pai cuja ausência se faz sentida em cada momento. Esteticamente deslumbrante e e com extremo cuidado em cada detalhe, "O filme da minha vida" é um considerável passo à frente na carreira do Selton Mello diretor - tanto em termos visuais quanto narrativos.

Mais um protagonista assombrado por laços sanguíneos problemáticos, o jovem Tony Terranova (Johnny Massaro) retorna à sua Remanso, no ano de 1963, vindo da faculdade, e descobre que seu pai, Nicolas (Vincent Cassel) o está abandonando e à sua mãe para retornar à sua França natal. Atônito com tal situação, ele passa a dedicar seus dias à tentativa de descobrir os motivos que o levaram a atitude tão extrema. Nesse meio-tempo, sua rotina inclui aulas para pré-adolescentes em ebulição hormonal, sua fascinação pela bela Petra Madeira (Bia Arantes) - a ponto de não perceber a atração que exerce na irmã dela, Luna (Bruna Linzmeyer) - e conversas frequentes com Paco (Selton Mello), melhor amigo de seu pai, de quem tenta arrancar pistas sobre seu paradeiro e um exemplo de figura masculina. Misturando-se a lembranças felizes de sua infância, seu sentimento de inadequação o leva a questionar sua capacidade de servir como modelo a seus alunos, ansiosos por entrar na vida adulta.

 
 
 Filmado em cidades da serra gaúcha - local pródigo em locações deslumbrantes, captadas com extrema competência pelo veterano Walter Carvalho -, o terceiro trabalho de Mello seduz, a princípio, pelo visual acachapante, que mergulha o espectador em um mundo à parte, em uma atmosfera rarefeita onde seus personagens transitam de forma (positivamente) afetada. Ao abrir mão do naturalismo que virou marca registrada do cinema nacional, o diretor acaba por exigir mais do público, e lhe oferece em troca uma experiência rica em termos plásticos e emocionais. Com uma trilha sonora escolhida a dedo - com clássicos dos cancioneiros francês e brasileiro ilustrando sequências encantadoras - e um elenco brilhante (dos protagonistas aos menores coadjuvantes, especialmente os infantis), "O filme da minha vida" é o feliz encontro do calor do cinema brasileiro com a sofisticação quase cerebral do cinema europeu. Selton Mello conduz o espectador por um caminho fascinante, em que a emoção brota quando menos se espera - e sempre de forma elegante, como nos filmes assistidos pelo romântico Tony. Mesmo que o desfecho deixe a desejar (depois de uma reviravolta interessante em que o diretor/ator aproveita para fazer uma discreta homenagem ao cinema), as qualidades técnicas e artísticas do filme são tão consistentes que é difícil não se deixar conquistar por elas. Ciente das ferramentas de que poderia utilizar para contar sua história, Mello as aproveita como um veterano, equilibrando técnica e emoção nas medidas certas.

Expandindo o romance que lhe deu origem - escrito pelo mesmo Antonio Skármeta de "O carteiro e o poeta" -, o roteiro de "O filme da minha vida" corre sem pressa diante dos olhos do espectador. A bela paisagem gaúcha emoldura um ritual de passagem repleto de um humor ingênuo e sentimental - algo que também fez parte de "O palhaço" - e tem em Johnny Massaro sua figura de centro. Mesmo apático em alguns momentos, Massaro parece ter encarnado com perfeição o Tony Terranova criado pelos autores, intercalando uma melancolia quase incurável com olhos de esperança inevitável. Ao lado de Selton Mello (o ator em um personagem encantador em sua quase misantropia) e de um elenco que conta com o francês Vincent Cassel em uma participação especialíssima, Massaro prova o alto grau de excelência que o cinema nacional pode alcançar. Pode até não ser um filme para o público que gosta de blockbusters, mas é o cinema brasileiro em seu mais alto patamar artístico.

REENCARNAÇÃO

 


REENCARNAÇÃO (Birth, 2004, New Line Cinema/Fine Line Features, 100min) Direção: Jonathan Glazer. Roteiro: Jonathan Glazer, Jean-Claude Carrière, Milo Addica. Fotografia: Harris Savides. Montagem: Sam Sneade, Claus Wehlisch. Música: Alexandre Desplat. Figurino: John Dunn. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/Ford Wheeler. Produção executiva: Xavier Marchand, Mark Ordesky, Kerry Ordent. Produção: Lizie Gower, Nick Morris, Jean-Louis Piel. Elenco: Nicole Kidman, Cameron Bright, Danny Huston, Lauren Bacall, Anne Heche, Arliss Howard, Peter Stormare, Cara Seymour, Ted Levine. Estreia: 08/9/2004 (Festival de Veneza)

Um dos filmes mais polêmicos da temporada 2004 de cinema começou sua trajetória de controvérsias já em sua estreia, no Festival de Veneza, quando foi recebido com vaias e críticas contundentes por parte da imprensa. Em pouco tempo, uma cena em que sua estrela, Nicole Kidman, dividia (nua) uma banheira com uma criança (igualmente sem roupa) tornou-se motivo de gritaria entre os mais conservadores, e acabou por eclipsar o que a própria atriz chamou de uma história sobre luto e vulnerabilidade. Dirigido por Jonathan Glazer - que vários anos depois seria indicado ao Oscar por "Zona de interesse" (2023) - e tendo entre seus corroteiristas o experiente Jean-Claude Carrière, "Reencarnação" demorou a ser visto sem a capa de imoral, imposta por uma parcela conservadora da plateia, e ter suas qualidades reconhecidas pelo público. É um filme que se equilibra com razoável destreza entre o drama psicológico e o suspense, amparado por um visual sóbrio e uma trilha sonora que reflete o tom inquietante de sua premissa - além de contar com uma das mais profundas e subestimadas atuações de Kidman, então recém premiada com o Oscar por "As horas" (2002).

