CHAPLIN (Chaplin, 1992, Carolco Pictures, 143min) Direção: Richard Attenborough. Roteiro: William Boyd, Bryan Forbes, William Goldman, história de Diana Hawkins, livros "Chaplin: his life and art", de David Robinson e "My autobiography", de Charles Chaplin. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Anne V. Coates. Música: John Barry, José Padilla. Figurino: Ellen Mirojnick, John Mollo. Direção de arte/cenários: Stuart Craig/Norman Dorme. Casting: Mike Fenton, Susie Figgis, Valorie Massalas. Produção: Richard Attenborough, Mario Kassar. Elenco: Robert Downey Jr., Geraldine Chaplin, Anthony Hopkins, Moira Kelly, Dan Aykroyd, Marisa Tomei, Penelope Ann Miller, Kevin Kline, Maria Pitillo, Milla Jovovich, Diane Lane, Nancy Travis, James Woods. Estreia: 25/12/92
3 indicações ao Oscar: Ator (Robert Downey Jr.), Trilha Sonora Original, Direção de arte/cenários
Que Charles Chaplin foi um dos maiores gênios da história da humanidade é impossível discordar. Diretor e intérprete de clássicos absolutos como "O garoto", "Luzes da cidade" e "O grande ditador" - apenas para citar alguns de inúmeros títulos sensacionais - o ator inglês é uma das figuras mais reconhecidas da sétima arte, principalmente através de Carlitos, o vagabundo criado por ele e protagonista de muitos de seus filmes. Como a personagem foi criada, como algumas ideias para suas obras surgiram e principalmente como ele foi injustamente expulso dos EUA, acusado de ser simpatizante do comunismo, no entanto, não é material tão conhecido assim. Por isso, o cineasta Richard Attenborough resolveu que era hora de homenagear um de seus maiores ídolos com uma cinebiografia e lançou "Chaplin" no 15º aniversário de sua morte. Porém, ao contrário de sua obra mais famosa -"Gandhi" - seu filme não apenas ficou aquém do esperado em termos de crítica, mas bombou feio nas bilheterias.
O papel principal de "Chaplin" ficou com o americano Robert Downey Jr., antes que seus problemas com drogas o tirasse das páginas de entretenimento e o colocasse na seção policial. Em uma atuação impressionante, Downey mostra que é, sim, um extraordinário ator, tirando leite de pedra de um roteiro capenga - inspirado em duas biografias do artista - que não ilustra a contento nem a carreira nem a vida pessoal de Charlie. Narrado em flashback, uma vez que a história é contada pelo diretor a um biógrafo (Anthony Hopkins), "Chaplin" começa mostrando a infância miserável do protagonista, que, abandonado pelo pai, substituiu a mãe com problemas mentais (Geraldine Chaplin interpretando sua avó) em um show de vaudeville e conheceu o gosto do sucesso. Contratado para fazer filmes em Hollywood - em saltos temporais que mais prejudicam do que ajudam na compreensão do todo - ele chega à conclusão que precisa de controle total sobre sua obra, entrando em rota de colisão com o então todo poderoso Mack Sennet (Dan Aykroyd) e a cineasta Mabel Normand (Marisa Tomei). De posse de seu talento e de sua fama, ele galga rapidamente os degraus do sucesso, emendando um sucesso atrás do outro. No entanto, sua predileção por mulheres mais jovens - e às vezes menores de idade - e o fato de ter comprado briga com o criador do FBI, J.Edgar Hoover (Kevin Dunn) os leva a ter sérios problemas com a justiça americana, culminando com sua expulsão do país.
"Chaplin" poderia ter sido contado com dois enfoques diferentes e bastante interessantes: Attenborough (que demonstrou um pouco de preguiça na direção) poderia ter explorado os bastidores da Hollywood do início do século XX, com suas brigas por poder, suas fofocas, seu glamour e a construção do cinema mais popular do biografado. Ou poderia ter optado por narrar as aventuras amorosas e sexuais de Chaplin e suas eventuais complicações - o relacionamento com a perturbada Joan Barry (Nancy Travis), o casamento feliz com Paulette Godard (Diane Lane) e a felicidade ao lado de Oona O'Neil (Moira Kelly), por exemplo. Ao tentar reunir tanta informação em um filme de duração comercial - menos de 2 horas e meia - o roteiro impede o espectador de ter um contato mais profundo com qualquer personagem e situação. Fica-se, então, privado do ótimo trabalho de Kevin Kline como Douglas Fairbanks Jr. ou de Diane Lane como Paulette Goddard - sem falar que a simpatia de Chaplin em relação ao povo judeu (e sua subsequente fama de "comunista") tem muita origem em seu casamento com ela. Logicamente seria impossível dentro dos limites do tempo equilibrar tudo que precisa ser contado, mas um pouco de foco não faria mal nenhum e ainda ajudaria na contemplação dos destaques da produção, essa sim, digna de nota.
Não foi à toa que "Chaplin" foi indicado ao Oscar de direção de arte. É visível o capricho na reconstituição da época mostrada no filme, assim como o figurino e a maquiagem. É fascinante a maneira com que Attenborough revela ao público alguns segredos de como eram realizados os filmes nos anos 10 e 20, bem como apresenta de maneira simpática a origem das ideias de Chaplin para resolver - de forma barata e eficiente - seus problemas criativos. Mas nem mesmo esse cuidado todo e a bela e delicada trilha sonora de John Barry - também indicada ao Oscar - não impedem que seja percebido o óbvio: "Chaplin" deve tudo o que é à interpretação arrebatadora de Robert Downey Jr.
Indicado ao Oscar por seu trabalho, Downey entrega uma atuação quase mediúnica. Ele desaparece dentro da personagem, fazendo com que o público esqueça que ali está um ator na pele de uma personalidade real. Para a audiência, Downey e Chaplin são a mesma pessoa, ao menos durante a duração do filme. É uma pena que ele tenha que arrancar essa atuação de dentro de si sem um roteiro que lhe faça jus. É de se imaginar o quão sensacional ele teria sido se tivesse uma base melhor!!!
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
segunda-feira
PERFUME DE MULHER
PERFUME DE MULHER (Scent of a woman, 1992, Universal Pictures, 157min) Direção: Martin Brest. Roteiro: Bo Goldman, romance de Giovanni Arpino. Fotografia: Donald E. Thorin. Montagem: Harvey Rosenstock, William Steinkamp, Michael Tronick. Música: Thomas Newman. Figurino: Aude Bronson-Howard. Direção de arte/cenários: Angelo Graham/George DeTitta Jr. Casting: Ellen Lewis. Produção executiva: Ronald L. Schwary. Produção: Martin Brest. Elenco: Al Pacino, Chris O'Donnell, Gabrielle Anwar, Philip Seymour Hoffman, Todd Louiso, Bradley Whitford, James Rebhorn, Frances Conroy, Ron Eldard. Estreia: 23/12/92
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Martin Brest), Ator (Al Pacino), Roteiro Adaptado
Vencedor do Oscar de Melhor Ator (Al Pacino)
Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Ator/Drama (Al Pacino), Roteiro
Em tese, este "Perfume de mulher" é a refilmagem de um já clássico italiano de 1974 dirigido por Dino Risi e estrelado por Vittorio Gassman. Em tese. Na realidade, apenas a ideia central do filme de Risi é aproveitada nessa releitura do americano Martin Brest, que deu o tão esperado e aclamado Oscar de melhor ator a Al Pacino. E é Pacino, do alto de seu talento indiscutível, que faz com que um drama acadêmico e quase previsível caia no gosto da audiência, em mais uma atuação antológica em sua brilhante carreira
O jovem Chris O'Donnell - que ficou com um papel para o qual até mesmo Chris Rock foi testado - vive Charlie Simms, um jovem e dedicado estudante de uma escola preparatória das mais tradicionais dos EUA. Sem recursos financeiros, ele vê sua bolsa de estudos correr risco de ser cancelada quando testemunha, ao lado de um colega milionário (interpretado por um jovem Philip Seymour Hoffman) um grupo de alunos aprontando um trote contra o diretor da instituição. Pressionado a contar em juízo o que testemunhou - sob pena de ser expulso da escola - Charlie vai passar o feriado de Ação de Graças fazendo um trabalho extra (para juntar dinheiro e passar o Natal com a família). O trabalho, que aparentemente seria fácil, torna-se complicado, porém: contratado para tomar conta de Frank Slade (Al Pacino), coronel do exército aposentado por cegueira, Charlie se vê acompanhando o veterano a uma viagem inesperada a Nova York. Lá, hospedado em um hotel cinco estrelas, Charlie frequenta restaurantes chiques, dirige uma Ferrari, visita a família do irmão do militar e, deslumbrado, o vê dançar tango com uma bela mulher. Fascinado com a maneira de Slade de levar a vida, Charlie fica chocado quando descobre que ele pretende cometer suícídio no final do feriado.
"Perfume de mulher" é inegavelmente um bom filme. Qualquer fã de cinema é obrigado a tirar o chapéu para a performance única de Pacino, entregue de corpo e alma à sua personagem irascível mas ao mesmo tempo apaixonante. O problema maior é que, ao seguir passo a passo a cartilha de como escrever um roteiro, Bo Goldman (também autor do sublime "Um estranho no ninho") não surpreende o espectador em momento algum. Desde o início é bastante óbvio, por exemplo, que a relação entre Slade e o jovem Charlie passará do profissional para o quase paternal e que o clímax, em uma reunião na instituição educacional onde começa o filme, será a grande cena do protagonista, aquela que justifica a premiação da Academia. As engrenagens do roteiro são quase visíveis demais para serem ignoradas e isso, dependendo de cada espectador, é claro, incomoda em grau maior ou menor.
Se essa questão um tanto técnica for deixada de lado, no entanto, "Perfume de mulher" é um espetáculo. Dirigido com sobriedade e interpretado com paixão - até mesmo o normalmente apático Chris O'Donnell entrega uma atuação passional - a versão de Brest do romance de Giovanni Arpino é o típico filme que os membros da Academia adoram: um protagonista com uma deficiência, lições de moral, dramas não muito pesados e um final "feliz". Se não fosse o ano de "Os imperdoáveis", era bem possível que tivesse levado o Oscar principal para casa, tamanha a sua adequação às normas hollywoodianas. Apesar de ter um linguajar barato e ter entre seus últimos desejos uma noite de sexo com uma prostituta, o contato mais erótico de Slade em relação a uma mulher é o belíssimo tango que dança com uma desconhecida - Gabrielle Anwar, que não fez a carreira que prometia aqui. Aliás, a cena do tango - que levou 3 dias para ser filmada - é, sem dúvida, a mais marcante do filme, digna de figurar em qualquer antologia dos momentos mágicos do cinema.
Apesar dos pequenos defeitos - que incomodam somente aos mais críticos, diga-se de passagem, uma vez que o público médio não se importa nem um pouco com detalhes técnicos - "Perfume de mulher" é um drama dos melhores, para se assistir ao lado da família. E é um dos trabalhos mais fascinantes de um dos melhores atores que o cinema americano produziu em sua história.
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Martin Brest), Ator (Al Pacino), Roteiro Adaptado
Vencedor do Oscar de Melhor Ator (Al Pacino)
Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Ator/Drama (Al Pacino), Roteiro
Em tese, este "Perfume de mulher" é a refilmagem de um já clássico italiano de 1974 dirigido por Dino Risi e estrelado por Vittorio Gassman. Em tese. Na realidade, apenas a ideia central do filme de Risi é aproveitada nessa releitura do americano Martin Brest, que deu o tão esperado e aclamado Oscar de melhor ator a Al Pacino. E é Pacino, do alto de seu talento indiscutível, que faz com que um drama acadêmico e quase previsível caia no gosto da audiência, em mais uma atuação antológica em sua brilhante carreira
O jovem Chris O'Donnell - que ficou com um papel para o qual até mesmo Chris Rock foi testado - vive Charlie Simms, um jovem e dedicado estudante de uma escola preparatória das mais tradicionais dos EUA. Sem recursos financeiros, ele vê sua bolsa de estudos correr risco de ser cancelada quando testemunha, ao lado de um colega milionário (interpretado por um jovem Philip Seymour Hoffman) um grupo de alunos aprontando um trote contra o diretor da instituição. Pressionado a contar em juízo o que testemunhou - sob pena de ser expulso da escola - Charlie vai passar o feriado de Ação de Graças fazendo um trabalho extra (para juntar dinheiro e passar o Natal com a família). O trabalho, que aparentemente seria fácil, torna-se complicado, porém: contratado para tomar conta de Frank Slade (Al Pacino), coronel do exército aposentado por cegueira, Charlie se vê acompanhando o veterano a uma viagem inesperada a Nova York. Lá, hospedado em um hotel cinco estrelas, Charlie frequenta restaurantes chiques, dirige uma Ferrari, visita a família do irmão do militar e, deslumbrado, o vê dançar tango com uma bela mulher. Fascinado com a maneira de Slade de levar a vida, Charlie fica chocado quando descobre que ele pretende cometer suícídio no final do feriado.
"Perfume de mulher" é inegavelmente um bom filme. Qualquer fã de cinema é obrigado a tirar o chapéu para a performance única de Pacino, entregue de corpo e alma à sua personagem irascível mas ao mesmo tempo apaixonante. O problema maior é que, ao seguir passo a passo a cartilha de como escrever um roteiro, Bo Goldman (também autor do sublime "Um estranho no ninho") não surpreende o espectador em momento algum. Desde o início é bastante óbvio, por exemplo, que a relação entre Slade e o jovem Charlie passará do profissional para o quase paternal e que o clímax, em uma reunião na instituição educacional onde começa o filme, será a grande cena do protagonista, aquela que justifica a premiação da Academia. As engrenagens do roteiro são quase visíveis demais para serem ignoradas e isso, dependendo de cada espectador, é claro, incomoda em grau maior ou menor.
Se essa questão um tanto técnica for deixada de lado, no entanto, "Perfume de mulher" é um espetáculo. Dirigido com sobriedade e interpretado com paixão - até mesmo o normalmente apático Chris O'Donnell entrega uma atuação passional - a versão de Brest do romance de Giovanni Arpino é o típico filme que os membros da Academia adoram: um protagonista com uma deficiência, lições de moral, dramas não muito pesados e um final "feliz". Se não fosse o ano de "Os imperdoáveis", era bem possível que tivesse levado o Oscar principal para casa, tamanha a sua adequação às normas hollywoodianas. Apesar de ter um linguajar barato e ter entre seus últimos desejos uma noite de sexo com uma prostituta, o contato mais erótico de Slade em relação a uma mulher é o belíssimo tango que dança com uma desconhecida - Gabrielle Anwar, que não fez a carreira que prometia aqui. Aliás, a cena do tango - que levou 3 dias para ser filmada - é, sem dúvida, a mais marcante do filme, digna de figurar em qualquer antologia dos momentos mágicos do cinema.
