REENCARNAÇÃO (Birth, 2004, New Line Cinema/Fine Line Features, 100min) Direção: Jonathan Glazer. Roteiro: Jonathan Glazer, Jean-Claude Carrière, Milo Addica. Fotografia: Harris Savides. Montagem: Sam Sneade, Claus Wehlisch. Música: Alexandre Desplat. Figurino: John Dunn. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/Ford Wheeler. Produção executiva: Xavier Marchand, Mark Ordesky, Kerry Ordent. Produção: Lizie Gower, Nick Morris, Jean-Louis Piel. Elenco: Nicole Kidman, Cameron Bright, Danny Huston, Lauren Bacall, Anne Heche, Arliss Howard, Peter Stormare, Cara Seymour, Ted Levine. Estreia: 08/9/2004 (Festival de Veneza)
Um dos filmes mais polêmicos da temporada 2004 de cinema começou sua trajetória de controvérsias já em sua estreia, no Festival de Veneza, quando foi recebido com vaias e críticas contundentes por parte da imprensa. Em pouco tempo, uma cena em que sua estrela, Nicole Kidman, dividia (nua) uma banheira com uma criança (igualmente sem roupa) tornou-se motivo de gritaria entre os mais conservadores, e acabou por eclipsar o que a própria atriz chamou de uma história sobre luto e vulnerabilidade. Dirigido por Jonathan Glazer - que vários anos depois seria indicado ao Oscar por "Zona de interesse" (2023) - e tendo entre seus corroteiristas o experiente Jean-Claude Carrière, "Reencarnação" demorou a ser visto sem a capa de imoral, imposta por uma parcela conservadora da plateia, e ter suas qualidades reconhecidas pelo público. É um filme que se equilibra com razoável destreza entre o drama psicológico e o suspense, amparado por um visual sóbrio e uma trilha sonora que reflete o tom inquietante de sua premissa - além de contar com uma das mais profundas e subestimadas atuações de Kidman, então recém premiada com o Oscar por "As horas" (2002).
De cabelos curtíssimos e uma elegância à toda prova, Kidman interpreta a delicada Anna, uma mulher arrasada pela morte repentina e precoce do marido, vítima de um ataque cardíaco. Depois de um ano de sofrimento e luto, ela finalmente parece estar disposta a prosseguir sua vida ao casar-se com um antigo apaixonado, Joseph (Danny Huston). Seus planos, porém, são interrompidos quando entra em cena o pequeno Sean (Cameron Bright), um menino de dez anos de idade que alega ser a reencarnação de seu falecido marido. Munido de informações a respeito de seu relacionamento com Anna que são apenas do conhecimento do casal, o garoto insiste em manter contato com a jovem viúva, que, para angústia de sua família - atônita com a situação -, passa a levar a sério a possibilidade de ter reencontrado o amor de sua vida. Se aproximando cada vez de Sean, Anna passa a questionar seu novo relacionamento e as escolhas de sua vida, enquanto Joseph tenta provar a ela que tudo não passa de um absurdo sem tamanho.
Se existe um adjetivo que acompanha "Reencarnação" em cada minuto, esse adjetivo é "elegante". Não apenas devido aos ambientes chiques de Nova York onde circulam seus personagens ou à sofisticação inerente à Nicole Kidman, no auge de sua fase mais etérea. Tampouco é responsabilidade apenas da fotografia de enquadramentos discretos de Harris Savides ou da trilha sonora marcante de Alexandre Desplat. A elegância do filme de Glazer advém principalmente de seu ritmo plácido, quase contemplativo, que reflete em imagens a alma melancólica de sua protagonista. Dotado de expressões minimalistas que transmitem de forma sutil o turbilhão de sua Anna, o rosto de Nicole Kidman é o instrumento perfeito do diretor para contar sua história, repleta de silêncios e mistérios que vão se revelando sem pressa diante dos olhos do público e de seus familiares - entre as quais uma subaproveitada Lauren Bacall. O único (e grande) senão é a mudança radical de rumo no terço final, quando a trama toma rumos que mudam tudo que se poderia imaginar até então. Para alguns uma reviravolta muito bem-vinda; para outros o enfraquecimento de um interessante estudo sobre a quebra de paradigmas e certezas absolutas.
Fascinante em seu modo de desenrolar a narrativa, provocando o espectador até o limite de seu conservadorismo - segundo a atriz Christina Applegate o roteiro final amenizou consideravelmente o teor sexual da trama, com a chegada de Nicole Kidman ao projeto -, "Reencarnação" já demonstrava em Jonathan Glazer um diretor sensível e atento aos detalhes visuais e dramáticos de seus trabalhos. Ao fugir do óbvio - como o fez em "Zona de interesse" quase duas décadas mais tarde -, ele imprime uma personalidade própria a seu filme, mesmo correndo o risco de ser incompreendido ou simplesmente taxado de chato. "Reencarnação" é lento. É sutil. E é ousado. Pode não ser um grande filme (talvez lhe falte coragem de encerrar dignamente), mas é um filme ainda subestimado por boa parte do público acostumado a mais do mesmo.
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