De cabelos curtíssimos e uma elegância à toda prova, Kidman interpreta a delicada Anna, uma mulher arrasada pela morte repentina e precoce do marido, vítima de um ataque cardíaco. Depois de um ano de sofrimento e luto, ela finalmente parece estar disposta a prosseguir sua vida ao casar-se com um antigo apaixonado, Joseph (Danny Huston). Seus planos, porém, são interrompidos quando entra em cena o pequeno Sean (Cameron Bright), um menino de dez anos de idade que alega ser a reencarnação de seu falecido marido. Munido de informações a respeito de seu relacionamento com Anna que são apenas do conhecimento do casal, o garoto insiste em manter contato com a jovem viúva, que, para angústia de sua família - atônita com a situação -, passa a levar a sério a possibilidade de ter reencontrado o amor de sua vida. Se aproximando cada vez de Sean, Anna passa a questionar seu novo relacionamento e as escolhas de sua vida, enquanto Joseph tenta provar a ela que tudo não passa de um absurdo sem tamanho.

 

Se existe um adjetivo que acompanha "Reencarnação" em cada minuto, esse adjetivo é "elegante". Não apenas devido aos ambientes chiques de Nova York onde circulam seus personagens ou à sofisticação inerente à Nicole Kidman, no auge de sua fase mais etérea. Tampouco é responsabilidade apenas da fotografia de enquadramentos discretos de Harris Savides ou da trilha sonora marcante de Alexandre Desplat. A elegância do filme de Glazer advém principalmente de seu ritmo plácido, quase contemplativo, que reflete em imagens a alma melancólica de sua protagonista. Dotado de expressões minimalistas que transmitem de forma sutil o turbilhão de sua Anna, o rosto de Nicole Kidman é o instrumento perfeito do diretor para contar sua história, repleta de silêncios e mistérios que vão se revelando sem pressa diante dos olhos do público e de seus familiares - entre as quais uma subaproveitada Lauren Bacall. O único (e grande) senão é a mudança radical de rumo no terço final, quando a trama toma rumos que mudam tudo que se poderia imaginar até então. Para alguns uma reviravolta muito bem-vinda; para outros o enfraquecimento de um interessante estudo sobre a quebra de paradigmas e certezas absolutas.

Fascinante em seu modo de desenrolar a narrativa, provocando o espectador até o limite de seu conservadorismo - segundo a atriz Christina Applegate o roteiro final amenizou consideravelmente o teor sexual da trama, com a chegada de Nicole Kidman ao projeto -, "Reencarnação" já demonstrava em Jonathan Glazer um diretor sensível e atento aos detalhes visuais e dramáticos de seus trabalhos. Ao fugir do óbvio - como o fez em "Zona de interesse" quase duas décadas mais tarde -, ele imprime uma personalidade própria a seu filme, mesmo correndo o risco de ser incompreendido ou simplesmente taxado de chato. "Reencarnação" é lento. É sutil. E é ousado. Pode não ser um grande filme (talvez lhe falte coragem de encerrar dignamente), mas é um filme ainda subestimado por boa parte do público acostumado a mais do mesmo.

segunda-feira

SPLENDOR

 


SPLENDOR (Splendor, 1989, Cecchi Gori Group/Tiger Cinematografica/Studio El/Gaumont/Warner Bros, 115min) Direção e roteiro: Ettore Scola. Fotografia: Luciano Tovoli. Montagem: Francesco Malvestito. Música: Armando Torovaioli. Figurino: Gabriella Pescucci. Direção de arte/cenários: Luciano Ricceri/Ezizo Di Monte. Produção: Mario Cecchi Gori, Vittorio Cecchi Gori. Elenco: Marcello Mastrroianni, Massimo Troisi, Marina Vlady, Paolo Panelli, Pamela Villoresi. Estreia: 09/3/89

Dois filmes italianos, lançados com a diferença de seis meses entre si, fizeram com que plateias internacionais voltassem os olhos ao passado do cinema, com seus clássicos incontestáveis servindo de matéria-prima para uma jornada de nostalgia e emoção. Um deles, "Cinema Paradiso" - que estreou no final de setembro de 1988 - entrou diretamente no coração do público e acabou seu caminho com um merecido Oscar de melhor filme estrangeiro. O outro, "Splendor", dirigido pelo veterano Ettore Scola, chegou às telas em março de 1989 mas, apesar da presença sempre hipnotizante de Marcello Mastroianni, não obteve o mesmo reconhecimento por parte dos espectadores. Bem menos sentimental do que a viagem de Giuseppe Tornatore à sua pequena Giancaldo, o filme de Scola só apela para as lágrimas em seus belos minutos finais e talvez por isso - e pela provável sensação de que sua história havia recém sido contada - tenha ficado à sombra de seu rival mais consagrado. Isso quer dizer que é menor que ele? De forma alguma. Apesar da temática soar semelhante, "Cinema Paradiso" e "Splendor" tem qualidades e narrativas diferentes - pode-se até dizer que um complementa o outro e formam um belo panorama sobre a importância do cinema em existências aparentemente banais. E o fato de um deles contar com Mastroianni no elenco - um dos ícones da produção cinematográfica europeia (e da italiana em particular) torna tudo ainda mais interessante.

Enquanto "Cinema Paradiso" apostava na emoção deslavada e pontuava sua trama com uma pungente história de amor, "Splendor" centra sua narrativa em personagens adultos, que se equilibram na tênue linha que separa o idealismo romântico e o pragmatismo econômico e social. Seu protagonista, Jordan (Marcello Mastroianni), é o dono de uma sala de cinema que, a despeito de seus dias de glória, se vê às portas da falência. Com a concorrência da televisão e a queda de público, ele tenta quixotescamente manter as portas abertas - apelando até mesmo para possíveis shows de striptease -, mas sabe que o fim é inevitável. Com a ajuda do projecionista Luigi (Massimo Troisi) e da fiel Chantelle (Marina Vlady), Jordan busca a solução de seus problemas mesmo ciente da inutilidade de seus esforços. Tendo herdado o cinema de seu pai - que projetava filmes ao ar livre durante sua infância -, Jordan não vê seu trabalho como um mero negócio, e sim como um estilo de vida, uma profissão de fé. Seu amor pela rotina no salão significa mais para ele do que apenas uma prestação de serviços: apaixonado por filmes, ele os tem como marcas indeléveis para cada fase e momento de sua vida, desde os dias de criança até a maturidade. Quando finalmente joga a toalha e vende o espaço para um negociante de móveis, é impossível não se deixar invadir por uma profusão de memórias - nem todas em ordem cronológica, mas todas de vital importância em sua trajetória pessoal.

