HAMLET (Hamlet, 1996, Castle Rock Entertainment, 238min) Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Kenneth Branagh, peça teatral de William Shakespeare. Fotografia: Alex Thomson. Montagem: Neil Farrell. Música: Patrick Doyle. Figurino: Alexandra Byrne. Direção de arte/cenários: Tim Harvey. Produção: David Barron. Elenco: Kenneth Branagh, Derek Jacobi, Julie Christie, Kate Winslet, Brian Blessed, Richard Briers, Rufus Sewell, Michael Maloney, Richard Attenborough, Billy Crystal, Judi Dench, Gérard Depardieu, John Gielgud, Rosemary Harris, Charlton Heston, Jack Lemmon, Timothy Spall, Robin Williams. Estreia: 25/12/96
4 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Uma das mais clássicas manifestações artísticas da loucura - ou do arremedo de uma - acabou tornando-se uma das mais ousadas produções cinematográficas da década de 90 e quiçá da história da sétima arte. Conhecido por suas adaptações da obra do dramaturgo William Shakespeare para o cinema, o irlandês Kenneth Branagh - que já havia dirigido "Henry V" (89) e "Muito barulho por nada" (93) e atuado como Iago em "Othello" (96) - arriscou sua reputação e seu prestígio ao transpor o mais clássico dos clássicos do bardo, palavra por palavra, para as telas. Brilhantemente produzido, interpretado por um elenco estrelado que se dá ao luxo de ter Charlton Heston, Gérard Depardieu e Jack Lemmon em pontas e longo a ponto de testar os limites de paciência do público - poucos minutos menos de quatro horas de duração - o "Hamlet" de Branagh (e pode-se dizer sem medo, o "Hamlet" definitivo do cinema) pode assustar até ao mais fervoroso purista com sua fidelidade canina ao texto original, mas, graças à direção segura e inteligente, a uma edição cirurgicamente precisa e a um elenco impecável, sobressai-se às demais adaptações pelo ritmo pulsante e pela modernidade visual impressa em cada fotograma. Realizado com meros 18 milhões de dólares - um trocado perto dos orçamentos milionários que assustavam os executivos dos estúdios à época - o filme de Kenneth Branagh é assombrosamente deslumbrante e um presente para os fãs de bom cinema e bom teatro.
Uma das histórias mais conhecidas da literatura mundial, "Hamlet" só chegou às telas com tal opulência visual e ousadia narrativa - que não oprime uma linha sequer do texto original - graças à teimosia de seu diretor e ator principal, que rondou por mais de um ano de estúdio em estúdio de Hollywood tentando financiamento para um projeto que todos consideravam fadado ao fracasso. Não é difícil imaginar os motivos para tanta recusa: não apenas Branagh batia pé nas quatro horas de duração de seu filme como tinha ainda que lidar com a bilheteria decepcionante e as críticas negativas de seu filme anterior, "Frankenstein de Mary Shelley", que não havia tido o desempenho esperado pelos produtores. Além do mais, Shakespeare estava se tornando arroz de festa na terra do cinema, sendo adaptado de todas as formas possíveis e imagináveis - até mesmo o australiano Baz Luhrmann estava a caminho de lançar uma versão psicodélica de "Romeu e Julieta", estrelado por Leonardo DiCaprio e o próprio "Hamlet" já havia sido refilmado recentemente por Franco Zefirelli, com Mel Gibson no papel principal. Tudo conspirava contra o irlandês, até que a Castle Rock tomou coragem e, com poucas exigências finais (um elenco com atores conhecidos e uma versão editada para lançamento mundial) deixou que o cineasta fosse em frente. É impossível assistir-se ao resultado final sem um suspiro de agradecimento profundo à sua coragem.
Mesmo acima da idade para interpretar o papel principal, Kenneth Branagh é o corpo e a alma de "Hamlet", a energia que contagia a todos e o estopim de uma trama recheada de traições vis, paixões avassaladoras, ódios arraigados e uma coleção de mortes das mais conhecidas do teatro universal - que em suas mãos soa fresca e reluzente como se tivesse sido escrita há dois dias. Para quem não sabe, se é que alguém não sabe, tudo começa quando o jovem príncipe Hamlet volta à sua Dinamarca natal para os funerais de seu pai (Brian Blessed) e para as novas núpcias de sua mãe, Gertrude (Julie Christie), que, mal esperou quatro meses para casar-se com o cunhado, Claudius (Derek Jacobi), novo rei do país. Infeliz com a situação, o príncipe fica ainda mais movido ao ódio quando o fantasma de seu progenitor lhe aparece, acusando o irmão de tê-lo assassinado para roubar-lhe a esposa e o trono. Com o objetivo de vingar a morte do pai, Hamlet inicia um plano ambicioso - que envolve fingir uma loucura que ele pode mesmo portar, um grupo de atores mambembes que recebe no palácio com o objetivo de impulsionar uma confissão do tio e até a mulher que ama, a doce Ofélia (Kate Winslet).
Mais do que simplesmente contar com cada detalhe - por mais insignificante que ele possa parecer - a história criada por Shakespeare, Kenneth Branagh consegue, em seu filme, o que havia conseguido apenas parcialmente em suas adaptações anteriores: fazer com que o texto extremamente teatral da peça caiba com perfeição na tela de cinema - no caso, em formato 65mm, que lhe permitiu alcançar um visual mais clássico que buscava com o objetivo de aproximar o filme de um cinema mais visualmente atraente e que só voltou a ser utilizado em 2012, quando Paul Thomas Anderson filmou seu "O mestre". Seu objetivo é plenamente atingido quando a plateia testemunha momentos de pura poesia visual, enfatizada pela fotografia esplêndida de Alex Thomson e pela direção de arte irretocável que concorreu ao Oscar - assim como o figurino de Alexandra Byrne, a música de Patrick Doyle e o roteiro do próprio diretor. Pulsante, passional e por vezes exaustivamente emocionante, "Hamlet" é a mais perfeita combinação entre cinema e teatro já realizada. Uma obra-prima de grandes proporções.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sábado
sexta-feira
JACK
JACK (Jack, 1996, American Zoetrope/Hollywood Pictures/Great Oaks, 113min) Direção: Francis Ford Coppola. Roteiro: James DeMonaco, Gary Nadeau. Fotografia: John Toll. Montagem: Barry Malkin. Música: Michael Kamen. Figurino: Aggie Guerard-Rodgers. Direção de arte/cenários: Dean Tavoularis/Armin Ganz, Barbara Munch. Produção executiva: Doug Claybourne. Produção: Francis Ford Coppola, Fred Fuchs, Ricardo Mestres. Elenco: Robin Williams, Diane Lane, Jennifer Lopez, Bill Cosby, Fran Drescher, Brian Kerwin, Adam Zolotin, Todd Bosley. Estreia: 09/9/96
Entre obras-primas incontestáveis ("O poderoso chefão"), projetos pessoais "("A conversação"), produções ambiciosas e complicadas ("Apocalypse now") e filmes sob encomenda ("Vidas sem rumo"), Francis Ford Coppola às vezes surpreende o público e a indústria de cinema com coisas como "Jack", um delicado e sincero conto infanto-juvenil que substitui a pretensão comercial e artística normalmente contidas em sua filmografia pela ambição pura e simples de contar uma história - que, afinal de contas é o cerne do cinema desde sua invenção. É de se questionar se o imenso talento cabe em obras tão minimalistas, mas o fato é que sempre é uma delícia se deixar entreter por alguém que sabe exatamente o que está fazendo. "Jack" pode não ser um filme extraordinário - está longe disso, aliás - mas dentro que se propõe, é um sopro de ar fresco em um cinema tão violento e inconsequente quanto o de Hollywood. Apenas uma dúvida persiste em seu final: é um filme infanto-juvenil com alma adulta, ou um filme adulto com alma juvenil?
"Jack" se aproveita de uma condição médica real chamada Sìndrome de Werner para, exagerando-a com fins dramáticos, contar a história de um menino de dez anos, Jack Powell, que, crescendo quatro vezes mais do que o normal, entra na escola pela primeira vez com a aparência de um homem de 40 anos. As angústias, situações cômicas e momentos de extrema emoção provenientes de tal situação são o recheio do roteiro de uma obra que usa e abusa de artifícios questionáveis para conquistar a plateia infantil - piadas sobre excrementos, escatologia visual - e esquece com frequência da outra parcela de sua audiência, que precisa contentar-se com situações nem sempre tão engraçadas como poderiam - as que envolvem a mãe de um dos colegas de Jack, que o confunde com o diretor da escola e é vivida pela ótima Fran Drescher, da série de TV "The Nanny" - e alguns momentos de emoção genuína que valem o filme, especialmente quando valorizadas pela atuação caprichada de Diane Lane como a mãe do protagonista, uma mulher tentando da melhor maneira possível lidar com a grande surpresa que o destino lhe fez.
"Jack" começa já mostrando de forma inteligente a peculiaridade de seu protagonista: a bela Karen Powell (Lane) está se divertindo em uma festa à fantasia, ao lado do marido, quando começa a sentir violentas contrações, incoerentes com seus meros dois meses de gravidez. Para sua surpresa, porém, ao chegar ao hospital, ela dá à luz um bebê saudável, forte e de tamanho condizente com um recém-nascido normal. Logo depois os médicos explicam a ela e a seu marido, Brian (Brian Kerwin), que Jack sofre de uma condição rara que o fará apresentar um crescimento celular desproporcional à sua idade. Preocupados, os pais de primeira viagem tomam a decisão de educar o menino dentro de casa, com um professor particular, o dedicado Dr. Woodruff (Bill Cosby). Dez anos depois, porém, eles não conseguem mais impedir seu filho - um menino tímido e solitário, que é vítima do falatório das crianças da vizinhança - se esconda do mundo, e, a pedido dele mesmo, o matriculam em uma escola normal. Lá, ele tem a proteção da professora, Miss Marquez (Jennifer Lopez) e, depois de sofrer certa discriminação por algum tempo, faz amizade com Louie (Adam Zolotin), um aluno-problema que lhe mostra as alegrias de ser criança.
É inegável o foco de Coppola na relação entre Jack e sua turma de novos amigos, um grupo de meninos endiabrados que vivem uma infância como aquelas de antigamente - com casa na árvore e rituais de passagem incluídos no pacote - em detrimento de um crescimento mais condizente com a época em que se passa a trama. Essa nostalgia (e não anacronia como possa parecer) dá um encanto a mais ao filme, permitindo ao espectador uma viagem à inocência da infância, aos sabores de um amadurecimento não mais permitido em um período tão repleto de tecnologia e individualismo (mesmo que a maior parte do filme se passe em 1996, ou seja, pré-uso massivo de celulares e internet, é impossível deixar de perceber o carinho do cineasta pela época em que crianças brincavam entre si e não apenas com seus computadores. Talvez não seja o ponto principal do roteiro, mas a ideia fica ainda mais clara hoje em dia).
E se as boas intenções do roteiro - e sua sensibilidade doce que se enfatiza no terço final - já são motivo o bastante para uma espiada em "Jack", ainda existe seu maior trunfo: a escalação de seu ator central. Poucos atores em Hollywood seria opção mais acertada do que Robin Williams, um adulto com alma de criança que já havia deixado a indústria de joelhos com os sucessos consecutivos de "Aladim" - no qual dublou com perfeição absoluta o Gênio da Lâmpada - e "Uma babá quase perfeita" - que encheu os cofres da 20th Century Fox. Na pele do inquieto Jack, ele não apenas recria as atitudes e maneirismos de uma criança de dez anos de idade: ele se transforma em uma, da mesma forma como Tom Hanks já havia feito com maestria em "Quero ser grande", que lhe valeu uma indicação ao Oscar. Williams não foi lembrado pela Academia dessa vez (só seria premiado dois anos depois, como coadjuvante por "Gênio indomável"), mas provou, mais uma vez, que era um ator extraordinário, capaz de fazer brilhar os roteiros mais simples que lhe caíssem às mãos. Ele é o maior motivo para se assistir a esse pequeno Francis Ford Coppola.
Entre obras-primas incontestáveis ("O poderoso chefão"), projetos pessoais "("A conversação"), produções ambiciosas e complicadas ("Apocalypse now") e filmes sob encomenda ("Vidas sem rumo"), Francis Ford Coppola às vezes surpreende o público e a indústria de cinema com coisas como "Jack", um delicado e sincero conto infanto-juvenil que substitui a pretensão comercial e artística normalmente contidas em sua filmografia pela ambição pura e simples de contar uma história - que, afinal de contas é o cerne do cinema desde sua invenção. É de se questionar se o imenso talento cabe em obras tão minimalistas, mas o fato é que sempre é uma delícia se deixar entreter por alguém que sabe exatamente o que está fazendo. "Jack" pode não ser um filme extraordinário - está longe disso, aliás - mas dentro que se propõe, é um sopro de ar fresco em um cinema tão violento e inconsequente quanto o de Hollywood. Apenas uma dúvida persiste em seu final: é um filme infanto-juvenil com alma adulta, ou um filme adulto com alma juvenil?
"Jack" se aproveita de uma condição médica real chamada Sìndrome de Werner para, exagerando-a com fins dramáticos, contar a história de um menino de dez anos, Jack Powell, que, crescendo quatro vezes mais do que o normal, entra na escola pela primeira vez com a aparência de um homem de 40 anos. As angústias, situações cômicas e momentos de extrema emoção provenientes de tal situação são o recheio do roteiro de uma obra que usa e abusa de artifícios questionáveis para conquistar a plateia infantil - piadas sobre excrementos, escatologia visual - e esquece com frequência da outra parcela de sua audiência, que precisa contentar-se com situações nem sempre tão engraçadas como poderiam - as que envolvem a mãe de um dos colegas de Jack, que o confunde com o diretor da escola e é vivida pela ótima Fran Drescher, da série de TV "The Nanny" - e alguns momentos de emoção genuína que valem o filme, especialmente quando valorizadas pela atuação caprichada de Diane Lane como a mãe do protagonista, uma mulher tentando da melhor maneira possível lidar com a grande surpresa que o destino lhe fez.
"Jack" começa já mostrando de forma inteligente a peculiaridade de seu protagonista: a bela Karen Powell (Lane) está se divertindo em uma festa à fantasia, ao lado do marido, quando começa a sentir violentas contrações, incoerentes com seus meros dois meses de gravidez. Para sua surpresa, porém, ao chegar ao hospital, ela dá à luz um bebê saudável, forte e de tamanho condizente com um recém-nascido normal. Logo depois os médicos explicam a ela e a seu marido, Brian (Brian Kerwin), que Jack sofre de uma condição rara que o fará apresentar um crescimento celular desproporcional à sua idade. Preocupados, os pais de primeira viagem tomam a decisão de educar o menino dentro de casa, com um professor particular, o dedicado Dr. Woodruff (Bill Cosby). Dez anos depois, porém, eles não conseguem mais impedir seu filho - um menino tímido e solitário, que é vítima do falatório das crianças da vizinhança - se esconda do mundo, e, a pedido dele mesmo, o matriculam em uma escola normal. Lá, ele tem a proteção da professora, Miss Marquez (Jennifer Lopez) e, depois de sofrer certa discriminação por algum tempo, faz amizade com Louie (Adam Zolotin), um aluno-problema que lhe mostra as alegrias de ser criança.
É inegável o foco de Coppola na relação entre Jack e sua turma de novos amigos, um grupo de meninos endiabrados que vivem uma infância como aquelas de antigamente - com casa na árvore e rituais de passagem incluídos no pacote - em detrimento de um crescimento mais condizente com a época em que se passa a trama. Essa nostalgia (e não anacronia como possa parecer) dá um encanto a mais ao filme, permitindo ao espectador uma viagem à inocência da infância, aos sabores de um amadurecimento não mais permitido em um período tão repleto de tecnologia e individualismo (mesmo que a maior parte do filme se passe em 1996, ou seja, pré-uso massivo de celulares e internet, é impossível deixar de perceber o carinho do cineasta pela época em que crianças brincavam entre si e não apenas com seus computadores. Talvez não seja o ponto principal do roteiro, mas a ideia fica ainda mais clara hoje em dia).
E se as boas intenções do roteiro - e sua sensibilidade doce que se enfatiza no terço final - já são motivo o bastante para uma espiada em "Jack", ainda existe seu maior trunfo: a escalação de seu ator central. Poucos atores em Hollywood seria opção mais acertada do que Robin Williams, um adulto com alma de criança que já havia deixado a indústria de joelhos com os sucessos consecutivos de "Aladim" - no qual dublou com perfeição absoluta o Gênio da Lâmpada - e "Uma babá quase perfeita" - que encheu os cofres da 20th Century Fox. Na pele do inquieto Jack, ele não apenas recria as atitudes e maneirismos de uma criança de dez anos de idade: ele se transforma em uma, da mesma forma como Tom Hanks já havia feito com maestria em "Quero ser grande", que lhe valeu uma indicação ao Oscar. Williams não foi lembrado pela Academia dessa vez (só seria premiado dois anos depois, como coadjuvante por "Gênio indomável"), mas provou, mais uma vez, que era um ator extraordinário, capaz de fazer brilhar os roteiros mais simples que lhe caíssem às mãos. Ele é o maior motivo para se assistir a esse pequeno Francis Ford Coppola.
quinta-feira
AS FILHAS DE MARVIN
AS FILHAS DE MARVIN (Marvin's room, 1996, Scott Rudin Productions/Tribeca Productions, 98min) Direção: Jerry Zacks. Roteiro: Scott McPherson, peça teatral homônima de Scott McPherson. Fotografia: Piotr Sobocinski. Montagem: Jim Clark. Música: Rachel Portman. Figurino: Julie Weiss. Direção de arte/cenários: David Gropman/Tracey Doyle. Produção executiva: Tod Scott Brody, Lori Steinberg. Produção: Robert De Niro, Jane Rosenthal, Scott Rudin. Elenco: Meryl Streep, Diane Keaton, Robert De Niro, Leonardo DiCaprio, Hume Cronyn, Gwen Verdon, Dan Hedaya, Margo Martindale, Cynthia Nixon, Hal Scardino. Estreia: 18/12/96
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Diane Keaton)
Quase vinte anos depois de ter embolsado o Oscar de melhor atriz por "Noivo neurótico, noiva nervosa", Diane Keaton voltou a ter o gostinho de ser indicada ao prêmio da Academia. Ao contrário de seu trabalho solar e bem-humorado no filme de Woody Allen, porém, seu desempenho em "As filhas de Marvin" - o responsável por sua indicação e pelos elogios que recebeu da crítica - nada tem de leve ou engraçado. Na pele de Bess Wakefield, uma mulher que abdicou de uma vida própria para cuidar do pai doente e da tia solteirona e que se descobre portadora de leucemia, a eterna Annie Hall mostrou que nem só de comédias rápidas como "Clube das desquitadas" - lançada no mesmo ano - vivia sua carreira. Ainda que, através de um inesperado senso de humor, o filme fuja constantemente do dramalhão lacrimoso - cortesia do roteiro escrito pelo próprio Scott McPherson que escreveu a peça teatral que lhe deu origem - é difícil não ceder à emoção quando em um mesmo pacote estão presentes doenças terminais, reconciliações familiares, ressentimentos fraternos... e Meryl Streep.
Não deixa de ser surpreendente que tenha sido Keaton e não Meryl Streep a escolhida pela Academia a figurar entre suas cinco indicadas ao Oscar de melhor atriz, na cerimônia de 1997, que esnobou Madonna, por "Evita" e premiou Frances McDormand, por "Fargo". Figura constante entre as candidatas, Streep dessa vez foi deixada de lado provavelmente porque ficou com o papel menos dramático dentre as protagonistas, uma vez que é sabido que os votantes da estatueta dourada não resistem à uma doença na hora de escolherem seus favoritos. Isso, no entanto, não tira os méritos de Diane, que faz o possível para dar dignidade e verossimilhança a uma personagem talvez otimista e altruísta demais para ser verdade. Essa superficialidade no desenho da personagem - e até no enfoque do relacionamento entre ela e as demais - acaba sendo enfatizada pela inexperiência do diretor Jerry Zacks, que não consegue esconder suas origens televisivas ao resolver de forma pálida e apressada as questões levantadas pela trama, já frágil em sua concepção.