Apesar dos pequenos defeitos - que incomodam somente aos mais críticos, diga-se de passagem, uma vez que o público médio não se importa nem um pouco com detalhes técnicos - "Perfume de mulher" é um drama dos melhores, para se assistir ao lado da família. E é um dos trabalhos mais fascinantes de um dos melhores atores que o cinema americano produziu em sua história.
domingo
QUESTÃO DE HONRA
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator Coadjuvante (Jack Nicholson), Roteiro Adaptado, Som
Não deixa de ser interessante e sintomático notar que, no mesmo ano em que Quentin Tarantino fazia sua estreia nas telas com o agressivo e inovador "Cães de aluguel", a Academia de Hollywood tenha indicado para seu Oscar de Melhor Filme uma produção tão quadradinha quanto "Questão de honra". Baseado em uma peça de teatro de Aaron Sorkin (também autor do roteiro), o filme de Rob Reiner é extremamente bem realizado, bem dirigido e feito com uma competência assustadora. Mas, é, ao mesmo tempo, tão clássico, tão correto e tão tecnicamente admirável - a ponto de acabar com um vintage "The end" - que parece de plástico. Apesar disso - ou talvez por isso - é um filme de tribunal empolgante e que, se não chega a ser uma obra-prima, é um dos trabalhos mais interessantes de Tom Cruise.
Ainda em sua tentativa de fugir do estereótipo de galã, Cruise interpreta aqui, o jovem advogado da marinha Daniel Kaefe, que recebe a incumbência de defender, nos tribunais, dois soldados acusados de matar um colega. Acostumado a resolver todos os seus casos com acordos, logo ele passa a ser pressionado por sua superior, a Tenente JoAnne Galloway (Demi Moore) a insistir em uma defesa mais aguerrida. Certos de que os dois réus cometeram o crime cumprindo ordens superiores - um tal "código vermelho" comum na Marinha americana - eles resolvem arriscar suas carreiras ao chamar para depor como testemunha o poderoso Coronel Nathan Jessep (Jack Nicholson).
É difícil encontrar um defeito técnico em "Questão de honra". A música grandiloquente de Marc Shaiman, a edição concisa de Robert Leighton e o roteiro de Aaron Sorkin não deixam espaço para críticas. O elenco é o melhor que se poderia reunir na época: Cruise e Demi Moore eram astros quentíssimos e Jack Nicholson dispensa comentários (sua atuação lhe rendeu uma indicação ao Oscar). A direção de Rob Reiner é correta, discreta e eficaz, e o clímax é poderoso e interpretado com garra. Por que então "Questão de honra" - apesar do sucesso de bilheteria e das indicações ao Oscar - não é lembrado hoje como o excelente filme que é? Justamente por seu medo de ousar.
Na sua tentativa de agradar a todas as fatias de público possíveis - opção esta que a gorda bilheteria mostrou acertada - Reiner construiu um filme meticulosamente fotografado, com um script escrito com a precisão de um relógio cuco e um visual caprichado, em que desde as primeiras sequências fica evidente o cuidado com a produção. Também é elogiável a escolha em não criar um desnecessário romance entre as personagens de Cruise e Demi Moore, o que enfraqueceria a história e mataria o ritmo cadenciado proposto por Sorkin. Mas, mais do que tudo, o que "Questão de honra" tem de melhor é seu elenco.
Se Cruise convence no papel de Daniel Kaffe e Demi Moore entrega uma atuação correta - sem ter que apelar para sua extrema beleza - são os coadjuvantes que definitivamente roubam a cena. Como um dos vilões Kiefer Sutherland exercita sua veia cruel, e Kevin Bacon se mostra um ator versátil e competente como o promotor que luta contra o protagonista no tribunal. E Jack Nicholson, em um dos desempenhos mais assustadores de sua carreira, engole todos à sua volta, com um trabalho excepcional. E o fato de Tom Cruise ter encarado sem medo o veterano ator em uma sequência empolgante, no capítulo final, reitera a afirmação de que, quando bem dirigido, o galã de "Top Gun" tem seu valor dramático.
Deixando de lado os preconceitos contra filmes "certinhos", é possível se encantar com todas as qualidades de "Questão de honra". Não muda a vida de ninguém, mas prende a atenção e é feito com uma inteligência acima da média.
sábado
TRAÍDOS PELO DESEJO
TRAÍDOS PELO DESEJO (The crying game, 1992, Miramax Films, 112min) Direção e roteiro: Neil Jordan. Fotografia: Ian Wilson. Montagem: Kant Pan. Música: Anne Dudley. Figurino: Sandy Powell. Direção de arte/cenários: Jim Clay/Martin Childs. Casting: Susie Figgis. Produção executiva: Nik Powell. Produção: Stephen Wooley. Elenco: Stephen Rea, Miranda Richardson, Forest Whitaker, Jaye Davidson, Jim Broadbent. Estreia: 26/9/92
6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Neil Jordan), Ator (Stephen Rea), Ator Coadjuvante (Jaye Davidson), Roteiro Original, Montagem
Vencedor do Oscar de Roteiro Original
No biênio 92/93, um dos filmes mais comentados entre os cinéfilos de bom gosto era uma produção irlandesa, realizada com uns trocados, sem astros nos papéis centrais e com uma polêmica reviravolta na sua segunda parte. Dirigido pelo talentoso mas não célebre Neil Jordan, "Traídos pelo desejo" pegou o mundo de surpresa ao provar que, antes de astros musculosos e efeitos visuais, uma história bem contada é o ingrediente mais importante de qualquer produção. Hollywood seria muito mais interessante se seu filme fosse regra e não exceção.
Indicado a 6 importantes Oscar - e vencedor merecido do prêmio de roteiro original - "Traídos pelo desejo" é um dos mais fascinantes estudos sobre lealdade e paixão que o cinema já proporcionou. Imprevisível, forte, adulto e interpretado com garra, o filme de Jordan conduz o público a um labirinto de emoções a que somente um roteiro consistente e um diretor com mão firme conseguem. Tudo começa quando Jody (Forest Whitaker), um soldado inglês, é sequestrado pelo IRA, em represália ao governo. Enquanto espera o desenlace da situação, ele inicia uma espécie de amizade com um dos seus carrascos, o sensível Fergus (Stephen Rea, indicado ao Oscar de melhor ator), e fala a ele sobre sua paixão pela namorada. Depois de um trágico fim para o sequestro, Fergus abandona a luta armada e tenta levar uma vida normal. Consumido pela culpa, ele procura a namorada do soldado, a cabeleireira Dil (Jaye Davidson) e aos poucos eles iniciam um relacionamento. Depois de uma chocante revelação - que muda totalmente a visão de Fergus e da plateia em relação à moça - o passado do rapaz volta a atormentá-lo: sua colega de exército, Judy (Miranda Richardson, absolutamente fabulosa) o procura e exige que ele faça parte de uma nova ação.
As idas e vindas do roteiro de "Traídos pelo desejo" são absolutamente surpreendentes e não parecem forçadas em momento algum, graças principalmente à inteligência de Neil Jordan em não apressar as situações. Tudo acontece no momento certo, da forma correta, e o elenco escalado por ele não poderia estar em melhores dias. Stephen Rea é um ator extraordinário, que consegue dividir suas cenas com generosidade ímpar: ele joga bem com Whitaker, com Richardson e principalmente com Davidson, em um papel cruel e ingrato, mas que lhe dá a oportunidade de uma carreira. E Miranda Richardson rouba qualquer cena em que aparece, equilibrando um ar psicopata com uma determinação ferrenha de cumprir sua missão - e de quebra reconquistar o amor de Fergus.
Mas e quanto ao grande segredo preparado por Jordan? Apesar de ser o divisor de águas do roteiro - e redirecionar a trama de maneira indelével - a reviravolta na história de amor entre Fergus e Dil é apenas um elemento a mais, ainda que importante, de uma história contada com sutileza e sobriedade. Causou controvérsia, e discussões são sempre saudáveis, mas relegar "Traídos pelo desejo" a um nicho específico de cinema é emburrecer a audiência. "Traídos pelo desejo" é um filme que melhora a cada revisão - e na segunda sessão já não há mais a tal surpresa, o que apenas comprova sua enorme qualidade. Humano, sério e fascinante.Como todo bom cinema!
6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Neil Jordan), Ator (Stephen Rea), Ator Coadjuvante (Jaye Davidson), Roteiro Original, Montagem
Vencedor do Oscar de Roteiro Original
No biênio 92/93, um dos filmes mais comentados entre os cinéfilos de bom gosto era uma produção irlandesa, realizada com uns trocados, sem astros nos papéis centrais e com uma polêmica reviravolta na sua segunda parte. Dirigido pelo talentoso mas não célebre Neil Jordan, "Traídos pelo desejo" pegou o mundo de surpresa ao provar que, antes de astros musculosos e efeitos visuais, uma história bem contada é o ingrediente mais importante de qualquer produção. Hollywood seria muito mais interessante se seu filme fosse regra e não exceção.
Indicado a 6 importantes Oscar - e vencedor merecido do prêmio de roteiro original - "Traídos pelo desejo" é um dos mais fascinantes estudos sobre lealdade e paixão que o cinema já proporcionou. Imprevisível, forte, adulto e interpretado com garra, o filme de Jordan conduz o público a um labirinto de emoções a que somente um roteiro consistente e um diretor com mão firme conseguem. Tudo começa quando Jody (Forest Whitaker), um soldado inglês, é sequestrado pelo IRA, em represália ao governo. Enquanto espera o desenlace da situação, ele inicia uma espécie de amizade com um dos seus carrascos, o sensível Fergus (Stephen Rea, indicado ao Oscar de melhor ator), e fala a ele sobre sua paixão pela namorada. Depois de um trágico fim para o sequestro, Fergus abandona a luta armada e tenta levar uma vida normal. Consumido pela culpa, ele procura a namorada do soldado, a cabeleireira Dil (Jaye Davidson) e aos poucos eles iniciam um relacionamento. Depois de uma chocante revelação - que muda totalmente a visão de Fergus e da plateia em relação à moça - o passado do rapaz volta a atormentá-lo: sua colega de exército, Judy (Miranda Richardson, absolutamente fabulosa) o procura e exige que ele faça parte de uma nova ação.
As idas e vindas do roteiro de "Traídos pelo desejo" são absolutamente surpreendentes e não parecem forçadas em momento algum, graças principalmente à inteligência de Neil Jordan em não apressar as situações. Tudo acontece no momento certo, da forma correta, e o elenco escalado por ele não poderia estar em melhores dias. Stephen Rea é um ator extraordinário, que consegue dividir suas cenas com generosidade ímpar: ele joga bem com Whitaker, com Richardson e principalmente com Davidson, em um papel cruel e ingrato, mas que lhe dá a oportunidade de uma carreira. E Miranda Richardson rouba qualquer cena em que aparece, equilibrando um ar psicopata com uma determinação ferrenha de cumprir sua missão - e de quebra reconquistar o amor de Fergus.
Mas e quanto ao grande segredo preparado por Jordan? Apesar de ser o divisor de águas do roteiro - e redirecionar a trama de maneira indelével - a reviravolta na história de amor entre Fergus e Dil é apenas um elemento a mais, ainda que importante, de uma história contada com sutileza e sobriedade. Causou controvérsia, e discussões são sempre saudáveis, mas relegar "Traídos pelo desejo" a um nicho específico de cinema é emburrecer a audiência. "Traídos pelo desejo" é um filme que melhora a cada revisão - e na segunda sessão já não há mais a tal surpresa, o que apenas comprova sua enorme qualidade. Humano, sério e fascinante.Como todo bom cinema!
sexta-feira
DRÁCULA DE BRAM STOKER
DRÁCULA DE BRAM STOKER (Bram Stoker's Dracula, 1992; American Zoetrope/Columbia Pictures, 128min) Direção: Francis Ford Coppola. Roteiro: James V. Hart, romance de Bram Stoker. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Anne Goursaud, Glen Scantlebury, Nicholas C. Smith. Música: Wojciceh Kilar. Figurino: Eiko Ishioka. Direção de arte/cenários: Thomas Sanders/Garrett Lewis. Casting: Victoria Thomas. Produção executiva: Michael Apted, Robert O'Connor. Produção: Fred Fuchs, Francis Ford Coppola, Charles Mulvehill. Elenco: Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins, Keanu Reeves, Tom Waits, Richard E. Grant, Cary Elwes, Bill Campbell, Sadie Frost, Monica Bellucci. Estreia: 13/11/92
4 indicações ao Oscar: Figurino, Direção de Arte/cenários, Maquiagem, Efeitos Sonoros
Vencedor de 3 Oscar: Figurino, Maquiagem, Efeitos Sonoros
Quem tem coragem de dizer que todos os filmes de vampiro são iguais - ou acha que a série "Crepúsculo" tem qualquer qualidade além de ser uma vitrine para a "beleza" de seus astros - provavelmente não assistiu a "Drácula de Bram Stoker", mais uma obra-prima de Francis Ford Coppola. Só mesmo um cineasta de seu porte, que encontrou humanidade nos mafiosos de "O poderoso chefão", que quase foi à falência com o esteticamente ousado "O fundo do coração" e deu uma nova visão à guerra do Vietnã em "Apocalypse now", poderia orquestrar, sem soar repetitivo, essa ambiciosa adaptação quase operística da história do mais famoso vampiro da literatura, escrita pelo irlandês Bram Stoker no século XIII.
O toque de mestre do diretor já dá as caras no prólogo, inédito no livro e que conta as origens do sanguessuga - inspirado em uma personalidade real. O conde Vlad Dracul (o espetacular inglês Gary Oldman) torna-se conhecido como sanguinário devido a sua luta para defender a Igreja católica durante as Cruzadas. Ao retornar para casa, ele descobre que sua amada Elisabeta (Winona Ryder, linda mas quase inexpressiva) havia cometido suicídio, ao acreditar-lhe morto. Revoltado com a Igreja, que se recusa a sepultar suicidas, ele se entrega às trevas. Essas cenas, faladas em romeno e filmadas com criatividade e elegância, dão o tom barroco e épico pretendido pelo cineasta. O que vem pela frente é a mais perfeita tradução do universo gótico e assustador da obra.