 

Sem a trilha sonora arrasadora de Ennio Morricone e sem o apelo da pureza infantil do pequeno Salvatore Cascio - dois dos maiores destaques do filme de Tornatore -, "Splendor" perde muito na comparação em termos sentimentais. Scola não é um diretor que manipula emoções de forma óbvia, preferindo sempre a sutileza e o tom sóbrio de suas narrativas. Sua opção em contar a história fora de ordem cronológica é válida, mas peca em não permitir ao espectador uma conexão mais profunda com seus personagens, que muitas vezes soam superficiais e pouco interessantes. O romance entre Luigi e Chantelle, por exemplo, falha em cativar a audiência, e até mesmo a relação de Jordan com a família não é aprofundada o bastante para causar algum tipo de catarse. Mastroianni é sempre um ator de presença forte, mas, com exceção da bela sequência final (e um ou outro momento pontual) não entrega a performance memorável que se poderia esperar de um encontro com Ettore Scola, com quem trabalhou em outras ocasiões - como no espetacular "Um dia muito especial" (1977). E Massio Troisi não está muito diferente do que demonstrou alguns anos depois com "O carteiro e o poeta" (1994), que lhe rendeu uma indicação póstuma ao Oscar de melhor ator.

Mesmo sem alcançar todo o seu potencial emotivo e de ter sido eclipsado pela obra-prima de Giuseppe Tornatore, "Splendor" ainda tem muito coisa a ser admirada. Com um roteiro que oferece pinceladas da história política e social da Itália pós-guerra - característica da obra do diretor - e uma produção caprichada que reconstitui com precisão todas as épocas que abarcam a história do filme, a declaração de amor de Scola ao cinema atinge em cheio o coração da plateia em seus minutos finais (uma referência direta ao clássico "A felicidade não se compra", de Frank Capra) e, no decorrer de sua narrativa carinhosa, brinda os fãs da sétima arte com flashes de grandes estrelas e cenas de produções inesquecíveis - e Scola, modesto que era, abdicou de colocar nesses clipes alguns de seus trabalhos geniais. Ou alguém acha que "Nós que nos amávamos tanto" (1974) ou "Feios, sujos e malvados" (1976) não poderiam estar nesta lista?

sexta-feira

MEU VIZINHO MAFIOSO

 


MEU VIZINHO MAFIOSO (The whole nine yards, 2000, Franchise Pictures, Lansdown Films, 98min) Direção: Jonathan Lynn. Roteiro: Mitchel Kapner. Fotografia: David Franco. Montagem: Tom Lewis. Música: Randy Edelman, Gary Gold. Figurino: Edi Giguere. Direção de arte/cenários: David L. Snyder/Mary Lynn Deacham. Produção executiva: George Edde, Elie Samaha, Andrew Stevens. Produção: Allan Kaufman, David Willis. Estreia: Bruce Willis, Matthew Perry, Natasha Henstridge, Amanda Peet, Rosanna Arquette, Kevin Pollak, Michael Clarke Duncan. Estreia: 17/02/2000

Às vezes um grande astro de cinema só gostaria de se divertir durante o trabalho - e se, de quebra, ainda divertir o espectador, o lucro é ainda maior. É o que acontece com "Meu vizinho mafioso": nitidamente um veículo para explorar o lado cômico do ator Bruce Willis - com a carreira ressuscitada pelo êxito de "O sexto sentido" (1999) -, o filme de Jonathan Lynn conquista justamente por sua despretensão e frescor. Tirando sarro de sua imagem de galã sem precisar de muito esforço, Willis mostra-se à vontade mesmo tendo que dividir a atenção com um colega de cena especialista em fazer rir. Em seu terceiro trabalho como protagonista no cinema, Matthew Perry - no auge do sucesso da série "Friends" - pela primeira vez tem espaço para oferecer à plateia o que sempre teve de melhor: um timing cômico nunca menos que impecável Em uma parceria inspirada - que levou Willis a fazer uma participação especial no seriado de Perry -, os dois atores valorizam e se sobressaem a um roteiro por vezes engessado (ainda que dotado de boas tiradas e alguns momentos genuinamente engraçados). Não bastasse isso, o elenco ainda conta com um inesperado destaque: a bela Amanda Peet, quase roubando a cena dos colegas mais experientes.

Primeira grande produção hollywoodiana filmada em Montreal (Canadá), "Meu vizinho mafioso" conta a história de Nicholas Oseransky (Matthew Perry), um dentista cuja vida doméstica é um inferno devido à sua impossibilidade de divorciar-se da esposa, Sophie (Rosanna Arquette), a filha de um antigo sócio. Com uma rotina entediante e sem perspectivas, ele se surpreende ao chegar do trabalho e dar de cara com o novo vizinho, que ele reconhece, apavorado, ser Jimmy Tudeski (Bruce Willis), um assassino de aluguel em liberdade condicional depois de ter delatado vários criminosos violentos. Surge entre eles uma inusitada amizade, que entra em conflito quando o pacato cidadão de bem se vê obrigado pela esposa a viajar até Chicago e dar a localização do ex-matador para o filho de seu antigo chefe, Janni Gogolak (Kevin Pollak). Disposto a ignorar as ordens da desagradável cônjuge, Nicholas se vê descoberto por um capanga de Gogolak, o assustador Frankie Figs (Michael Clarke Duncan) - e fica ciente de que ele mesmo está com a cabeça a prêmio. As coisas ficam ainda mais confusas quando ele se apaixona pela ex-mulher de Jimmy, a bela Cynhtia (Natasha Henstridge), e acaba sendo o centro de uma perigosa jogada que coloca os dois inimigos frente à frente. Como se não fosse suficiente, Jimmy se encanta pela secretária de Nicholas, a atraente Jill (Amanda Peet) - que também tem seus segredos bem guardados por trás da imagem de profissional dedicada.