Bess Wakefield (personagem construída sem muita sutileza pelo roteiro) é uma mulher caridosa, boa, paciente e bem-humorada que aceitou cordatamente o fato de ter deixado de lado sua vida para cuidar do pai, Marvin (Hume Cronyn em seu último filme), depois de um derrame, e de sua tia Ruth (Gwen Verdon), que passa os dias assistindo a novelas na televisão e não ajuda em nada nos cuidados com o irmão. Diagnosticada com leucemia, ela se vê diante de um problema com o qual julgava não ter jamais com o qual se preocupar: lidar com a única irmã, Lee (Meryl Streep), a quem não vê há quase vinte anos. Separada do marido e independente, Lee vive em outra cidade com os dois filhos - um deles o rebelde Hank (Leonardo DiCaprio), com quem vive às turras - e não tem a menor intenção de retornar à casa da família, mas acaba sendo a última opção de Bess quando ela entra em contato solicitando que ela faça exames para uma possível doação de medula. O reencontro da família traz à tona todos os ressentimentos represados há anos, assim como obriga Lee a enfrentar a difícil tarefa de revelar a seu filho mais velho a verdade sobre o pai que o rapaz idolatra desde a infância.
Ao utilizar-se de todos os clichês possíveis e imagináveis dos dramas familiares que envolvem doenças e traumas do passado, "As filhas de Marvin" encontra seu maior trunfo justamente em seus atores, tão bons que conseguem, dentro dos limites do possível, sustentar um roteiro que não consegue equilibrar a contento os momentos mais dramáticos com aqueles que se propõem a aliviar a tensão. O humor - vindo basicamente nas intervenções da personagem de Gwen Verdon e do irmão/recepcionista do médico vivido por Robert De Niro - não funciona na maior parte das vezes, dando a impressão de estar em cena com o único propósito de fugir da pieguice da qual o roteiro está encharcado. A relação entre Lee e seu filho Hank tampouco soa convincente a despeito do talento de seus intérpretes - DiCaprio estava iniciando seu reinado como ídolo adolescente e vive um personagem extremamente irritante, o que também ajuda a impedir uma maior identificação com a plateia mais velha. Além do mais, quando o filme finalmente se deixa levar pela emoção genuína - nas conversas entre Streep e Keaton - ele parece ter vergonha disso, apressando as cenas a ponto de torná-las superficiais e ocas. Não é de admirar que seja uma obra menos louvada nas carreiras de todos os (ótimos) envolvidos. "As filhas de Marvin" é um Supercine de luxo.
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Diane Keaton)
Quase vinte anos depois de ter embolsado o Oscar de melhor atriz por "Noivo neurótico, noiva nervosa", Diane Keaton voltou a ter o gostinho de ser indicada ao prêmio da Academia. Ao contrário de seu trabalho solar e bem-humorado no filme de Woody Allen, porém, seu desempenho em "As filhas de Marvin" - o responsável por sua indicação e pelos elogios que recebeu da crítica - nada tem de leve ou engraçado. Na pele de Bess Wakefield, uma mulher que abdicou de uma vida própria para cuidar do pai doente e da tia solteirona e que se descobre portadora de leucemia, a eterna Annie Hall mostrou que nem só de comédias rápidas como "Clube das desquitadas" - lançada no mesmo ano - vivia sua carreira. Ainda que, através de um inesperado senso de humor, o filme fuja constantemente do dramalhão lacrimoso - cortesia do roteiro escrito pelo próprio Scott McPherson que escreveu a peça teatral que lhe deu origem - é difícil não ceder à emoção quando em um mesmo pacote estão presentes doenças terminais, reconciliações familiares, ressentimentos fraternos... e Meryl Streep.
Não deixa de ser surpreendente que tenha sido Keaton e não Meryl Streep a escolhida pela Academia a figurar entre suas cinco indicadas ao Oscar de melhor atriz, na cerimônia de 1997, que esnobou Madonna, por "Evita" e premiou Frances McDormand, por "Fargo". Figura constante entre as candidatas, Streep dessa vez foi deixada de lado provavelmente porque ficou com o papel menos dramático dentre as protagonistas, uma vez que é sabido que os votantes da estatueta dourada não resistem à uma doença na hora de escolherem seus favoritos. Isso, no entanto, não tira os méritos de Diane, que faz o possível para dar dignidade e verossimilhança a uma personagem talvez otimista e altruísta demais para ser verdade. Essa superficialidade no desenho da personagem - e até no enfoque do relacionamento entre ela e as demais - acaba sendo enfatizada pela inexperiência do diretor Jerry Zacks, que não consegue esconder suas origens televisivas ao resolver de forma pálida e apressada as questões levantadas pela trama, já frágil em sua concepção.
Bess Wakefield (personagem construída sem muita sutileza pelo roteiro) é uma mulher caridosa, boa, paciente e bem-humorada que aceitou cordatamente o fato de ter deixado de lado sua vida para cuidar do pai, Marvin (Hume Cronyn em seu último filme), depois de um derrame, e de sua tia Ruth (Gwen Verdon), que passa os dias assistindo a novelas na televisão e não ajuda em nada nos cuidados com o irmão. Diagnosticada com leucemia, ela se vê diante de um problema com o qual julgava não ter jamais com o qual se preocupar: lidar com a única irmã, Lee (Meryl Streep), a quem não vê há quase vinte anos. Separada do marido e independente, Lee vive em outra cidade com os dois filhos - um deles o rebelde Hank (Leonardo DiCaprio), com quem vive às turras - e não tem a menor intenção de retornar à casa da família, mas acaba sendo a última opção de Bess quando ela entra em contato solicitando que ela faça exames para uma possível doação de medula. O reencontro da família traz à tona todos os ressentimentos represados há anos, assim como obriga Lee a enfrentar a difícil tarefa de revelar a seu filho mais velho a verdade sobre o pai que o rapaz idolatra desde a infância.
Ao utilizar-se de todos os clichês possíveis e imagináveis dos dramas familiares que envolvem doenças e traumas do passado, "As filhas de Marvin" encontra seu maior trunfo justamente em seus atores, tão bons que conseguem, dentro dos limites do possível, sustentar um roteiro que não consegue equilibrar a contento os momentos mais dramáticos com aqueles que se propõem a aliviar a tensão. O humor - vindo basicamente nas intervenções da personagem de Gwen Verdon e do irmão/recepcionista do médico vivido por Robert De Niro - não funciona na maior parte das vezes, dando a impressão de estar em cena com o único propósito de fugir da pieguice da qual o roteiro está encharcado. A relação entre Lee e seu filho Hank tampouco soa convincente a despeito do talento de seus intérpretes - DiCaprio estava iniciando seu reinado como ídolo adolescente e vive um personagem extremamente irritante, o que também ajuda a impedir uma maior identificação com a plateia mais velha. Além do mais, quando o filme finalmente se deixa levar pela emoção genuína - nas conversas entre Streep e Keaton - ele parece ter vergonha disso, apressando as cenas a ponto de torná-las superficiais e ocas. Não é de admirar que seja uma obra menos louvada nas carreiras de todos os (ótimos) envolvidos. "As filhas de Marvin" é um Supercine de luxo.
quarta-feira
PÂNICO
PÂNICO (Scream, 1996, New Dimension Films, 111min) Direção: Wes Craven. Roteiro: Kevin Williamson. Fotografia: Mark Irwin. Montagem: Patrick Lussier. Música: Marco Beltrami. Figurino: Cynthia Bergstrom. Direção de arte/cenários: Bruce Alan Miller/Michele Poulik. Produção executiva: Marianne Maddalena, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Cathy Konrad, Cary Woods. Elenco: Neve Campbell, Courteney Cox, David Arquette, Skeet Ulrich, Jamie Kennedy, Drew Barrymore, Rose McGowan, Matthew Lillard, Liev Schreiber. Estreia: 18/12/96
O pai de uma das mais cultuadas espécies do cinema de terror estava em baixa na década de 90. Depois de ver sua mais famosa criatura - Freddy Krueger - exposto ao ridículo nas inúmeras continuações de seu "A hora do pesadelo" - incluindo até uma comandada por ele mesmo dez anos mais tarde - Wes Craven estava disposto a dar um novo rumo à carreira e abandonar o gênero que havia lhe dado fama e dinheiro. Foi então que caiu em suas mãos o roteiro de um novato chamado Kevin Williamson que dava sangue novo (literalmente) aos slasher movies - filmes ao estilo "Halloween" e "Sexta-feira 13" - acrescentando à receita doses cavalares de humor e autocrítica. Craven topou dirigir o roteiro como homenagem aos fãs que o cobravam constantemente e a Miramax resolveu lançar seu novo produto dias antes do Natal de 1996, acreditando que a plateia precisava de uma opção aos dramas lacrimosos que ambicionavam o Oscar e os filmes familiares que dominavam as salas de cinema no mesmo período. A estreia foi pouco alvissareira, mas não demorou muito para que a propaganda boca-a-boca mostrasse seu poder: ao final de sua estadia nas telas, "Pânico" não só estava com uma renda superior a 100 milhões de dólares, como havia se transformado em uma inesperada e bem-vinda franquia de terror adolescente - e adiado mais um pouco os planos de Craven em ser um cineasta sério.
O roteiro de Williamson - que se tornaria o escritor-selo da série e de outros filmes do gênero pelos anos seguintes, além de criar a série adolescente televisiva "Dawson's Creek" - não demora a apresentar seu vilão, um cruel assassino mascarado chamado Ghostface que, em uma sequência de 12 longos minutos, tortura psicologicamente e por fim mata a facadas a jovem Casey (Drew Barrymore) em uma noite na qual a garota está sozinha em casa. O crime assusta os moradores da pequena cidade de Woodsboro, que um ano antes havia tido repercussão nos noticiários nacionais graças ao estupro e à morte de uma moradora, Maureen Prescott. Não demora para que a filha única de Maureen - que testemunhou no julgamento do homem condenado por seu assassinato - perceba que ela é o alvo principal do assassino misterioso, que passa a matar pessoas próximas a ela. Tímida e reservada, Sidney (Neve Campbell) conta com a ajuda da polícia local para fugir e desmascarar o criminoso, especialmente do atrapalhado Dewey (David Arquette) - irmão de sua melhor amiga, Tatum (Rose MacGowan) - e de seu ambíguo namorado, Billy Loomis (Skeet Ulrich), de quem começa a desconfiar quando a paranoia se transforma em companheira constante. Além de tudo, Sidney ainda precisa lidar com a empáfia de Gale Weathers (Courteney Cox), repórter de TV que está em vias de publicar um livro narrando o homicídio de Maureen.
Visto como um simples filme de terror adolescente, "Pânico" talvez não ofereça mais do que seus similares, uma vez que segue à risca todos os mandamentos do gênero - e brinca com todos eles através de diálogos inteligentes e sarcásticos. O que fez dele um exemplar refrescante - e que o fez virar febre e gerar duas continuações imediatas e uma temporã, mais de uma década depois de sua estreia - é justamente a combinação na medida certa entre o clássico e o novo, oferecendo a seu público-alvo um cinema fast-food divertido, rápido e que foi ao encontro de suas necessidades. Violento sem exageros - pelo menos dentro da concepção de violência de um filme do gênero as mortes são ao mesmo tempo tensas e dotadas de um macabro senso de humor que deu margem inclusive às sátiras de "Todo mundo em pânico" - e recheado de citações visuais e verbais ao cinema de horror moderno (com direito a uma "participação especial" do próprio Freddy Krueger e inúmeras referências a clássicos do suspense), "`Pânico" conquistou também por não levar-se demasiadamente a sério, acrescentando um tom de deboche a uma receita já devidamente testada e aprovada: esse molho especial consegue inclusive disfarçar a apatia de sua mocinha, a insípida Neve Campbell, que tornou-se um ícone da nova geração dos filmes de terror - que ganhou uma sobrevida interessante graças ao sucesso do filme.
E, além de suas qualidades como entretenimento, "Pânico" também tem histórias saborosas em seus bastidores. Drew Barrymore, por exemplo, foi escalada para viver Sidney, mas conversando com Wes Craven, ambos chegaram à conclusão de que matar uma atriz conhecida do público logo na primeira cena seria um golpe de mestre, preparando a audiência para um vale-tudo, onde tudo poderia acontecer. Molly Ringwald, ídolo da adolescência dos anos 80, também chegou a ser convidada para o papel, mas recusou por achar-se velha demais (27 anos à época) para convencer como estudante secundarista - e entre outras possibilidades levantadas por Craven estavam Reese Witherspoon e Brittany Murphy. Brooke Shields quase ficou com o papel da repórter Gale Weathers quando Janeane Garofalo pulou fora, mas na última hora o diretor optou por Courteney Cox - famosa pela série "Friends" - que, durante as filmagens, conheceu e se apaixonou por seu futuro marido David Arquette (o casamento durou até 2013). E o próprio Arquette viu seu personagem ganhar importância devido à reação positiva do público nas sessões-teste, a ponto de garantir uma sobrevida para as continuações. Linda Blair, a Reagan McNeil de "O exorcista", faz uma ponta como repórter. E até Joaquin Phoenix, hoje respeitado como um dos melhores atores de sua geração, fez um teste para viver Billy Loomis.
Item essencial da filmografia juvenil dos anos 90 e divertido ao extremo - dentro da concepção de diversão que um filme que mostra adolescentes sendo assassinados a facadas - "Pânico" é também o pai de filmes menores, como "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" e "Prova final", que beberam na sua fonte até o esgotamento do filão. Imperdível.
O pai de uma das mais cultuadas espécies do cinema de terror estava em baixa na década de 90. Depois de ver sua mais famosa criatura - Freddy Krueger - exposto ao ridículo nas inúmeras continuações de seu "A hora do pesadelo" - incluindo até uma comandada por ele mesmo dez anos mais tarde - Wes Craven estava disposto a dar um novo rumo à carreira e abandonar o gênero que havia lhe dado fama e dinheiro. Foi então que caiu em suas mãos o roteiro de um novato chamado Kevin Williamson que dava sangue novo (literalmente) aos slasher movies - filmes ao estilo "Halloween" e "Sexta-feira 13" - acrescentando à receita doses cavalares de humor e autocrítica. Craven topou dirigir o roteiro como homenagem aos fãs que o cobravam constantemente e a Miramax resolveu lançar seu novo produto dias antes do Natal de 1996, acreditando que a plateia precisava de uma opção aos dramas lacrimosos que ambicionavam o Oscar e os filmes familiares que dominavam as salas de cinema no mesmo período. A estreia foi pouco alvissareira, mas não demorou muito para que a propaganda boca-a-boca mostrasse seu poder: ao final de sua estadia nas telas, "Pânico" não só estava com uma renda superior a 100 milhões de dólares, como havia se transformado em uma inesperada e bem-vinda franquia de terror adolescente - e adiado mais um pouco os planos de Craven em ser um cineasta sério.
O roteiro de Williamson - que se tornaria o escritor-selo da série e de outros filmes do gênero pelos anos seguintes, além de criar a série adolescente televisiva "Dawson's Creek" - não demora a apresentar seu vilão, um cruel assassino mascarado chamado Ghostface que, em uma sequência de 12 longos minutos, tortura psicologicamente e por fim mata a facadas a jovem Casey (Drew Barrymore) em uma noite na qual a garota está sozinha em casa. O crime assusta os moradores da pequena cidade de Woodsboro, que um ano antes havia tido repercussão nos noticiários nacionais graças ao estupro e à morte de uma moradora, Maureen Prescott. Não demora para que a filha única de Maureen - que testemunhou no julgamento do homem condenado por seu assassinato - perceba que ela é o alvo principal do assassino misterioso, que passa a matar pessoas próximas a ela. Tímida e reservada, Sidney (Neve Campbell) conta com a ajuda da polícia local para fugir e desmascarar o criminoso, especialmente do atrapalhado Dewey (David Arquette) - irmão de sua melhor amiga, Tatum (Rose MacGowan) - e de seu ambíguo namorado, Billy Loomis (Skeet Ulrich), de quem começa a desconfiar quando a paranoia se transforma em companheira constante. Além de tudo, Sidney ainda precisa lidar com a empáfia de Gale Weathers (Courteney Cox), repórter de TV que está em vias de publicar um livro narrando o homicídio de Maureen.
Visto como um simples filme de terror adolescente, "Pânico" talvez não ofereça mais do que seus similares, uma vez que segue à risca todos os mandamentos do gênero - e brinca com todos eles através de diálogos inteligentes e sarcásticos. O que fez dele um exemplar refrescante - e que o fez virar febre e gerar duas continuações imediatas e uma temporã, mais de uma década depois de sua estreia - é justamente a combinação na medida certa entre o clássico e o novo, oferecendo a seu público-alvo um cinema fast-food divertido, rápido e que foi ao encontro de suas necessidades. Violento sem exageros - pelo menos dentro da concepção de violência de um filme do gênero as mortes são ao mesmo tempo tensas e dotadas de um macabro senso de humor que deu margem inclusive às sátiras de "Todo mundo em pânico" - e recheado de citações visuais e verbais ao cinema de horror moderno (com direito a uma "participação especial" do próprio Freddy Krueger e inúmeras referências a clássicos do suspense), "`Pânico" conquistou também por não levar-se demasiadamente a sério, acrescentando um tom de deboche a uma receita já devidamente testada e aprovada: esse molho especial consegue inclusive disfarçar a apatia de sua mocinha, a insípida Neve Campbell, que tornou-se um ícone da nova geração dos filmes de terror - que ganhou uma sobrevida interessante graças ao sucesso do filme.
E, além de suas qualidades como entretenimento, "Pânico" também tem histórias saborosas em seus bastidores. Drew Barrymore, por exemplo, foi escalada para viver Sidney, mas conversando com Wes Craven, ambos chegaram à conclusão de que matar uma atriz conhecida do público logo na primeira cena seria um golpe de mestre, preparando a audiência para um vale-tudo, onde tudo poderia acontecer. Molly Ringwald, ídolo da adolescência dos anos 80, também chegou a ser convidada para o papel, mas recusou por achar-se velha demais (27 anos à época) para convencer como estudante secundarista - e entre outras possibilidades levantadas por Craven estavam Reese Witherspoon e Brittany Murphy. Brooke Shields quase ficou com o papel da repórter Gale Weathers quando Janeane Garofalo pulou fora, mas na última hora o diretor optou por Courteney Cox - famosa pela série "Friends" - que, durante as filmagens, conheceu e se apaixonou por seu futuro marido David Arquette (o casamento durou até 2013). E o próprio Arquette viu seu personagem ganhar importância devido à reação positiva do público nas sessões-teste, a ponto de garantir uma sobrevida para as continuações. Linda Blair, a Reagan McNeil de "O exorcista", faz uma ponta como repórter. E até Joaquin Phoenix, hoje respeitado como um dos melhores atores de sua geração, fez um teste para viver Billy Loomis.