Séculos depois da sequência de abertura, o Conde vive isolado em seu castelo na Transilvânia e recebe a visita do agente imobiliário Jonathan Harker (Keanu Reeves, o único elo fraco do filme), que chega disposto a fechar negócio com o idoso e misterioso milionário, depois que seu colega anterior, Reinfield (o cantor Tom Waits em participação especial extremamente eficiente) saiu de cena devido a um grave desequilíbrio mental. As coisas parecem estar indo bem até que o Conde reconhece em uma imagem de Mina, a noiva de Harker, a reencarnação de sua amada. Trancando o jovem em seu castelo, ele embarca para a Inglaterra com a intenção de reconquistar sua felicidade. Em Londres, ele parte em busca de Mina, mesmo que para isso tenha que sacrificar a melhor amiga desta, a desinibida Lucy (Sadie Frost) e enfrentar o conhecido médico Abraham Van Helsing (Anthony Hopkins), estudioso de ocultismo e caçador de vampiros nas horas vagas.
A atmosfera lúgubre criada por Coppola e seu diretor de fotografia Michael Ballhaus encanta até o mais renitente dos espectadores. Ao utilizar-se de técnicas rudimentares de cinema para contar sua história - contrariando a nascente tendência de CGI - o cineasta parece querer convidar a plateia a entrar em um universo carregado de simbolismos onde a escuridão revela mais que a claridade, onde o vermelho do sangue grita a cada frame, onde cada transição de cena é meticulosamente cuidada. O visual carregado - justamente como se fosse uma ópera - é impecável: a direção de arte e o figurino (premiado com um justíssimo Oscar) não ficam nunca aquém do fantástico. Mais do que pretender assustar, o que Coppola quer é pegar o espectador pela mão e apresentá-lo a uma história de amor que não deixa o tempo, a religião ou a morte lhe diminuir. Ao contrário de outras versões cinematográficas, onde o protagonista era retratado ora como monstro ora como galã, aqui o Conde Drácula tem uma personalidade bem mais complexa: sim, ele é um monstro sanguinário e impiedoso, mas é também um homem traído pela sua fé e acima de tudo, um amante caloroso e dedicado que atravessa séculos em busca de sua amada.
Na pele do exímio Gary Oldman, Drácula é um herói trágico. Oldman não erra o tom de sua personagem em momento algum, equilibrando magistralmente o sarcasmo, o romance e a violência que lhe são características sem deixar que uma anule a outra. Sob a pesada maquiagem (também premiada com um Oscar), Oldman se transforma em ancião, em lobo e em vampiro sem nunca perder a essência, e aproveita cada cena para demonstrar seu grande talento. Destaque absoluto do elenco, ele precisa, no entanto, contracenar com um apático Keanu Reeves e uma Winona Ryder que, apesar de esforçada, não atinge o potencial dramático de sua personagem, ao contrário de uma desconhecida Sadie Frost que pinta e borda com sua fogosa Lucy, dona de algumas das mais belas cenas do filme. Anthony Hopkins, como Van Helsing, também encontra o tom exato de sua atuação, entre o trágico e o cômico, e até mesmo Tom Waits revela-se um ator eficaz, transmitindo a sensação de perigo que a chegada do Conde anuncia.
Belamente concebido - a trilha sonora forte de Wojciech Kilar ajuda a estabelecer também o clima quase surreal da visão de Coppola - e encenado como uma angustiante peça de teatro - e é genial a inserção do cinematógrafo na cena do primeiro encontro entre Drácula e Mina - "Drácula de Bram Stoker" é a visão definitiva de uma das mais duradouras histórias de amor e perda da literatura mundial. É também mais uma poderosa prova do talento visionário de Francis Ford Coppola, em seu, até agora, último trabalho digno de figurar no rol de suas obras-primas.
4 indicações ao Oscar: Figurino, Direção de Arte/cenários, Maquiagem, Efeitos Sonoros
Vencedor de 3 Oscar: Figurino, Maquiagem, Efeitos Sonoros
Quem tem coragem de dizer que todos os filmes de vampiro são iguais - ou acha que a série "Crepúsculo" tem qualquer qualidade além de ser uma vitrine para a "beleza" de seus astros - provavelmente não assistiu a "Drácula de Bram Stoker", mais uma obra-prima de Francis Ford Coppola. Só mesmo um cineasta de seu porte, que encontrou humanidade nos mafiosos de "O poderoso chefão", que quase foi à falência com o esteticamente ousado "O fundo do coração" e deu uma nova visão à guerra do Vietnã em "Apocalypse now", poderia orquestrar, sem soar repetitivo, essa ambiciosa adaptação quase operística da história do mais famoso vampiro da literatura, escrita pelo irlandês Bram Stoker no século XIII.
O toque de mestre do diretor já dá as caras no prólogo, inédito no livro e que conta as origens do sanguessuga - inspirado em uma personalidade real. O conde Vlad Dracul (o espetacular inglês Gary Oldman) torna-se conhecido como sanguinário devido a sua luta para defender a Igreja católica durante as Cruzadas. Ao retornar para casa, ele descobre que sua amada Elisabeta (Winona Ryder, linda mas quase inexpressiva) havia cometido suicídio, ao acreditar-lhe morto. Revoltado com a Igreja, que se recusa a sepultar suicidas, ele se entrega às trevas. Essas cenas, faladas em romeno e filmadas com criatividade e elegância, dão o tom barroco e épico pretendido pelo cineasta. O que vem pela frente é a mais perfeita tradução do universo gótico e assustador da obra.
Séculos depois da sequência de abertura, o Conde vive isolado em seu castelo na Transilvânia e recebe a visita do agente imobiliário Jonathan Harker (Keanu Reeves, o único elo fraco do filme), que chega disposto a fechar negócio com o idoso e misterioso milionário, depois que seu colega anterior, Reinfield (o cantor Tom Waits em participação especial extremamente eficiente) saiu de cena devido a um grave desequilíbrio mental. As coisas parecem estar indo bem até que o Conde reconhece em uma imagem de Mina, a noiva de Harker, a reencarnação de sua amada. Trancando o jovem em seu castelo, ele embarca para a Inglaterra com a intenção de reconquistar sua felicidade. Em Londres, ele parte em busca de Mina, mesmo que para isso tenha que sacrificar a melhor amiga desta, a desinibida Lucy (Sadie Frost) e enfrentar o conhecido médico Abraham Van Helsing (Anthony Hopkins), estudioso de ocultismo e caçador de vampiros nas horas vagas.
A atmosfera lúgubre criada por Coppola e seu diretor de fotografia Michael Ballhaus encanta até o mais renitente dos espectadores. Ao utilizar-se de técnicas rudimentares de cinema para contar sua história - contrariando a nascente tendência de CGI - o cineasta parece querer convidar a plateia a entrar em um universo carregado de simbolismos onde a escuridão revela mais que a claridade, onde o vermelho do sangue grita a cada frame, onde cada transição de cena é meticulosamente cuidada. O visual carregado - justamente como se fosse uma ópera - é impecável: a direção de arte e o figurino (premiado com um justíssimo Oscar) não ficam nunca aquém do fantástico. Mais do que pretender assustar, o que Coppola quer é pegar o espectador pela mão e apresentá-lo a uma história de amor que não deixa o tempo, a religião ou a morte lhe diminuir. Ao contrário de outras versões cinematográficas, onde o protagonista era retratado ora como monstro ora como galã, aqui o Conde Drácula tem uma personalidade bem mais complexa: sim, ele é um monstro sanguinário e impiedoso, mas é também um homem traído pela sua fé e acima de tudo, um amante caloroso e dedicado que atravessa séculos em busca de sua amada.
Na pele do exímio Gary Oldman, Drácula é um herói trágico. Oldman não erra o tom de sua personagem em momento algum, equilibrando magistralmente o sarcasmo, o romance e a violência que lhe são características sem deixar que uma anule a outra. Sob a pesada maquiagem (também premiada com um Oscar), Oldman se transforma em ancião, em lobo e em vampiro sem nunca perder a essência, e aproveita cada cena para demonstrar seu grande talento. Destaque absoluto do elenco, ele precisa, no entanto, contracenar com um apático Keanu Reeves e uma Winona Ryder que, apesar de esforçada, não atinge o potencial dramático de sua personagem, ao contrário de uma desconhecida Sadie Frost que pinta e borda com sua fogosa Lucy, dona de algumas das mais belas cenas do filme. Anthony Hopkins, como Van Helsing, também encontra o tom exato de sua atuação, entre o trágico e o cômico, e até mesmo Tom Waits revela-se um ator eficaz, transmitindo a sensação de perigo que a chegada do Conde anuncia.
Belamente concebido - a trilha sonora forte de Wojciech Kilar ajuda a estabelecer também o clima quase surreal da visão de Coppola - e encenado como uma angustiante peça de teatro - e é genial a inserção do cinematógrafo na cena do primeiro encontro entre Drácula e Mina - "Drácula de Bram Stoker" é a visão definitiva de uma das mais duradouras histórias de amor e perda da literatura mundial. É também mais uma poderosa prova do talento visionário de Francis Ford Coppola, em seu, até agora, último trabalho digno de figurar no rol de suas obras-primas.
quinta-feira
CÃES DE ALUGUEL
CÃES DE ALUGUEL (Reservoir dogs, 1992, Miramax Films, 99min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Andrzej Sekula. Montagem: Sally Menke. Figurino: Betsy Heimann. Direção de arte/cenários: David Wasco/Sandy Reynolds-Wasco. Casting: Ronnie Yeskel. Produção executiva: Richard N. Gladstein, Monte Hellman, Ronna B. Wallace. Produção: Lawrence Bender. Elenco: Harvey Keitel, Tim Roth, Michael Madsen, Lawrence Tierney, Chris Penn, Steve Buscemi, Quentin Tarantino, Edward Bunker. Estreia: 08/10/92
Poucas vezes um filme de estreia causou tanta balbúrdia quanto "Cães de aluguel", primeiro trabalho do ex-balconista de videolocadora Quentin Tarantino por trás das câmeras. Logo de cara o jovem (então com 32 anos) foi comparado a ninguém menos que Martin Scorsese, principalmente devido à sua temática e violência. E o pior (ou melhor, no caso) é saber que todos os elogios que recebeu foram amplamente merecidos. Realizado com pouco mais de um milhão de dólares, o filme de Tarantino em nenhum momento deixa transparecer seu orçamento irrisório. O motivo? Seu foco no texto, nos atores e na tensão constante.
Escrito em três semanas e meia e filmado em 35 dias, "Cães de aluguel" é talvez o mais influente filme independente americano de todos os tempos. Estiloso, cru, empolgante e realista ao extremo, é também um policial excitante e enxuto, que não deixa a plateia respirar nem por um minuto depois de seu hilário texto inicial - onde as personagens discutem teorias a respeito de canções de Madonna. Depois dos créditos de abertura, a ação começa e ganha um doce quem conseguir desgrudar os olhos da tela.
Os "cães de aluguel" do título são um grupo de bandidos reunidos por Joe Cabot (Lawrence Tierney) para o assalto a uma joalheria. Todos chamados por pseudônimos para que não se saiba nada a respeito um do outro, eles armam um plano aparentemente perfeito que dá muito errado. A chegada da polícia, um tiroteio e algumas vítimas fatais - inclusive entre os criminosos - levam os sobreviventes a um galpão abandonado, onde eles haviam combinado de encontrar-se. Lá, o veterano Mr. White (Harvey Keitel) tenta acalmar Mr. Orange (Tim Roth), mortalmente ferido no estômago e, ao lado do nervoso Mr. Pink (Steve Buscemi), tenta descobrir quem, no grupo, é o informante da polícia. A chegada do psicótico Mr. Blonde (Michael Madsen), com um policial de refém, deixa as coisas ainda mais tensas. É somente quando Cabot e seu filho, Nice Guy Eddie (Chris Penn) chegam que tudo se encaminha para um final extremamente violento.
Co-produzido por Harvey Keitel - que leu o roteiro e apaixonou-se à primeira vista - "Cães de aluguel" já demonstra o estilo que caracterizaria a obra de Quentin Tarantino nos anos subsequentes: os diálogos rápidos e espertos (recheados de cultura pop), a edição frenética (a cargo de Sally Menke, morta precocemente este ano), a trilha sonora composta por pérolas trash e principalmente a escolha acertadíssima do elenco. O próprio cineasta atua no filme, como Mr. Brown, mas ambicionava o papel de Mr. Pink, interpretado com propriedade por Steve Buscemi - depois que George Clooney (ainda um ninguém na indústria) foi recusado. É admirável perceber como os atores escolhidos pelo diretor casaram perfeitamente com seus papéis. Tim Roth e Harvey Keitel tem uma química invejável, Chris Penn tem o melhor trabalho da carreira e Michael Madsen merece louvores à parte pela composição inesquecível do psicótico Mr. Blonde, dono da cena mais controversa de toda a obra.
Não houve quem tenha assistido a "Cães de aluguel" sem comentar - ou ao menos se chocar - com a famosa sequência em que Mr. Blonde tortura o policial feito de refém - a ponto de arrancar-lhe uma orelha. Assustadora e quase explícita, ela foi motivo de conversas em mesas de bares, discussões sobre a violência no cinema e proporcionou a Michael Madsen o momento mais marcante de sua carreira. A imagem de sua personagem tomando calmamente um milk-shake antes de partir para a ignorância fria e calculada é de arrepiar qualquer cinéfilo, que tem, inclusive, em "Cães de aluguel" algumas imagens marcadas na retina para sempre.
O grupo de criminosos vestidos de paletó e gravata no início do filme - que virou inclusive parte do logotipo da produtora de Tarantino, A Band Apart - Harvey Keitel dando pontapés em um Steve Buscemi caído no chão e a poderosa imagem de quatro dos "amigos" apontando armas uns para os outros no clímax são cenas de grande impacto visual e uma mostra do talento inegável do diretor já em seu primeiro trabalho - um talento que, apesar de alguns detratores dizerem o contrário, foi apenas se refinando com o tempo e a maturidade. E o roteiro - trabalhado fora de ordem cronológica, outra característica de Tarantino - é conciso, inteligente e verossímil sem, porém, apelar para a previsibilidade.
"Cães de aluguel" é uma das melhores estreias da história do cinema, quer goste-se ou não. Rendeu imitações, homenagens e citações. Mas mantém seu frescor e força apesar da distância do tempo.
Poucas vezes um filme de estreia causou tanta balbúrdia quanto "Cães de aluguel", primeiro trabalho do ex-balconista de videolocadora Quentin Tarantino por trás das câmeras. Logo de cara o jovem (então com 32 anos) foi comparado a ninguém menos que Martin Scorsese, principalmente devido à sua temática e violência. E o pior (ou melhor, no caso) é saber que todos os elogios que recebeu foram amplamente merecidos. Realizado com pouco mais de um milhão de dólares, o filme de Tarantino em nenhum momento deixa transparecer seu orçamento irrisório. O motivo? Seu foco no texto, nos atores e na tensão constante.