 

Dirigido pelo mesmo Jonathan Lynn que levou Marisa Tomei ao Oscar de atriz coadjuvante por "Meu primo Vinny" (1992), "Meu vizinho mafioso" se escora em dois pilares supremos. O primeiro deles é a trama, repleta de reviravoltas, surpresas, personagens dúbios e uma série de possibilidades (nem todas exploradas pelo roteiro, diga-se de passagem). O outro é seu elenco, que mistura rostos conhecidos, gente nova, belas mulheres e dois atores no auge de seu talento cômico. A união dessas duas bases - tão cruciais mas frequentemente esquecidas pelos produtores - resulta em um filme simpático, do qual é fácil de se gostar mesmo que não consiga deixar de ser apenas uma sessão da tarde divertida e inconsequente. Lynn não é um diretor brilhante, mas acerta ao permitir que Matthew Perry explore seu dom em construir personagens de fácil empatia com a plateia e enfatize o charme cafajeste de Bruce Willis. Ainda que o roteiro se torne um tanto confuso no ato final - culpa do excesso de personagens e da edição pouco criativa  -, a produção cumpre com louvor o que promete, fazendo rir com o absurdo das situações deflagradas por um simples aperto de mão entre vizinhos.

Com uma renda de mais de 100 milhões de dólares coletados pelo mundo - a maior bilheteria da carreira cinematográfica de Matthew Perry -, "Meu vizinho mafioso" acabou sofrendo do mesmo mal dos inesperados sucessos comerciais, dando origem a uma sequência, lançada em 2004 e que fracassou fragorosamente mesmo contando com o mesmo elenco principal. Sinal de que o frescor de uma ideia muitas vezes é tão importante quanto atores na crista da onda. Com direção de Howard Deutch - de "A garota de rosa-shocking" (1986) -, "Meu vizinho mafioso 2" manchou as lembranças positivas de seu original, que felizmente se mantém como um entretenimento dos mais agradáveis.

quinta-feira

SEM LICENÇA PARA DIRIGIR


SEM LICENÇA PARA DIRIGIR (License to drive, 1988, 20th Century Fox, 88min) Direção: Greg Beeman. Roteiro: Neil Tolkin. Fotografia: Bruce Surtees. Montagem: Wendy Greene Bricmont, Stephen Semel. Música: Jay Ferguson. Figurino: Hilary Wright. Direção de arte/cenários: Lawrence G. Paull/Jeff Halley. Produção: John A. Davis, Andrew Licht, Jeffrey A. Mueller. Elenco: Corey Haim, Corey Feldman, Heather Graham, Carol Kane, Richard Masur, Nina Siemaszko. Estreia: 06/7/88

O público adolescente dos anos 1980 tinha um subgênero cinematográfico para chamar de seu e um grupo de astros próprios. Dentre esses nomes conhecidos e admirados por todos, estavam dois amigos que compartilhavam o mesmo primeiro nome, uma série de filmes em comum e uma história de amistosa rivalidade. Corey Haim e Corey Feldman tinham poucos meses de idade de diferença e disputaram papéis em várias produções - e para desgosto de Feldman, seu concorrente era sempre escolhido como protagonista, até mesmo por seu visual mais próximo do que se considerava ideal na Hollywood da época. Vítimas de constantes abusos nos bastidores - ao menos segundo o polêmico documentário "The two Coreys" (2007) - estiveram juntos em sucessos como "Os garotos perdidos" (1987), e repetiram a parceria em "Sem licença para dirigir", uma comédia despretensiosa e barata que, seguindo todas as diretrizes do gênero, conquistou seu público-alvo ao apostar no carisma de seu elenco e no ritmo ágil, que faz com que seus quase noventa minutos de duração passem voando.

Quem assiste a uma comédia adolescente dos anos 1980 - seara na qual John Hughs nadou de braçada, além de lançar nomes como Molly Ringwald e Anthony Michael Hall -, sabe o que se pode esperar de "Sem licença para dirigir": protagonistas conduzidos por seus hormônios em combustão, situações banais transformadas em odisseias quase épicas, um humor quase ingênuo calcado na realidade de seu público-alvo e zero compromisso com a verossimilhança. Dito isso, é difícil não se deixar conquistar pela simpatia da trama e de seus (quase) fracassados personagens. Corey Haim vive o desajeitado e tímdo Les Anderson, que, aos dezesseis anos, tem apenas dois objetivos claros na vida: tirar a carteira de motorista e conquistar a bela Mercedes Lane (Heather Graham), uma colega de classe que namora um rapaz mais velho e devidamente motorizado. Depois de uma briga com o namorado, a bela Mercedes convida seu fã para um encontro e, como não poderia deixar de ser, Les agarra a oportunidade com unhas e dentes. Porém, depois de mentir aos pais que passou na prova teórica - e por consequência ter falhado em conquistar sua licença -, Les é proibido de sair de casa à noite, o que impede de por em prática seus planos românticos. Sem querer perder a oportunidade, no entanto, Les acaba por fugir com o Cadillac de seu avô para encontrar a mulher de seus sonhos - e embarca em uma noite em que tudo que poderia dar errado acontece.

 

Quem abandonar o senso crítico e mergulhar na trama quase nonsense do roteirista Neil Tolkin certamente irá encontrar muito com o que se divertir em "Sem licença para dirigir". A direção de Greg Beeman - cujo currículo não apresenta trabalhos de grande destaque - acerta em tratar as aventuras e desventuras de Les Anderson como uma jornada de pequenas desgraças, em que cada mal-entendido leva a uma consequência maior e mais absurda que a anterior. Assim como no quase clássico juvenil "Curtindo a vida adoidado" (1986), seu filme se utiliza de um período determinado (e limitado) de tempo como um rito de passagem, onde valores como coragem e lealdade surgem diante de uma série de adversidades que, no final das contas, servem para forçar uma espécie de maturidade. Criado quase em uma redoma por pais superprotetores (e à espera de um bebê em vias de chegar ao mundo), Les se vê repentinamente obrigado a cuidar de si mesmo, de sua pretensa namorada, dos amigos próximos (um deles vivido por Corey Feldman) e do sacrossanto carro de seu avô. Nem sempre consegue - mais por culpa alheia do que própria -, mas, ao assumir responsabilidades, o jovem descobre, em si mesmo, uma força e uma capacidade impensadas. E ser adolescente, afinal de contas, não é exatamente isso?