Item essencial da filmografia juvenil dos anos 90 e divertido ao extremo - dentro da concepção de diversão que um filme que mostra adolescentes sendo assassinados a facadas - "Pânico" é também o pai de filmes menores, como "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" e "Prova final", que beberam na sua fonte até o esgotamento do filão. Imperdível.
terça-feira
MÃES EM LUTA
MÃES EM LUTA (Some mother's son, 1996, Warner Bros, 112min) Direção: Terry George. Roteiro: Terry George, Jim Sheridan. Fotografia: Geoffrey Simpson. Montagem: Craig McKay. Figurino: Joan Bergin. Direção de arte/cenários: David Wilson/Carolyn Scott. Produção: Edward Burke, Arthur Lappin, Jim Sheridan. Elenco: Helen Mirren, Fionnula Flanagan, Ciáran Hinds, Aidan Gillen, David O'Hara, John Lynch, Tom Hollander. Estreia: 09/9/96 (Festival de Toronto)
Coincidência ou não, no mesmo ano em que Neil Jordan virou seus olhos para a criação do IRA - Exército Republicano Irlandês - em seu "Michael Collins, o preço da coragem", outro filme de temática similar chegou às telas de cinema, deixando claro à plateia o interesse dos cineastas do país em retratar de forma mais realista e dramática possível a realidade politica de uma nação eternamente mergulhada em conflitos violentos pela liberdade. Co-escrito e produzido por Jim Sheridan - que já havia assinado o polêmico "Em nome do pai", de 1993 - o potente "Mães em luta", dirigido por seu parceiro artístico Terry George, porém, segue caminho oposto em seus objetivos: diferente da ambição histórica da biografia estrelada por Liam Neeson, seu filme se aproxima da audiência de forma mais intimista, ao narrar a história real de duas mulheres unidas na defesa da vida de seus filhos, prisioneiros políticos que lutavam pelo direito de serem tratados como tal.
Inteligentemente enfatizando os dramas pessoais em detrimento de maquinações políticas ainda que elas inevitavelmente façam parte da história, "Mães em luta" comove por não ser um "filme explicitamente político": mesmo que seu pano de fundo assim o rotule, é impossível não se deixar envolver com a via-crúcis de suas duas protagonistas, interpretadas com garra e carisma por atrizes de primeira grandeza que ainda não eram conhecidas do grande público, Helen Mirren e Fionnula Flanagan. A primeira só ganharia reconhecimento mundial - e um Oscar de melhor atriz - em 2007, ironicamente interpretando a Elizabeth II no drama "A rainha", de Stephen Frears, e a segunda conheceria o gostinho da fama ao viver a misteriosa governanta da mansão mal-assombrada de Nicole Kidman em "Os outros", de 2001. Juntas, elas dão ao filme de Terry George o teor humano e de identificação que não havia na obra de Neil Jordan. Elas não são terroristas nem políticas: são duas mulheres comuns, pacatas e cientes de suas obrigações como cidadãs que, de repente, se veem no meio de um furacão para defender o que mais amam.
Começando ironicamente com uma declaração de Margaret Tatcher citando um texto de São Francisco de Assis que prega a paz, "Mães em luta" não demora a mergulhar o público no drama que irá lhe emocionar pelas próximas duas horas. O ano é 1981, e dois jovens irlandeses são presos acusados de atos terroristas assumidos pelo IRA. Gerard Quigkley (Aiden Gillen) é o filho mais velho de Kathleen (Helen Mirren), uma viúva que paga suas contas dando aulas em uma escola católica, e Frank Higgins (David O'Hara) é filho de Annie (Fionnula Flanagan), que também é viúva e, sem estudos, sustenta a família trabalhando duro e incansavelmente. Vendo seus filhos presos em plena noite de Natal, elas acabam se aproximando, mesmo que tenham visões radicalmente diferentes a respeito da violência que cerca o país onde vivem. Kathleen, por exemplo, é contrária à intervenção de Danny Boyle (Ciáran Hinds) - líder político ligado ao IRA - no caso dos jovens, que são condenados como criminosos comuns em um julgamento sem júri popular. As duas, no entanto, acabam se tornando ainda mais próximas quando os mais de 100 prisioneiros políticos resolvem lutar por seus direitos na prisão: eles exigem um tratamento diferenciado dos presos comuns e sua batalha atinge o ápice quando seu líder, Bobby Sands (John Lynch) inicia uma greve de fome que em pouco tempo se espalha entre todos.
Intercalando sua narrativa entre o drama das duas mães tentando de todas as maneiras comover a opinião pública a favor de seus filhos e companheiros, os bastidores vis das negociações com o governo e o sofrimento dos presos em seu dia-a-dia cercado de angústia, incertezas e violência moral, "Mães em luta" é um dos filmes mais subestimados dos anos 90, um petardo emocional realizado com paixão, inteligência e sensibilidade raras. Seu ato final, principalmente, quando a greve de fome começa a chegar a níveis desesperadores, é brilhantemente realizado, com destaque à edição forte de Craig McKay, que enfatiza o suspense sem jamais deixar de destacar a potência das interpretações - tanto das atrizes centrais quanto dos atores que vivem seus filhos. Repleta de cenas que tocam fundo, a trajetória dessas mães em luta deve ser conhecida e aplaudida, mesmo que tardiamente. Vale muito a pena descobrir essa pequena obra-prima.
Vale lembrar também que em 2008, o cineasta Steve McQueen contou a história do prisioneiro Bobby Sands e sua greve de fome no contundente "Hunger", estrelado por Michael Fassbender em uma atuação monstruosa. Também é recompensador buscar essa preciosidade.
Coincidência ou não, no mesmo ano em que Neil Jordan virou seus olhos para a criação do IRA - Exército Republicano Irlandês - em seu "Michael Collins, o preço da coragem", outro filme de temática similar chegou às telas de cinema, deixando claro à plateia o interesse dos cineastas do país em retratar de forma mais realista e dramática possível a realidade politica de uma nação eternamente mergulhada em conflitos violentos pela liberdade. Co-escrito e produzido por Jim Sheridan - que já havia assinado o polêmico "Em nome do pai", de 1993 - o potente "Mães em luta", dirigido por seu parceiro artístico Terry George, porém, segue caminho oposto em seus objetivos: diferente da ambição histórica da biografia estrelada por Liam Neeson, seu filme se aproxima da audiência de forma mais intimista, ao narrar a história real de duas mulheres unidas na defesa da vida de seus filhos, prisioneiros políticos que lutavam pelo direito de serem tratados como tal.
Inteligentemente enfatizando os dramas pessoais em detrimento de maquinações políticas ainda que elas inevitavelmente façam parte da história, "Mães em luta" comove por não ser um "filme explicitamente político": mesmo que seu pano de fundo assim o rotule, é impossível não se deixar envolver com a via-crúcis de suas duas protagonistas, interpretadas com garra e carisma por atrizes de primeira grandeza que ainda não eram conhecidas do grande público, Helen Mirren e Fionnula Flanagan. A primeira só ganharia reconhecimento mundial - e um Oscar de melhor atriz - em 2007, ironicamente interpretando a Elizabeth II no drama "A rainha", de Stephen Frears, e a segunda conheceria o gostinho da fama ao viver a misteriosa governanta da mansão mal-assombrada de Nicole Kidman em "Os outros", de 2001. Juntas, elas dão ao filme de Terry George o teor humano e de identificação que não havia na obra de Neil Jordan. Elas não são terroristas nem políticas: são duas mulheres comuns, pacatas e cientes de suas obrigações como cidadãs que, de repente, se veem no meio de um furacão para defender o que mais amam.
Começando ironicamente com uma declaração de Margaret Tatcher citando um texto de São Francisco de Assis que prega a paz, "Mães em luta" não demora a mergulhar o público no drama que irá lhe emocionar pelas próximas duas horas. O ano é 1981, e dois jovens irlandeses são presos acusados de atos terroristas assumidos pelo IRA. Gerard Quigkley (Aiden Gillen) é o filho mais velho de Kathleen (Helen Mirren), uma viúva que paga suas contas dando aulas em uma escola católica, e Frank Higgins (David O'Hara) é filho de Annie (Fionnula Flanagan), que também é viúva e, sem estudos, sustenta a família trabalhando duro e incansavelmente. Vendo seus filhos presos em plena noite de Natal, elas acabam se aproximando, mesmo que tenham visões radicalmente diferentes a respeito da violência que cerca o país onde vivem. Kathleen, por exemplo, é contrária à intervenção de Danny Boyle (Ciáran Hinds) - líder político ligado ao IRA - no caso dos jovens, que são condenados como criminosos comuns em um julgamento sem júri popular. As duas, no entanto, acabam se tornando ainda mais próximas quando os mais de 100 prisioneiros políticos resolvem lutar por seus direitos na prisão: eles exigem um tratamento diferenciado dos presos comuns e sua batalha atinge o ápice quando seu líder, Bobby Sands (John Lynch) inicia uma greve de fome que em pouco tempo se espalha entre todos.
Intercalando sua narrativa entre o drama das duas mães tentando de todas as maneiras comover a opinião pública a favor de seus filhos e companheiros, os bastidores vis das negociações com o governo e o sofrimento dos presos em seu dia-a-dia cercado de angústia, incertezas e violência moral, "Mães em luta" é um dos filmes mais subestimados dos anos 90, um petardo emocional realizado com paixão, inteligência e sensibilidade raras. Seu ato final, principalmente, quando a greve de fome começa a chegar a níveis desesperadores, é brilhantemente realizado, com destaque à edição forte de Craig McKay, que enfatiza o suspense sem jamais deixar de destacar a potência das interpretações - tanto das atrizes centrais quanto dos atores que vivem seus filhos. Repleta de cenas que tocam fundo, a trajetória dessas mães em luta deve ser conhecida e aplaudida, mesmo que tardiamente. Vale muito a pena descobrir essa pequena obra-prima.
Vale lembrar também que em 2008, o cineasta Steve McQueen contou a história do prisioneiro Bobby Sands e sua greve de fome no contundente "Hunger", estrelado por Michael Fassbender em uma atuação monstruosa. Também é recompensador buscar essa preciosidade.
segunda-feira
NA CORDA BAMBA
NA CORDA BAMBA (Sling blade, 1996, Shooting Gallery/Miramax, 135min) Direção: Billy Bob Thornton. Roteiro: Billy Bob Thornton, peça teatral homônima de sua autoria. Fotografia: Barry Markowitz. Montagem: Hughes Wainborne. Música: Daniel Lanois. Figurino: Douglas Hall. Direção de arte/cenários: Clark Hunter/Traci Kirshbaum. Produção executiva: Larry Meistrich. Produção: David L. Bushell, Brandon Rosser. Elenco: Billy Bob Thornton, Lucas Black, Dwight Yoakam, J.T. Walsh, John Ritter, Natalie Carneday, Robert Duvall. Estreia: 30/8/96 (Festival de Telluride)
2 indicações ao Oscar: Ator (Billy Bob Thornton), Roteiro Adaptado
Vencedor do Oscar de Roteiro Adaptado
Em 1997, o drama romântico "O paciente inglês" chegou à cerimônia de entrega do Oscar disposto a trucidar a concorrência. Conseguiu. Com o impressionante número de nove estatuetas - incluindo melhor filme e diretor - a adaptação do romance de Michael Ondaatje (antes considerado infilmável) tornou-se um dos maiores campeões da história da Academia. Mesmo assim, sendo premiado até mesmo em categorias técnicas (melhor som?), o Golias estrelado por Ralph Fiennes e Kristin Scott-Thomas caiu de joelhos diante de um Davi a quem poucos haviam dado atenção justamente em um dos prêmios mais importantes da noite: "Na corda bamba", escrito, dirigido e estrelado por Billy Bob Thornton deu uma rasteira em Anthony Minghella e saiu da festa com a cobiçada láurea de melhor roteiro adaptado - também disputada com gente de peso, como Arthur Miller ("As bruxas de Salem"), Kenneth Branagh ("Hamlet") e John Hodge ("Trainspotting"). Como ele conseguiu essa façanha? Só Deus, os eleitores da Academia e os votantes do sindicato de roteiristas, que haviam lhe conferido a mesma homenagem poucos dias antes, podem explicar.
Versão estendida de um curta-metragem do mesmo Thornton, lançado em 1994 - "Some folks called it a sling blade" - "Na corda bamba" teve o apoio nada modesto de Harvey Weinstein, então chefão da Miramax, a mais importante distribuidora independente de Hollywood à época, que desembolsou 10 milhões de dólares pelos direitos do filme. Com esse empurrão muito bem-vindo, o filme chamou a atenção da crítica e acabou sendo eleito um dos dez melhores do ano pela conceituada National Board of Review, o que pavimentou seu caminho para a disputa em terrenos mais arenosos. Na pele de Karl Childers, o protagonista de seu filme, Billy Bob também disputou o Oscar - mas assim como já havia acontecido com o prêmio do sindicato de atores, perdeu para Geoffrey Rush, por "Shine - brilhante". Nada mais justo, já que sua atuação soa perigosamente caricata, prejudicando bastante o resultado final de uma obra que, apesar dos louvores, não ultrapassa o limite do razoável.
Talvez seja a falta de carisma de Thornton, mas o personagem central de "Na corda bamba", apesar de sua inocência e caráter reto, jamais consegue conquistar a simpatia da plateia. Seus trejeitos - um trabalho de composição bastante elogiado mas que frequentemente esbarra na caricatura excessiva - dificultam a identificação junto ao público, transformando o que deveria ser um personagem trágico e melancólico em um tipo realizado com a clara intenção de comover audiências e arrancar prêmios. Mesmo que tenha sido cuidadosamente montado - modo de andar, falar, a voz, o corpo - Karl Childers não envolve como poderia, e isso acaba destruindo a estrutura relativamente sólida do roteiro, que além de tudo, é bastante previsível. Não é preciso ser estudante de cinema nem vidente para adivinhar com léguas de distância como toda a história vai ser encerrada.
Karl Childers, o personagem de Billy Bob, é um homem com sérios problemas de retardamento mental que ficou décadas preso em uma instituição depois de ter assassinado sua mãe e o amante. Tido como uma pessoa dócil e recuperada depois de todo esse tempo, ele é libertado e volta para a cidade do interior onde vivia quando criança. Com a ajuda de alguns moradores, ele arruma trabalho consertando máquinas agrícolas e, inocente como um menino, faz amizade com Frank Wheatley (Lucas Black), um garoto órfão de pai que mora com a mãe, Linda (Natalie Carneday), e sofre com a violência do namorado dela, o cruel Doyle (Dwight Yoakam). O relacionamento entre Karl - um homem com mente de criança - e Frank - um menino obrigado a lidar com problemas que sua idade ainda não lhe ensinou - é, de certa forma, o ponto forte o filme, mas ainda assim sofre de uma superficialidade inegável. O ator mirim Lucas Black - que depois faria um dos episódios da cinessérie "Velozes e furiosos" - sai-se muito bem no papel, enfrentando de frente um ator mais experiente e que é também o diretor e roteirista do filme. É ele, e não Billy Bob Thornton, o maior destaque de "Na corda bamba", um filme superestimado que, não fosse um inesperado Oscar, passaria batido pelas videolocadoras da vida.
2 indicações ao Oscar: Ator (Billy Bob Thornton), Roteiro Adaptado
Vencedor do Oscar de Roteiro Adaptado
Em 1997, o drama romântico "O paciente inglês" chegou à cerimônia de entrega do Oscar disposto a trucidar a concorrência. Conseguiu. Com o impressionante número de nove estatuetas - incluindo melhor filme e diretor - a adaptação do romance de Michael Ondaatje (antes considerado infilmável) tornou-se um dos maiores campeões da história da Academia. Mesmo assim, sendo premiado até mesmo em categorias técnicas (melhor som?), o Golias estrelado por Ralph Fiennes e Kristin Scott-Thomas caiu de joelhos diante de um Davi a quem poucos haviam dado atenção justamente em um dos prêmios mais importantes da noite: "Na corda bamba", escrito, dirigido e estrelado por Billy Bob Thornton deu uma rasteira em Anthony Minghella e saiu da festa com a cobiçada láurea de melhor roteiro adaptado - também disputada com gente de peso, como Arthur Miller ("As bruxas de Salem"), Kenneth Branagh ("Hamlet") e John Hodge ("Trainspotting"). Como ele conseguiu essa façanha? Só Deus, os eleitores da Academia e os votantes do sindicato de roteiristas, que haviam lhe conferido a mesma homenagem poucos dias antes, podem explicar.
Versão estendida de um curta-metragem do mesmo Thornton, lançado em 1994 - "Some folks called it a sling blade" - "Na corda bamba" teve o apoio nada modesto de Harvey Weinstein, então chefão da Miramax, a mais importante distribuidora independente de Hollywood à época, que desembolsou 10 milhões de dólares pelos direitos do filme. Com esse empurrão muito bem-vindo, o filme chamou a atenção da crítica e acabou sendo eleito um dos dez melhores do ano pela conceituada National Board of Review, o que pavimentou seu caminho para a disputa em terrenos mais arenosos. Na pele de Karl Childers, o protagonista de seu filme, Billy Bob também disputou o Oscar - mas assim como já havia acontecido com o prêmio do sindicato de atores, perdeu para Geoffrey Rush, por "Shine - brilhante". Nada mais justo, já que sua atuação soa perigosamente caricata, prejudicando bastante o resultado final de uma obra que, apesar dos louvores, não ultrapassa o limite do razoável.
Talvez seja a falta de carisma de Thornton, mas o personagem central de "Na corda bamba", apesar de sua inocência e caráter reto, jamais consegue conquistar a simpatia da plateia. Seus trejeitos - um trabalho de composição bastante elogiado mas que frequentemente esbarra na caricatura excessiva - dificultam a identificação junto ao público, transformando o que deveria ser um personagem trágico e melancólico em um tipo realizado com a clara intenção de comover audiências e arrancar prêmios. Mesmo que tenha sido cuidadosamente montado - modo de andar, falar, a voz, o corpo - Karl Childers não envolve como poderia, e isso acaba destruindo a estrutura relativamente sólida do roteiro, que além de tudo, é bastante previsível. Não é preciso ser estudante de cinema nem vidente para adivinhar com léguas de distância como toda a história vai ser encerrada.
Karl Childers, o personagem de Billy Bob, é um homem com sérios problemas de retardamento mental que ficou décadas preso em uma instituição depois de ter assassinado sua mãe e o amante. Tido como uma pessoa dócil e recuperada depois de todo esse tempo, ele é libertado e volta para a cidade do interior onde vivia quando criança. Com a ajuda de alguns moradores, ele arruma trabalho consertando máquinas agrícolas e, inocente como um menino, faz amizade com Frank Wheatley (Lucas Black), um garoto órfão de pai que mora com a mãe, Linda (Natalie Carneday), e sofre com a violência do namorado dela, o cruel Doyle (Dwight Yoakam). O relacionamento entre Karl - um homem com mente de criança - e Frank - um menino obrigado a lidar com problemas que sua idade ainda não lhe ensinou - é, de certa forma, o ponto forte o filme, mas ainda assim sofre de uma superficialidade inegável. O ator mirim Lucas Black - que depois faria um dos episódios da cinessérie "Velozes e furiosos" - sai-se muito bem no papel, enfrentando de frente um ator mais experiente e que é também o diretor e roteirista do filme. É ele, e não Billy Bob Thornton, o maior destaque de "Na corda bamba", um filme superestimado que, não fosse um inesperado Oscar, passaria batido pelas videolocadoras da vida.
domingo
BEM-VINDO À CASA DE BONECAS
BEM-VINDO À CASA DE BONECAS (Welcome to the dollhouse, 1996, Sony Pictures Classics, 88min) Direção e roteiro: Todd Solondz. Fotografia: Randy Drummond. Montagem: Alan Oxman. Música: Jill Wisoff. Figurino: Melissa Toth. Direção de arte/cenários: Susan Block. Produção executiva: Donna Bascom. Produção: Todd Solondz. Elenco: Heather Matarazzo, Eric Mabius, Brendan Sexton III, Matthew Faber, Angela Pietropinto, Bill Buell, Victoria Davis, Daria Kalininia. Estreia: 10/9/95 (Festival de Toronto)
Antes que o termo bullying saísse dos corredores e banheiros escolares para entrar como um furacão nos lares americanos - e depois se espalhasse mundo afora, alertando pais e professores sobre um mal aparentemente silencioso mas potencialmente mortal - um cineasta independente de olhar feroz sobre a hipocrisia reinante do lado de dentro das cercas brancas das casas dos subúrbios americanos criou uma pequena pérola sobre o assunto. Porém, ao invés de utilizar-se de artifícios sentimentaloides para comover e chocar sua audiência, Todd Solondz - que anos depois voltaria a provocar o público com o polêmico "Felicidade" - resolveu tratar do assunto da forma menos previsível possível: como comédia. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, "Bem-vindo à casa de bonecas" não é uma comédia histérica, que busca a cumplicidade incondicional da plateia ao mostrar as humilhações sofridas por sua protagonista. Construído sobre um humor mordaz e crítico, o filme desnuda uma sociedade que não apenas permite a crueldade contra aqueles a quem julga inferiores, como também compactua com ela mesmo sem ter a plena consciência disso.