Escrito em três semanas e meia e filmado em 35 dias, "Cães de aluguel" é talvez o mais influente filme independente americano de todos os tempos. Estiloso, cru, empolgante e realista ao extremo, é também um policial excitante e enxuto, que não deixa a plateia respirar nem por um minuto depois de seu hilário texto inicial - onde as personagens discutem teorias a respeito de canções de Madonna. Depois dos créditos de abertura, a ação começa e ganha um doce quem conseguir desgrudar os olhos da tela.
Os "cães de aluguel" do título são um grupo de bandidos reunidos por Joe Cabot (Lawrence Tierney) para o assalto a uma joalheria. Todos chamados por pseudônimos para que não se saiba nada a respeito um do outro, eles armam um plano aparentemente perfeito que dá muito errado. A chegada da polícia, um tiroteio e algumas vítimas fatais - inclusive entre os criminosos - levam os sobreviventes a um galpão abandonado, onde eles haviam combinado de encontrar-se. Lá, o veterano Mr. White (Harvey Keitel) tenta acalmar Mr. Orange (Tim Roth), mortalmente ferido no estômago e, ao lado do nervoso Mr. Pink (Steve Buscemi), tenta descobrir quem, no grupo, é o informante da polícia. A chegada do psicótico Mr. Blonde (Michael Madsen), com um policial de refém, deixa as coisas ainda mais tensas. É somente quando Cabot e seu filho, Nice Guy Eddie (Chris Penn) chegam que tudo se encaminha para um final extremamente violento.
Co-produzido por Harvey Keitel - que leu o roteiro e apaixonou-se à primeira vista - "Cães de aluguel" já demonstra o estilo que caracterizaria a obra de Quentin Tarantino nos anos subsequentes: os diálogos rápidos e espertos (recheados de cultura pop), a edição frenética (a cargo de Sally Menke, morta precocemente este ano), a trilha sonora composta por pérolas trash e principalmente a escolha acertadíssima do elenco. O próprio cineasta atua no filme, como Mr. Brown, mas ambicionava o papel de Mr. Pink, interpretado com propriedade por Steve Buscemi - depois que George Clooney (ainda um ninguém na indústria) foi recusado. É admirável perceber como os atores escolhidos pelo diretor casaram perfeitamente com seus papéis. Tim Roth e Harvey Keitel tem uma química invejável, Chris Penn tem o melhor trabalho da carreira e Michael Madsen merece louvores à parte pela composição inesquecível do psicótico Mr. Blonde, dono da cena mais controversa de toda a obra.
Não houve quem tenha assistido a "Cães de aluguel" sem comentar - ou ao menos se chocar - com a famosa sequência em que Mr. Blonde tortura o policial feito de refém - a ponto de arrancar-lhe uma orelha. Assustadora e quase explícita, ela foi motivo de conversas em mesas de bares, discussões sobre a violência no cinema e proporcionou a Michael Madsen o momento mais marcante de sua carreira. A imagem de sua personagem tomando calmamente um milk-shake antes de partir para a ignorância fria e calculada é de arrepiar qualquer cinéfilo, que tem, inclusive, em "Cães de aluguel" algumas imagens marcadas na retina para sempre.
O grupo de criminosos vestidos de paletó e gravata no início do filme - que virou inclusive parte do logotipo da produtora de Tarantino, A Band Apart - Harvey Keitel dando pontapés em um Steve Buscemi caído no chão e a poderosa imagem de quatro dos "amigos" apontando armas uns para os outros no clímax são cenas de grande impacto visual e uma mostra do talento inegável do diretor já em seu primeiro trabalho - um talento que, apesar de alguns detratores dizerem o contrário, foi apenas se refinando com o tempo e a maturidade. E o roteiro - trabalhado fora de ordem cronológica, outra característica de Tarantino - é conciso, inteligente e verossímil sem, porém, apelar para a previsibilidade.
"Cães de aluguel" é uma das melhores estreias da história do cinema, quer goste-se ou não. Rendeu imitações, homenagens e citações. Mas mantém seu frescor e força apesar da distância do tempo.
quarta-feira
HERÓI POR ACIDENTE
HERÓI POR ACIDENTE (Hero, 1992, Columbia Pictures, 117min) Direção: Stephen Frears. Roteiro: David Webb Peoples, história de Laura Ziskin, Alvin Sargent, David Webb Peoples. Fotografia: Oliver Stapleton. Montagem: Mick Audsley. Música: George Fenton. Figurino: Richard Hornung. Direção de arte/cenários: Dennis Gassner/Nancy Haigh. Casting: Howard Feuer, Juliet Taylor. Produção executiva: Joseph M. Caracciolo. Produção: Laura Ziskin. Elenco: Dustin Hoffman, Geena Davis, Andy Garcia, Joan Cusack, Chevy Chase, Stephen Tobolowski, Tom Arnold. Estreia: 02/10/92
"Quando a lenda é mais interessante do que a história, publica-se a lenda." A célebre frase, dita no filme "O homem que matou o facínora", parece ser o lema que orienta o roteiro de "Herói por acidente", ácida e cínica comédia dirigida pelo inglês Stephen Frears que falhou vergonhosamente em suas intenções de arrebatar prêmios nas cerimônias de 1992. Uma espécie de sátira ao estilo Frank Capra - repleto de ironias, mas sem as lições de moral dos filmes deste - o filme escrito por David Webb Peoples (autor de "Os imperdoáveis") não encontrou nem mesmo sua audiência, estacionando em uma bilheteria de menos de 20 milhões de dólares, a despeito de seu cartaz estampar os nomes de Dustin Hoffman e Geena Davis - ela então no auge da carreira depois do sucesso de "Thelma & Louise".
Davis interpreta Gale Gayley, uma repórter dedicada e ambiciosa, capaz de entrevistar suicidas momentos antes de seus atos finais. Durante um vôo de volta de Nova York - onde havia ido para receber um prêmio - seu avião sofre um acidente e os passageiros são resgatados por um homem misterioso, com o rosto sujo de lama e sem um pé de sapato. Não demora para que esse herói receba, na mídia, o apelido de "O anjo do vôo 104" e passe a ser procurado para entrevistas e glórias. Quando uma recompensa de 1 milhão de dólares é oferecida, porém, o novo astro surge: o mendigo John Bubber (Andy Garcia) assume o posto e torna-se ídolo das multidões, chegando inclusive a ensaiar um romance com a repórter. O problema maior é que Bubber não é o verdadeiro salvador: quem realmente merece as honras é Bernie LaPlante (Dustin Hoffman), um homem que vive de expedientes, sem emprego fixo e que foi parar na cadeia logo depois do acidente, acusado de revender objetos roubados. LaPlante tenta provar que ele é o verdadeiro herói, mas tem que lutar contra o fato de que Bubber é bonito, simpático e bem mais apropriado às intenções da mídia.
Um feroz ataque à futilidade da mídia, "Herói por acidente" esbarra, em certos momentos, em um cinismo exagerado. Ainda que a intenção do roteiro seja justamente ampliar os erros cometidos em nome do sucesso - afinal de contas é isso que faz uma comédia - às vezes a coisa parece sair do controle. Excelente diretor, Frears escorrega em carregar nas tintas das personagens, a ponto de nem mesmo o público saber discernir entre o que é verdadeiro ou não em suas personalidades. O romance entre Gale e John Bubber, por exemplo, não encanta justamente por esse motivo. Por melhores atores que sejam, Geena Davis e Andy Garcia saem-se muito melhor nas sequências menos dramáticas do filme - Garcia está sublime em seus momentos de demagogia explícita (ainda que o roteiro nem sempre se decida se ele é honesto ou não em suas intenções).
Mas Dustin Hoffman, mais uma vez, brilha intensamente. Apesar de manter alguns tiques de seu "Rain Man", ele dá a seu Bernie LaPlante nuances que o fazem driblar as armadilhas do roteiro um tanto maniqueísta. O protagonista criado por David Peoples não tem nada que o faça ser mais do que um ser humano um tanto desagradável, um pai relapso (mas amoroso) e um ex-marido decepcionante. Ainda assim, o carisma de Hoffman contorna as falhas de caráter de sua personagem, levando o público a torcer por sua vitória. A longa sequência em que ele conversa com um suicida John Bubber é um primor de inteligência, e seu diálogo esperto e realista compensa plenamente os percalços do roteiro até então.
Dizer que "Herói por acidente" é ruim é um pecado, bem como incensá-lo como uma obra-prima. É um filme de rara inteligência e sarcasmo, mas que resvala em alguns exageros. Não mereceu ser ignorado e deve ser redescoberto, ao menos para que a crítica furiosa que faz ao quarto poder não caia no vazio.
"Quando a lenda é mais interessante do que a história, publica-se a lenda." A célebre frase, dita no filme "O homem que matou o facínora", parece ser o lema que orienta o roteiro de "Herói por acidente", ácida e cínica comédia dirigida pelo inglês Stephen Frears que falhou vergonhosamente em suas intenções de arrebatar prêmios nas cerimônias de 1992. Uma espécie de sátira ao estilo Frank Capra - repleto de ironias, mas sem as lições de moral dos filmes deste - o filme escrito por David Webb Peoples (autor de "Os imperdoáveis") não encontrou nem mesmo sua audiência, estacionando em uma bilheteria de menos de 20 milhões de dólares, a despeito de seu cartaz estampar os nomes de Dustin Hoffman e Geena Davis - ela então no auge da carreira depois do sucesso de "Thelma & Louise".
Davis interpreta Gale Gayley, uma repórter dedicada e ambiciosa, capaz de entrevistar suicidas momentos antes de seus atos finais. Durante um vôo de volta de Nova York - onde havia ido para receber um prêmio - seu avião sofre um acidente e os passageiros são resgatados por um homem misterioso, com o rosto sujo de lama e sem um pé de sapato. Não demora para que esse herói receba, na mídia, o apelido de "O anjo do vôo 104" e passe a ser procurado para entrevistas e glórias. Quando uma recompensa de 1 milhão de dólares é oferecida, porém, o novo astro surge: o mendigo John Bubber (Andy Garcia) assume o posto e torna-se ídolo das multidões, chegando inclusive a ensaiar um romance com a repórter. O problema maior é que Bubber não é o verdadeiro salvador: quem realmente merece as honras é Bernie LaPlante (Dustin Hoffman), um homem que vive de expedientes, sem emprego fixo e que foi parar na cadeia logo depois do acidente, acusado de revender objetos roubados. LaPlante tenta provar que ele é o verdadeiro herói, mas tem que lutar contra o fato de que Bubber é bonito, simpático e bem mais apropriado às intenções da mídia.
Um feroz ataque à futilidade da mídia, "Herói por acidente" esbarra, em certos momentos, em um cinismo exagerado. Ainda que a intenção do roteiro seja justamente ampliar os erros cometidos em nome do sucesso - afinal de contas é isso que faz uma comédia - às vezes a coisa parece sair do controle. Excelente diretor, Frears escorrega em carregar nas tintas das personagens, a ponto de nem mesmo o público saber discernir entre o que é verdadeiro ou não em suas personalidades. O romance entre Gale e John Bubber, por exemplo, não encanta justamente por esse motivo. Por melhores atores que sejam, Geena Davis e Andy Garcia saem-se muito melhor nas sequências menos dramáticas do filme - Garcia está sublime em seus momentos de demagogia explícita (ainda que o roteiro nem sempre se decida se ele é honesto ou não em suas intenções).
Mas Dustin Hoffman, mais uma vez, brilha intensamente. Apesar de manter alguns tiques de seu "Rain Man", ele dá a seu Bernie LaPlante nuances que o fazem driblar as armadilhas do roteiro um tanto maniqueísta. O protagonista criado por David Peoples não tem nada que o faça ser mais do que um ser humano um tanto desagradável, um pai relapso (mas amoroso) e um ex-marido decepcionante. Ainda assim, o carisma de Hoffman contorna as falhas de caráter de sua personagem, levando o público a torcer por sua vitória. A longa sequência em que ele conversa com um suicida John Bubber é um primor de inteligência, e seu diálogo esperto e realista compensa plenamente os percalços do roteiro até então.
Dizer que "Herói por acidente" é ruim é um pecado, bem como incensá-lo como uma obra-prima. É um filme de rara inteligência e sarcasmo, mas que resvala em alguns exageros. Não mereceu ser ignorado e deve ser redescoberto, ao menos para que a crítica furiosa que faz ao quarto poder não caia no vazio.
terça-feira
VIDA DE SOLTEIRO
VIDA DE SOLTEIRO (Singles, 1992, Warner Bros, 99min) Direção e roteiro: Cameron Crowe. Fotografia: Tak Fujimoto, Ueli Steiger. Montagem: Richard Chew. Música: Paul Westerberg. Figurino: Jane Ruhm. Direção de arte/cenários: Stephen J. Lineweaver/Clay A. Griffith. Casting: Owens Hill. Produção executiva: Art Linson. Produção: Cameron Crowe, Richard Hashimoto. Elenco: Matt Dillon, Bridget Fonda, Campbell Scott, Kyra Sedgwick, Sheila Kelley, Bill Pullman, James LeGros, Eric Stoltz, Jeremy Piven, Tom Skerrit, Paul Giamatti. Estreia: 18/9/92
A principal informação que pessoas normais tem a respeito de Seattle é que é a cidade que foi o berço do movimento "grunge", que, no início dos anos 90, legou ao mundo bandas como Pearl Jam e Nirvana (da cidade vizinha Aberdeen). E é justamente nessa Seattle musical e jovem que se passa uma das comédias românticas mais bacanas da década, que, se não tornou-se o êxito comercial esperado, ao menos amealhou fãs fiéis e ardorosos. "Vida de solteiro", escrito e dirigido pelo ex-repórter da revista Rolling Stone, Cameron Crowe, é uma delícia de se assistir e ouvir, mesmo depois de várias revisões.
O filme é, basicamente, uma colagem de pequenas anedotas romântico/sentimentais de um grupo de jovens de vinte e muitos anos que moram no mesmo prédio no subúrbio de Seattle. A garçonete Janet (Bridget Fonda, com ótimo timing cômico) é apaixonada pelo namorado, o músico Cliff (Matt Dillon, de cabelo comprido e visual desgrenhado), líder de uma banda de rock, Citizen Dick. O romance dos dois, porém, é atrapalhado pela absoluta falta de romantismo do rapaz, que prioriza a "carreira" em detrimento à sua relação com a namorada. O ex-namorado de Janet, o engenheiro de trânsito Steve (Campbell Scott) tenta vender o projeto de um supertrem à prefeitura da cidade, enquanto inicia um hesitante romance com a ambientalista Linda (Kyra Sedgwick assumindo com propriedade o papel que foi oferecido a Jodie Foster, Jennifer Jason Leigh e Mary Stuart Masterson), insegura em relação a confiar em homens, depois que foi enganada pelo último amante. E Debbie (Sheila Kelley), cansada da solidão, faz um vídeo procurando um novo amor.