Contando com a ótima Carol Kane em uma pequena participação como a mãe ultra-grávida de Les e com Heather Graham em seu primeiro papel de destaque - ainda que no ingrato papel de interesse romântico quase mudo e sem maior desenvolvimento no roteiro -, "Sem licença para dirigir" não assumiu o status de clássico juvenil, como o já citado "Curtindo a vida adoidado" e outros filmes dirigidos e/ou produzidos por John Hughes, como "Clube dos cinco" (1985) e "A garota de rosa-shocking" (1986). No entanto, ao seguir sua bem-sucedida fórmula (mas dando ênfase no humor e não ao romance), se demonstra uma produção igualmente divertida e empolgante. Uma sessão da tarde das mais nostálgicas!

quarta-feira

TRATAMENTO DE CHOQUE

 


TRATAMENTO DE CHOQUE (Anger management, 2003, Revolution Studios, 106min) Direção: Peter Segal. Roteiro: David Dorfman. Fotografia: Donald McAlpine. Montagem: Jeff Gourson. Música: Teddy Castellucci. Figurino: Ellen Lutter. Direção de arte/cenários: Alan Au/Brad Davis, Chris Spellman. Produção executiva: Allen Covert, Todd Garner, Tim Herlihy, John Jacobs, Adam Sandler. Produção: Barry Bernardi, Jack Giarraputo. Elenco: Jack Nicholson, Adam Sandler, Marisa Tomei, John Turturro, Woody Harrelson, John C. Reilly, Luis Guzman, Alen Covert, January Jones. Estreia: 11/4/2003

Um tem doze indicações ao Oscar e três estatuetas para chamar de suas. O outro é frequentemente criticado por seus méritos artísticos ainda que de vez em quando surpreenda ao trabalhar com cineastas de prestígio. Um deles é um ícone absoluto do cinema hollywoodiano desde o final dos anos 1960. O outro entrou no imaginário popular somente a partir da década de 1990. Um deles passeou por todos os gêneros possíveis - começando com os filmes de horror de Roger Corman - e fez personagens tão díspares quanto um lobisomem quanto um escritor com TOC. O outro especializou-se em tipos comuns e dividiu-se entre comédias (românticas ou debochadas). Ambos tiveram filmes com bilheterias expressivas e tem uma legião de fãs - nem sempre os mesmos, mas em número considerável. Por mais diferentes que possam ser e por mais incompatíveis que pareçam, Jack Nicholson e Adam Sandler acabaram por revelar uma insuspeita química em "Tratamento de choque", uma comédia inofensiva que explora o melhor de cada um de seus protagonistas e conquista justamente pelo inusitado encontro de gerações.

Sem medo de apostar em algumas piadas fora do politicamente correto - mas sem os exageros dos irmãos Farrelly - e brincando com a febre dos coachs que assolava os EUA (e posteriormente se espalhou pelo mundo), o roteiro de "Tratamento de choque" mescla, com sucesso na maior parte do tempo, um filme sobre parceiros de personalidades opostas (subgênero popularíssimo e querido pelo público em geral) e uma comédia romântica com todos os ingredientes já conhecidos. Depois de uma breve introdução em que oferece à plateia um flashback explicativo sobre o trauma do protagonista em demonstrar carinho em lugares públicos, o filme começa com o jovem Dave Buznik (Adam Sandler) embarcando em uma viagem de negócios. O que deveria ser um voo tranquilo, no entanto, torna-se o começo de um pesadelo quando um pequeno mal-entendido o leva a ser expulso do voo e condenado a uma série de sessões de terapia para tratar de sua suposta agressividade. O médico escolhido pela juíza é o renomado Buddy Rydell (Jack Nicholson) - justamente o homem cujo comportamento deu início ao transtorno na viagem - e o atônito Dave se vê obrigado a um tratamento intensivo que inclui 24 horas por dia a seu lado. Dono de um estilo heterodoxo de cuidar de seus pacientes, Rydell se intromete em todos os setores da vida do rapaz - o que parece mais atrapalhar do que ajudar em suas questões profissionais e amorosas. Nem mesmo sua namorada, Linda (Marisa Tomei), parece estar imune aos arroubos pouco normais do médico, famoso por realizar milagres mesmo com seus métodos excêntricos.

 

Buddy Rydell parece um personagem sob medida para Jack Nicholson, que oferece ao público tudo aquilo que faz dele um dos mais queridos atores de sua geração - olhares insanos, a risada debochada, a sensação de perigo constante e um charme à toda prova. Porém, Nicholson não foi a primeira opção para o papel, que aceitou a conselhos de Kathy Bates, colega de Adam Sandler em "O rei da água" (1998): o primeiro ator pensado para interpretar o tresloucado terapeuta foi o de Eddie Murphy, e até que o veterano ator de "Um estranho no ninho" (1975) entrasse em cena, nomes como os de Robert DeNiro, Dustin Hoffman, Bill Murray e Steve Martin chegaram a ser considerados pelos produtores, cientes de que era imprescindível um astro de peso para dividir a cena com Sandler. Sem apresentar grandes novidades a seu repertório como intérprete - coisa que provavelmente nem era algo esperado por seu fiel séquito de fãs -, Sandler surpreende apenas em apostar em uma bem-vinda sutileza que se contrapõe à atuação a um passo do exagero (proposital) de seu veterano parceiro de cena. Os dois combinam tão bem que o filme se dá ao luxo de contar com participações especiais de gente como John C. Reilly e Woody Harrelson sem sair do foco central, que é sua conflituosa (e quase perversa) relação. O único senão é explorar tão pouco o talento da ótima Marisa Tomei, que pouco tem a fazer como o interesse romântico do protagonista.