Sucesso no Festival de Sundance de 1996, "Bem-vindo à casa de bonecas" apresentou ao público e à crítica o estilo preciso e seco de Solondz, que não hesita em destruir sistematicamente cada tijolo das instituições mais caras aos americanos, como a família e a educação, seus dois principais alvos nesse seu primoroso trabalho de estreia. Quase como um John Waters de sua geração, com seus cenários banhados no kitsch e seus personagens carregados nas tintas da caricatura - e ainda assim críveis e humanos - ele desenha um mundo particular facilmente reconhecível pelo espectador médio, mas o faz de maneira distorcida, sem enfeites, quase como um documentário, seco e sem firulas melodramáticas. Se existe a identificação, ela é justamente por causa de seu método quase brutal de apontar a câmera para cenas que, em produções mais comerciais, estariam envoltas em uma trilha sonora açucarada ou uma fotografia enfeitada com filtros poéticos e românticos. Sua crueza - que poderia ser facilmente confundida com insensibilidade - é, possivelmente, o maior dos méritos de seu filme.
A protagonista de "Bem-vindo à casa de bonecas", vivida com surpreendente naturalidade pela ótima Heather Matarazzo, é Dawn Wiener, uma menina de onze anos e meio que vive no subúrbio de uma pequena cidade do estado de Nova York. Filha do meio de um típico casal de classe média, ela não consegue destacar-se em casa, espremida entre seu irmão mais velho - líder de uma banda de garagem mas não exatamente talentoso - e uma caçula que é o sonho de quaisquer pais-clichê: loura, de olhos azuis, feminina e adoravelmente carinhosa. Na escola, é vítima de todos as humilhações possíveis e imagináveis, vinda tanto dos colegas - meninos ou meninas - quanto dos professores. Feia, mal-vestida, não particularmente inteligente e desajeitada até mesmo ao caminhar, ela só encontra paz quando se esconde no clubinho que construiu no pátio de casa, ao lado do único amigo que tem - também ele vítima de achincalhes diários. A vida de cão da garota - cujos pontos altos são os ataques do marginal oficial da escola, Brendon (Brendan Sexton III) - parece alcançar um objetivo, porém, quando ela se apaixona por Steven (Eric Mabius), que entra na banda de seu irmão: com vãs esperanças de conquistá-lo, Dawn vê seus dias encontrarem um significado quando está ao lado dele, que logicamente mal percebe sua existência.
Ao utilizar-se de uma certa crueldade para conseguir humor, Solondz chega no limite do politicamente correto, arrancando do espectador risos nervosos em situações extremas - Brendan ameaça estuprar Dawn, por exemplo, marcando lugar e hora para isso, e ela vai a seu encontro, pateticamente. Mas é inteligente o bastante para explicitar o quanto o bullying é, na verdade, um círculo vicioso e uma forma de autoproteção. Até mesmo Dawn, que sofre diariamente por não ser o exemplo estético esperado pelo mundo ocidental encontra formas de exorcizar suas frustrações, disparando impropérios a quem considera mais fraco - até que elas atingem um nível tal que somente uma atitude radical pode transformar alguma coisa (ou não). O roteiro simples e direto de Solondz, desprovido dos grandes acontecimentos que são essenciais no manual do cinemão comercial, faz apenas uma crônica sobre a vida de uma menina comum que percebe que jamais será especial. É doloroso. É triste. E é um gol de placa de Todd Solondz fazer com que isso não fique na mente do espectador como uma ferida. O humor de viés de seu filme faz refletir e pode até emocionar. Uma pérola do cinema independente americano.
Antes que o termo bullying saísse dos corredores e banheiros escolares para entrar como um furacão nos lares americanos - e depois se espalhasse mundo afora, alertando pais e professores sobre um mal aparentemente silencioso mas potencialmente mortal - um cineasta independente de olhar feroz sobre a hipocrisia reinante do lado de dentro das cercas brancas das casas dos subúrbios americanos criou uma pequena pérola sobre o assunto. Porém, ao invés de utilizar-se de artifícios sentimentaloides para comover e chocar sua audiência, Todd Solondz - que anos depois voltaria a provocar o público com o polêmico "Felicidade" - resolveu tratar do assunto da forma menos previsível possível: como comédia. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, "Bem-vindo à casa de bonecas" não é uma comédia histérica, que busca a cumplicidade incondicional da plateia ao mostrar as humilhações sofridas por sua protagonista. Construído sobre um humor mordaz e crítico, o filme desnuda uma sociedade que não apenas permite a crueldade contra aqueles a quem julga inferiores, como também compactua com ela mesmo sem ter a plena consciência disso.
Sucesso no Festival de Sundance de 1996, "Bem-vindo à casa de bonecas" apresentou ao público e à crítica o estilo preciso e seco de Solondz, que não hesita em destruir sistematicamente cada tijolo das instituições mais caras aos americanos, como a família e a educação, seus dois principais alvos nesse seu primoroso trabalho de estreia. Quase como um John Waters de sua geração, com seus cenários banhados no kitsch e seus personagens carregados nas tintas da caricatura - e ainda assim críveis e humanos - ele desenha um mundo particular facilmente reconhecível pelo espectador médio, mas o faz de maneira distorcida, sem enfeites, quase como um documentário, seco e sem firulas melodramáticas. Se existe a identificação, ela é justamente por causa de seu método quase brutal de apontar a câmera para cenas que, em produções mais comerciais, estariam envoltas em uma trilha sonora açucarada ou uma fotografia enfeitada com filtros poéticos e românticos. Sua crueza - que poderia ser facilmente confundida com insensibilidade - é, possivelmente, o maior dos méritos de seu filme.
A protagonista de "Bem-vindo à casa de bonecas", vivida com surpreendente naturalidade pela ótima Heather Matarazzo, é Dawn Wiener, uma menina de onze anos e meio que vive no subúrbio de uma pequena cidade do estado de Nova York. Filha do meio de um típico casal de classe média, ela não consegue destacar-se em casa, espremida entre seu irmão mais velho - líder de uma banda de garagem mas não exatamente talentoso - e uma caçula que é o sonho de quaisquer pais-clichê: loura, de olhos azuis, feminina e adoravelmente carinhosa. Na escola, é vítima de todos as humilhações possíveis e imagináveis, vinda tanto dos colegas - meninos ou meninas - quanto dos professores. Feia, mal-vestida, não particularmente inteligente e desajeitada até mesmo ao caminhar, ela só encontra paz quando se esconde no clubinho que construiu no pátio de casa, ao lado do único amigo que tem - também ele vítima de achincalhes diários. A vida de cão da garota - cujos pontos altos são os ataques do marginal oficial da escola, Brendon (Brendan Sexton III) - parece alcançar um objetivo, porém, quando ela se apaixona por Steven (Eric Mabius), que entra na banda de seu irmão: com vãs esperanças de conquistá-lo, Dawn vê seus dias encontrarem um significado quando está ao lado dele, que logicamente mal percebe sua existência.
Ao utilizar-se de uma certa crueldade para conseguir humor, Solondz chega no limite do politicamente correto, arrancando do espectador risos nervosos em situações extremas - Brendan ameaça estuprar Dawn, por exemplo, marcando lugar e hora para isso, e ela vai a seu encontro, pateticamente. Mas é inteligente o bastante para explicitar o quanto o bullying é, na verdade, um círculo vicioso e uma forma de autoproteção. Até mesmo Dawn, que sofre diariamente por não ser o exemplo estético esperado pelo mundo ocidental encontra formas de exorcizar suas frustrações, disparando impropérios a quem considera mais fraco - até que elas atingem um nível tal que somente uma atitude radical pode transformar alguma coisa (ou não). O roteiro simples e direto de Solondz, desprovido dos grandes acontecimentos que são essenciais no manual do cinemão comercial, faz apenas uma crônica sobre a vida de uma menina comum que percebe que jamais será especial. É doloroso. É triste. E é um gol de placa de Todd Solondz fazer com que isso não fique na mente do espectador como uma ferida. O humor de viés de seu filme faz refletir e pode até emocionar. Uma pérola do cinema independente americano.
sábado
MICHAEL COLLINS - O PREÇO DA LIBERDADE
MICHAEL COLLINS, O PREÇO DA LIBERDADE (Michael Collins, 1996, Geffen Pictures/Warner Bros, 124min) Direção e roteiro: Neil Jordan. Fotografia: Chris Menges. Montagem: J. Patrick Duffner, Tony Lawson. Música: Elliot Goldenthal. Figurino: Sandy Powell. Direção de arte/cenários: Anthony Pratt/Josie MacAvin. Produção: Stephen Wooley. Elenco: Liam Neeson, Alan Rickman, Aidan Quinn, Julia Roberts, Stephen Rea, Ian Hart, Brendan Gleeson. Estreia: 28/8/96 (Festival de Veneza)
2 indicações ao Oscar: Fotografia, Trilha Sonora Original
Foi preciso o Oscar de roteiro original por "Traídos pelo desejo" e o sucesso de bilheteria de "Entrevista com o vampiro" para que o cineasta Neil Jordan finalmente conseguisse que Hollywood lhe permitisse realizar um sonho acalentado desde a década de 80: contar nas telas de cinema a história do homem que fundou um dos mais importantes grupos revolucionários do mundo, o IRA - Exército Republicano Irlandês. Apesar do tema não ser os mais atraentes (leia-se comerciais), o produtor David Geffen comprou a ideia de Jordan - ele mesmo nascido na Irlanda, portanto, grande interessado no assunto - e transformou o que poderia ser uma produção apática estrelada por Kevin Costner (que chegou a ser cotado como protagonista em determinado momento) em um thriller violento, passional e esplendidamente dirigido: "Michael Collins, o preço da liberdade", estrelado por um visceral Liam Neeson premiado no Festival de Cinema de Veneza por seu desempenho.
Previsível fracasso de bilheteria nos EUA mas um grande êxito na Irlanda - onde sua história tem maior peso e ressonância política - "Michael Collins" recebeu elogios unânimes da crítica, que louvou principalmente sua parte técnica, realmente admirável. Da belíssima fotografia do veterano Chris Menges até a impecável reconstituição de época, tudo funciona perfeitamente no filme de Jordan, emoldurando uma trama repleta de conspirações, traições e discussões políticas que, graças a um roteiro cadenciado, jamais esbarra nem no didatismo quase inevitável nem na complexidade histórica que muitas vezes condena obras do gênero ao limbo dos filmes "engajados". Nitidamente simpático à causa do IRA, Neil Jordan evita, inclusive, exagerar no desenho das qualidades de seu protagonista, mesmo que por vários momentos deixe a plateia vislumbrar sua admiração por sua personalidade carismática e intensa. Definindo seu arco dramático no período de tempo que compreende o início da luta de Collins contra o Império Britânico e pela liberdade de sua Irlanda natal até seu assassinato - cometido depois de um ato de traição que o filme torna ainda mais odioso - o diretor/roteirista equilibra seu filme entre tensas discussões táticas, violentas sequências de terrorismo (como um ataque surpresa a um jogo de rugbi) e até mesmo arruma espaço para um triângulo amoroso que coloca o protagonista e seu melhor amigo, Harry Boland (Aidan Quinn), lutando pelo amor da moderna Kitty Kiernan (Julia Roberts, cujo nome não ajudou a levantar a renda do filme no mercado americano).
Mesmo com o fato de ter como protagonista um dos pais do terrorismo moderno, "Michael Collins" jamais apela para a violência gratuita ou excessiva. Certamente não falta ao roteiro um grande número de sequências sanguinolentas, afinal trata-se de um filme sobre o surgimento de um exército que pegou em armas pesadas para garantir a independência de seu país, mas Neil Jordan é um diretor inteligente e sensível, que faz poesia de muitas de suas imagens, por mais paradoxal que a afirmação possa parecer. Remexendo nas entranhas políticas da época em que se passa a história e explicitando o jogo de interesses que sempre existiu dentro das camadas próximas ao poder, o roteiro de certa forma justifica o uso da clava forte ao invés da justiça das palavras e do diálogo, amenizando, assim, o que poderia ser tratado como gratuidade por um cineasta mal-intencionado. Auxiliado pela fotografia de Menges - acinzentada como os céus da Irlanda em tempos de guerra - e pela trilha sonora de Elliot Goldenthal (únicas indicações do filme ao Oscar em um ano dominado pelo romantismo derramado de "O paciente inglês" e o cinismo debochado de "Fargo"), "Michael Collins" é cinema político de verdade, que transborda ideologia em cada fotograma. Talvez por isso tenha sido virtualmente ignorado pelo grande público.
Realizado com capricho e paixão, "Michael Collins" é um filme para poucos. Não põe panos quentes em um tema politicamente controverso, não deixa de mostrar sua simpatia pela busca da liberdade e nem tem medo de ser uma produção desprovida de atrativos comerciais - vale lembrar que a estrela de Julia Roberts estava em baixa durante a produção do filme. Mas é uma obra valorosa, inteligente e importante para a compreensão do mundo como é hoje.
2 indicações ao Oscar: Fotografia, Trilha Sonora Original
Foi preciso o Oscar de roteiro original por "Traídos pelo desejo" e o sucesso de bilheteria de "Entrevista com o vampiro" para que o cineasta Neil Jordan finalmente conseguisse que Hollywood lhe permitisse realizar um sonho acalentado desde a década de 80: contar nas telas de cinema a história do homem que fundou um dos mais importantes grupos revolucionários do mundo, o IRA - Exército Republicano Irlandês. Apesar do tema não ser os mais atraentes (leia-se comerciais), o produtor David Geffen comprou a ideia de Jordan - ele mesmo nascido na Irlanda, portanto, grande interessado no assunto - e transformou o que poderia ser uma produção apática estrelada por Kevin Costner (que chegou a ser cotado como protagonista em determinado momento) em um thriller violento, passional e esplendidamente dirigido: "Michael Collins, o preço da liberdade", estrelado por um visceral Liam Neeson premiado no Festival de Cinema de Veneza por seu desempenho.
Previsível fracasso de bilheteria nos EUA mas um grande êxito na Irlanda - onde sua história tem maior peso e ressonância política - "Michael Collins" recebeu elogios unânimes da crítica, que louvou principalmente sua parte técnica, realmente admirável. Da belíssima fotografia do veterano Chris Menges até a impecável reconstituição de época, tudo funciona perfeitamente no filme de Jordan, emoldurando uma trama repleta de conspirações, traições e discussões políticas que, graças a um roteiro cadenciado, jamais esbarra nem no didatismo quase inevitável nem na complexidade histórica que muitas vezes condena obras do gênero ao limbo dos filmes "engajados". Nitidamente simpático à causa do IRA, Neil Jordan evita, inclusive, exagerar no desenho das qualidades de seu protagonista, mesmo que por vários momentos deixe a plateia vislumbrar sua admiração por sua personalidade carismática e intensa. Definindo seu arco dramático no período de tempo que compreende o início da luta de Collins contra o Império Britânico e pela liberdade de sua Irlanda natal até seu assassinato - cometido depois de um ato de traição que o filme torna ainda mais odioso - o diretor/roteirista equilibra seu filme entre tensas discussões táticas, violentas sequências de terrorismo (como um ataque surpresa a um jogo de rugbi) e até mesmo arruma espaço para um triângulo amoroso que coloca o protagonista e seu melhor amigo, Harry Boland (Aidan Quinn), lutando pelo amor da moderna Kitty Kiernan (Julia Roberts, cujo nome não ajudou a levantar a renda do filme no mercado americano).
Mesmo com o fato de ter como protagonista um dos pais do terrorismo moderno, "Michael Collins" jamais apela para a violência gratuita ou excessiva. Certamente não falta ao roteiro um grande número de sequências sanguinolentas, afinal trata-se de um filme sobre o surgimento de um exército que pegou em armas pesadas para garantir a independência de seu país, mas Neil Jordan é um diretor inteligente e sensível, que faz poesia de muitas de suas imagens, por mais paradoxal que a afirmação possa parecer. Remexendo nas entranhas políticas da época em que se passa a história e explicitando o jogo de interesses que sempre existiu dentro das camadas próximas ao poder, o roteiro de certa forma justifica o uso da clava forte ao invés da justiça das palavras e do diálogo, amenizando, assim, o que poderia ser tratado como gratuidade por um cineasta mal-intencionado. Auxiliado pela fotografia de Menges - acinzentada como os céus da Irlanda em tempos de guerra - e pela trilha sonora de Elliot Goldenthal (únicas indicações do filme ao Oscar em um ano dominado pelo romantismo derramado de "O paciente inglês" e o cinismo debochado de "Fargo"), "Michael Collins" é cinema político de verdade, que transborda ideologia em cada fotograma. Talvez por isso tenha sido virtualmente ignorado pelo grande público.
Realizado com capricho e paixão, "Michael Collins" é um filme para poucos. Não põe panos quentes em um tema politicamente controverso, não deixa de mostrar sua simpatia pela busca da liberdade e nem tem medo de ser uma produção desprovida de atrativos comerciais - vale lembrar que a estrela de Julia Roberts estava em baixa durante a produção do filme. Mas é uma obra valorosa, inteligente e importante para a compreensão do mundo como é hoje.
sexta-feira
LONE STAR, A ESTRELA SOLITÁRIA
LONE STAR, A ESTRELA SOLITÁRIA (Lone star, 1996, Columbia Pictures Corporation/Castle Rock Entertainment, 135min) Direção, roteiro e montagem: John Sayles. Fotografia: Stuart Dryburgh. Música: Mason Daring. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Dan Bishop/Dianna Freas. Produção executiva: John Sloss. Produção: R. Paul Miller, Maggie Renzi. Elenco: Chris Cooper, Elizabeth Peña, Kris Kristofferson, Matthew McConaughey, LaTanya Richardson, Clifton James, Frances McDormand. Estreia: 21/6/96
Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original
O poder do passado em relação ao presente sempre foi um tema caro às tragédias gregas, e não seria exagero descrever "Lone star, a estrela solitária", do cineasta independente norte-americano John Sayles como um exemplar moderno da mais antiga forma de arte dramática do mundo. Ok, o cenário é rusticamente diferente - a fronteira entre o estado do Texas e o México - e o protagonista está longe de ser um rei ou algo do tipo - ainda que um xerife não esteja tão longe assim de alguém superior aos demais habitantes em uma cidadezinha tão pequena quanto Rio County. Mas a trama criada por Sayles, um quebra-cabeças formado por peças aparentemente desconexas que se revela, em seu final, um rico e dramático panorama sócio-cultural repleto de nuances raciais e familiares, remete facilmente ao berço do teatro - mesmo que sua opção por um final menos devastador o afaste dos previsíveis clichês da tragédia. Unanimemente elogiado pela crítica, o filme de Sayles recebeu uma justa indicação ao Oscar de roteiro original - que perdeu para "Fargo", dos irmãos Coen, coincidentemente outra visão do interior dos EUA e também com Frances McDormand no elenco - e é, talvez, o melhor representante de seu estilo de cinema,
A espinha dorsal de "Lone star" é a descoberta, no deserto próximo à pequena cidade de Rio County, de uma ossada enterrada há cerca de quarenta anos - e perto dela, de uma estrela de xerife quase apagada pelo efeito do tempo. Investigações de balística revelam que o esqueleto pertence a Charlie Wade (Kris Kristofferson), antigo xerife local conhecido por sua fama de corrupto e assassino e que foi tido como desaparecido logo depois de embolsar dez mil dólares que tiveram origem nas extorsões que praticava com a minoria mexicana da cidade. A estrela do xerife indica que seu assassinato foi cometido por Buddy Deeds (Matthew McConaughey), seu assistente, que, pouco depois, tornou-se xerife em seu lugar, até morrer também. O problema é que não apenas Buddy passou a ser considerado um herói por seu trabalho no combate à corrupção da localidade como está em vias de ser homenageado pela prefeitura, através de um busto comemorativo - e ser taxado de assassino, mesmo que de um criminoso como Wade, não irá ajudar em nada nas festividades. Não bastasse isso, o atual xerife de Rio County é Sam Deeds (Chris Cooper), filho de Buddy que não mantinha com ele a melhor das relações e não tenciona relaxar as investigações: acreditando que tem mais sujeira por trás do homicídio ocorrido há quatro décadas, ele não mede esforços para descobrir os motivos que levaram ao crime.