Ao acompanhar a trajetória dessa meia dúzia de personagens simpáticos, humanos e absolutamente verdadeiros, Crowe entrega à plateia um dos mais inteligentes retratos de uma geração normalmente considerada apática. Em sua história, o diretor/roteirista não se contenta apenas em fazer rir ou emocionar com as mancadas sentimentais de seus heróis: eles também buscam o sucesso profissional, também sonham em viver longe de jogos amorosos, também tem dúvidas e inseguranças. Ninguém, em "Vida de solteiro" é totalmente seguro de si: Janet pensa em aumentar os seios para reconquistar o namorado, Cliff é um roqueiro bem medíocre, Steve é dedicado à profissão mas não atinge o sucesso esperado, Linda sofre por não ter certeza de seus sentimentos e Debbie é uma maluquete que não se importa em ceder o pretendente à colega de apartamento em troca de algumas lavadas de louça. São todas personagens escritas com carinho e bom-humor, quase como uma descrição que alguém faz dos melhores amigos.
E está tudo lá, em "Vida de solteiro": as inseguranças ("será que eu devo ligar?"), os conselhos errados ("mulher gosta de mistério..."), as cantadas equivocadas ("não fazer tipo é seu tipo") e as declarações de amor inesperadas ("não me faça ter que lembrar desse cachorro-quente pra sempre..."). Está lá a trilha sonora vibrante e a participação especial de músicos e amigos do diretor (Eddie Vedder e a banda Pearl Jam são os integrantes da Citizen Dick, e Tim Burton faz uma ponta como um cineasta amador de vanguarda). Está lá o elenco de jovens atores em seus melhores dias e está lá, principalmente, a simpatia e o alto-astral que fazem de uma comédia romântica um dos gêneros mais queridos pelo público. Mas, acima de tudo, "Vida de solteiro" é uma celebração ao amor, à amizade, à juventude e, por que não?, à Seattle.
Um dos melhores filmes de Cameron Crowe - que anos depois lançaria o magnífico "Quase famosos" - a história de Janet, Cliff, Debbie, Steve e Linda é para ver e rever sempre. De preferência com um enorme sorriso e o coração aberto.
A principal informação que pessoas normais tem a respeito de Seattle é que é a cidade que foi o berço do movimento "grunge", que, no início dos anos 90, legou ao mundo bandas como Pearl Jam e Nirvana (da cidade vizinha Aberdeen). E é justamente nessa Seattle musical e jovem que se passa uma das comédias românticas mais bacanas da década, que, se não tornou-se o êxito comercial esperado, ao menos amealhou fãs fiéis e ardorosos. "Vida de solteiro", escrito e dirigido pelo ex-repórter da revista Rolling Stone, Cameron Crowe, é uma delícia de se assistir e ouvir, mesmo depois de várias revisões.
O filme é, basicamente, uma colagem de pequenas anedotas romântico/sentimentais de um grupo de jovens de vinte e muitos anos que moram no mesmo prédio no subúrbio de Seattle. A garçonete Janet (Bridget Fonda, com ótimo timing cômico) é apaixonada pelo namorado, o músico Cliff (Matt Dillon, de cabelo comprido e visual desgrenhado), líder de uma banda de rock, Citizen Dick. O romance dos dois, porém, é atrapalhado pela absoluta falta de romantismo do rapaz, que prioriza a "carreira" em detrimento à sua relação com a namorada. O ex-namorado de Janet, o engenheiro de trânsito Steve (Campbell Scott) tenta vender o projeto de um supertrem à prefeitura da cidade, enquanto inicia um hesitante romance com a ambientalista Linda (Kyra Sedgwick assumindo com propriedade o papel que foi oferecido a Jodie Foster, Jennifer Jason Leigh e Mary Stuart Masterson), insegura em relação a confiar em homens, depois que foi enganada pelo último amante. E Debbie (Sheila Kelley), cansada da solidão, faz um vídeo procurando um novo amor.
Ao acompanhar a trajetória dessa meia dúzia de personagens simpáticos, humanos e absolutamente verdadeiros, Crowe entrega à plateia um dos mais inteligentes retratos de uma geração normalmente considerada apática. Em sua história, o diretor/roteirista não se contenta apenas em fazer rir ou emocionar com as mancadas sentimentais de seus heróis: eles também buscam o sucesso profissional, também sonham em viver longe de jogos amorosos, também tem dúvidas e inseguranças. Ninguém, em "Vida de solteiro" é totalmente seguro de si: Janet pensa em aumentar os seios para reconquistar o namorado, Cliff é um roqueiro bem medíocre, Steve é dedicado à profissão mas não atinge o sucesso esperado, Linda sofre por não ter certeza de seus sentimentos e Debbie é uma maluquete que não se importa em ceder o pretendente à colega de apartamento em troca de algumas lavadas de louça. São todas personagens escritas com carinho e bom-humor, quase como uma descrição que alguém faz dos melhores amigos.
E está tudo lá, em "Vida de solteiro": as inseguranças ("será que eu devo ligar?"), os conselhos errados ("mulher gosta de mistério..."), as cantadas equivocadas ("não fazer tipo é seu tipo") e as declarações de amor inesperadas ("não me faça ter que lembrar desse cachorro-quente pra sempre..."). Está lá a trilha sonora vibrante e a participação especial de músicos e amigos do diretor (Eddie Vedder e a banda Pearl Jam são os integrantes da Citizen Dick, e Tim Burton faz uma ponta como um cineasta amador de vanguarda). Está lá o elenco de jovens atores em seus melhores dias e está lá, principalmente, a simpatia e o alto-astral que fazem de uma comédia romântica um dos gêneros mais queridos pelo público. Mas, acima de tudo, "Vida de solteiro" é uma celebração ao amor, à amizade, à juventude e, por que não?, à Seattle.
Um dos melhores filmes de Cameron Crowe - que anos depois lançaria o magnífico "Quase famosos" - a história de Janet, Cliff, Debbie, Steve e Linda é para ver e rever sempre. De preferência com um enorme sorriso e o coração aberto.
segunda-feira
MULHER SOLTEIRA PROCURA
MULHER SOLTEIRA PROCURA... (Single white female, 1992, Columbia Pictures, 107min) Direção: Barbet Schroeder. Roteiro: Don Roos, romance "SWF Seeks Same", de John Lutz. Fotografia: Luciano Tovoli. Montagem: Lee Percy. Música: Howard Shore. Figurino: Milena Canonero. Direção de arte/cenários: Milena Canonero/Anne H. Ahrens. Casting: Howard Feuer. Produção executiva: Jack Baran. Produção: Barbet Schroeder. Elenco: Bridget Fonda, Jennifer Jason Leigh, Steven Weber, Peter Friedman, Stephen Tobolowski. Estreia: 14/8/92
Houve um tempo em que o cineasta Barbet Schroder gozava de certo prestígio junto à crítica especializada. "Barfly", com Faye Dunaway e Mickey Rourke pode não ter sido um estrondoso sucesso de bilheteria, mas tinha background - era uma adaptação do cultuado escritor Charles Bukowski. E "O reverso da fortuna" lhe deu uma indicação ao Oscar e uma estatueta dourada ao ator Jeremy Irons. Talvez por isso a gritaria contra "Mulher solteira procura...", que de certa forma foi seu primeiro sucesso financeiro. Baseado em um romance fast-food de John Lutz, o filme é um suspense estiloso, com uma trama interessante e boas atrizes em seu elenco, mas não consegue ser mais do que um exemplar apenas correto do gênero a que pertence.
Nova York, charmosa como sempre, é o cenário da história de duplicidade, identidade dividida e carência extrema contada por Schroder. A jovem e bem-sucedida Allison Jones (Bridget Fonda na fase áurea de uma promissora carreira que foi morrendo aos poucos e que merece uma ressurreição) vive em um amplo loft do Upper West Side. Bela e inteligente, ela sofre um revés emocional quando se separa do namorado, Sam Rawston (Steven Weber), por quem é extremamente apaixonada. Sentindo-se solitária, ela publica um anúncio nos jornais, procurando alguém para dividir o apartamento e as despesas. Dentre inúmeras candidatas, ela escolhe a tímida e prestativa Hedra Carlson (Jennifer Jason Leigh, excelente), que logo torna-se a sua amiga mais íntima - e a única. Quando Allison e Sam fazem as pazes, porém, as coisas começam a mudar: sentindo-se excluída, Hedra passa a adotar um comportamento estranho, vestindo-se como Allison, usando suas roupas e até mesmo cortando o cabelo como o dela. Apavorada, Allison não demora a perceber que há algo muito errado com sua colega de apartamento.
Certamente as primeiras partes de "Mulher solteira procura..." são bem superiores a seu terço final, onde mais uma vez a criatividade dá lugar aos clichês. Todo o clima sufocante impresso pelo cineasta em seus minutos iniciais - com a fotografia caprichada do italiano Luciano Tovoli e a direção de arte impressionante de Milena Canonero colaborando imensamente para isso - conduz o espectador a uma história tensa e psicologicamente interessante. Quando o roteiro apela, no entanto, para a violência escancarada, tudo que foi construído anteriormente com cuidado e delicadeza cai na vala comum, o que talvez tenha sido a principal razão das críticas furiosas contra o filme.
O problema maior de "Mulher solteira procura..." é não dar a devida atenção à psicologia de suas personagens. A doença de Hedra - que perdeu a irmã gêmea na infância - é fascinante por si só, mas é praticamente ignorada pelo roteiro. Quando Allison chega às terríveis conclusões a respeito de sua amiga, a trama não dá espaço para embates melhores do que mortes violentas, agressões físicas e tudo de mais banal que os filmes de suspense oferecem às plateias. É uma pena que as protagonistas não possam dar às atrizes material dramático suficientemente forte para que elas demonstrem todo seu potencial. Bridget Fonda e Jennifer Jason Leigh são atrizes muito boas, e fazem o possível para dar veracidade a suas atuações. Fonda vive uma mulher talentosa, dona do próprio nariz e bem-sucedida, mas que é emocionalmente frágil e delicada. Jason Leigh, ao contrário, interpreta uma mulher tímida mas que esconde dentro de si uma monstruosidade causada por um trauma irreparável. Com um roteiro menos esquemático e mais denso, ambas teriam aqui a grande oportunidade de suas carreiras.
"Mulher solteira procura..." não é um filme ruim. É charmoso, visualmente atraente - a profusão de espelhos pelo cenário diz muito sobre as ideias a respeito da ideia central do filme - e apresenta duas atrizes promissoras em trabalhos caprichados. Poderia ser melhor, mas funciona muito bem e cumpre o que promete: bons sustos e uma vilã ideal para a geração MTV.
domingo
OS IMPERDOÁVEIS
OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven, 1992, Warner Bros, 131min) Direção: Clint Eastwood. Roteiro: David Webb Peoples. Fotografia: Jack N. Green. Montagem: Joel Cox. Música: Lennie Niehaus. Direção de arte/cenários: Henry Bumstead/Janice Blackue-Goodine. Casting: Phyllis Huffman. Produção executiva: David Valdes. Produção: Clint Eastwood. Elenco: Clint Eastwood, Gene Hackman, Morgan Freeman, Richard Harris, Jaimz Woolvett, Saul Rubinek, Frances Fisher. Estreia: 03/8/92
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Clint Eastwood), Ator (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários, Som
Vencedor de 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman), Montagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Diretor (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman)
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Clint Eastwood), Ator (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários, Som
Vencedor de 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman), Montagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Diretor (Clint Eastwood), Ator Coadjuvante (Gene Hackman)
Tudo bem que “Dança com lobos” pode ser considerado o filme que de certa forma ressuscitou o gênero faroeste dentro da indústria hollywoodiana, com seu sucesso de bilheteria e seus inacreditáveis 7 Oscar. Mas, justiça seja feita, é com “Os imperdoáveis”, o sensacional trabalho de Clint Eastwood, que o gênero atingiu uma maturidade com que Kevin Costner e suas tediosas e cenas contemplativas podem apenas sonhar. Espécie de réquiem a um gênero antes caro à indústria, "Os imperdoáveis" é melancólico e profundo como poucos ousaram ser. E por isso mesmo, ultrapassa a barreira que o relegaria apenas a fãs do western, atingindo um público mais amplo: os cinéfilos de bom gosto.
Tudo já começa extraordinariamente bem, com um texto explicativo apresentando, em 1880, o anti-herói do filme, William Munny (o próprio Eastwood em seu melhor momento como ator), um conhecido matador - "já matei mulheres e crianças. Uma vez ou outra, eu já matei tudo que anda e se arrasta nesse mundo..." - que abandonou a vida errática e criminosa para casar-se e formar família. Envelhecido, aposentado e viúvo, ele vê a chance de pagar suas dívidas e dar uma vida melhor para os filhos pequenos quando é procurado por Schofield Kid (Jaimz Woolvett), um jovem que lhe propõe sociedade em um trabalho ideal: matar dois homens que retalharam o rosto de uma prostituta na pequena cidade de Big Whisky. Munny reluta em aceitar o trabalho - o pagamento generoso será feito pelas próprias meretrizes da cidade - e o aceita com a condição de poder contar também com o velho parceiro Ned Logan (Morgan Freeman). Juntos, os três homens partem para cumprir a missão, mas esbarram no cruel e sádico xerife do lugar, Little Bill Daggett (Gene Hackman, vencedor do Oscar de coadjuvante).
Eastwood utiliza todos os elementos que fizeram a glória do gênero a seu favor. Xerifes sanguinários, saloons, descampados fotografados com maestria, anti-heróis solitários, tiroteios... Tudo está presente em "Os imperdoáveis", mas de uma maneira tão própria que é difícil entender porque o discípulo de Sergio Leone e Don Siegel - a quem o filme é dedicado - demorou tanto tempo para dirigir um filme no gênero que o consagrou. Dono de uma concisão e uma precisão absolutas, Eastwood constrói seu filme com cuidado, dando a cada cena, a cada diálogo e a cada enquadramento a atenção necessária. Mesmo tendo realizado o filme em apenas 39 dias, é patente sua qualidade autoral e artística. A direção de arte impecável e a fotografia são excepcionais, assim como a trilha sonora - cujo tema principal também foi composto pelo diretor - que equilibra a grandiloquência com a melancolia.
E o elenco escolhido por Eastwood é excepcional. O diretor/produtor/compositor foi indicado ao Oscar de melhor ator por sua performance discreta e raivosa de William Munny, um homem marcado por um passado violento que tenta a redenção, ainda que por meios tortuosos. Morgan Freeman e Richard Harris pontuam com a competência habitual - o segundo na pele de um inglês famoso por seus dotes de atirador. E Gene Hackman deita e rola com seu torpe Little Bill, um homem pra quem a violência, mais do que um meio de vida, é quase um prazer. Suas cenas ao lado de Saul Rubinek (que vive um escritor que é tentado a escrever a biografia do xerife) são magistralmente dirigidas, ficando a um passo entre a tensão e o humor.