"Tratamento de choque" é uma daquelas comédias que cumpre exatamente o que promete - e até chega a surpreender com uma reviravolta final que justifica alguns excessos cometidos no meio do caminho. O encontro entre Nicholson e Sandler é certeiro, boa parte das piadas funciona e a direção de Peter Segal não tenta sobressair-se ao real destaque da produção, que é o encontro de seus atores centrais. Pode não ser o melhor filme de suas carreiras e nem um trabalho para entrar na história do cinema, mas é divertido o bastante para arrancar gargalhadas sinceras e mostrar que Jack Nicholson é um dos raros atores capazes de transformar qualquer roteiro, por mais banal que seja, em uma experiência satisfatória. Coisa de quem sabe!

terça-feira

NOITES DE CABÍRIA


NOITES DE CABÍRIA (Le notti di Cabiria, 1957, De Laurentiis/Marceau, 110min) Direção: Federico Fellini. Roteir: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli. Fotografia: Aldo Tonti. Montagem: Leo Catozzo. Música: Nino Rota. Figurino: Piero Gherardi. Direção de arte: Piero Gherardi. Produção: Dino De Laurentiis. Elenco: Giulietta Masina, François Perier, Franca Marzi, Dorian Gray. Estreia: 11/5/57 (Festival de Cannes)

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Giulietta Masina)

É impossível não se apaixonar por Cabíria. Alegre, resiliente e sempre otimista apesar de o mundo tentar nocauteá-la, ela trabalha nas ruas de Roma e se ergue constantemente das ruínas a que é transformada a cada (e frequente) decepção. E assim como é impossível não se apaixonar por Cabíria, é igualmente desafiador não se encantar por Giuletta Masina. Não apenas é ela é quem dá vida, corpo e alma à mais famosa prostituta do cinema europeu, como também é a responsável por fazer o espectador se envolver incondicionalmente com seus dramas e amores desde os primeiros minutos do filme, premiado com o Oscar de melhor produção estrangeira de 1957. Expressiva e carismática, não levou à toa a Palma de Ouro no Festival de Cannes do mesmo ano: em cada momento, em cada cena, em cada linha de diálogo ou em cada close em seus olhos molhados de lágrima (de alegria ou tristeza), Masina transmite um mundo de emoções de que somente as grandes atrizes são capazes. Seu encontro com Cabíria é, sem favor, um dos casamentos mais perfeitos, na história do cinema, entre atriz e personagem. Tudo sob o olhar luminoso e quase poético de Federico Fellini - ele mesmo um eterno apaixonado (e correspondido) por sua musa.

Cabíria não tem sorte na vida. Nem no amor. Logo nas primeiras cenas do filme ela quase morre afogada, empurrada em um rio por aquele a quem considerava o homem perfeito. De volta às ruas, continua sua rotina regada a rivalidades, amizades (profundas ou nem tanto) e pela busca pela felicidade. Dentre clientes encrenqueiros, noites solitárias e rituais católicos que remetem a crenças religiosas que conflitam com sua profissão, Cabíria se vê às voltas, ocasionalmente, com a esperança de preencher seu coração carente. É assim com Alberto Lazzari (Amedeo Nazzari, em personagem batizado e criado em sua própria homenagem), um astro de cinema que lhe dá o vislumbre de um mundo de sofisticação e glamour, antes de tratá-la como alguém inferior. E é assim, principalmente, com Oscar (François Périer), um homem que surge como a resposta a suas preces mais sentidas: completamente apaixonada, a doce e romântica prostituta se deixa seduzir pela chance de casar, formar uma família e abandonar a vida fácil. Mas, como já dizem por aí, para ver Deus rir, basta contar seus planos a Ele.

 

Embalado pela delicada trilha sonora de Nino Rota, "Noites de Cabíria" encontra beleza até mesmo na dureza do cotidiano de sua protagonista, graças a um roteiro que, ao contrário de algumas das mais famosas obras de Fellini, aposta na linearidade e no realismo (ainda que envernizado pelo tom poético da fotografia em preto-e-branco de Aldo Tonti). As prostitutas que cercam Cabíria - e até ela mesma - não são aquelas mostradas por Hollywood, e sofrem na carne uma vida repleta de privações. Cabíria mora em uma casa própria, mas nada em sua moradia lembra luxo ou comodidade. Cabíria não é deslumbrante nem exibe um corpo escultural. Não é particularmente inteligente e sua aparente vulnerabilidade só desaparece diante das (muitas) adversidades. E justamente por sua falta de grandeza, conquista a simpatia e a identificação com o público, que se vê nas telas com todas as suas fraquezas e - por que não? - encantos. Uma força da natureza em forma de atriz, Giulietta Masina é a mais completa tradução do cinema italiano dos anos 1950 - e a intérprete que melhor representou a veia artística de Federico Fellini em seus mais puro delírios artísticos.

Longe das elocubrações existenciais de "A doce vida" (1960), da metalinguagem autoparódica de "Oito e meio" (1963) e da nostalgia lúdica de "Amarcord" (1973), a direção de Fellini em "Noites de Cabíria"  se dedica à delicadeza, ao onírico, ao romantismo melancólico e ao humor por vezes involuntário que surge das desventuras tragicômicas de sua protagonista. O registro amoroso do cineasta fascina e  emociona no mais íntimo do espectador. Ao falar diretamente ao coração, ele acerta em cheio e assina (mais uma vez) sua entrada no rol do inesquecível.

 

domingo

O JOVEM FRANKENSTEIN

 


O JOVEM FRANKENSTEIN (Young Frankenstein, 1974, 20th Century Fox, 105min) Direção: Mel Brooks. Roteiro: Mel Brooks, Gene Wilder, livremente inspirado no romance de Mary Shelley. Fotografia: Gerald Hirschfeld. Montagem: John C. Howard. Música: John Morris. Figurino: Dorothy Jeakins. Direção de arte/cenários: Dale Hennesy/Bob De Vestel. Produção: Michael Gruskoff. Elenco: Gene Wilder, Teri Garr, Marty Feldman, Peter Boyle, Madeline Kahn, Cloris Leachman, Gene Hackman. Estreia: 15/12/74