Juntamente com a investigação de Sam - que tem como testemunhas-chave o assistente de Wade à época dos acontecimentos, Hollis (Jeff Monahan no passado, Clifton James no presente), e Otis (Gabriel Casseus no passado, Ron Canada no presente), o dono de um bar que presenciou o início de todo o processo que levou à tragédia - o filme de Sayles acompanha outros dramas familiares que se desenrolam na comunidade. Otis tenta conquistar a confiança do filho, que foi criado pela mãe e tornou-se coronel do exército - e que por sua vez também tem problemas com seu próprio rebento, além de ter de lidar com uma jovem rebelde que não consegue deixar de envolver-se em problemas fora do quartel. A professora Pilar (Elizabeth Peña) luta em sua escola por manter um currículo imparcial, que dê aos jovens mexicanos uma visão menos americanizada de sua história - enquanto tenta esconder sua paixão reprimida por Sam, de quem foi afastada na juventude por Buddy e por sua mãe, Mercedes (Miriam Colon), que mantém uma relação ambígua e repressora com os funcionários de seu restaurante.
A teia de personagens criada por Sayles - que parece aleatória até que se revela um único quadro - é um dos maiores méritos de "Lone star". Mais ou menos como Orson Welles fez em "Cidadão Kane" e Akira Kurosawa em "Rashomon" - guardadas as devidas proporções - o diretor/roteirista mostra a verdade sobre Buddy Deeds sob vários ângulos, sempre acrescentando a cada um uma nova perspectiva a respeito de sua personalidade e seu caráter (muito mais complexo do que se poderia imaginar a princípio). Além disso, em sua trajetória atrás da alma de seu pai, Sam cruza com questões raciais e políticas que dão à obra um nível extra de profundidade que o afastam do rótulo simplório de "filme policial". O romance proibido entre Sam e Pilar, por exemplo, é tão crucial para o desenvolvimento da trama quanto as relações dúbias da mãe da professora com seu passado - também intimamente ligado ao surpreendente final da história, que é um retrato sóbrio e inequívoco de uma realidade social da fronteira mexicana.
E, logicamente, John Sayles tem a sorte de contar com o extraordinário Chris Cooper na liderança de seu elenco. Anos antes de ganhar o Oscar por "Adaptação", Cooper já demonstrava uma qualidade ímpar que o consagraria como um dos mais importantes atores americanos de sua geração. É ele quem conduz a trama e, mesmo sem ser então um nome conhecido do grande público, transmite a segurança de um astro em um papel difícil e que passa, através do silêncio, o turbilhão de dúvidas de um homem preso a um passado assombrado. São especialmente brilhantes a cena em que conversa com a ex-mulher emocionalmente desequilibrada - único e impressionante momento de Frances McDormand - e o momento em que finalmente descobre a ordem de eventos que levaram à morte do temido Charlie Wade. Seu trabalho é tão exemplar que ofusca a presença de um então desconhecido Matthew McConaughey em vias de tornar-se astro graças a "Tempo de matar", de Joel Schumacher e a interpretação sincera e emocional de Elizabeth Peña. Juntos, eles dão o tom passional exato à aridez do deserto texano e fazem do filme uma pequena pérola a ser descoberta.
Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original
O poder do passado em relação ao presente sempre foi um tema caro às tragédias gregas, e não seria exagero descrever "Lone star, a estrela solitária", do cineasta independente norte-americano John Sayles como um exemplar moderno da mais antiga forma de arte dramática do mundo. Ok, o cenário é rusticamente diferente - a fronteira entre o estado do Texas e o México - e o protagonista está longe de ser um rei ou algo do tipo - ainda que um xerife não esteja tão longe assim de alguém superior aos demais habitantes em uma cidadezinha tão pequena quanto Rio County. Mas a trama criada por Sayles, um quebra-cabeças formado por peças aparentemente desconexas que se revela, em seu final, um rico e dramático panorama sócio-cultural repleto de nuances raciais e familiares, remete facilmente ao berço do teatro - mesmo que sua opção por um final menos devastador o afaste dos previsíveis clichês da tragédia. Unanimemente elogiado pela crítica, o filme de Sayles recebeu uma justa indicação ao Oscar de roteiro original - que perdeu para "Fargo", dos irmãos Coen, coincidentemente outra visão do interior dos EUA e também com Frances McDormand no elenco - e é, talvez, o melhor representante de seu estilo de cinema,
A espinha dorsal de "Lone star" é a descoberta, no deserto próximo à pequena cidade de Rio County, de uma ossada enterrada há cerca de quarenta anos - e perto dela, de uma estrela de xerife quase apagada pelo efeito do tempo. Investigações de balística revelam que o esqueleto pertence a Charlie Wade (Kris Kristofferson), antigo xerife local conhecido por sua fama de corrupto e assassino e que foi tido como desaparecido logo depois de embolsar dez mil dólares que tiveram origem nas extorsões que praticava com a minoria mexicana da cidade. A estrela do xerife indica que seu assassinato foi cometido por Buddy Deeds (Matthew McConaughey), seu assistente, que, pouco depois, tornou-se xerife em seu lugar, até morrer também. O problema é que não apenas Buddy passou a ser considerado um herói por seu trabalho no combate à corrupção da localidade como está em vias de ser homenageado pela prefeitura, através de um busto comemorativo - e ser taxado de assassino, mesmo que de um criminoso como Wade, não irá ajudar em nada nas festividades. Não bastasse isso, o atual xerife de Rio County é Sam Deeds (Chris Cooper), filho de Buddy que não mantinha com ele a melhor das relações e não tenciona relaxar as investigações: acreditando que tem mais sujeira por trás do homicídio ocorrido há quatro décadas, ele não mede esforços para descobrir os motivos que levaram ao crime.
Juntamente com a investigação de Sam - que tem como testemunhas-chave o assistente de Wade à época dos acontecimentos, Hollis (Jeff Monahan no passado, Clifton James no presente), e Otis (Gabriel Casseus no passado, Ron Canada no presente), o dono de um bar que presenciou o início de todo o processo que levou à tragédia - o filme de Sayles acompanha outros dramas familiares que se desenrolam na comunidade. Otis tenta conquistar a confiança do filho, que foi criado pela mãe e tornou-se coronel do exército - e que por sua vez também tem problemas com seu próprio rebento, além de ter de lidar com uma jovem rebelde que não consegue deixar de envolver-se em problemas fora do quartel. A professora Pilar (Elizabeth Peña) luta em sua escola por manter um currículo imparcial, que dê aos jovens mexicanos uma visão menos americanizada de sua história - enquanto tenta esconder sua paixão reprimida por Sam, de quem foi afastada na juventude por Buddy e por sua mãe, Mercedes (Miriam Colon), que mantém uma relação ambígua e repressora com os funcionários de seu restaurante.
A teia de personagens criada por Sayles - que parece aleatória até que se revela um único quadro - é um dos maiores méritos de "Lone star". Mais ou menos como Orson Welles fez em "Cidadão Kane" e Akira Kurosawa em "Rashomon" - guardadas as devidas proporções - o diretor/roteirista mostra a verdade sobre Buddy Deeds sob vários ângulos, sempre acrescentando a cada um uma nova perspectiva a respeito de sua personalidade e seu caráter (muito mais complexo do que se poderia imaginar a princípio). Além disso, em sua trajetória atrás da alma de seu pai, Sam cruza com questões raciais e políticas que dão à obra um nível extra de profundidade que o afastam do rótulo simplório de "filme policial". O romance proibido entre Sam e Pilar, por exemplo, é tão crucial para o desenvolvimento da trama quanto as relações dúbias da mãe da professora com seu passado - também intimamente ligado ao surpreendente final da história, que é um retrato sóbrio e inequívoco de uma realidade social da fronteira mexicana.
E, logicamente, John Sayles tem a sorte de contar com o extraordinário Chris Cooper na liderança de seu elenco. Anos antes de ganhar o Oscar por "Adaptação", Cooper já demonstrava uma qualidade ímpar que o consagraria como um dos mais importantes atores americanos de sua geração. É ele quem conduz a trama e, mesmo sem ser então um nome conhecido do grande público, transmite a segurança de um astro em um papel difícil e que passa, através do silêncio, o turbilhão de dúvidas de um homem preso a um passado assombrado. São especialmente brilhantes a cena em que conversa com a ex-mulher emocionalmente desequilibrada - único e impressionante momento de Frances McDormand - e o momento em que finalmente descobre a ordem de eventos que levaram à morte do temido Charlie Wade. Seu trabalho é tão exemplar que ofusca a presença de um então desconhecido Matthew McConaughey em vias de tornar-se astro graças a "Tempo de matar", de Joel Schumacher e a interpretação sincera e emocional de Elizabeth Peña. Juntos, eles dão o tom passional exato à aridez do deserto texano e fazem do filme uma pequena pérola a ser descoberta.
quinta-feira
CLUBE DAS DESQUITADAS
CLUBE
DAS DESQUITADAS (The first wives club, 1996, Paramount Pictures,
103min) Direção: Hugh Wilson. Roteiro: Robert Harling, romance de Olivia
Goldsmith. Fotografia: Donald Thorin. Montagem: John Bloom. Música:
Marc Shaiman. Figurino: Theoni V. Aldredge. Direção de arte/cenários:
Peter Larkin/Leslie E. Rollins. Produção executiva: Adam Schroeder, Erza
Swerdlow. Produção: Scott Rudin. Elenco: Goldie Hawn, Bette Midler,
Diane Keaton, Maggie Smith, Sarah Jessica Parker, Elizabeth Berkeley,
Victor Garber, Dan Hedaya, Stockard Channing, Stephen Collins, Marcia
Gay Harden, Eileen Eckart, Philip Bosco, Jennifer Dundas. Estreia:
20/9/96
Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original Comédia/Musical
Tudo já começa nos créditos de abertura - que relembram as clássicas comédias que fizeram a glória de Doris Day - e na sequência inicial, que mostra a despedida de quatro inseparáveis amigas quando seus dias de colegial chegam ao fim, nos efervescentes anos 60. Esses dois momentos são pistas valiosas do que virá pela frente em "Clube das desquitadas", uma divertida comédia feminista que troca a ingenuidade matreira da época do flower power pelo cinismo materialista da década de 90. Inesperado sucesso de bilheteria em um período onde apenas produções de apelo masculino lotavam as salas de exibição, o filme de Hugh Wilson - diretor sem nenhuma obra marcante no currículo - soou como um oásis frente à destruição em massa de filmes como "Independence day" e "Twister" e mostrou que, ao contrário do que esperava a própria Paramount Pictures, ainda havia espaço na indústria americana para filmes menores e estrelado por outros nomes que não Bruce Willis e Arnold Schwarzenegger.
A trama começa quando uma das quatro amigas da primeira cena, a milionária Cynthia Swann Griffin (participação especial de Stockard Channing), comete suicídio ao ler a notícia do casamento de seu ex-marido com uma garota muitos anos mais jovem. Em seu funeral, as amigas remanescentes - que não tiveram mais contato depois da formatura - se reencontram e, tristes e constrangidas com o afastamento mútuo, resolvem reafirmar sua ligação. É aí que descobrem que estão passando, todas elas, pelo mesmo problema de sua amiga recém-falecida. A atriz Elise Elliot (Goldie Hawn) está passando por uma crise na carreira por causa da idade e, além de ter sido largada pelo marido, o produtor Bill Atchinson (Victor Garber), está correndo o sério risco de ser obrigada a pagar-lhe uma pensão e dividir com ele tudo que conquistou. A dona-de-casa Brenda Cushman (Bette Midler) foi trocada pela fútil Shelly (Sarah Jessica Parker) e seu ex-marido, Morton (Dan Hedaya) não parece inclinado a compartilhar com ela tudo que eles construíram juntos. E Annie Paradis (Diane Keaton) acaba de descobrir que o marido por quem ainda é apaixonada, Aaron (Stephen Collins), está de caso com sua própria terapeuta, Leslie (Marcia Gay Harden). Frustradas e desiludidas, as três resolvem se unir para retomar o que lhes é de direito, se utilizando de todas as técnicas possíveis e imagináveis para isso.
Mais do que os mirabolantes planos bolados pelas três protagonistas para atingirem seus objetivos maquiavélicos, o mais engraçado no roteiro, baseado em um romance de Olivia Goldsmith são as inúmeras referências à cultura popular contemporânea americana, em especial quando o assunto é a carreira cinematográfica de Elise Elliot, em um papel feito sob medida para a ótima Goldie Hawn - e que, por ironia, foi oferecido primeiramente à Jessica Lange. Na pele da vaidosa atriz vencedora do Oscar e do Golden Globe, Hawn (ela mesma já premiada com as duas estatuetas) dispara farpas para todos os lados, ironizando de forma inteligente a forma como a indústria de Hollywood trata as atrizes que já não servem mais aos ideais de juventude dos estúdios e produtores. A crítica à ditadura da beleza, inclusive, é um dos pontos altos do filme, que não perde nenhuma oportunidade de alfinetar a tendência masculina de trocar suas mulheres de 50 anos por alguém com a metade da idade: nesse ponto, aliás, reside a fraqueza maior da produção, que, a favor da risada constante, opta pelo maniqueísmo absoluto, transformando todos os personagens masculinos da história em completos idiotas.
Esse pequeno senão, porém, não consegue apagar o que "Clube das desquitadas" tem de melhor: a química perfeita entre suas três protagonistas. Cada uma dentro de seu estilo de humor - a sofisticação neurótica de Diane Keaton, o escracho visual de Bette Midler, o carisma insofismável de Goldie Hawn - as veteranas atrizes nem precisam fazer muito esforço para ganhar a simpatia e a cumplicidade da plateia, que embarca sorridente a seu lado para acompanhar sua divertida história de vingança - que acaba em uma antológica cena de dança ao som de "You don't own me", cantada na versão original por Leslie Gore, falecida há poucos dias. Pode não ser um filme que mudará a vida de alguém, mas faz rir, entretém e apresenta um trio de protagonistas de tirar o chapéu - que, apesar da promessa, nunca mais se reuniu nas telas. Para uma comédia despretensiosa, está mais do que bom.
Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original Comédia/Musical
Tudo já começa nos créditos de abertura - que relembram as clássicas comédias que fizeram a glória de Doris Day - e na sequência inicial, que mostra a despedida de quatro inseparáveis amigas quando seus dias de colegial chegam ao fim, nos efervescentes anos 60. Esses dois momentos são pistas valiosas do que virá pela frente em "Clube das desquitadas", uma divertida comédia feminista que troca a ingenuidade matreira da época do flower power pelo cinismo materialista da década de 90. Inesperado sucesso de bilheteria em um período onde apenas produções de apelo masculino lotavam as salas de exibição, o filme de Hugh Wilson - diretor sem nenhuma obra marcante no currículo - soou como um oásis frente à destruição em massa de filmes como "Independence day" e "Twister" e mostrou que, ao contrário do que esperava a própria Paramount Pictures, ainda havia espaço na indústria americana para filmes menores e estrelado por outros nomes que não Bruce Willis e Arnold Schwarzenegger.
A trama começa quando uma das quatro amigas da primeira cena, a milionária Cynthia Swann Griffin (participação especial de Stockard Channing), comete suicídio ao ler a notícia do casamento de seu ex-marido com uma garota muitos anos mais jovem. Em seu funeral, as amigas remanescentes - que não tiveram mais contato depois da formatura - se reencontram e, tristes e constrangidas com o afastamento mútuo, resolvem reafirmar sua ligação. É aí que descobrem que estão passando, todas elas, pelo mesmo problema de sua amiga recém-falecida. A atriz Elise Elliot (Goldie Hawn) está passando por uma crise na carreira por causa da idade e, além de ter sido largada pelo marido, o produtor Bill Atchinson (Victor Garber), está correndo o sério risco de ser obrigada a pagar-lhe uma pensão e dividir com ele tudo que conquistou. A dona-de-casa Brenda Cushman (Bette Midler) foi trocada pela fútil Shelly (Sarah Jessica Parker) e seu ex-marido, Morton (Dan Hedaya) não parece inclinado a compartilhar com ela tudo que eles construíram juntos. E Annie Paradis (Diane Keaton) acaba de descobrir que o marido por quem ainda é apaixonada, Aaron (Stephen Collins), está de caso com sua própria terapeuta, Leslie (Marcia Gay Harden). Frustradas e desiludidas, as três resolvem se unir para retomar o que lhes é de direito, se utilizando de todas as técnicas possíveis e imagináveis para isso.
Mais do que os mirabolantes planos bolados pelas três protagonistas para atingirem seus objetivos maquiavélicos, o mais engraçado no roteiro, baseado em um romance de Olivia Goldsmith são as inúmeras referências à cultura popular contemporânea americana, em especial quando o assunto é a carreira cinematográfica de Elise Elliot, em um papel feito sob medida para a ótima Goldie Hawn - e que, por ironia, foi oferecido primeiramente à Jessica Lange. Na pele da vaidosa atriz vencedora do Oscar e do Golden Globe, Hawn (ela mesma já premiada com as duas estatuetas) dispara farpas para todos os lados, ironizando de forma inteligente a forma como a indústria de Hollywood trata as atrizes que já não servem mais aos ideais de juventude dos estúdios e produtores. A crítica à ditadura da beleza, inclusive, é um dos pontos altos do filme, que não perde nenhuma oportunidade de alfinetar a tendência masculina de trocar suas mulheres de 50 anos por alguém com a metade da idade: nesse ponto, aliás, reside a fraqueza maior da produção, que, a favor da risada constante, opta pelo maniqueísmo absoluto, transformando todos os personagens masculinos da história em completos idiotas.
