sexta-feira

ATAQUE DOS CÃES


ATAQUE DOS CÃES (The power of the dog, 2021, Netflix/BBC Films, 126min) Direção: Jane Campion. Roteiro: Jane Campion, romance de Thomas Savage. Fotografia: Ari Wegner. Montagem: Peter Sciberras. Música: Jonny Greenwood. Figurino: Kirsty Cameron. Direção de arte/cenários: Grant Major/Amber Richards. Produção executiva: Rose Garnett, Simon Gillis, John Woodward. Produção: Jane Campion, Iain Canning, Roger Frappier, Tanya Seghatchian, Emile Sherman. Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemmons, Kodi Smith-McPhee. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Veneza)

12 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Direção (Jane Campion), Ator (Benedict Cumberbatch), Ator Coadjuvante (Jesse Plemons/Kodi Smith-McPhee), Atriz Coadjuvante (Kirsten Dunst), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Som

Vencedor do Oscar de Direção (Jane Campion)

Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Direção (Jane Campion), Ator Coadjuvante (Kodi Smith-McPhee)

Quem conhece o cinema da neozelandesa Jane Campion sabe que o que lhe interessa é o turbilhão interno de seus personagens. Mesmo quando o sexo está ameaçando romper o verniz de civilidade que revestem seus protagonistas é o que se passa além de seus desejos carnais que chama a sua atenção. Foi assim, por exemplo, com a pianista muda que redescobre o prazer e o amor no mais inesperado momento, no premiado "O piano" (1993) e com a dama da sociedade que se vê alvo de uma armadilha engendrada por seu marido e sua melhor amiga, em "Retrato de uma mulher" (1996). E é assim também em "Ataque dos cães", que estreou no Festival de Veneza de 2021 e imediatamente despertou comentários entusiasmados que o levaram a merecidas doze indicações ao Oscar: a despeito de parecer, a princípio, apenas uma desconstrução dos cânones do western, a história da relação doentia/intrigante/imprevisível entre dois irmãos e a mulher que surge entre eles é um estudo sombrio sobre ciúme, vingança e intolerância, contado com o estilo quase contemplativo de Campion - desta vez centrando sua trama em um protagonista masculino.

Afastada do cinema desde "O brilho de uma paixão" (2009) - como diretora esteve envolvida apenas com a minissérie "Top of the lake", entre 2013 e 2017 -, Jane Campion voltou à cena no auge de sua força narrativa. Explorando o romance de Thomas Savage como ponto de partida, a cineasta/roteirista nada contra a corrente do cinema de fácil digestão ao criar uma teia de sentimentos escondidos, sensações recalcadas e meias-verdades que vão se avolumando até o final - um clímax poderoso, mas de uma sutileza tal que deixa no espectador a dúvida sobre seus reais desdobramentos. O roteiro de Campion é repleto de silêncios avassaladores, sublinhados pela bela trilha sonora de Jonny Greenwood e, enfeitado pelas deslumbrantes paisagens da Nova Zelândia (fazendo as vezes do estado de Montana, cenário da trama), conduz o público a um labirinto de intenções escusas e atrações dúbias: seus personagens não são unidimensionais, seus desejos quase nunca se revelam facilmente e muitas das aparências enganam - essa é "a força do Cão" do título original, a capacidade que o demônio tem de disfarçar sua real face até que seja tarde demais. O teor fatalista do enredo - que pode até soar como uma tragédia grega - encontra na direção suave de Campion (premiada com uma estatueta da Academia) a tradução ideal: mesmo que imprima um ritmo bem mais lento do que a média do cinema contemporâneo, a realizadora acerta em cheio em não apressar o desenvolvimento de seus personagens e de suas ações, oferecendo a eles (e a seus intérpretes fabulosos) espaço suficiente para que jamais pareçam gratuitos ou incoerentes.

 

O personagem principal do filme é Phil Burbank (Benedict Cumberbatch em mais um desempenho memorável): fazendeiro bruto, quase irascível e pouco dado a sutilezas, ele desperta a antipatia imediata da independente Rose (Kirsten Dunst), proprietária de um restaurante de beira de estrada, ao implicar com os modos delicados e sensíveis de seu filho único, Peter (o ótimo Kodi Smith-McPhee). A relação pouco amistosa entre eles não impede, porém, que Rose aceite o pedido de casamento de George (Jesse Plemons), irmão de Phil, e se mude com ele para a fazenda que ambos dividem. A aparente falta de educação de Phil contrasta radicalmente com a delicadeza de Rose e Peter - e logo um clima de constante tensão se instala na propriedade. A dinâmica entre o quarteto só começa a mudar quando Phil inicia uma aproximação com Peter - um caminho sem volta que leva a uma tragédia inesperada, com raízes ocultas em um passado infeliz e (mal) enterrado.

O elenco escolhido por Campion é abismal - não por acaso seus quatro atores centrais chegaram a indicações da Academia. Mesmo sem precisar de longos diálogos, todos eles são capazes de expressar uma vasta gama de emoções - seus olhos, seus gestos e seus silêncios transmitem toda a angústia que circunda a existência de seus personagens. Kirsten Dunst surge como a peça inicialmente frágil em uma disputa de poder e testosterona que só pode acabar mal, mas são Benedict Cumberbatch e Kodi Smith-McPhee que roubam a cena. Seus embates são fascinantes e carregados de uma tensão cujo tamanho vai crescendo até o ponto de explodir - uma explosão que, inteligente e sutil, Campion impede que contradiga o tom delicado do filme até então. Pode até decepcionar a quem espera algo mais radical, mas não trai a essência tanto da produção em si quanto da filmografia de sua criadora. "Ataque dos cães" é um filme para poucos - como o são todos os filmes anteriores de Jane Campion - que recebeu um merecido Oscar por seu meticuloso trabalho. Mas é, também, uma pérola, que se sobressai diante da mesmice de boa parte do cinema contemporâneo hollywoodiano - e uma senhora bola dentro da Netflix, cada vez mais se firmando como espaço para grandes diretores (como Martin Scorsese, Alfonso Cuarón e David Fincher) que buscam liberdade artística.

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