O
SEGREDO DE MARY REILLY (Mary Reilly, 1996, TriStar Pictures, 108min)
Direção: Stephen Frears. Roteiro: Christopher Hampton, romance de
Valerie Martin. Fotografia: Philippe Rousselot. Montagem: Lesley Walker.
Música: George Fenton. Figurino: Consolata Boyle. Direção de
arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Lynn
Pleshette. Produção: Norma Heyman, Nancy Graham Tanen, Ned Tanen.
Elenco: John Malkovich, Julia Roberts, George Cole, Michael Gambon,
Glenn Close, Michael Sheen, Kathy Staff, Linda Bassett, Ciarán Hinds.
Estreia: 23/02/96
Depois de explodir como a bela e
longilínea prostituta de "Uma linda mulher" - e de quebra conquistar uma
indicação ao Oscar e tornar-se a atriz mais bem paga de Hollywood -
Julia Roberts entrou em um prolongado inferno astral, quando passou a
chamar mais a atenção do público por sua atribulada vida pessoal do que
por seus trabalhos no cinema. Acumulando filmes que não encantavam nem à
crítica nem tampouco ao público, ela foi perdendo espaço junto à
plateia - que encontrava em atrizes como Sandra Bullock uma espécie de
substituta nas suas tradicionais comédias românticas - e à indústria -
que não via com bons olhos a queda de popularidade e bilheteria de seus
filmes. Tentando provar que era bem mais do que um sorriso carismático e
que seu talento se estendia além do tradicional feijão com arroz das
produções comerciais, ela resolveu arriscar tudo em um projeto no mínimo
inusitado: uma versão da clássica história do médico e do monstro
contada através do ponto de vista da empregada do protagonista. Sob a
direção do conceituado Stephen Frears e ao lado de John Malkovich, Julia
Roberts deixava de ser uma estrela para se tornar uma atriz. A
expectativa era enorme. E a decepção se mostrou igualmente gigantesca.
Com
uma bilheteria que mal passou os cinco milhões de dólares - contra um
orçamento relativamente generoso de quase cinquenta - "O segredo de Mary
Reilly" foi um dos maiores fiascos dos anos 90, atrapalhando os planos
de Roberts de estabelecer-se como atriz séria (o que aconteceria com seu
Oscar por "Erin Brockovich", de 2000) e abalando o prestígio até mesmo
de Stephen Frears e Malkovich - trabalhando juntos oito anos depois do
sucesso de "Ligações perigosas". Massacrado pela crítica e ignorado pelo
público que cinco anos havia lotado as salas de cinema para assistir
Julia no esquecível "Dormindo com o inimigo", o filme baseado no romance
de Valerie Martin acabou se transformando, nos bastidores de Hollywood,
em sinônimo de desastre artístico. Mas hoje, visto à luz dos anos, sem a
má-vontade velada que cercava a carreira de sua atriz principal e a
pressão de ver nele uma obra-prima absoluta, o filme surpreende por ter
mais qualidades do que defeitos. Não é, logicamente, uma produção
excepcional, mas tampouco o diabo é tão feio quanto pintaram há quase
vinte anos. Em especial em sua primeira metade, "O segredo de Mary
Reilly" é um belo drama de suspense gótico, envolvente e intrigante.