Esse pequeno senão, porém, não consegue apagar o que "Clube das desquitadas" tem de melhor: a química perfeita entre suas três protagonistas. Cada uma dentro de seu estilo de humor - a sofisticação neurótica de Diane Keaton, o escracho visual de Bette Midler, o carisma insofismável de Goldie Hawn - as veteranas atrizes nem precisam fazer muito esforço para ganhar a simpatia e a cumplicidade da plateia, que embarca sorridente a seu lado para acompanhar sua divertida história de vingança - que acaba em uma antológica cena de dança ao som de "You don't own me", cantada na versão original por Leslie Gore, falecida há poucos dias. Pode não ser um filme que mudará a vida de alguém, mas faz rir, entretém e apresenta um trio de protagonistas de tirar o chapéu - que, apesar da promessa, nunca mais se reuniu nas telas. Para uma comédia despretensiosa, está mais do que bom.
quarta-feira
ONDAS DO DESTINO
ONDAS DO DESTINO (Breaking the waves, 1996, Argus Film Produktie, 159min) Direção: Lars Von Trier. Roteiro: Lars Von Trier, Peter Asmussen. Fotografia: Robby Muller. Montagem: Anders Refn. Figurino: Manon Rasmussen. Produção executivo: Lars Jonsson. Produção: Peter Albaek Jensen, Vibeke Windelov. Elenco: Emily Watson, Stellan Sgarsgaard, Katrin Cartlidge, Jean-Marc Barr, Adrian Rawlins, Sandra Voe, Udo Kier. Estreia: 18/5/96 (Festival de Cannes)
Vencedor do Grande Prêmio do Júri - Festival de Cannes 96
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Emily Watson)
Um estudo sobre a repressão sexual, o amor, a hipocrisia, a religião, o desejo e o preconceito, "Ondas do destino" tornou-se conhecido mundialmente, anos depois de sua estreia no Festival de Cannes de 1996, de onde saiu vencedor do Grande Prêmio do Júri, como o primeiro de uma trilogia cujas heroínas mantinham uma inocência estoica mesmo diante das maiores provações - trilogia essa encerrada com "Os idiotas" (98) e "Dançando no escuro" (00). Mesmo que muitas de suas obras seguintes ainda explorem a figura feminina quase até o limite do sadismo - o que frequentemente lhe confere uma negativa aura de misoginia - foi a dramática história de Bess McNeill, com todas as suas ressonâncias religiosas e psicológicas, que lhe abriu as portas do mercado internacional, a ponto de dar à sua atriz principal, a espetacular Emily Watson, uma indicação ao Oscar - que ela perdeu para Frances McDormand, pelo ótimo mas bem mais palatável "Fargo".
A estória se passa em uma pequena comunidade do interior da Escócia, regida firmemente pelos dogmas ortodoxos de Igreja cujos pastores não hesitam em segregar as mulheres e julgar quem merece ou não ser enterrado como cristão e usufruir do paraíso. É nesse ambiente que vive Bess (Emily Watson em uma interpretação avassaladora), uma jovem com sérios problemas psicológicos que se apaixona e resolve se casar com um estrangeiro, Jan (Stellan Skarsgaard), que trabalha em uma das plataformas de exploração de petróleo distantes do vilarejo. Os dois vivem um princípio de casamento dos mais felizes e sexualmente satisfatórios, até que o rapaz volta ao mar e a deixa solitária e carente. Em suas conversas com Deus - nas quais ela mesma responde suas questões existenciais - ela pede encarecidamente que seu marido retorne ao lar, mas entra em desespero quando seu desejo é atendido tragicamente: Jan volta para casa, mas tetraplégico e impedido de viver uma vida normal. Para manter-se próxima do marido, a jovem acaba acatando um pedido inusitado seu: ele pede que ela faça sexo com outros homens e conte a ele, em detalhes, todas as relações.
Apaixonada e cada vez mais desequilibrada emocionalmente, Bess passa a envolver-se sexualmente com vários homens da aldeia, sem importar-se com as regras morais da localidade e com o desprezo que começa a experimentar na pele: humilhada e agredida nas ruas, ela acredita, masoquisticamente, que seus sacrifícios carnais são os responsáveis por manter Jan vivo, apesar das negativas dos médicos e de sua cunhada, única pessoa em quem ela pode confiar. Gradualmente se transformando em exemplo de má conduta - uma Geni sem o Zepelim - Bess continua dialogando com seu Deus, que ela afirma ter-lhe prometido a cura do marido através de seu sacrifício pessoal. É quando sua família, sem ter outra alternativa, resolve que é hora de mandá-la de volta ao sanatório que ela frequentou anteriormente.
Fotografado com uma técnica especial que lhe permite uma imagem granulada que enfatiza o desconforto e a angústia trêmula da trama criada por Von Trier, "Ondas do destino" se beneficia da atuação desconcertante de Emily Watson para incomodar a plateia, como ele faria com muito mais força em sua obra futura: utilizando sem nenhuma espécie de pudor o sexo como força motriz da via-crucis de sua protagonista, o diretor discute a hipocrisia de uma sociedade puritana através de metáforas religiosas - não seria Bess uma Maria Madalena moderna? - e faz de sua protagonista a portadora de um estoicismo quase pueril, que contrasta com o puritanismo quase cruel das pessoas que a rodeiam. Sua inocência - que faz do sexo quase um ato religioso - a faz muito mais humana que a rigidez dos seus algozes, em tese dignos do respeito e do amor de Deus. Esse paradoxo - polêmico, provocativo, instigante - eleva ainda mais as qualidades cinematográficas do filme, valorizado também por uma trilha sonora fascinante que incluiu Elton John e David Bowie comentando cada um dos capítulos da triste saga de Bess McNeill.
Uma obra-prima dos anos 90, "Ondas do destino" é o antídoto perfeito para a mesmice do cinema norte-americano, com suas heroínas de plástico e seus dramas pasteurizados. Sua linguagem pode não agradar a todo mundo, mas pode ser uma experiência única e inesquecível.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri - Festival de Cannes 96
Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Emily Watson)
Um estudo sobre a repressão sexual, o amor, a hipocrisia, a religião, o desejo e o preconceito, "Ondas do destino" tornou-se conhecido mundialmente, anos depois de sua estreia no Festival de Cannes de 1996, de onde saiu vencedor do Grande Prêmio do Júri, como o primeiro de uma trilogia cujas heroínas mantinham uma inocência estoica mesmo diante das maiores provações - trilogia essa encerrada com "Os idiotas" (98) e "Dançando no escuro" (00). Mesmo que muitas de suas obras seguintes ainda explorem a figura feminina quase até o limite do sadismo - o que frequentemente lhe confere uma negativa aura de misoginia - foi a dramática história de Bess McNeill, com todas as suas ressonâncias religiosas e psicológicas, que lhe abriu as portas do mercado internacional, a ponto de dar à sua atriz principal, a espetacular Emily Watson, uma indicação ao Oscar - que ela perdeu para Frances McDormand, pelo ótimo mas bem mais palatável "Fargo".
A estória se passa em uma pequena comunidade do interior da Escócia, regida firmemente pelos dogmas ortodoxos de Igreja cujos pastores não hesitam em segregar as mulheres e julgar quem merece ou não ser enterrado como cristão e usufruir do paraíso. É nesse ambiente que vive Bess (Emily Watson em uma interpretação avassaladora), uma jovem com sérios problemas psicológicos que se apaixona e resolve se casar com um estrangeiro, Jan (Stellan Skarsgaard), que trabalha em uma das plataformas de exploração de petróleo distantes do vilarejo. Os dois vivem um princípio de casamento dos mais felizes e sexualmente satisfatórios, até que o rapaz volta ao mar e a deixa solitária e carente. Em suas conversas com Deus - nas quais ela mesma responde suas questões existenciais - ela pede encarecidamente que seu marido retorne ao lar, mas entra em desespero quando seu desejo é atendido tragicamente: Jan volta para casa, mas tetraplégico e impedido de viver uma vida normal. Para manter-se próxima do marido, a jovem acaba acatando um pedido inusitado seu: ele pede que ela faça sexo com outros homens e conte a ele, em detalhes, todas as relações.
Apaixonada e cada vez mais desequilibrada emocionalmente, Bess passa a envolver-se sexualmente com vários homens da aldeia, sem importar-se com as regras morais da localidade e com o desprezo que começa a experimentar na pele: humilhada e agredida nas ruas, ela acredita, masoquisticamente, que seus sacrifícios carnais são os responsáveis por manter Jan vivo, apesar das negativas dos médicos e de sua cunhada, única pessoa em quem ela pode confiar. Gradualmente se transformando em exemplo de má conduta - uma Geni sem o Zepelim - Bess continua dialogando com seu Deus, que ela afirma ter-lhe prometido a cura do marido através de seu sacrifício pessoal. É quando sua família, sem ter outra alternativa, resolve que é hora de mandá-la de volta ao sanatório que ela frequentou anteriormente.
Fotografado com uma técnica especial que lhe permite uma imagem granulada que enfatiza o desconforto e a angústia trêmula da trama criada por Von Trier, "Ondas do destino" se beneficia da atuação desconcertante de Emily Watson para incomodar a plateia, como ele faria com muito mais força em sua obra futura: utilizando sem nenhuma espécie de pudor o sexo como força motriz da via-crucis de sua protagonista, o diretor discute a hipocrisia de uma sociedade puritana através de metáforas religiosas - não seria Bess uma Maria Madalena moderna? - e faz de sua protagonista a portadora de um estoicismo quase pueril, que contrasta com o puritanismo quase cruel das pessoas que a rodeiam. Sua inocência - que faz do sexo quase um ato religioso - a faz muito mais humana que a rigidez dos seus algozes, em tese dignos do respeito e do amor de Deus. Esse paradoxo - polêmico, provocativo, instigante - eleva ainda mais as qualidades cinematográficas do filme, valorizado também por uma trilha sonora fascinante que incluiu Elton John e David Bowie comentando cada um dos capítulos da triste saga de Bess McNeill.
Uma obra-prima dos anos 90, "Ondas do destino" é o antídoto perfeito para a mesmice do cinema norte-americano, com suas heroínas de plástico e seus dramas pasteurizados. Sua linguagem pode não agradar a todo mundo, mas pode ser uma experiência única e inesquecível.
terça-feira
TWISTER
TWISTER (Twister, 1996, Warner Bros/Universal Pictures/Amblin
Entertainment, 118min) Direção: Jan De Bont. Roteiro: Michael Chrichton,
Anne-Marie Martin. Fotografia: Jack N. Green. Montagem: Michael Kahn.
Música: Mark Mancina. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de
arte/cenários: Joseph Nemec III/Ron Reiss. Produção executiva: Laurie
MacDonald, Gerald R. Molen, Walter Parkes, Steven Spielberg. Produção:
Ian Bryce, Michael Chrichton, Kathleen Kennedy. Elenco: Helen Hunt, Bill
Paxton, Cary Elwes, Jami Gertz, Philip Seymour Hoffman, Lois Smith,
Alan Ruck, Todd Field, Abraham Benrubi. Estreia: 10/5/96
2 indicações ao Oscar: Melhor Som, Melhores Efeitos Visuais
Steven Spielberg é apenas o produtor executivo - através de sua Amblin Entertainment - mas é impossível assistir-se a "Twister" sem ver seu dedo em cada detalhe. Os efeitos visuais caprichados, a trama familiar de razoável importância no contexto dramático, a violência extremamente comedida para não chocar o espectador e o ritmo acelerado, sem tempos mortos, são características que fizeram de seus filmes sucessos inegáveis de crítica e bilheteria, e todas elas estão presentes no segundo filme de Jan De Bont - diretor de fotografia alçado à condição de cineasta bem-sucedido depois do inesperado êxito de seu "Velocidade máxima" (94). Mergulhando a plateia em uma montanha-russa divertida e desprovida de quaisquer elocubrações intelectuais, De Bont acertou novamente, proporcionando à audiência duas horas de um delicioso cinema-pipoca.
A trama, como convém a esse tipo de filme, é simples e direta (apesar de um dos roteiristas ser o escritor de ficção científica Michael Chrichton): um grupo de cientistas, liderado pela decidida Jo Harding (Helen Hunt), tem como objetivo perseguir uma série de tornados que vem castigando a região de Oklahoma para colocar, dentro de um deles, um dispositivo que irá permitir que sejam estudados e, por consequência, previstos a tempo de avisar suas possíveis vítimas. Traumatizada por ter testemunhado a morte do pai em um ataque do mais violento dos tornados, Jo é obcecada em atingir sua meta profissional, mas justamente quando está em vias de conseguir sucesso - várias violentas tempestades estão em seu caminho - ela reencontra seu ex-marido, Bill (Bill Paxton), que deseja que ela assine os documentos de seu divórcio. Não bastasse isso, seu maior rival e ex-colega de trabalho, Jonas Miller (Cary Elwes) - que roubou a ideia de sua invenção - também está disposto a chamar para si o êxito da tarefa.
Temperado com efeitos visuais ainda hoje impressionantes - que perderam o Oscar para o previsível "Independence day" - e uma química perfeita entre seus protagonistas (Hunt ainda não havia ganho o Oscar por "Melhor é impossível" e Paxton já era um dos atores preferidos de James Cameron), "Twister" diverte justamente por saber equilibrar com perfeição todos os ingredientes que sempre fizeram o sucesso dos filmes de Spielberg. Sabendo que grande parte de seu público seria de adolescentes e jovens, o roteiro evita ao máximo qualquer tipo de violência gráfica, por mais que seja difícil imaginar um filme sobre tornados sem destruição em massa e mortes a granel. Sendo assim, que não se espere realismo nesse particular do filme: por mais que os ciclones sejam apavorantemente reais, suas consequências são mostradas de forma discreta e nenhuma morte chocante é exposta aos olhos da plateia: assim como em "Jurassic Park" (sintomaticamente dirigido por Spielberg) o perigo é sempre barrado pelos limites do cinema: todos sofrem de tensão e nervosismo, mas com a certeza aconchegante de que nada irá ultrapassar as telas.
É esse o tipo de filme que "Twister" é: um entretenimento direto e eficaz, daqueles que fazem o espectador torcer pelos protagonistas, se abismar com os efeitos de última geração e, no caso, reconhecer, no elenco coadjuvante, nomes que se tornariam famosos pouco tempo depois, como Philip Seymour Hoffman, ou que conheceram o gostinho da fama nos anos 80 antes de desaparecerem em filmes menores (como Alan Ruck, o melhor amigo de Matthew Broderick em "Curtindo a vida adoidado" e Jami Gertz, a mocinha de "Garotos perdidos"). "Twister" é um filme com a marca de Spielberg, com tudo que isso tem de positivo e negativo. Mas é, acima de tudo, um filme que cumpre o que promete: duas horas de diversão pura e quase ingênua.
2 indicações ao Oscar: Melhor Som, Melhores Efeitos Visuais
Steven Spielberg é apenas o produtor executivo - através de sua Amblin Entertainment - mas é impossível assistir-se a "Twister" sem ver seu dedo em cada detalhe. Os efeitos visuais caprichados, a trama familiar de razoável importância no contexto dramático, a violência extremamente comedida para não chocar o espectador e o ritmo acelerado, sem tempos mortos, são características que fizeram de seus filmes sucessos inegáveis de crítica e bilheteria, e todas elas estão presentes no segundo filme de Jan De Bont - diretor de fotografia alçado à condição de cineasta bem-sucedido depois do inesperado êxito de seu "Velocidade máxima" (94). Mergulhando a plateia em uma montanha-russa divertida e desprovida de quaisquer elocubrações intelectuais, De Bont acertou novamente, proporcionando à audiência duas horas de um delicioso cinema-pipoca.
A trama, como convém a esse tipo de filme, é simples e direta (apesar de um dos roteiristas ser o escritor de ficção científica Michael Chrichton): um grupo de cientistas, liderado pela decidida Jo Harding (Helen Hunt), tem como objetivo perseguir uma série de tornados que vem castigando a região de Oklahoma para colocar, dentro de um deles, um dispositivo que irá permitir que sejam estudados e, por consequência, previstos a tempo de avisar suas possíveis vítimas. Traumatizada por ter testemunhado a morte do pai em um ataque do mais violento dos tornados, Jo é obcecada em atingir sua meta profissional, mas justamente quando está em vias de conseguir sucesso - várias violentas tempestades estão em seu caminho - ela reencontra seu ex-marido, Bill (Bill Paxton), que deseja que ela assine os documentos de seu divórcio. Não bastasse isso, seu maior rival e ex-colega de trabalho, Jonas Miller (Cary Elwes) - que roubou a ideia de sua invenção - também está disposto a chamar para si o êxito da tarefa.
Temperado com efeitos visuais ainda hoje impressionantes - que perderam o Oscar para o previsível "Independence day" - e uma química perfeita entre seus protagonistas (Hunt ainda não havia ganho o Oscar por "Melhor é impossível" e Paxton já era um dos atores preferidos de James Cameron), "Twister" diverte justamente por saber equilibrar com perfeição todos os ingredientes que sempre fizeram o sucesso dos filmes de Spielberg. Sabendo que grande parte de seu público seria de adolescentes e jovens, o roteiro evita ao máximo qualquer tipo de violência gráfica, por mais que seja difícil imaginar um filme sobre tornados sem destruição em massa e mortes a granel. Sendo assim, que não se espere realismo nesse particular do filme: por mais que os ciclones sejam apavorantemente reais, suas consequências são mostradas de forma discreta e nenhuma morte chocante é exposta aos olhos da plateia: assim como em "Jurassic Park" (sintomaticamente dirigido por Spielberg) o perigo é sempre barrado pelos limites do cinema: todos sofrem de tensão e nervosismo, mas com a certeza aconchegante de que nada irá ultrapassar as telas.
É esse o tipo de filme que "Twister" é: um entretenimento direto e eficaz, daqueles que fazem o espectador torcer pelos protagonistas, se abismar com os efeitos de última geração e, no caso, reconhecer, no elenco coadjuvante, nomes que se tornariam famosos pouco tempo depois, como Philip Seymour Hoffman, ou que conheceram o gostinho da fama nos anos 80 antes de desaparecerem em filmes menores (como Alan Ruck, o melhor amigo de Matthew Broderick em "Curtindo a vida adoidado" e Jami Gertz, a mocinha de "Garotos perdidos"). "Twister" é um filme com a marca de Spielberg, com tudo que isso tem de positivo e negativo. Mas é, acima de tudo, um filme que cumpre o que promete: duas horas de diversão pura e quase ingênua.
segunda-feira
MEDO
MEDO (Fear, 1996, Imagine Entertainment/Universal Pictures, 97min)
Direção: James Foley. Roteiro: Christopher Crowe. Fotografia: Thomas
Kloss. Montagem: David Brenner. Música: Carter Burwell. Figurino:
Kirsten Everberg. Direção de arte/cenários: Alex McDowell/D.
Fauquet-Lemaitre. Produção executiva: Karen Kehela. Produção: Brian
Grazer, Ric Kidney, Karen Snow. Elenco: Mark Wahlberg, Reese
Witherspoon, William Petersen, Ammy Brenneman, Alyssa Milano,
Christopher Gray, Todd Caldecott. Estreia: 12/4/96
Há ecos nítidos de "Cabo do medo", de Martin Scorsese, na maneira como o protagonista masculino de "Medo" - refilmagem americana livre de um filme indiano chamado "Darr", lançado em 1993 - persegue obsessivamente a jovem por quem se diz apaixonado. Também há citações de "Sob o domínio do medo", de Sam Peckinpah, no clímax do filme de James Foley - que já tinha no currículo filmes respeitados como "Caminhos violentos" (86) e "O sucesso a qualquer preço" (92) e produções comerciais menos elogiadas, como "Quem é essa garota?" (87), estrelado por Madonna. Tais referências, no entanto, não impedem que seu filme, uma história banal de suspense, ultrapasse as armadilhas que o roteiro repleto de clichês espalha em seu caminho. Com aparência de telefilme e contando com dois jovens atores ainda em busca de um lugar ao sol em Hollywood, a obra de Foley surpreende apenas por conseguir manter uma tensão constante mesmo com todos os furos do roteiro, que trata seus personagens sem muita profundidade.
Ainda antes de tornar-se famosa como a patricinha de "Legalmente loira" e a oscarizada atriz de "Johnny & June", uma jovem Reese Witherspoon lidera o elenco como Nicole Walker, uma adolescente órfã de mãe que vai morar com o pai, Steve (William Petersen), a madrasta Laura (Amy Brenneman) e o irmão caçula Toby (Christopher Gray) em uma segura casa nos arredores de Seattle. Rebelde como é comum na sua idade, ela cai de amores pela pessoa mais errada possível, o misterioso e sedutor David McCall (Mark Wahlberg, dois anos antes do estouro de "Boogie nights" e já conhecido como modelo de cuecas Calvin Klein e cantor de rap). Evasivo a respeito de suas origens, David aparenta ser um rapaz perfeito e romântico, seduzindo a garota sem maiores esforços. O romance dos sonhos, porém, logo mostra alguns problemas quando o rapaz se mostra extremamente possessivo e violento. Percebendo o tamanho da encrenca, Steve tenta afastar a filha de David, o que provoca ainda mais sua fúria descontrolada: em pouco tempo a família toda vira alvo do psicótico e raivoso príncipe tornado sapo, que se une a seus amigos do submundo para aterrorizar a todos.