2 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Som

Publicado em 1818 e considerado um clássico absoluto da literatura de terror, "Frankenstein", obra-prima da escritora britânica Mary Shelley. rendeu diversas versões cinematográficas, tornando-se um ícone incontestável do gênero. Por incrível que pareça, no entanto, uma de suas mais bem-sucedidas adaptações não surgiu da Universal Pictures (onde James Whale praticamente criou os cânones visuais que se tornaram referência no cinema) e nem da reimaginação de Roger Corman, lançada em 1990. Foi Mel Brooks, conhecido por suas comédias iconoclastas e por vezes quase grosseiras, quem assinou aquela que entrou para a história como uma das mais bem-sucedidas releituras do romance gótico: "O jovem Frankenstein" chegou aos cinemas no final de 1974, conquistou a crítica, o público (com uma renda quase quarenta vezes maior que seu custo) e entrou para diversas listas de melhores comédias de todos os tempos - da revista Premiere ao prestigiado American Film Institute. Como se não fosse o bastante, ultrapassou a barreira de preconceito da Academia de Hollywood contra seu gênero e concorreu ao Oscar de roteiro adaptado - que perdeu para o grande vencedor da noite, "O poderoso chefão: parte II". Considerado pelo próprio Mel Brooks como o seu melhor filme - ainda que considere outros trabalhos seus mais engraçados -, "O jovem Frankenstein" é, sem nenhuma dúvida, aquele que consegue com mais facilidade equilibrar o humor nonsense do diretor com uma história mais bem estruturada e uma técnica apurada. É ouro puro!

Inicialmente planejado como uma produção da Columbia Pictures, "O jovem Frankenstein" acabou indo parar nas mãos da 20th Century Fox quando Brooks insistiu em sua ideia de filmar em preto-e-branco e, com isso, manter-se fiel à atmosfera gótica do romance de Shelley - ainda que fosse mais brincar em cima dela do que reverenciá-la. Com medo de um possível fracasso comercial e sem querer aumentar o orçamento de apenas 1,75 milhões de dólares, o estúdio acabou por ver o filme se tornar um estrondoso sucesso de crítica e público. Dirigida com uma surpreendente sobriedade, que jamais ameniza o tom debochado do roteiro e das inspiradas atuações do elenco, a comédia de horror (bem mais comédia do que um filme de horror) ofereceu a Gene Wilder um dos papéis mais icônicos de sua carreira (ao lado de Willy Wonka de "A fantástica fábrica de chocolates", lançado dois anos antes), revelou um senso de humor inesperado em Cloris Leachman (vinda de um Oscar de atriz coadjuvante por "A última sessão de cinema") e apresentou um grau de sofisticação inesperado à filmografia do diretor. Filmando com o estilo do próprio James Whale (planos abertos, poucos closes e com o mínimo de efeitos de câmera) e inspirado também em obras dos expressionistas alemães Fritz Lang e F.W. Murnau, o iconoclasta criador de "Banzé no Oeste" (lançado pouco antes, no mesmo 1974) e "Primavera para Hitler" (1967) faz, ao mesmo tempo, uma sincera homenagem e uma divertida sátira - que funcionam na mesma medida. 

Gene Wilder - naquele que considera o filme favorito de sua carreira - parece ter nascido para interpretar Frederick Frankenstein, um dedicado e talentoso neurocirurgião cujo sucesso não impede que tenha seu nome eternamente ligado ao do avô, o infame Victor Frankenstein. Seu desejo de disassociar-se do nome da família cai por terra quando ele descobre que, sendo o único herdeiro do clã, pode tomar propriedade do castelo que lhe pertence, na Transilvânia. Tão logo chega no local - e passa a ser assessorado pelo corcunda Igor (Marty Feldman) e pela exuberante Inga (Teri Garr) - o jovem médico encontra um caderno com instruções de como continuar as experiências para a criação de um novo ser vivo. Excitado com a possibilidade de marcar seu nome na história, ele segue tudo passo-a-passo (dentro do possível, uma vez que seus colaboradores não são exatamente inteligentes) e consegue criar seu próprio monstro (Peter Boyle). Porém, o monstro escapa dos limites do castelo e provoca uma série de situações que põem em xeque as capacidades de Frederick - e a segurança do vilarejo, nada disposto a conviver com um potencial perigo.

Repleto de gags geniais - visuais, verbais e de referências ao clássico de James Whale -, "O jovem Frankenstein" é a síntese perfeita da filmografia de Mel Brooks (que teve o luxo de contar com as máquinas do filme da Universal, criadas por Ken Strickfaden): piadas quase escatológicas que se equilibram com diálogos inteligentes, um elenco afiadíssimo (que conta com um não-creditado Gene Hackman em uma sequência hilariante) e a coragem de tentar fazer rir sem pisar em ovos. A química entre os atores - tão precisa que as filmagens se estenderam por um calendário maior para que pudessem ficar mais tempo juntos e tão profícua que a versão original do filme passava de três horas de duração - e seu casamento perfeito com o roteiro deu origem a uma das comédias mais incríveis dos anos 1970 capaz de agradar aos fãs do gênero independente de suas preferências de estilo. É Mel Brooks em sua melhor forma!

quinta-feira

STAR 80


STAR 80 (Star 80, 1983, The Ladd Company, 103min) Direção: Bob Fosse. Roteiro: Bob Fosse, livro "Death of a playmate", de Teresa Carpenter. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Alan Heim. Música: Ralph Burns. Figurino: Albert Wolsky. Direção de arte/cenários: Michael Bolton, Jack G. Taylor Jr./Ann McCulley, Kimberley Richardson. Produção: Wolfgang Glattes, Kenneth Utt. Elenco: Eric Roberts, Mariel Hemingway, Cliff Robertson, Carroll Baker, Roger Rees, Josh Mostel. Estreia: 10/11/83

Nascida em 28 de fevereiro de 1960, em Vancouver (Canadá), Dorothy Stratten teve uma meteórica carreira artística a partir do momento em que, pelas mãos do namorado Paul Snider, se viu diante de Hugh Hefner, o todo-poderoso dono do império Playboy - que lhe deu as primeiras chances como modelo -, e de Peter Bogdanovich, cineasta premiado e consagrado - que apaixonou-se por sua beleza e sua doçura e lhe prometeu fama e prestígio como atriz. Sua trajetória e seu trágico final foram relatados em "Death of a playmate", um artigo de Teresa Carpenter, publicado no jornal The Village Voice que ganhou o Pulitzer de 1981 e causou polêmica ao colocar tanto Hefner quanto Bogdanovich como corresponsáveis pelo crime que causou sua morte. O cineasta ainda tentou contar sua versão da história com o livro "The killing of a unicorn: Dorothy Stratten (1960-1980)", mas antes mesmo de seu lançamento a adaptação cinematográfica do texto de Carpenter já havia estreado, recebido uma indicação ao Golden Globe e causado comoção. Último filme dirigido por Bob Fosse, "Star 80" pode não ter tido o mesmo impacto de "Cabaret" (1972) ou "All that jazz: o show deve continuar" (1979), mas alcançou repercussão suficiente para abafar uma versão televisiva do mesmo tema, "Mulher ardente", levada ao ar em 1981 pela NBC e estrelada por Jamie Lee Curtis.