"Os imperdoáveis" mereceu os 4 Oscar que levou e talvez merecesse até mais. Forte e triste, é um entretenimento adulto do mais alto gabarito, que encanta em todos os níveis possíveis. E foi através dele que Eastwood renasceu como cineasta comercialmente viável e altamente oscarizável. Precisa dizer mais?
quinta-feira
ALIEN 3
ALIEN 3 (Alien 3, 1992, 20th Century Fox, 114min) Direção: David Fincher. Roteiro: David Giler, Walter Hill, Larry Ferguson, história de Vincent Ward. Fotografia: Alex Thomson. Montagem: Terry Rawlings. Música: Elliot Goldenthal. Figurino: David Perry, Bob Ringwood. Direção de arte/cenários: Norman Reynolds/Belinda Edwards. Produção executiva: Ezra Swerdlow. Produção: Gordon Carroll, David Giler, Walter Hill. Elenco: Sigourney Weaver, Charles S. Dutton, Charles Dance, Paul McGann, Lance Henriksen, Pete Postletwhaite. Estreia: 22/5/92
Indicado ao Oscar de Efeitos Visuais
Depois que James Cameron continou o tenso "Alien, o oitavo passageiro" com o espetaculoso e adrenalínico "Aliens, o resgate", era bastante esperado o retorno da Tenente Ripley em sua tentativa de exterminar o alienígena que aniquilou sua equipe inteira nos dois primeiros filmes. Depois de anos de negociações - em que estrela da série, Sigourney Weaver hesitava em voltar à personagem - finalmente o terceiro capítulo chegou às telas, dirigido por David Fincher, um novato que tinha no currículo alguns dos melhores videoclipes de Madonna e George Michael, por exemplo. Ao optar pelo caminho claustrofóbico do primeiro em detrimento da ação desenfreada do segundo, Fincher arrumou detratores furiosos. Depois de brigas homéricas com os produtores, o cineasta não supervisionou a edição final e "Alien 3" chegou às telas quase órfão. O resultado é visível: apesar de muitas boas ideias, a terceira parte da saga de Ripley não empolgou nem o público nem a crítica. Mas não é tão ruim quanto se falou à época de seu lançamento.
A história dessa nova aventura começa logo após o final do segundo filme. Sem saber que não está a salvo da ameaça alienígena dos capítulos anteriores, Ripley acorda em Fiorina 161, um planeta-prisão, onde ficam encarcerados prisioneiros sexualmente agressivos e violentos. Informada por Clemens (Charles Dance), o médico local, de que toda sua tripulação morreu, ela imediatamente percebe que tudo está para acontecer novamente. Única mulher em meio a homens carregados de testosterona, ela precisa convencê-los do perigo que correm, proteger-se deles e lutar, mais uma vez, para matar seu inimigo. Dessa vez, no entanto, ela não tem nenhuma arma.
Com a cabeça raspada - o presídio está passando por uma epidemia de piolhos - Sigourney Weaver segura, novamente, toda a responsabilidade de carregar o filme nas costas. Ao contrário das ocasiões anteriores, porém, dessa vez Ripley tem mais cenas dramáticas do que de ação, consequência da opção de David Fincher em privilegiar o aspecto mais tenso da trama. Até mesmo um arremedo de romance surge entre Ripley e Clemens, ousadia que pegou os fãs de surpresa - ainda que tudo seja extremamente discreto. E discreto também é o ritmo do filme: demora quase uma hora para que a ação realmente comece e o sangue jorre em Fiorina 161. Na verdade, a lentidão é parte da personalidade do filme, que prefere estabelecer sua história antes da violência. Pouca gente compreendeu isso e se recusou a perceber suas qualidades.
Sim, apesar da gritaria contra si - e da saída de David Fincher do projeto em seu estágio de finalização - "Alien 3" tem qualidades. A ousadia talvez seja a maior delas. Ao praticamente lutar por suas ideias e com isso renegar a receita que estava fazendo sucesso há quinze anos, David Fincher começou uma carreira marcada pela personalidade. Visualmente impecável - a fotografia escura e pesada unida à agressividade estética das personagens - o filme de Fincher transmite a exata sensação de claustrofobia pretendida e, se não busca atingir seu público com efeitos visuais exagerados, tenta (às vezes com sucesso, outras nem tanto) assustar sem apelar para o fácil e o corriqueiro. Talvez por isso tenha afastado a audiência fiel das primeiras partes.
Tudo bem que "Alien 3" não passa a sensação de terror do primeiro nem empolga em termos de aventura do segundo. Tudo bem também que seu terço final não acrescenta muito à saga - apesar de antes de chegar a ele algumas cenas sejam sensacionais. E tudo bem que não ver Ripley empunhando armas é um tanto frustrante. Mas, mesmo que seja rejeitado por David Fincher, é um exemplar bastante - BASTANTE! - decente da série. Digam o que quiserem, "Alien 3" me agrada.
Indicado ao Oscar de Efeitos Visuais
Depois que James Cameron continou o tenso "Alien, o oitavo passageiro" com o espetaculoso e adrenalínico "Aliens, o resgate", era bastante esperado o retorno da Tenente Ripley em sua tentativa de exterminar o alienígena que aniquilou sua equipe inteira nos dois primeiros filmes. Depois de anos de negociações - em que estrela da série, Sigourney Weaver hesitava em voltar à personagem - finalmente o terceiro capítulo chegou às telas, dirigido por David Fincher, um novato que tinha no currículo alguns dos melhores videoclipes de Madonna e George Michael, por exemplo. Ao optar pelo caminho claustrofóbico do primeiro em detrimento da ação desenfreada do segundo, Fincher arrumou detratores furiosos. Depois de brigas homéricas com os produtores, o cineasta não supervisionou a edição final e "Alien 3" chegou às telas quase órfão. O resultado é visível: apesar de muitas boas ideias, a terceira parte da saga de Ripley não empolgou nem o público nem a crítica. Mas não é tão ruim quanto se falou à época de seu lançamento.
A história dessa nova aventura começa logo após o final do segundo filme. Sem saber que não está a salvo da ameaça alienígena dos capítulos anteriores, Ripley acorda em Fiorina 161, um planeta-prisão, onde ficam encarcerados prisioneiros sexualmente agressivos e violentos. Informada por Clemens (Charles Dance), o médico local, de que toda sua tripulação morreu, ela imediatamente percebe que tudo está para acontecer novamente. Única mulher em meio a homens carregados de testosterona, ela precisa convencê-los do perigo que correm, proteger-se deles e lutar, mais uma vez, para matar seu inimigo. Dessa vez, no entanto, ela não tem nenhuma arma.
Com a cabeça raspada - o presídio está passando por uma epidemia de piolhos - Sigourney Weaver segura, novamente, toda a responsabilidade de carregar o filme nas costas. Ao contrário das ocasiões anteriores, porém, dessa vez Ripley tem mais cenas dramáticas do que de ação, consequência da opção de David Fincher em privilegiar o aspecto mais tenso da trama. Até mesmo um arremedo de romance surge entre Ripley e Clemens, ousadia que pegou os fãs de surpresa - ainda que tudo seja extremamente discreto. E discreto também é o ritmo do filme: demora quase uma hora para que a ação realmente comece e o sangue jorre em Fiorina 161. Na verdade, a lentidão é parte da personalidade do filme, que prefere estabelecer sua história antes da violência. Pouca gente compreendeu isso e se recusou a perceber suas qualidades.
Sim, apesar da gritaria contra si - e da saída de David Fincher do projeto em seu estágio de finalização - "Alien 3" tem qualidades. A ousadia talvez seja a maior delas. Ao praticamente lutar por suas ideias e com isso renegar a receita que estava fazendo sucesso há quinze anos, David Fincher começou uma carreira marcada pela personalidade. Visualmente impecável - a fotografia escura e pesada unida à agressividade estética das personagens - o filme de Fincher transmite a exata sensação de claustrofobia pretendida e, se não busca atingir seu público com efeitos visuais exagerados, tenta (às vezes com sucesso, outras nem tanto) assustar sem apelar para o fácil e o corriqueiro. Talvez por isso tenha afastado a audiência fiel das primeiras partes.
Tudo bem que "Alien 3" não passa a sensação de terror do primeiro nem empolga em termos de aventura do segundo. Tudo bem também que seu terço final não acrescenta muito à saga - apesar de antes de chegar a ele algumas cenas sejam sensacionais. E tudo bem que não ver Ripley empunhando armas é um tanto frustrante. Mas, mesmo que seja rejeitado por David Fincher, é um exemplar bastante - BASTANTE! - decente da série. Digam o que quiserem, "Alien 3" me agrada.
quarta-feira
LANTERNAS VERMELHAS
LANTERNAS VERMELHAS (Da hong deng long gao gao gua, 1991, 125min) Direção: Zhang Yimou. Roteiro: Su Tong, Ni Zhen. Fotografia: Lun Yang, Fei Zhao. Montagem: Yuan Du. Música: Naoki Tachikawa, Jiping Zhao. Figurino: Huamiao Tong. Direção de arte: Juiping Cao. Produção executiva: Hsiao-hsien Hou, Wenze Zhang. Produção: Fu-Sheng Chiu. Elenco: Gong Li, He Saifei, Cao Cuifen, Zhao Qi, Jingwu Ma. Estreia: 10/9/91
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
No início dos anos 90, o Oriente rendeu-se à cinematografia chinesa, graças a diretores como Zhang Yimou e Chen Kaige, que, donos de imenso talento e visão política, encantaram as plateias cinéfilas com filmes como "Adeus, minha concubina", do segundo e "Lanternas vermelhas", dirigido pelo primeiro. Além de retratarem a história e as tradições de sua terra, os cineastas tinham ainda um apuradíssimo senso estético, o que fica claro quando se assiste a suas obras. "Lanternas vermelhas", por exemplo, que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, é um belo exercício de equilibrar uma história fascinante com um visual arrebatador. Não bastasse isso, ainda tem seu elenco liderado por Gong Li, que tornou-se uma espécie de musa do cinema chinês de sua época. Dona de uma beleza clássica e delicada, Gong Li apresenta, em "Lanternas vermelhas" uma de suas melhores atuações.
Ela vive Songlian, uma jovem de 20 anos que é obrigada, depois da morte do pai, a abandonar os estudos e aceitar o casamento com um homem muito mais velho e que já tem três esposas. É na China dos anos 20 que tudo se passa, e Songlian, tão logo chega na vasta propriedade do marido (cujo rosto nunca aparece nitidamente) toma contato com as regras e tradições do lugar. A mais importante delas diz respeito às lanternas vermelhas que são acesas diante dos aposentos da mulher escolhida pelo senhor da casa: ao ser escolhida para ter a presença do marido em sua cama, a esposa tem direito a regalias tais como massagens e escolha do cardápio. No entanto, ser escolhida também implica em ser invejada pelas outras, o que Songlian logo também descobre. A Primeira Esposa, Yuru (Shuyuan Jin) é mais velha e conformada com o fato de não ter mais a juventude e o sabor de novidade de seus primeiros dias. A Segunda Esposa, Zhuoyan (Cuifen Cao) é simpática, agradável e compreensiva, dando à nova dona-de-casa dicas importantes sobre a convivência da casa. E a Terceira Esposa, Meishan (Saifei He), uma ex-cantora da ópera de Pequim, é bela, invejosa e ciumenta. Além de ter que acostumar-se com tudo que acontece à sua volta, Songlian tem também que lidar com a criada traiçoeira e com as intrigas, conspirações e jogos de poder que se desenrolam nos aposentos do marido e suas esposas.
Um estudo psicológico e social extremamente bem acurado da China do início do século XX, "Lanternas vermelhas" é também um forte manifesto contra o papel de inferioridade a que as mulheres eram relegadas na época. O paradoxo de utilizar personagens femininas fortíssimas para contar uma história passada em uma época em que isso era absolutamente proibido - e qualquer tentativa de rebelião poderia condenar à morte - é apenas um dos lances de mestre da trama, contada em capítulos bem definidos, marcados pelas estações do ano. Narrada dentro de um período de doze meses, a saga de Songlian é fotografada com maestria, em cores fortes e quentes. Muitas cenas são filmadas de longe, deixando ainda mais evidente o cuidado com que Yimou tem com a plasticidade de seus filmes. A trilha sonora empolgante também se destaca, em especial nos momentos mais dramáticos, dando o tom exato de cada surpresa do imprevisível roteiro.
Ao jamais deixar que o público antecipe a cena seguinte - uma qualidade rara em roteiros dramáticos - a trama de "Lanternas vermelhas" surpreende com o desenrolar das desventuras de Songlian em busca do controle de seu destino. Aparentemente frágil, a protagonista se transforma em uma mulher capaz de lutar em pé de igualdade com todas as falsidades e meias-verdades de seu novo universo, repleto de mentiras que, desvendadas perante seus olhos atônitos - e da plateia embevecida - a transformam de jovem inexperiente em mulher decidida e irredutível em suas decisões, mesmo que elas levem a uma tragédia inesperada.
"Lanternas vermelhas" é um filme apaixonante, que consegue unir a cultura de um país fascinante com um drama bem escrito, dirigido e fotografado com primor. É inteligente, belo e trágico como o bom cinema deve ser! Imperdível para quem quer começar a conhecer a filmografia chinesa e para quem deseja apenas ser deslumbrado.
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
No início dos anos 90, o Oriente rendeu-se à cinematografia chinesa, graças a diretores como Zhang Yimou e Chen Kaige, que, donos de imenso talento e visão política, encantaram as plateias cinéfilas com filmes como "Adeus, minha concubina", do segundo e "Lanternas vermelhas", dirigido pelo primeiro. Além de retratarem a história e as tradições de sua terra, os cineastas tinham ainda um apuradíssimo senso estético, o que fica claro quando se assiste a suas obras. "Lanternas vermelhas", por exemplo, que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, é um belo exercício de equilibrar uma história fascinante com um visual arrebatador. Não bastasse isso, ainda tem seu elenco liderado por Gong Li, que tornou-se uma espécie de musa do cinema chinês de sua época. Dona de uma beleza clássica e delicada, Gong Li apresenta, em "Lanternas vermelhas" uma de suas melhores atuações.