Sem preocupar-se em dar profundidade a seus personagens, o roteiro de Christopher Crowe opta por acentuar o clima de suspense e violência da trama, enfatizando a psique obsessiva e cruel de David a cada cena - e mesmo assim não conseguindo fugir da superficialidade de suas escolhas. As intrigas de David para jogar Nicole contra o pai, por exemplo, são de uma simplicidade franciscana e suas consequências nunca são utilizadas com todas as possibilidades que poderiam. A própria personalidade doentia do rapaz jamais é explorada a contento, tornando-o apenas mais um vilão cuja única finalidade é ameaçar a paz da soberania familiar de um núcelo já problematizado. Mark Wahlberg funciona no papel apesar de suas limitações como ator, conseguindo transmitir (ao menos dentro do possível) a tensão requerida em seus momentos de ira, especialmente no terço final, quando deixa a máscara de bom moço cair definitivamente - e mostrar o corpo em boa parte do filme ajuda a disfarçar a fragilidade de seu desempenho nas cenas que exigem maior dramaticidade. O mesmo não pode ser dito de Reese Witherspoon, que mesmo com uma personagem que poderia facilmente despertar a antipatia do espectador - sua rebeldia sem causa e sua ingenuidade exagerada podem irritar aos menos pacientes - é capaz de convencê-lo da veracidade de suas atitudes, mesmo as erradas. Em pouco tempo ela estaria em filmes mais interessantes e mostraria a excelente atriz que é.
Para quem procura um filme de suspense e não se importa com alguns furos de roteiro e uma certa previsibilidade, "Medo" é uma opção bastante decente. Nunca ultrapassa seus limites puramente comerciais nem tenta ser mais do que é, e essa despretensão acaba por ajudá-lo. Mergulhado nos clichês - os vilões usam drogas e ouvem rock pesado, além de se vestirem de preto, a madrasta com quem a protagonista tinha problemas acaba se tornando sua melhor amiga, gente inocente morre violentamente em prol de um bom drama - o filme de James Foley até pode ofeneder aos mais exigentes, mas segura tranquilamente uma sessão descompromissada num sábado chuvoso.
Há ecos nítidos de "Cabo do medo", de Martin Scorsese, na maneira como o protagonista masculino de "Medo" - refilmagem americana livre de um filme indiano chamado "Darr", lançado em 1993 - persegue obsessivamente a jovem por quem se diz apaixonado. Também há citações de "Sob o domínio do medo", de Sam Peckinpah, no clímax do filme de James Foley - que já tinha no currículo filmes respeitados como "Caminhos violentos" (86) e "O sucesso a qualquer preço" (92) e produções comerciais menos elogiadas, como "Quem é essa garota?" (87), estrelado por Madonna. Tais referências, no entanto, não impedem que seu filme, uma história banal de suspense, ultrapasse as armadilhas que o roteiro repleto de clichês espalha em seu caminho. Com aparência de telefilme e contando com dois jovens atores ainda em busca de um lugar ao sol em Hollywood, a obra de Foley surpreende apenas por conseguir manter uma tensão constante mesmo com todos os furos do roteiro, que trata seus personagens sem muita profundidade.
Ainda antes de tornar-se famosa como a patricinha de "Legalmente loira" e a oscarizada atriz de "Johnny & June", uma jovem Reese Witherspoon lidera o elenco como Nicole Walker, uma adolescente órfã de mãe que vai morar com o pai, Steve (William Petersen), a madrasta Laura (Amy Brenneman) e o irmão caçula Toby (Christopher Gray) em uma segura casa nos arredores de Seattle. Rebelde como é comum na sua idade, ela cai de amores pela pessoa mais errada possível, o misterioso e sedutor David McCall (Mark Wahlberg, dois anos antes do estouro de "Boogie nights" e já conhecido como modelo de cuecas Calvin Klein e cantor de rap). Evasivo a respeito de suas origens, David aparenta ser um rapaz perfeito e romântico, seduzindo a garota sem maiores esforços. O romance dos sonhos, porém, logo mostra alguns problemas quando o rapaz se mostra extremamente possessivo e violento. Percebendo o tamanho da encrenca, Steve tenta afastar a filha de David, o que provoca ainda mais sua fúria descontrolada: em pouco tempo a família toda vira alvo do psicótico e raivoso príncipe tornado sapo, que se une a seus amigos do submundo para aterrorizar a todos.
Sem preocupar-se em dar profundidade a seus personagens, o roteiro de Christopher Crowe opta por acentuar o clima de suspense e violência da trama, enfatizando a psique obsessiva e cruel de David a cada cena - e mesmo assim não conseguindo fugir da superficialidade de suas escolhas. As intrigas de David para jogar Nicole contra o pai, por exemplo, são de uma simplicidade franciscana e suas consequências nunca são utilizadas com todas as possibilidades que poderiam. A própria personalidade doentia do rapaz jamais é explorada a contento, tornando-o apenas mais um vilão cuja única finalidade é ameaçar a paz da soberania familiar de um núcelo já problematizado. Mark Wahlberg funciona no papel apesar de suas limitações como ator, conseguindo transmitir (ao menos dentro do possível) a tensão requerida em seus momentos de ira, especialmente no terço final, quando deixa a máscara de bom moço cair definitivamente - e mostrar o corpo em boa parte do filme ajuda a disfarçar a fragilidade de seu desempenho nas cenas que exigem maior dramaticidade. O mesmo não pode ser dito de Reese Witherspoon, que mesmo com uma personagem que poderia facilmente despertar a antipatia do espectador - sua rebeldia sem causa e sua ingenuidade exagerada podem irritar aos menos pacientes - é capaz de convencê-lo da veracidade de suas atitudes, mesmo as erradas. Em pouco tempo ela estaria em filmes mais interessantes e mostraria a excelente atriz que é.
Para quem procura um filme de suspense e não se importa com alguns furos de roteiro e uma certa previsibilidade, "Medo" é uma opção bastante decente. Nunca ultrapassa seus limites puramente comerciais nem tenta ser mais do que é, e essa despretensão acaba por ajudá-lo. Mergulhado nos clichês - os vilões usam drogas e ouvem rock pesado, além de se vestirem de preto, a madrasta com quem a protagonista tinha problemas acaba se tornando sua melhor amiga, gente inocente morre violentamente em prol de um bom drama - o filme de James Foley até pode ofeneder aos mais exigentes, mas segura tranquilamente uma sessão descompromissada num sábado chuvoso.
domingo
BELEZA ROUBADA
BELEZA
ROUBADA (Stealing beauty, 1996, Fiction Films/France 2 Cinéma, 118min)
Direção: Bernardo Bertolucci. Roteiro: Susan Minot, estória de Bernardo
Bertolucci. Fotografia: Darius Khondji. Montagem: Pietro Scalia. Música:
Richard Hartley. Figurino: Louise Stjernsward. Direção de
arte/cenários: Gianni Silvestri/Cinzia Sleiter. Produção executiva: Yves
Attal. Produção: Jeremy Thomas. Elenco: Liv Tyler, Jeremy Irons, Sinéad
Cusack, Rachel Weisz, Joseph Fiennes, Jason Flemyng, Jean Marais,
Stefania Sandrelli. Estreia: 29/3/96
Durante as entrevistas de divulgação de "O pequeno Buda", estrelado por Keanu Reeves, o cineasta Bernardo Bertolucci não se cansava de dizer que seu filme seguinte teria que ser, necessariamente, um projeto pequeno, familiar, que não envolvesse as dificuldades logísticas de suas últimas obras - entre elas, o ambicioso "O céu que nos protege". Quando "Beleza roubada" estreou no Festival de Cannes de 1996, dois meses de ter chegado aos cinemas italianos, o mundo todo percebeu que ele falava muito sério. Simples e minimalista, a história da bela e inocente Lucy Harmon em busca da verdade sobre sua mãe suicida e do primeiro amor mostra um Bertolucci em registro discreto, a anos-luz do gigantismo de coisas como "O último imperador", que lhe rendeu 9 Oscar em 1988. Essa bem-vinda despretensão conquistou a simpatia da crítica e do público, que aprovou, entre outras coisas, a escolha acertadíssima de Liv Tyler para interpretar o papel principal. Com uma aura de pureza e inocência ao redor de um rosto deslumbrante, Liv - filha do vocalista da banda de rock Aerosmith, Steven Tyler - se desincumbe com graça e segurança de sua primeira protagonista, seduzindo o espectador logo nas primeiras cenas.
Ao som de Lizzy Phair e sua "Rocket song", o público acompanha a chegada da bela Lucy, uma jovem americana de 19 anos, a uma afastada vila italiana de propriedade de Ian (Donald McCann), um artista plástico inglês que refugiou-se do mundo para levar uma existência tranquila ao lado da esposa, Diana (Sinéad Cusack) e dos amigos que frequentemente os visitam, como o poeta Alex (Jeremy Irons), que, contaminado pelo vírus da AIDS, passa seus últimos meses na companhia do casal. A visita de Lucy, porém, não é apenas um acontecimento social corriqueiro: com a desculpa de posar para uma escultura de Ian, a bela jovem tem também interesse em descobrir a verdade sobre sua paternidade, que ela sabe ter relação com um verão passado por sua mãe, uma recente suicida, no mesmo local da Toscana. Enquanto busca pistas que a levem à identidade de seu pai, ela passa a ter contato com o grupo de convidados excêntricos de Ian e Diana, que aproveitam ao máximo o calor da Itália e sua atmosfera altamente sensual. Envolvida pelo clima erótico do lugar, Lucy espera ansiosamente pelo reencontro com Niccólo (Roberto Zibetti), um flerte de adolescência que ela espera converter em seu primeiro homem.
Fotografada com extrema luminosidade por Darius Khondji - em um trabalho oposto ao que realizou no soturno "Seven, os sete crimes capitais" - a Toscana de Bernardo Bertolucci surge soberana diante dos olhos do público em cada cena de "Beleza roubada". As paisagens deslumbrantes combinam magistralmente com a beleza espectral de Liv Tyler, em uma composição irresistível que ilustra com perfeição os temas essenciais do filme: a busca pelo prazer, pelo amor e pela identidade. Narrado de forma poética - através de trechos de escritos da protagonista, do visual arrebatador e da relação estabelecida entre sexo e arte, com mostrado na festa da qual os personagens participam - o filme ressente-se apenas de um rimo pouco atraente. Ainda que seja bem mais ágil que muitos outros filmes do diretor, "Beleza roubada" empresta das produções europeias sua velocidade discreta em contar sua história, o que pode incomodar os espectadores mais afoitos.
Apoiado basicamente no trabalho de Liv Tyler - ainda inexperiente mas dotada de um carisma que ameniza suas falhas como atriz - "Beleza roubada" consegue alcançar seu maior objetivo (ser um filme pequeno, leve, discreto) sem maiores esforços. Experiente na direção de seus atores, Bernardo Bertolucci conduz a trama com mão leve, deixando que a ação transcorra sem pressa como um verão na Toscana. Tal clima transparece em cada sequência, mergulhando o espectador em uma história de gente normal passando por acontecimentos normais - que se engrandecem apenas graças ao visual estonteante imposto pela fotografia impecável. É um filme comum, capaz de agradar a quem procura se ver retratado nas telas. Se é que a beleza de Liv pode ser considerada comum.
Durante as entrevistas de divulgação de "O pequeno Buda", estrelado por Keanu Reeves, o cineasta Bernardo Bertolucci não se cansava de dizer que seu filme seguinte teria que ser, necessariamente, um projeto pequeno, familiar, que não envolvesse as dificuldades logísticas de suas últimas obras - entre elas, o ambicioso "O céu que nos protege". Quando "Beleza roubada" estreou no Festival de Cannes de 1996, dois meses de ter chegado aos cinemas italianos, o mundo todo percebeu que ele falava muito sério. Simples e minimalista, a história da bela e inocente Lucy Harmon em busca da verdade sobre sua mãe suicida e do primeiro amor mostra um Bertolucci em registro discreto, a anos-luz do gigantismo de coisas como "O último imperador", que lhe rendeu 9 Oscar em 1988. Essa bem-vinda despretensão conquistou a simpatia da crítica e do público, que aprovou, entre outras coisas, a escolha acertadíssima de Liv Tyler para interpretar o papel principal. Com uma aura de pureza e inocência ao redor de um rosto deslumbrante, Liv - filha do vocalista da banda de rock Aerosmith, Steven Tyler - se desincumbe com graça e segurança de sua primeira protagonista, seduzindo o espectador logo nas primeiras cenas.
Ao som de Lizzy Phair e sua "Rocket song", o público acompanha a chegada da bela Lucy, uma jovem americana de 19 anos, a uma afastada vila italiana de propriedade de Ian (Donald McCann), um artista plástico inglês que refugiou-se do mundo para levar uma existência tranquila ao lado da esposa, Diana (Sinéad Cusack) e dos amigos que frequentemente os visitam, como o poeta Alex (Jeremy Irons), que, contaminado pelo vírus da AIDS, passa seus últimos meses na companhia do casal. A visita de Lucy, porém, não é apenas um acontecimento social corriqueiro: com a desculpa de posar para uma escultura de Ian, a bela jovem tem também interesse em descobrir a verdade sobre sua paternidade, que ela sabe ter relação com um verão passado por sua mãe, uma recente suicida, no mesmo local da Toscana. Enquanto busca pistas que a levem à identidade de seu pai, ela passa a ter contato com o grupo de convidados excêntricos de Ian e Diana, que aproveitam ao máximo o calor da Itália e sua atmosfera altamente sensual. Envolvida pelo clima erótico do lugar, Lucy espera ansiosamente pelo reencontro com Niccólo (Roberto Zibetti), um flerte de adolescência que ela espera converter em seu primeiro homem.
Fotografada com extrema luminosidade por Darius Khondji - em um trabalho oposto ao que realizou no soturno "Seven, os sete crimes capitais" - a Toscana de Bernardo Bertolucci surge soberana diante dos olhos do público em cada cena de "Beleza roubada". As paisagens deslumbrantes combinam magistralmente com a beleza espectral de Liv Tyler, em uma composição irresistível que ilustra com perfeição os temas essenciais do filme: a busca pelo prazer, pelo amor e pela identidade. Narrado de forma poética - através de trechos de escritos da protagonista, do visual arrebatador e da relação estabelecida entre sexo e arte, com mostrado na festa da qual os personagens participam - o filme ressente-se apenas de um rimo pouco atraente. Ainda que seja bem mais ágil que muitos outros filmes do diretor, "Beleza roubada" empresta das produções europeias sua velocidade discreta em contar sua história, o que pode incomodar os espectadores mais afoitos.
Apoiado basicamente no trabalho de Liv Tyler - ainda inexperiente mas dotada de um carisma que ameniza suas falhas como atriz - "Beleza roubada" consegue alcançar seu maior objetivo (ser um filme pequeno, leve, discreto) sem maiores esforços. Experiente na direção de seus atores, Bernardo Bertolucci conduz a trama com mão leve, deixando que a ação transcorra sem pressa como um verão na Toscana. Tal clima transparece em cada sequência, mergulhando o espectador em uma história de gente normal passando por acontecimentos normais - que se engrandecem apenas graças ao visual estonteante imposto pela fotografia impecável. É um filme comum, capaz de agradar a quem procura se ver retratado nas telas. Se é que a beleza de Liv pode ser considerada comum.
sábado
O SEGREDO DE MARY REILLY
O
SEGREDO DE MARY REILLY (Mary Reilly, 1996, TriStar Pictures, 108min)
Direção: Stephen Frears. Roteiro: Christopher Hampton, romance de
Valerie Martin. Fotografia: Philippe Rousselot. Montagem: Lesley Walker.
Música: George Fenton. Figurino: Consolata Boyle. Direção de
arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Lynn
Pleshette. Produção: Norma Heyman, Nancy Graham Tanen, Ned Tanen.
Elenco: John Malkovich, Julia Roberts, George Cole, Michael Gambon,
Glenn Close, Michael Sheen, Kathy Staff, Linda Bassett, Ciarán Hinds.
Estreia: 23/02/96
Depois de explodir como a bela e longilínea prostituta de "Uma linda mulher" - e de quebra conquistar uma indicação ao Oscar e tornar-se a atriz mais bem paga de Hollywood - Julia Roberts entrou em um prolongado inferno astral, quando passou a chamar mais a atenção do público por sua atribulada vida pessoal do que por seus trabalhos no cinema. Acumulando filmes que não encantavam nem à crítica nem tampouco ao público, ela foi perdendo espaço junto à plateia - que encontrava em atrizes como Sandra Bullock uma espécie de substituta nas suas tradicionais comédias românticas - e à indústria - que não via com bons olhos a queda de popularidade e bilheteria de seus filmes. Tentando provar que era bem mais do que um sorriso carismático e que seu talento se estendia além do tradicional feijão com arroz das produções comerciais, ela resolveu arriscar tudo em um projeto no mínimo inusitado: uma versão da clássica história do médico e do monstro contada através do ponto de vista da empregada do protagonista. Sob a direção do conceituado Stephen Frears e ao lado de John Malkovich, Julia Roberts deixava de ser uma estrela para se tornar uma atriz. A expectativa era enorme. E a decepção se mostrou igualmente gigantesca.
Com uma bilheteria que mal passou os cinco milhões de dólares - contra um orçamento relativamente generoso de quase cinquenta - "O segredo de Mary Reilly" foi um dos maiores fiascos dos anos 90, atrapalhando os planos de Roberts de estabelecer-se como atriz séria (o que aconteceria com seu Oscar por "Erin Brockovich", de 2000) e abalando o prestígio até mesmo de Stephen Frears e Malkovich - trabalhando juntos oito anos depois do sucesso de "Ligações perigosas". Massacrado pela crítica e ignorado pelo público que cinco anos havia lotado as salas de cinema para assistir Julia no esquecível "Dormindo com o inimigo", o filme baseado no romance de Valerie Martin acabou se transformando, nos bastidores de Hollywood, em sinônimo de desastre artístico. Mas hoje, visto à luz dos anos, sem a má-vontade velada que cercava a carreira de sua atriz principal e a pressão de ver nele uma obra-prima absoluta, o filme surpreende por ter mais qualidades do que defeitos. Não é, logicamente, uma produção excepcional, mas tampouco o diabo é tão feio quanto pintaram há quase vinte anos. Em especial em sua primeira metade, "O segredo de Mary Reilly" é um belo drama de suspense gótico, envolvente e intrigante.
Não é imprescindível que se conheça detalhes da história de "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, para se apreciar o filme de Frears, mas é particularmente interessante saber ao menos sua premissa inicial para melhor saborear todos os detalhes espalhados pelo roteiro de Christopher Hampton - outro colaborador de "Ligações perigosas", assim como George Fenton, o responsável pela trilha sonora soturna e densa, e Glenn Close, exagerando como Mrs. Farraday, a dona do bordel que ajuda Jekyll em suas aventuras noturnas. Com base nos livros de Stevenson e Martin, publicados com séculos de distância entre si, Hampton escreveu uma história de ritmo lento, quase contemplativo em sua metade inicial, quando estabelece a relação entre a empregada doméstica Mary Reilly (Julia, desprovida de qualquer artifício que lhe dê glamour) e o misterioso Dr. Henry Jekyll (Malkovich, sempre exercitando sua persona desequilibrada). Traumatizada por uma infância violenta - que lhe deu cicatrizes no corpo e na alma - ela se torna a funcionária preferida de Jekyll, e, como tal, a responsável por manter em segredo suas experiências no laboratório nos fundos da mansão. Quando entra em cena Mr. Hyde, o assistente de Jekyll - que ao contrário dele não deixa passar a atração que sente por ela - Mary entra em um perigoso jogo de sedução: seduzida pela elegância de um e pela coragem de outro, ela começa a desconfiar que as violentas mortes ocorridas ao redor de todos eles tem o mesmo responsável.