Apesar de ser baseada em uma história real, a trama de "Star 80" não escapa muito dos clichês que abundam em filmes que retratam os bastidores do show business - especialmente quando o foco é seu lado sombrio. Tudo começa em 1978, quando o ambicioso Paul Snider (Eric Roberts) conhece a muito jovem e bela Dorothy Stratten (Mariel Hemingway). Fascinado com a aura angelical e ao mesmo tempo sensual da estudante, Snider não apenas a seduz - indo contra os desejos da família - como a introduz em um mundo novo, que valoriza a imagem e a fama. O objetivo de Snider - ascender socialmente e tornar-se parte integrante de um círculo de dinheiro e prestígio - começa a tornar-se realidade quando sua musa (e já esposa) chama a atenção das pessoas certas e passa a frequentar as disputadas festas na mansão do milionário Hugh Hefner (Cliff Robertson), que a põe sob sua proteção pessoal. Aos poucos o sucesso de Dorothy passa a chamar a atenção de outros nomes influentes, o que a leva a começar uma tímida carreira de atriz. É nesse ponto que ela conhece o veterano cineasta Aram Nicholas (Roger Rees), que se apaixona por ela e lhe dá a grande chance de sua carreira artística. No ápice do ciúme, porém, Snider não se conforma com a suspeita cada vez maior de um caso entre sua mulher e o diretor - e passa a assumir um comportamento errático e ameaçador.

 

Realizado por Fosse mesmo depois dos apelos de Bogdanovich para que o projeto não fosse adiante, "Star 80" não ficou imune a polêmicas, especialmente devido a críticas do próprio diretor de "Essa pequena é uma parada" (1973) - cujo nome no filme foi alterado para Aram Nicholas - e pelo processo movido por Hugh Hefner, que não gostou nem um pouco da forma como foi retratado na montagem final (apesar da participação especial de seu filho caçula, Keith). Eric Roberts, unanimemente elogiado por seu desempenho como Paul Snider, chegou a ser indicado ao Golden Globe de melhor ator dramático - perdeu para o vencedor do Oscar da temporada, Robert Duvall, por "A força do carinho" -, enquanto a atuação de Mariel Hemingway - indicada ao Oscar de coadjuvante por "Manhattan" (1979) - reforçava seu status de ninfeta sexy que a atormentou por anos. A dupla é dona dos melhores momentos do filme - algo que poderia não ter acontecido se outros atores cotados para os papéis (Richard Gere como Snider, Melanie Griffith ou Daryl Hannah como Dorothy) tivessem sido escolhidos pelos produtores, e a participação especial de Carroll Baker como a mãe de Stratten não deixa de ser uma ironia inteligente: em 1956, aos 25 anos, ela causou celeuma ao protagonizar "Boneca de carne", de Elia Kazan, onde interpretava uma jovem vista exclusivamente como objeto de lascívia.

Bastidores e controvérsias à parte, "Star 80" é uma produção que, apesar de suas qualidades, é muito aquém da filmografia pregressa de Bob Fosse. Não há, nele, nada da ousadia narrativa de "All that jazz", da sofisticação visual de "Cabaret" ou mesmo a coragem quase suicida de "Lenny" (1974): linear e pouco inspirado, o roteiro do próprio diretor até tenta criar suspense a respeito do desenrolar da história (apesar do desfecho já amplamente conhecido), mas esbarra em uma inesperada falta de emoção - talvez pela atuação apática de Mariel Hemingway, talvez pelo tom semidocumental que impede uma maior aproximação entre o espectador e os personagens. Eric Roberts sai-se bastante bem na pele do desequilibrado Paul Snider, mas não consegue fugir do maniqueísmo que o retrata como um psicopata unidimensional. Tampouco é perceptível no resultado final o apuro estético que caracterizou as obras anteriores de Fosse - é como se o cineasta/roteirista estivesse mais interessado no material explosivo da história de Stratten do que em fazer dela uma obra de arte do mesmo nível de seus filmes premiados. Uma pena, já que foi seu derradeiro trabalho na cadeira de diretor.

Quanto ao pós-filme, não faltaram acontecimentos que dariam um novo longa-metragem. Sentindo-se parcialmente culpado pelo destino de Dorothy, o cineasta Peter Bogdanovich não apenas escreveu um livro sobre o assunto - o já citado "Death of a unicorn" - como tomou sua proteção a mãe e a irmã caçula da modelo, com quem se casou em 1988 (mesmo com uma diferença de 29 anos entre eles) e se divorciou em 2001. Além disso, foi acusado por Hugh Hefner de ter lhe causado um ataque cardíaco, devido às acusações feitas em seu livro - de que o milionário havia seduzido Stratten ao mesmo tempo em que a tratava como filha. Objeto também de uma canção do canadense Bryan Adams - "The best was yet to come", lançada em 1983 -, Dorothy Stratten permaneceu no inconsciente coletivo (especialmente dos EUA) por um bom tempo, como uma forma de lembrar sempre os perigos que sempre rondam o mundo da fama e da beleza, principalmente quando se trata de mulheres à mercê de seus algozes.

SEM DESTINO

  SEM DESTINO (Easy rider, 1969, Columbia Pictures, 95min) Direção: Dennis Hopper. Roteiro: Peter Fonda, Dennis Hopper, Terry Southern. Fo...