PARENTE
É SERPENTE (Parenti serpenti, 1992, Clemi Cinematografica, 105min)
Direção: Mario Monicelli. Roteiro: Carmine Amoroso, Suso Cecchi D'Amico,
Piero De Bernardi, Mario Monicelli, estória de Carmine Amoroso.
Fotografia: Franco Di Giacomo. Montagem: Ruggero Mastroianni. Música:
Rudy De Cesaris. Figurino: Lina Nerli Taviani. Direção de arte/cenários:
Franco Velchi/Livia Del Priore. Produção Giovanni Di Clemente. Elenco:
Tommaso Bianco, Renato Cecchetto, Marina Confalone, Alessandro Haber,
Cinzia Leone, Eugenio Masciari, Paolo Panelli, Monica Scattini, Pia
Velsi. Estreia: 26/3/92
Um dos mais celebrados cineastas italianos do pós-guerra, Mario Monicelli forjou seu nome na história graças a filmes que entraram para o inconsciente coletivo das plateias, como "O incrível exército Brancaleone" (1966) e "Quinteto irreverente" (1982), que explicitam seu estilo direto e sardônico ao retratar personagens banais e frequentemente falíveis. Com três produções indicadas ao Oscar de melhor filme estrangeiro - "Big deal on Madonna Street" (1958), "A grande guerra" (1959) e "The girl with a pistol" (1968) - e outras duas indicações à estatueta de roteiro original, Monicelli construiu, em mais de seis décadas, uma filmografia dedicada a prescutar a alma humana, sempre de forma bem-humorada mas paradoxalmente carinhosa. Sem pensar em aposentadoria mesmo na idade em que muitos já estavam descansado e contando o vil metal, ele surpreendeu a todos quando, em 1992, aos 77 anos, lançou mais um de seus petardos. Irônico e quase amargo, "Parente é serpente" tornou-se mais um de seus sucessos, dessa vez mirando sua atenção a um símbolo da estabilidade da sociedade: a família.
Subvertendo o otimismo e a delicadeza de filmes de Natal - aqueles com finais felizes e recheados de boas intenções -, "Parente é serpente" é narrado pelo pequeno Mauro (Riccardo Scontrini) , que com seu ponto de vista ingênuo não percebe o quão frágil é a aparente normalidade de sua vasta família - idiossincrática, um tanto hipócrita e repleta de pequenos atos de mesquinhez, disfarçados por uma religiosidade tradicionalista e uma série de rituais anuais. É no Natal que acontece um dos raros encontros de todas as ramificações do clã dos Colapietro - pais idosos, quatro filhos de meia-idade e dois netos em fase de transição (de graus variados) para a adolescência. Saverio (Paolo Panelli) e Trieste (Pia Velsi) vivem sozinhos na casa onde criaram os filhos e que não pode ser exatamente descrita como confortável - o aquecimento é falho, as acomodações nem sempre são ideais e sua distância das casas dos rebentos é um incômodo pouco mencionado. Para comemorarem a data festiva, todos se reúnem. A filha mais velha, Lina (Marina Confalone), mãe de Mauro, é hipocondríaca e mal consegue esconder uma certa inveja da cunhada, Gina (Cinzia Leone), uma mulher sofisticada que não se conforma com a falta de vaidade da única filha, Monica (Eleonora Alberti) - que sonha ser bailarina mas não abre mão dos prazeres da gula. A irmã de Lina é Milena (Monica Scattini), que sofre com a incapacidade de engravidar e com a possibilidade de tal problema afetar seu casamento com o suave Filippo (Renato Cecchetto). O único solteiro do grupo é Alessandro (Eugenio Masciari), um professor que mora sozinho enquanto não encontra "a mulher certa". O reencontro, marcado pelos tradicionais momentos nostálgicos, pela missa do galo e pela comilança generalizada é finalizado, no entanto, com uma bomba detonada pelos patriarcas: com medo das limitações que os anos vindouros podem trazer, eles resolveram - unilateralmente, é claro - que irão morar com um dos filhos. Cabe aos rebentos apenas decidirem qual deles será o felizardo a ter a vida alterada pela nova configuração familiar.
A partir do anúncio feito por Saverio e Trieste, o tom de "Parente é serpente" fica ainda mais amargo - apesar de não abandonar o humor, dessa vez com origem em uma série de revelações inesperadas e um ritmo mais apurado. Se até então as rachaduras na estrutura familiar estavam disfarçadas pelas regras de etiqueta natalina e os ressentimentos pareciam definitivamente enterrados, a notícia dada pelos pais transforma a aparente cordialidade fraternal em um campo de guerra. Cada um tem seus motivos para não desejarem a convivência diária com os genitores - que vão desde a falta de espaço e privacidade até a possibilidade de terem descobertos seus segredos mais profundos. Os embates - até então discretos e embalados pelo senso de preservação - se tornam mais raivosos (e por consequência mais propensos à agressão). E ninguém parece disposto a abrir mão das pretensas liberdades, nem mesmo com a chance de ficar com o apartamento prometido como forma de abono. E é nesse ato final que a ferocidade do humor de Mario Monicelli fica ainda mais evidente, desvelando sem medo a hipocrisia que cerca os núcleos familiares: os diálogos (deliciosos em sua sordidez) encontram eco em uma direção de atores precisa, que explora o melhor de cada um dos atores, dando a todos um momento de brilho. Como em uma boa peça de teatro, o roteiro vai crescendo até o clímax - uma mescla surpreendente de ironia e melancolia que encerra a narrativa com chave de ouro, além de reforçar o impecável tom de humor sombrio.
Mesmo não sendo o mais popular ou influente filme da carreira de Monicelli, "Parente é serpente" é uma produção que jamais envergonha sua obra pregressa. Inteligente, sarcástico e dotado de uma boa dose de cinismo, o resultado final conquista ao revelar em seus personagens (falíveis, dúbios, capazes de grandezas e mesquinharias) um espelho dos espectadores. Sem heróis ou vilões, o filme se utiliza do humor como ferramenta para discutir - sem falsos moralismos - as relações familiares, a velhice, a intolerância e a superficialidade da vida de aparências. O final - que flerta com o absurdo, mas sempre com os pés firmes no chão - é um primor de coragem mesmo em um mundo ainda longe das limitações do politicamente correto. É Mario Monicelli em seu melhor!
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