quarta-feira

OS RAPAZES DA BANDA

OS RAPAZES DA BANDA (The boys in the band, 1970, Cinema Center Films, 118min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Mart Crowley, peça teatral homônima de sua autoria. Fotografia: Arthur J. Ornitz. Montagem: Gerald Greenberg, Carl Lerner. Figurino: W. Robert La Vine. Direção de arte/cenários: John Robert Lloyd/Phil Smith. Produção executiva: Dominick Dunne, Robert Jiras. Produção: Mart Crowley. Elenco: Kenneth Nelson, Frederick Combs, Cliff Gorman, Laurence Luckinbill, Keith Prentice, Peter White, Reuben Greene, Robert La Tourneaux, Leonard Frey. Estreia: 17/3/70

Aqueles que conhecem o William Friedkin cinemático de "Operação França"(71) - que lhe rendeu um Oscar - e "O exorcista"(73) - um dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos - talvez tomem um susto ao dar de cara com "Os rapazes da banda", realizado por ele um pouco antes de tornar-se um dos mais confiáveis cineastas comerciais de Hollywood. O possível susto não é devido à qualidade do filme - uma adaptação febril de um sucesso da Broadway - mas sim a seu assunto. Em uma América pré-AIDS e muito antes da onda de correção política e certa liberalidade temática no cinema americano, "Os rapazes da banda" é um retrato sem filtros e sem medo da polêmica do estilo de vida gay do final da década de 60, ainda que centrado em um grupo de personagens que dificilmente podem ser chamados de simpáticos e/ou agradáveis. Controverso justamente por apresentar gays em severas crises de identidade e em um tom de agressividade comparável a "Quem tem medo de Virginia Woolf" - a peça de Edward Albee e o filme de Mike Nichols - o filme acabou por ser defendido por Friedkin com uma frase que deixa explícito o que se pode esperar da trama: "Eu espero que haja homossexuais felizes. Eles apenas não estão no meu filme."

E, realmente, feliz é o último adjetivo que pode ser aplicado a qualquer um dos personagens da peça de Mart Crowley, que chegou às telas com o mesmo elenco da produção teatral, fato raro mas exigido pelo produtor/autor. Todos os personagens retratados em cena sofrem de algum tipo de problema pessoal, em maior ou menor grau, o que vai ficando mais e mais claro conforme a história vai se desenrolando. Como acontece normalmente em um bom texto teatral, cada personagem vai se revelando gradualmente até o clímax, onde diversas catarses finalmente os fazem deixar cair as máscaras que porventura ainda estivessem usando mesmo em um ambiente amigável. E seguindo o texto ao pé da letra, Friedkin dirige seus atores praticamente com uma lente de aumento, captando cada nuance, cada sorriso ambíguo e cada fantasma de dentro de cada um com sensibilidade e neutralidade. Essa ausência de um julgamento moral é que faz do filme o sucesso que ele é em termos dramáticos: por mais desprezíveis que alguns atos sejam ou pareçam, pela lente de Friedkin eles se transformam em atitudes perdoáveis, por um motivo ou outro.

A trama se passa durante uma única noite, no apartamento de Michael (Kenneth Nelson), um duplex com terraço localizado em Nova York. É aniversário do venenoso Harold (Leonard Frey), um de seus melhores amigos, e Michael reúne um grupo de amigos, todos homossexuais - ou, como ele mesmo descreve, "um grupo de sete rainhas escandalosas" - para a comemoração. O que deveria ser apenas uma noite comum regada a bebida, música disco e risadas - incrementadas pela presença de um jovem michê imitando Jon Voight em "Perdidos na noite" (Robert La Tourneaux) - se transforma repentinamente em uma sessão de análise indesejada com a presença de Alan (Peter White), um colega de faculdade de Michael, que se diz heterossexual e, com seu preconceito, deflagra uma violenta reação por parte do anfitrião - que tem sérias dúvidas a respeito da sexualidade do antigo amigo. Conforme a noite vai avançando (e com uma tempestade os impedindo de sair do local), Michael sugere um jogo que vai definitivamente selar o destino de todos os convidados. É assim que o casal formado pelo promíscuo Larry (Keith Prentice) e pelo sério Hank (Laurence Luckinbill) - que acabou de divorciar-se por amor ao novo parceiro - põe em pratos limpos sua relação, o afeminado Emory (Cliff Gorman) e o discreto Bernard (Reuben Greene) revelam as frustrações amorosas que os assombram e Harold finalmente põe Michael contra a parede, obrigando-o a lidar com suas próprias dúvidas a respeito de sua vida sexual. Nem mesmo o pretenso heterossexual Alan escapa impunemente do desvario da histeria de Michael.


Servindo quase como o olhar da audiência, é o discreto Donald (Frederick Combs) quem permanece incólume frente à tempestade, testemunhando a deteriorização da noite festiva em um velório de silêncios mortos que ressuscitam violentamente. O ato final do filme, que substitui o humor ferino e mordaz de seu começo - que faz o público rir com tiradas repletas de um sarcasmo tipicamente gay - serve como palco para seus atores demonstrarem seus dotes dramáticos, até então mantidos em fogo brando. Ironicamente, cinco dos atores centrais do filme morreram de AIDS até o início da década de 90, o que dá à obra um tom ainda mais urgente, mais contundente e mais triste. Os homossexuais retratados na história, como bem disse Friedkin, não são aqueles homossexuais normalmente frequentes nas telas de cinema - nem à época nem agora. Mesmo que Emory pareça o alívio cômico da trama com seus trejeitos exagerados e Harold pontue o roteiro com tiradas genialmente irônicas - "Eu sou uma bicha judia feia de 32 anos, com a cara esburacada, e que precisa de horas para decidir se vale a pena por a cara na rua!" - o tom geral do filme é de desilusão, de melancolia, como se fosse uma espécie de previsão dos anos torturantes que a comunidade encararia em pouco tempo, com a epidemia da AIDS batendo à porta violentamente. E é mérito do cineasta e de seu elenco que tudo não seja ainda mais deprimente.

"Os rapazes da banda" não é exatamente um retrato fiel do mundo gay em geral. Fugindo da generalização ao fazer um recorte muito específico de um grupo quase homogêneo - sem se preocupar com outras várias nuances do povo homossexual - o roteiro faz um jogo de contrastes entre aparências e a realidade que poderia facilmente se passar em universo heteronormativo sem maiores prejuízos. O cerne da trama - os conflitos interiores e as lutas pessoais contra os instintos e a favor da individualidade - é forte o bastante para conquistar espectadores de quaisquer orientações sexuais. E Friedkin, que aqui mostra uma direção segura que amadureceria ainda mais em seus filmes seguintes, voltaria à temática gay uma outra vez mais na carreira - e novamente causando polêmica - com o policial "Parceiros da noite". Outro enfoque, mas novamente um filme instigante e marcante.

2 comentários:

WAGNER disse...


Belíssima analise! Apenas complementaria dizendo que todos os personagens foram baseados em pessoas reais, amigos do autor do peça de teatro original, Mart Crowley.

Clenio disse...

Oi, Wagner, não sabia disso... mas que amigos problemáticos, não?? Abraços.

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