Ela vive Songlian, uma jovem de 20 anos que é obrigada, depois da morte do pai, a abandonar os estudos e aceitar o casamento com um homem muito mais velho e que já tem três esposas. É na China dos anos 20 que tudo se passa, e Songlian, tão logo chega na vasta propriedade do marido (cujo rosto nunca aparece nitidamente) toma contato com as regras e tradições do lugar. A mais importante delas diz respeito às lanternas vermelhas que são acesas diante dos aposentos da mulher escolhida pelo senhor da casa: ao ser escolhida para ter a presença do marido em sua cama, a esposa tem direito a regalias tais como massagens e escolha do cardápio. No entanto, ser escolhida também implica em ser invejada pelas outras, o que Songlian logo também descobre. A Primeira Esposa, Yuru (Shuyuan Jin) é mais velha e conformada com o fato de não ter mais a juventude e o sabor de novidade de seus primeiros dias. A Segunda Esposa, Zhuoyan (Cuifen Cao) é simpática, agradável e compreensiva, dando à nova dona-de-casa dicas importantes sobre a convivência da casa. E a Terceira Esposa, Meishan (Saifei He), uma ex-cantora da ópera de Pequim, é bela, invejosa e ciumenta. Além de ter que acostumar-se com tudo que acontece à sua volta, Songlian tem também que lidar com a criada traiçoeira e com as intrigas, conspirações e jogos de poder que se desenrolam nos aposentos do marido e suas esposas.
Um estudo psicológico e social extremamente bem acurado da China do início do século XX, "Lanternas vermelhas" é também um forte manifesto contra o papel de inferioridade a que as mulheres eram relegadas na época. O paradoxo de utilizar personagens femininas fortíssimas para contar uma história passada em uma época em que isso era absolutamente proibido - e qualquer tentativa de rebelião poderia condenar à morte - é apenas um dos lances de mestre da trama, contada em capítulos bem definidos, marcados pelas estações do ano. Narrada dentro de um período de doze meses, a saga de Songlian é fotografada com maestria, em cores fortes e quentes. Muitas cenas são filmadas de longe, deixando ainda mais evidente o cuidado com que Yimou tem com a plasticidade de seus filmes. A trilha sonora empolgante também se destaca, em especial nos momentos mais dramáticos, dando o tom exato de cada surpresa do imprevisível roteiro.
Ao jamais deixar que o público antecipe a cena seguinte - uma qualidade rara em roteiros dramáticos - a trama de "Lanternas vermelhas" surpreende com o desenrolar das desventuras de Songlian em busca do controle de seu destino. Aparentemente frágil, a protagonista se transforma em uma mulher capaz de lutar em pé de igualdade com todas as falsidades e meias-verdades de seu novo universo, repleto de mentiras que, desvendadas perante seus olhos atônitos - e da plateia embevecida - a transformam de jovem inexperiente em mulher decidida e irredutível em suas decisões, mesmo que elas levem a uma tragédia inesperada.
"Lanternas vermelhas" é um filme apaixonante, que consegue unir a cultura de um país fascinante com um drama bem escrito, dirigido e fotografado com primor. É inteligente, belo e trágico como o bom cinema deve ser! Imperdível para quem quer começar a conhecer a filmografia chinesa e para quem deseja apenas ser deslumbrado.
domingo
INSTINTO SELVAGEM
INSTINTO SELVAGEM (Basic instinct, 1992, Carolco Pictures, 127min) Direção: Paul Verhoeven. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Jan De Bont. Montagem: Frank J. Urioste. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Terence Marsh/Anne Kuljian. Produção executiva: Mario Kassar. Produção: Alan Marshall. Elenco: Michael Douglas, Sharon Stone, George Dzunza, Jeanne Tripplehorne, Leilani Sarelle, Wayne Knight, Stephen Tobolowski, Dorothy Malone. Estreia: 20/3/92
2 indicações ao Oscar: Montagem, Trilha Sonora Original
Bissexual, usuária de cocaína, praticante de várias modalidades de sexo, brilhantemente inteligente e suspeita de um violento assassinato. Essas são as características de Catherine Tramell, a improvável heroína de um dos maiores e mais controversos sucessos de bilheteria dos anos 90, o já icônico "Instinto selvagem". Recusado por várias atrizes devido a seu teor potencialmente polêmico, o papel de Tramell acabou nas mãos de Sharon Stone, que já havia trabalhado com o diretor holandês Paul Verhoeven em "O vingador do futuro".
Pode ter sido um desses casos escritos nas estrelas porque o fato é que Catherine Tramell e Sharon Stone parecem, desde o primeiro momento em que a atriz entra em cena, feitas uma para a outra. Devido a seu trabalho como a sedutora e ambígua personagem criada pelo roteirista Joe Ezsterhas - que recebeu de pagamento o então recorde de 1 milhão de dólares - Stone transformou-se, da noite para o dia, no maior símbolo sexual da década, povoando o imaginário masculino - e por que não? - o feminino também.
Fotografado com requinte e dono de uma parte técnica impecável – edição, trilha sonora, som – “Instinto selvagem” ainda por cima tem uma qualidade que o eleva a vários patamares sobre seus colegas de gênero: a inteligência do roteiro. Repleta de pistas falsas, reviravoltas verossímeis e sequências de tirar o fôlego – sejam elas de ação ou puramente sexuais (e elas são várias e bem desinibidas) – a trama de Ezterhas conquista desde o primeiro minuto, nunca deixando o público antecipar o que virá a seguir. O que é uma regra básica de roteiro policial, mas que é constantemente negligenciado. Só a cena do primeiro interrogatório de Tramell merece figurar em qualquer antologia, tanto de suspense quanto de erotismo. Atire a primeira pedra quem consegue esquecer a famosa cruzada de pernas de Stone...
Logo que "Instinto selvagem" estreou - despertando a ira de ativistas homossexuais - Sharon Stone espalhou aos quatro ventos que as cenas de sexo entre ela e Michael Douglas foram reais e o ator declarou ser viciado em sexo. Não é preciso dizer que foi um bom marketing e o filme tornou-se um sucesso enorme no mundo todo. Logicamente um bom boato pode fazer maravilhas por um produto cinematográfico, mas não há como negar que o filme de Verhoeven mereceu todo o auê. Infelizmente, a ganância, como sempre, falou mais alto, e uma intragável e desnecessária continuação estreou anos depois. Merecidamente foi execrado.
2 indicações ao Oscar: Montagem, Trilha Sonora Original
Bissexual, usuária de cocaína, praticante de várias modalidades de sexo, brilhantemente inteligente e suspeita de um violento assassinato. Essas são as características de Catherine Tramell, a improvável heroína de um dos maiores e mais controversos sucessos de bilheteria dos anos 90, o já icônico "Instinto selvagem". Recusado por várias atrizes devido a seu teor potencialmente polêmico, o papel de Tramell acabou nas mãos de Sharon Stone, que já havia trabalhado com o diretor holandês Paul Verhoeven em "O vingador do futuro".
Pode ter sido um desses casos escritos nas estrelas porque o fato é que Catherine Tramell e Sharon Stone parecem, desde o primeiro momento em que a atriz entra em cena, feitas uma para a outra. Devido a seu trabalho como a sedutora e ambígua personagem criada pelo roteirista Joe Ezsterhas - que recebeu de pagamento o então recorde de 1 milhão de dólares - Stone transformou-se, da noite para o dia, no maior símbolo sexual da década, povoando o imaginário masculino - e por que não? - o feminino também.
A trama de “Instinto selvagem” se passa em San Francisco. Um roqueiro é violentamente assassinado a golpes de picador de gelo durante o ato sexual com uma loura escultural – em uma cena pra lá de excitante. Chamado à cena do crime, o policial Nick Curran (Michael Douglas em um período de bons filmes) logo fica sabendo que a vítima tinha um caso com a bela Catherine Tramell, escritora de livros policiais eróticos. Além de parceira sexual do roqueiro, Tramell também havia descrito um assassinato nos mesmos moldes do ocorrido em um de seus romances. Ao lado do parceiro Gus (George Dzunza), Curran procura a escritora, mas ela, apesar de parecer um tanto fria e racional, passa com louvor no detector de mentiras. Ainda na pele de suspeita, ela seduz o policial, ele mesmo com vários problemas a resolver: ainda se curando de vícios em drogas e bebida, ele é obrigado por seu departamento a ter consultas psicológicas com sua ex-namorada, Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), devido à morte acidental de um civil, causada por ele. Envolvido com a bela possível assassina, Curran tenta provar sua inocência, ainda que os fatos comecem a se acumular contra ela.
Fotografado com requinte e dono de uma parte técnica impecável – edição, trilha sonora, som – “Instinto selvagem” ainda por cima tem uma qualidade que o eleva a vários patamares sobre seus colegas de gênero: a inteligência do roteiro. Repleta de pistas falsas, reviravoltas verossímeis e sequências de tirar o fôlego – sejam elas de ação ou puramente sexuais (e elas são várias e bem desinibidas) – a trama de Ezterhas conquista desde o primeiro minuto, nunca deixando o público antecipar o que virá a seguir. O que é uma regra básica de roteiro policial, mas que é constantemente negligenciado. Só a cena do primeiro interrogatório de Tramell merece figurar em qualquer antologia, tanto de suspense quanto de erotismo. Atire a primeira pedra quem consegue esquecer a famosa cruzada de pernas de Stone...
E erotismo é o que não falta em "Instinto selvagem". Fetiches desfilam pela tela sem pudor - e são dirigidos com visível gosto por Verhoeven. Bondage, lesbianismo, sexo grupal, sexo violento... tudo é permitido no universo do filme, ou ao menos mais comum do que na maioria dos produtos hollywoodianos. Tudo bem que a sofisticação quase exagerada que permeia o longa - carros belíssimos, mansões deslumbrantes, mulheres gostosas - imediatamente o afasta do grosso do público, mas o roteiro e a direção são espertos o bastante para nunca deixar a atenção ser desviada do que realmente importa: a história.
Logo que "Instinto selvagem" estreou - despertando a ira de ativistas homossexuais - Sharon Stone espalhou aos quatro ventos que as cenas de sexo entre ela e Michael Douglas foram reais e o ator declarou ser viciado em sexo. Não é preciso dizer que foi um bom marketing e o filme tornou-se um sucesso enorme no mundo todo. Logicamente um bom boato pode fazer maravilhas por um produto cinematográfico, mas não há como negar que o filme de Verhoeven mereceu todo o auê. Infelizmente, a ganância, como sempre, falou mais alto, e uma intragável e desnecessária continuação estreou anos depois. Merecidamente foi execrado.
sábado
A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO
A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO (The hand that rocks the cradle, 1992, Hollywood Pictures, 110min) Direção: Curtis Hanson. Roteiro: Amanda Silver. Fotografia: Robert Elswit. Montagem: John F. Link. Música: Graeme Revell. Figurino: Jennifer von Mayrhauser. Direção de arte/cenários: Edward Pisoni/Sandy Reynolds Wasco. Casting: Junie Lowry-Johnson. Produção executiva: Robert W. Cort, Ted Field, Rick Jaffa. Produção: David Madden. Elenco: Rebecca De Mornay, Annabella Sciorra, Matt McCoy, Ernie Hudson, Julianne Moore, Madeline Zima. Estreia: 10/01/92
No início dos anos 80, Tom Cruise revelou-se ao mundo dançando só de cuecas no filme "Negócio arriscado", uma comédia divertida onde ele contracenava com uma bela loura que parecia tão promissora quanto ele. O tempo passou, Cruise tornou-se um dos maiores astros de Hollywood e a loura desapareceu dentre as dezenas de promessas que surgem a cada ano. Em 1992, no entanto, ela voltou. Má, vingativa e cruel, a protagonista de "A mão que balança o berço" devolveu à bela Rebecca de Mornay a chance de brilhar - e por que não? - assustras plateias mundo afora.
Não que a obra de Curtis Hanson (que anos depois deixaria os cinéfilos de queixo caído com o sensacional "Los Angeles, cidade proibida") seja um filme para marcar a história do cinema, ou que a atuação de Rebecca seja digna de um Oscar (apesar de um prêmio da MTV americana como Melhor Vilã), mas os quase 90 milhões de dólares arrecadados somente nos EUA demonstraram sem sombra de dúvida a boa vontade do público de abraçar uma história que deixa de lado monstros mascarados e sangue aos borbotões para dar mais atenção à tensão psicológica que surge entre o bem e o mal, aqui divididos clara e maniqueistamente entre a dona de casa vivida por Annabella Sciorra e a insidiosa babá interpretada por De Mornay.
No início dos anos 80, Tom Cruise revelou-se ao mundo dançando só de cuecas no filme "Negócio arriscado", uma comédia divertida onde ele contracenava com uma bela loura que parecia tão promissora quanto ele. O tempo passou, Cruise tornou-se um dos maiores astros de Hollywood e a loura desapareceu dentre as dezenas de promessas que surgem a cada ano. Em 1992, no entanto, ela voltou. Má, vingativa e cruel, a protagonista de "A mão que balança o berço" devolveu à bela Rebecca de Mornay a chance de brilhar - e por que não? - assustras plateias mundo afora.
Não que a obra de Curtis Hanson (que anos depois deixaria os cinéfilos de queixo caído com o sensacional "Los Angeles, cidade proibida") seja um filme para marcar a história do cinema, ou que a atuação de Rebecca seja digna de um Oscar (apesar de um prêmio da MTV americana como Melhor Vilã), mas os quase 90 milhões de dólares arrecadados somente nos EUA demonstraram sem sombra de dúvida a boa vontade do público de abraçar uma história que deixa de lado monstros mascarados e sangue aos borbotões para dar mais atenção à tensão psicológica que surge entre o bem e o mal, aqui divididos clara e maniqueistamente entre a dona de casa vivida por Annabella Sciorra e a insidiosa babá interpretada por De Mornay.
Sciorra vive Claire Bartel, uma mulher que divide seu tempo entre o trabalho e a família, formada por um marido apaixonado, uma filha encantadora e um bebê recém-nascido. É justamente para ajudá-la a cuidar de tudo isso que ela contrata a dedicada e angelical Peyton Flanders como babá de seu filho caçula. Aparentemente perfeita, aos poucos a nova funcionária começa a mostrar as garrinhas, tentando destruir a paz da casa, mesmo que tenha que prejudicar todas as pessoas que lhe pareçam ameaçadoras a seu objetivo. A razão para tamanho ódio? Ela é a viúva do ginecologista de Claire, que suicidou-se depois de ter sido acusado de abuso sexual pela própria. Após a morte do marido e a subseqüente perda do bebê que esperava, a loira tem certeza que vingar-se da família Bartel é a única coisa certa a fazer.