Não
é imprescindível que se conheça detalhes da história de "O médico e o
monstro", de Robert Louis Stevenson, para se apreciar o filme de Frears,
mas é particularmente interessante saber ao menos sua premissa inicial
para melhor saborear todos os detalhes espalhados pelo roteiro de
Christopher Hampton - outro colaborador de "Ligações perigosas", assim
como George Fenton, o responsável pela trilha sonora soturna e densa, e
Glenn Close, exagerando como Mrs. Farraday, a dona do bordel que ajuda
Jekyll em suas aventuras noturnas. Com base nos livros de Stevenson e
Martin, publicados com séculos de distância entre si, Hampton escreveu
uma história de ritmo lento, quase contemplativo em sua metade inicial,
quando estabelece a relação entre a empregada doméstica Mary Reilly
(Julia, desprovida de qualquer artifício que lhe dê glamour) e o
misterioso Dr. Henry Jekyll (Malkovich, sempre exercitando sua persona
desequilibrada). Traumatizada por uma infância violenta - que lhe deu
cicatrizes no corpo e na alma - ela se torna a funcionária preferida de
Jekyll, e, como tal, a responsável por manter em segredo suas
experiências no laboratório nos fundos da mansão. Quando entra em cena
Mr. Hyde, o assistente de Jekyll - que ao contrário dele não deixa
passar a atração que sente por ela - Mary entra em um perigoso jogo de
sedução: seduzida pela elegância de um e pela coragem de outro, ela
começa a desconfiar que as violentas mortes ocorridas ao redor de todos
eles tem o mesmo responsável.
Julia
Roberts não está nada mal em sua interpretação de Mary Reilly, pelo
contrário: contida, discreta e deixando de lado toda e qualquer vaidade,
ela transmite com firmeza todas as angústias e inseguranças de uma
personagem difícil e complexa, torturada pela atração que sente pelo mal
que sabe vir do laboratório de seu patrão. O problema está justamente
na escolha de John Malkovich para interpretar as duas faces do
protagonista masculino: longe de ser um mau ator, ele escorrega apenas
em criar um Jekyll cuja única diferença em relação a Hyde é a cara de
enfado que carrega durante todo o filme e o exagero que deixa tomar
conta de sua atuação no terço final da narrativa. A sutileza da obra de
Stevenson e sua discussão a respeito de como o bem e o mal convivem
dentro de uma mesma pessoa desaparecem totalmente no clímax
sanguinolento que destoa radicalmente do promissor e instigante começo. A
opção por explicitar o que era apenas sugerido pela bela fotografia
acinzentada de Philippe Rousselot enfraquece o resultado final,
transformando uma história de rara inteligência em mais um filme de
terror banal e anticlimático. Essa indecisão entre ser um filme de arte e
uma obra popular talvez seja o calcanhar de Aquiles, o erro maior de
toda a produção.
E a produção, diga-se de passagem, é
de encher os olhos. Sem querer impor uma estética de beleza onde não
convém, o desenho de produção de "O segredo de Mary Reilly" é exemplar,
enfatizando o lado gótico e sombrio da trama com seus cenários
assombrosos e com uma reconstituição de época fascinante, que inclui
visitas à ruas escuras e mercados livres que só faltam exalar seus
cheiros fortes e desagradáveis. A fotografia, como dito antes, não fica
atrás, mergulhando o espectador em um mundo sem luzes, quase
irrespirável de tensão e medo, e o figurino também deixa de lado o
glamour para concentrar-se no eficaz, no verossímil. Esses detalhes, que
enriquecem o filme, acabam se perdendo, porém, quando a ação se torna
acelerada para agradar aos paladares mais convencionais - o que não
aconteceu justamente pela dúvida hamletiana de Frears em seguir ou não o
caminho mais difícil. Uma pena. O que poderia ser genial ficou apenas
bom - bem melhor, aliás, do que sempre foi dito a respeito dele.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
JADE
JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...
-
EVIL: RAÍZES DO MAL (Ondskan, 2003, Moviola Film, 113min) Direção: Mikael Hafstrom. Roteiro: Hans Gunnarsson, Mikael Hafstrom, Klas Osterg...
-
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (Presumed innocent, 1990, Warner Bros, 127min) Direção: Alan J. Pakula. Roteiro: Frank Pierson, Alan J. Paku...
-
NÃO FALE O MAL (Speak no evil, 2022, Profile Pictures/OAK Motion Pictures/Det Danske Filminstitut, 97min) Direção: Christian Tafdrup. Roteir...
Nenhum comentário:
Postar um comentário