Julia Roberts não está nada mal em sua interpretação de Mary Reilly, pelo contrário: contida, discreta e deixando de lado toda e qualquer vaidade, ela transmite com firmeza todas as angústias e inseguranças de uma personagem difícil e complexa, torturada pela atração que sente pelo mal que sabe vir do laboratório de seu patrão. O problema está justamente na escolha de John Malkovich para interpretar as duas faces do protagonista masculino: longe de ser um mau ator, ele escorrega apenas em criar um Jekyll cuja única diferença em relação a Hyde é a cara de enfado que carrega durante todo o filme e o exagero que deixa tomar conta de sua atuação no terço final da narrativa. A sutileza da obra de Stevenson e sua discussão a respeito de como o bem e o mal convivem dentro de uma mesma pessoa desaparecem totalmente no clímax sanguinolento que destoa radicalmente do promissor e instigante começo. A opção por explicitar o que era apenas sugerido pela bela fotografia acinzentada de Philippe Rousselot enfraquece o resultado final, transformando uma história de rara inteligência em mais um filme de terror banal e anticlimático. Essa indecisão entre ser um filme de arte e uma obra popular talvez seja o calcanhar de Aquiles, o erro maior de toda a produção.
E a produção, diga-se de passagem, é de encher os olhos. Sem querer impor uma estética de beleza onde não convém, o desenho de produção de "O segredo de Mary Reilly" é exemplar, enfatizando o lado gótico e sombrio da trama com seus cenários assombrosos e com uma reconstituição de época fascinante, que inclui visitas à ruas escuras e mercados livres que só faltam exalar seus cheiros fortes e desagradáveis. A fotografia, como dito antes, não fica atrás, mergulhando o espectador em um mundo sem luzes, quase irrespirável de tensão e medo, e o figurino também deixa de lado o glamour para concentrar-se no eficaz, no verossímil. Esses detalhes, que enriquecem o filme, acabam se perdendo, porém, quando a ação se torna acelerada para agradar aos paladares mais convencionais - o que não aconteceu justamente pela dúvida hamletiana de Frears em seguir ou não o caminho mais difícil. Uma pena. O que poderia ser genial ficou apenas bom - bem melhor, aliás, do que sempre foi dito a respeito dele.
Depois de explodir como a bela e longilínea prostituta de "Uma linda mulher" - e de quebra conquistar uma indicação ao Oscar e tornar-se a atriz mais bem paga de Hollywood - Julia Roberts entrou em um prolongado inferno astral, quando passou a chamar mais a atenção do público por sua atribulada vida pessoal do que por seus trabalhos no cinema. Acumulando filmes que não encantavam nem à crítica nem tampouco ao público, ela foi perdendo espaço junto à plateia - que encontrava em atrizes como Sandra Bullock uma espécie de substituta nas suas tradicionais comédias românticas - e à indústria - que não via com bons olhos a queda de popularidade e bilheteria de seus filmes. Tentando provar que era bem mais do que um sorriso carismático e que seu talento se estendia além do tradicional feijão com arroz das produções comerciais, ela resolveu arriscar tudo em um projeto no mínimo inusitado: uma versão da clássica história do médico e do monstro contada através do ponto de vista da empregada do protagonista. Sob a direção do conceituado Stephen Frears e ao lado de John Malkovich, Julia Roberts deixava de ser uma estrela para se tornar uma atriz. A expectativa era enorme. E a decepção se mostrou igualmente gigantesca.
Com uma bilheteria que mal passou os cinco milhões de dólares - contra um orçamento relativamente generoso de quase cinquenta - "O segredo de Mary Reilly" foi um dos maiores fiascos dos anos 90, atrapalhando os planos de Roberts de estabelecer-se como atriz séria (o que aconteceria com seu Oscar por "Erin Brockovich", de 2000) e abalando o prestígio até mesmo de Stephen Frears e Malkovich - trabalhando juntos oito anos depois do sucesso de "Ligações perigosas". Massacrado pela crítica e ignorado pelo público que cinco anos havia lotado as salas de cinema para assistir Julia no esquecível "Dormindo com o inimigo", o filme baseado no romance de Valerie Martin acabou se transformando, nos bastidores de Hollywood, em sinônimo de desastre artístico. Mas hoje, visto à luz dos anos, sem a má-vontade velada que cercava a carreira de sua atriz principal e a pressão de ver nele uma obra-prima absoluta, o filme surpreende por ter mais qualidades do que defeitos. Não é, logicamente, uma produção excepcional, mas tampouco o diabo é tão feio quanto pintaram há quase vinte anos. Em especial em sua primeira metade, "O segredo de Mary Reilly" é um belo drama de suspense gótico, envolvente e intrigante.
Não é imprescindível que se conheça detalhes da história de "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, para se apreciar o filme de Frears, mas é particularmente interessante saber ao menos sua premissa inicial para melhor saborear todos os detalhes espalhados pelo roteiro de Christopher Hampton - outro colaborador de "Ligações perigosas", assim como George Fenton, o responsável pela trilha sonora soturna e densa, e Glenn Close, exagerando como Mrs. Farraday, a dona do bordel que ajuda Jekyll em suas aventuras noturnas. Com base nos livros de Stevenson e Martin, publicados com séculos de distância entre si, Hampton escreveu uma história de ritmo lento, quase contemplativo em sua metade inicial, quando estabelece a relação entre a empregada doméstica Mary Reilly (Julia, desprovida de qualquer artifício que lhe dê glamour) e o misterioso Dr. Henry Jekyll (Malkovich, sempre exercitando sua persona desequilibrada). Traumatizada por uma infância violenta - que lhe deu cicatrizes no corpo e na alma - ela se torna a funcionária preferida de Jekyll, e, como tal, a responsável por manter em segredo suas experiências no laboratório nos fundos da mansão. Quando entra em cena Mr. Hyde, o assistente de Jekyll - que ao contrário dele não deixa passar a atração que sente por ela - Mary entra em um perigoso jogo de sedução: seduzida pela elegância de um e pela coragem de outro, ela começa a desconfiar que as violentas mortes ocorridas ao redor de todos eles tem o mesmo responsável.
Julia Roberts não está nada mal em sua interpretação de Mary Reilly, pelo contrário: contida, discreta e deixando de lado toda e qualquer vaidade, ela transmite com firmeza todas as angústias e inseguranças de uma personagem difícil e complexa, torturada pela atração que sente pelo mal que sabe vir do laboratório de seu patrão. O problema está justamente na escolha de John Malkovich para interpretar as duas faces do protagonista masculino: longe de ser um mau ator, ele escorrega apenas em criar um Jekyll cuja única diferença em relação a Hyde é a cara de enfado que carrega durante todo o filme e o exagero que deixa tomar conta de sua atuação no terço final da narrativa. A sutileza da obra de Stevenson e sua discussão a respeito de como o bem e o mal convivem dentro de uma mesma pessoa desaparecem totalmente no clímax sanguinolento que destoa radicalmente do promissor e instigante começo. A opção por explicitar o que era apenas sugerido pela bela fotografia acinzentada de Philippe Rousselot enfraquece o resultado final, transformando uma história de rara inteligência em mais um filme de terror banal e anticlimático. Essa indecisão entre ser um filme de arte e uma obra popular talvez seja o calcanhar de Aquiles, o erro maior de toda a produção.
E a produção, diga-se de passagem, é de encher os olhos. Sem querer impor uma estética de beleza onde não convém, o desenho de produção de "O segredo de Mary Reilly" é exemplar, enfatizando o lado gótico e sombrio da trama com seus cenários assombrosos e com uma reconstituição de época fascinante, que inclui visitas à ruas escuras e mercados livres que só faltam exalar seus cheiros fortes e desagradáveis. A fotografia, como dito antes, não fica atrás, mergulhando o espectador em um mundo sem luzes, quase irrespirável de tensão e medo, e o figurino também deixa de lado o glamour para concentrar-se no eficaz, no verossímil. Esses detalhes, que enriquecem o filme, acabam se perdendo, porém, quando a ação se torna acelerada para agradar aos paladares mais convencionais - o que não aconteceu justamente pela dúvida hamletiana de Frears em seguir ou não o caminho mais difícil. Uma pena. O que poderia ser genial ficou apenas bom - bem melhor, aliás, do que sempre foi dito a respeito dele.
sexta-feira
BRINCANDO DE SEDUZIR
BRINCANDO
DE SEDUZIR (Beautiful girls, 1996, Miramax Films, 112min) Direção: Ted
Demme. Roteiro: Scott Rosenberg. Fotografia: Adam Kimmel. Montagem:
Jeffrey Wolf. Música: David A. Stewart. Figurino: Lucy W. Corrigan.
Direção de arte/cenários: Dan Davis/Tracey A. Doyle. Produção executiva:
Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Cary Woods. Elenco: Matt
Dillon, Timothy Hutton, Noah Emmerich, Michael Rapaport, Rosie
O'Donnell, Lauren Holly, Martha Plimpton, Max Perlich, Natalie Portman,
Mira Sorvino, Uma Thurman, Pruitt Taylor Vince, Sam Robards, David
Arquette, John Carrol Lynch. Estreia: 09/02/06
Esta é uma história real: na metade da década de 90, enquanto esperava por uma resposta em relação à sorte de um trabalho seu para um grande estúdio de Hollywood, o roteirista Scott Rosenberg voltou à sua cidade natal, no estado de Massachusetts, para fugir da tensão da situação. Lá, ao lado de amigos de infância, percebeu, quase como uma epifania, o quão imaturos todos eles eram, incapazes de aceitar o fato de que estavam chegando aos 30 anos e totalmente despreparados para assumirem compromissos sentimentais. Ciente de que tal estado de espírito também dizia respeito a quase todos os homens de sua geração - e talvez das anteriores e posteriores - Rosenberg partiu para a ação e escreveu "Brincando de seduzir", uma comédia cáustica, romântica e um tanto cínica sobre ele mesmo em particular e os homens em geral. Dirigido por Ted Demme - recém vindo do ácido "O árbitro" - e estrelado por um grupo de jovens atores e atrizes que se dividiam entre iniciantes e veteranos, o filme fez pouco barulho nas bilheterias, mas é, sem dúvida, um retrato fiel e - por que não? - encantador da amizade entre homens.
Willie Conway (Timothy Hutton caprichando no visual desleixado) toca pianos nos bares de Nova York enquanto espera sua grande chance de tornar-se rico e famoso. Namorando há anos a compreensiva advogada Tracy (Annabeth Gish), ele retorna à sua cidade natal para um reencontro com os colegas do ginasial, a quem não vê há anos - assim como seu pai e seu irmão caçula, que desde a morte de sua mãe entraram em uma rotina triste e sem expectativas. Chegando a seu destino, ele imediatamente conhece a nova vizinha, a adolescente Marty (Natalie Portman), que mesmo aos 14 anos, não hesita em flertar com o forasteiro - que, logicamente, sente-se atraído pelo frescor e juventude da menina. Seu desequilíbrio diante de um belo espécime do sexo feminino é compartilhado com seus outros amigos, conforme ele vai percebendo ao encontrá-los: Tommy (Matt Dillon), o galã da cidade, namora com a bela e dedicada Sharon (Mira Sorvino), mas mantém há tempos um caso com uma mulher casada, Darian (Lauren Holly). Seu sócio no negócio de limpar neve das calçadas é Paul (Michael Rapaport, sempre bom em papéis de homens bobalhões), que não se conforma com a traição da namorada, Jan (Martha Plimpton) e vinga-se dela atravancando sua garagem com detritos das tempestades que não param de chegar. O único da turma que parece feliz é Michael (Noah Emmerich), casado, pai de dois filhos e imune às tentações da carne - sempre ironizadas pela sarcástica Gina (Rosie O'Donnell). As noitadas regadas a bebida e reminiscências são abaladas, porém, com a chegada de Andera (Uma Thurman), a bela e independente prima de um amigo em comum que mexe com a libido de todos.
É difícil de acreditar que antes de "Brincando de seduzir" apenas um outro roteiro de Scott Rosenberg havia chegado às telas - e de um gênero totalmente distante, o policial "Coisas para se fazer em Denver quando você está morto", lançado em 1995. Dotado de ritmo, consistência dramática e personagens críveis e pateticamente humanos, o texto de Rosenberg flui com extrema naturalidade, chegando até ao espectador sem soar presunçoso ou autocomplacente. Mesmo quando toca em um assunto potencialmente perigoso - a atração do trintão Willie pela adolescente Marty - o roteiro substitui o peso de uma polêmica pela leveza da citação de Nabokov e sua Lolita. Ao defender a imaturidade masculina mesmo quando ela tem consequências pouco nobres ou altruístas, tanto Rosenberg quanto o diretor Ted Demme tem o cuidado de não parecerem machistas ou misóginos: eles parecem dizer, através dos diálogos certeiros e quase melancólicos em determinados momentos, que seus personagens não são maus, são apenas infantis e, portanto, dotados de um egoísmo inerente à sua condição. E para isso, eles contam com um elenco excelente, que se desincumbe com maestria das armadilhas de uma trama que prescinde de heróis ou vilões.
Timothy Hutton - que ganhou um Oscar de coadjuvante aos 19 anos por "Gente como a gente" (80) - sai-se bem como o desnorteado Willie, um homem perdido entre a juventude e a maturidade que vê no possível envolvimento com uma adolescente sua última chance de prender-se de vez ao passado. Uma Thurman desfila linda e carismática pela tela como a sedutora Andera e Michael Rapaport faz o papel de adorável paspalho que se tornaria sua marca registrada - o mesmo que acontece com Rosie O'Donnell, que rouba a cena com sua desbocada e realista Gina em pelo menos uma cena memorável, quando discursa sobre a ditadura da beleza feminina ideal dos homens (tema também de um diálogo brilhante proferido pelo personagem de Rapaport). Junto a eles, as duas oscarizadas Natalie Portman - ainda menina - e Mira Sorvino completam uma equipe iluminada, que vem suas cenas comentadas pela adequada e agradável trilha sonora de David A. Stewart.
Ah, o filme que Rosenberg escreveu antes de esconder-se em sua cidadezinha chegou às telas em 1997: era o blockbuster "Con Air, a rota da fuga"... que não tem, perceptivelmente, nada a ver com o delicioso "Brincando de seduzir".
Esta é uma história real: na metade da década de 90, enquanto esperava por uma resposta em relação à sorte de um trabalho seu para um grande estúdio de Hollywood, o roteirista Scott Rosenberg voltou à sua cidade natal, no estado de Massachusetts, para fugir da tensão da situação. Lá, ao lado de amigos de infância, percebeu, quase como uma epifania, o quão imaturos todos eles eram, incapazes de aceitar o fato de que estavam chegando aos 30 anos e totalmente despreparados para assumirem compromissos sentimentais. Ciente de que tal estado de espírito também dizia respeito a quase todos os homens de sua geração - e talvez das anteriores e posteriores - Rosenberg partiu para a ação e escreveu "Brincando de seduzir", uma comédia cáustica, romântica e um tanto cínica sobre ele mesmo em particular e os homens em geral. Dirigido por Ted Demme - recém vindo do ácido "O árbitro" - e estrelado por um grupo de jovens atores e atrizes que se dividiam entre iniciantes e veteranos, o filme fez pouco barulho nas bilheterias, mas é, sem dúvida, um retrato fiel e - por que não? - encantador da amizade entre homens.
Willie Conway (Timothy Hutton caprichando no visual desleixado) toca pianos nos bares de Nova York enquanto espera sua grande chance de tornar-se rico e famoso. Namorando há anos a compreensiva advogada Tracy (Annabeth Gish), ele retorna à sua cidade natal para um reencontro com os colegas do ginasial, a quem não vê há anos - assim como seu pai e seu irmão caçula, que desde a morte de sua mãe entraram em uma rotina triste e sem expectativas. Chegando a seu destino, ele imediatamente conhece a nova vizinha, a adolescente Marty (Natalie Portman), que mesmo aos 14 anos, não hesita em flertar com o forasteiro - que, logicamente, sente-se atraído pelo frescor e juventude da menina. Seu desequilíbrio diante de um belo espécime do sexo feminino é compartilhado com seus outros amigos, conforme ele vai percebendo ao encontrá-los: Tommy (Matt Dillon), o galã da cidade, namora com a bela e dedicada Sharon (Mira Sorvino), mas mantém há tempos um caso com uma mulher casada, Darian (Lauren Holly). Seu sócio no negócio de limpar neve das calçadas é Paul (Michael Rapaport, sempre bom em papéis de homens bobalhões), que não se conforma com a traição da namorada, Jan (Martha Plimpton) e vinga-se dela atravancando sua garagem com detritos das tempestades que não param de chegar. O único da turma que parece feliz é Michael (Noah Emmerich), casado, pai de dois filhos e imune às tentações da carne - sempre ironizadas pela sarcástica Gina (Rosie O'Donnell). As noitadas regadas a bebida e reminiscências são abaladas, porém, com a chegada de Andera (Uma Thurman), a bela e independente prima de um amigo em comum que mexe com a libido de todos.
É difícil de acreditar que antes de "Brincando de seduzir" apenas um outro roteiro de Scott Rosenberg havia chegado às telas - e de um gênero totalmente distante, o policial "Coisas para se fazer em Denver quando você está morto", lançado em 1995. Dotado de ritmo, consistência dramática e personagens críveis e pateticamente humanos, o texto de Rosenberg flui com extrema naturalidade, chegando até ao espectador sem soar presunçoso ou autocomplacente. Mesmo quando toca em um assunto potencialmente perigoso - a atração do trintão Willie pela adolescente Marty - o roteiro substitui o peso de uma polêmica pela leveza da citação de Nabokov e sua Lolita. Ao defender a imaturidade masculina mesmo quando ela tem consequências pouco nobres ou altruístas, tanto Rosenberg quanto o diretor Ted Demme tem o cuidado de não parecerem machistas ou misóginos: eles parecem dizer, através dos diálogos certeiros e quase melancólicos em determinados momentos, que seus personagens não são maus, são apenas infantis e, portanto, dotados de um egoísmo inerente à sua condição. E para isso, eles contam com um elenco excelente, que se desincumbe com maestria das armadilhas de uma trama que prescinde de heróis ou vilões.
Timothy Hutton - que ganhou um Oscar de coadjuvante aos 19 anos por "Gente como a gente" (80) - sai-se bem como o desnorteado Willie, um homem perdido entre a juventude e a maturidade que vê no possível envolvimento com uma adolescente sua última chance de prender-se de vez ao passado. Uma Thurman desfila linda e carismática pela tela como a sedutora Andera e Michael Rapaport faz o papel de adorável paspalho que se tornaria sua marca registrada - o mesmo que acontece com Rosie O'Donnell, que rouba a cena com sua desbocada e realista Gina em pelo menos uma cena memorável, quando discursa sobre a ditadura da beleza feminina ideal dos homens (tema também de um diálogo brilhante proferido pelo personagem de Rapaport). Junto a eles, as duas oscarizadas Natalie Portman - ainda menina - e Mira Sorvino completam uma equipe iluminada, que vem suas cenas comentadas pela adequada e agradável trilha sonora de David A. Stewart.
Ah, o filme que Rosenberg escreveu antes de esconder-se em sua cidadezinha chegou às telas em 1997: era o blockbuster "Con Air, a rota da fuga"... que não tem, perceptivelmente, nada a ver com o delicioso "Brincando de seduzir".
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