A partir daí é esperar a baixaria: Peyton dá em cima do marido de Claire, forja um relacionamento dele com a melhor amiga da esposa (uma Julianne Moore em início de carreira), amamenta o filho da inimiga e chega ao extremo de tentar mandar pra cadeia o empregado com problemas mentais contratado para serviços de jardinagem (o bom Ernie Hudson). A absoluta falta de remorso ou hesitação da protagonista é comparável a vilãs de novelas globais, que não permitem que ninguém ou nada atrapalhe seus objetivos - e o roteiro tampouco se preocupa em buscar profundidade em seus atos, tendo como finalidade absoluta levar a história a um clímax como manda qualquer curso para escritores de cinema. A escalada de maldades de Peyton é interpretada com visível gosto por Rebecca, que acaba sendo o destaque absoluto de um filme interessante mas que nunca ultrapassa as limitações do gênero a que pertence. Não deixa de ser um correto currículo para Hanson - que atingiria estágios extremamente superiores em seu ofício - e o destaque maior da carreira de De Mornay, que apesar do sucesso do filme não atingiu o patamar de estrela que prometia.
"A mão que balança o berço" é um suspense mediano, construído corretamente pelo talentoso diretor Cutis Hanson. Prende a atenção, mas não muda a vida de ninguém.
"A mão que balança o berço" é um suspense mediano, construído corretamente pelo talentoso diretor Cutis Hanson. Prende a atenção, mas não muda a vida de ninguém.
sexta-feira
TOMATES VERDES FRITOS
TOMATES VERDES FRITOS (Fried green tomatoes, 1991, Universal Pictures, 130min) Direção: Jon Avnet. Roteiro: Fannie Flagg, Carol Sobieski, romance "Fried green tomatoes at Whistle Stop Cafe", de Fannie Flagg. Fotografia: Geoffrey Simpson. Montagem: Debra Neil. Música: Thomas Newman. Figurino: Elizabeth McBride. Direção de arte/cenários: Barbara Ling/Debra Schutt. Produção executiva: Anne Marie Gillen, Norman Lear, Yuriko Matsubara, Andrew Meyer, Tom Taylor. Produção: Jon Avnet, Jordan Kerner. Elenco: Kathy Bates, Jessica Tandy, Mary Stuart Masterson, Mary-Louise Parker, Chris O'Donnell, Cicely Tyson, Lois Smith. Estreia: 27/12/91
2 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Jessica Tandy), Roteiro Adaptado
Vez ou outra, cansado de assistir a tiroteios, explosões, exterminadores, chacinas e cenas de sexo mais olímpicas do que românticas, o público recorre a filmes menos hiperbolizados, que contam histórias simples, de gente como a gente. Quando esses filmes são da qualidade de um "Tomates verdes fritos", então, a bilheteria de mais de 80 milhões de dólares só no mercado doméstico (EUA e Canadá) fica muito fácil de entender. Baseado em um romance escrito pela sulista Fannie Flagg - que colaborou no roteiro indicado ao Oscar - o filme de Jon Avnet pegou de surpresa os executivos dos grandes estúdios por levar um considerável público às salas de cinema sem apelar para grandes astros ou continuações de filmes de sucesso. Estrelado por duas vencedoras consecutivas do Oscar de melhor atriz - Jessica Tandy e Kathy Bates - e duas jovens e talentosas atrizes da geração seguinte - Mary Stuart Masterson e Mary-Louise Parker -, "Tomates verdes fritos" é um filme tão bom que é quase como se fosse dois.
Na verdade, ele o é. Duas histórias paralelas são contadas por Avnet, sem que uma atrapalhe a outra. Ao contrário de várias produções, cujas tramas que correm concomitantemente são praticamente independentes, aqui uma narrativa completa a outra e lhe dá sentido. Tudo começa quando a dona-de-casa Evelyn Couch (Kathy Bates, completamente apagando a imagem cruel que lhe deu a estatueta) chega a um asilo, para visitar uma intratável tia do marido. Lá, ela trava conhecimento com uma paciente idosa e comunicativa, Ninny Threadgoode (Jessica Tandy, indicada a um carinhoso Oscar de coadjuvante), que começa a contar-lhe a história da amizade entre duas mulheres, no Alabama dos anos 20. Parente do falecido marido de Ninny, a voluntariosa Idgie (Mary Stuart Masterson) desafia as convenções da sociedade local ao comportar-se de forma completamente oposta ao esperado de uma dama bem nascida. Revoltada com a vida desde a trágica morte do irmão mais velho, Buddy (Chris O'Donnell), Idgie encontra uma razão para viver quando passa a defender a frágil Ruth Jamison (Mary-Louise Parker) dos ataques violentos de seu marido, integrante da Klu Klux Klan. Sócias em um restaurante, as duas começam a sofrer ameaças da seita e o assassinato do marido de Ruth envolve todos os seus conhecidos em uma trama de mistério e solidariedade. Aos poucos, a história das duas jovens passa a operar transformações na vida da própria Evelyn, que redescobre sua auto-estima e resolve salvar seu monótono casamento.
Escrito e dirigido com delicadeza e um ritmo especial, que não atropela acontecimentos nem os valoriza desnecessariamente, "Tomates verdes fritos" é um daqueles raros filmes em que todos os fatores confluem para sua inegável qualidade. A reconstituição de época é discreta mas eficiente e a trilha sonora de Thomas Newman comenta a ação de forma correta - e é bem capaz de emocionar os mais sensíveis. A edição, fator importantíssimo em filmes que se propõem a alternar histórias, também acontece sem sobressaltos ou uma velocidade estonteante: é sutil, parcimoniosa e inteligente. Mas, apesar dos inúmeros destaques, é o elenco de "Tomates verdes fritos" que faz toda a diferença.
Kathy Bates e Jessica Tandy, juntas, encantam. A fragilidade emocional de Evelyn - diametralmente oposta ao físico avantajado que ela decide exercitar graças à Idgie e Ruth - encontra em Bates a encarnação perfeita. É quase impossível acreditar que pouco antes ela havia atemorizado plateias como a violenta Annie Wilkes de "Louca obsessão". E Tandy, idosa e delicada, utilizando apenas de sua voz meiga e de seu jeito de avó, conquista a audiência já em sua primeira aparição. E, apesar do nome de Bates ser o primeiro a enfeitar o cartaz do filme, é preciso dar crédito à Mary Stuart Masterson e Mary-Louise Parker, que são, a bem da verdade, as verdadeiras protagonistas do filme. A sensacional química entre as duas é que dá a veracidade indispensável à bela história de amor e amizade entre as duas. Vale lembrar que o teor homoerótico do filme foi diminuído pelos produtores, mas defendido pelas atrizes, que conseguiram manter ao menos o tom romântico/melancólico da trama, que também toca em assuntos bastante pertinentes, como racismo, violência contra a mulher e sexualidade reprimida.
"Tomates verdes fritos" é quase um filme de mulher. Mas é tão bom que ultrapassa qualquer barreira sexista, tornando-se um dos mais belos filmes sobre amizade feminina da história. Nada mal para um ano que também legou ao cinema o espetacular "Thelma & Louise".
2 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Jessica Tandy), Roteiro Adaptado
Vez ou outra, cansado de assistir a tiroteios, explosões, exterminadores, chacinas e cenas de sexo mais olímpicas do que românticas, o público recorre a filmes menos hiperbolizados, que contam histórias simples, de gente como a gente. Quando esses filmes são da qualidade de um "Tomates verdes fritos", então, a bilheteria de mais de 80 milhões de dólares só no mercado doméstico (EUA e Canadá) fica muito fácil de entender. Baseado em um romance escrito pela sulista Fannie Flagg - que colaborou no roteiro indicado ao Oscar - o filme de Jon Avnet pegou de surpresa os executivos dos grandes estúdios por levar um considerável público às salas de cinema sem apelar para grandes astros ou continuações de filmes de sucesso. Estrelado por duas vencedoras consecutivas do Oscar de melhor atriz - Jessica Tandy e Kathy Bates - e duas jovens e talentosas atrizes da geração seguinte - Mary Stuart Masterson e Mary-Louise Parker -, "Tomates verdes fritos" é um filme tão bom que é quase como se fosse dois.
Na verdade, ele o é. Duas histórias paralelas são contadas por Avnet, sem que uma atrapalhe a outra. Ao contrário de várias produções, cujas tramas que correm concomitantemente são praticamente independentes, aqui uma narrativa completa a outra e lhe dá sentido. Tudo começa quando a dona-de-casa Evelyn Couch (Kathy Bates, completamente apagando a imagem cruel que lhe deu a estatueta) chega a um asilo, para visitar uma intratável tia do marido. Lá, ela trava conhecimento com uma paciente idosa e comunicativa, Ninny Threadgoode (Jessica Tandy, indicada a um carinhoso Oscar de coadjuvante), que começa a contar-lhe a história da amizade entre duas mulheres, no Alabama dos anos 20. Parente do falecido marido de Ninny, a voluntariosa Idgie (Mary Stuart Masterson) desafia as convenções da sociedade local ao comportar-se de forma completamente oposta ao esperado de uma dama bem nascida. Revoltada com a vida desde a trágica morte do irmão mais velho, Buddy (Chris O'Donnell), Idgie encontra uma razão para viver quando passa a defender a frágil Ruth Jamison (Mary-Louise Parker) dos ataques violentos de seu marido, integrante da Klu Klux Klan. Sócias em um restaurante, as duas começam a sofrer ameaças da seita e o assassinato do marido de Ruth envolve todos os seus conhecidos em uma trama de mistério e solidariedade. Aos poucos, a história das duas jovens passa a operar transformações na vida da própria Evelyn, que redescobre sua auto-estima e resolve salvar seu monótono casamento.
Escrito e dirigido com delicadeza e um ritmo especial, que não atropela acontecimentos nem os valoriza desnecessariamente, "Tomates verdes fritos" é um daqueles raros filmes em que todos os fatores confluem para sua inegável qualidade. A reconstituição de época é discreta mas eficiente e a trilha sonora de Thomas Newman comenta a ação de forma correta - e é bem capaz de emocionar os mais sensíveis. A edição, fator importantíssimo em filmes que se propõem a alternar histórias, também acontece sem sobressaltos ou uma velocidade estonteante: é sutil, parcimoniosa e inteligente. Mas, apesar dos inúmeros destaques, é o elenco de "Tomates verdes fritos" que faz toda a diferença.
Kathy Bates e Jessica Tandy, juntas, encantam. A fragilidade emocional de Evelyn - diametralmente oposta ao físico avantajado que ela decide exercitar graças à Idgie e Ruth - encontra em Bates a encarnação perfeita. É quase impossível acreditar que pouco antes ela havia atemorizado plateias como a violenta Annie Wilkes de "Louca obsessão". E Tandy, idosa e delicada, utilizando apenas de sua voz meiga e de seu jeito de avó, conquista a audiência já em sua primeira aparição. E, apesar do nome de Bates ser o primeiro a enfeitar o cartaz do filme, é preciso dar crédito à Mary Stuart Masterson e Mary-Louise Parker, que são, a bem da verdade, as verdadeiras protagonistas do filme. A sensacional química entre as duas é que dá a veracidade indispensável à bela história de amor e amizade entre as duas. Vale lembrar que o teor homoerótico do filme foi diminuído pelos produtores, mas defendido pelas atrizes, que conseguiram manter ao menos o tom romântico/melancólico da trama, que também toca em assuntos bastante pertinentes, como racismo, violência contra a mulher e sexualidade reprimida.
"Tomates verdes fritos" é quase um filme de mulher. Mas é tão bom que ultrapassa qualquer barreira sexista, tornando-se um dos mais belos filmes sobre amizade feminina da história. Nada mal para um ano que também legou ao cinema o espetacular "Thelma & Louise".
quinta-feira
JFK, A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR
JFK, A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR (JFK, 1991, Warner Bros, 189min) Direção: Oliver Stone. Roteiro: Oliver Stone, Zachary Sklar, livros "On the trail of assassins", de Jim Garrison e "Crossfire: the plot that killed Kennedy", de Jim Marrs. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Joe Hutsching, Pietro Scalia. Música: John Williams. Figurino: Marlene Stewart. Direção de arte/cenários: Victor Kempster/Crispian Sallis. Casting: Risa Bramon Garcia, Billy Hopkins, Heidi Levitt. Produção executiva: Arnon Milchan. Produção: A. Kitman Ho, Oliver Stone. Elenco: Kevin Costner, Sissy Spacek, Gary Oldman, Tommy Lee Jones, Joe Pesci, Jack Lemmon, Walter Matthau, Donald Sutherland, Kevin Bacon, Michael Rooker, John Candy, Sally Kirkland, Vincent D'Onofrio, Wayne Knight, Laurie Metcalf, Lolita Davidovich, Ron Rifkin. Estreia: 20/12/91
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Oliver Stone), Ator Coadjuvante (Tommy Lee Jones), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Som
Vencedor de 2 Oscar: Fotografia, Montagem
Vencedor do Golden Globe de Melhor Diretor (Oliver Stone)
Em 22 de novembro de 1963, em uma viagem a Dallas, o presidente John Fitzgerald Kennedy foi alvejado fatalmente, para desespero de milhares de americanos que o idolatravam. Pouco tempo depois, a polícia apresentava o culpado, o jovem Lee Harvey Oswald. Antes de qualquer tipo de julgamento, o acusado foi assassinado, frente às câmeras de TV, por Jack Ruby, o dono de um bar de strippers, ligado à máfia. Uma comissão formada pelo governo para investigar o caso - a Comissão Warren - chegou à conclusão de que Oswald agiu por contra própria, por discordar das ideias de Kennedy a respeito de Cuba e Fidel Castro. A investigação teria tido um ponto final se Jim Garrison, o promotor público de Nova Orleans, não tivesse dado continuidade ao assunto. Com a ajuda de uma equipe dedicada e incorruptível, ele levou um empresário local ao banco de réus, acusando-o de conspiração. Segundo Garrison, a morte de Kennedy foi o ato final de uma conspiração gigantesca envolvendo o FBI, a CIA e até mesmo o próprio governo americano. E é justamente sua batalha atrás da verdade sobre o assassinato que mudou a história dos EUA que é retratada em "JFK, A pergunta que não quer calar", a obra-prima absoluta do polêmico cineasta Oliver Stone.
Utilizando dois livros como base para seu complexo e instingante roteiro - um escrito pelo próprio Jim Garrison e outro pelo jornalista Jim Marrs, nem sempre de teorias compatíveis - Oliver Stone construiu um dos thrillers políticos mais fascinantes da história do cinema. Ao eleger a investigação de Garrison como fio condutor para sua narrativa, Stone entrega ao público um trabalho detalhista e admiravelmente bem construído. O roteiro, repleto de camadas que escondem camadas que escondem camadas, é um primor de inteligência, que gruda o espectador na cadeira em seus primeiros minutos e não o deixa abandoná-la até seu final - na versão do diretor, mais de três horas depois.
Interpretado por um Kevin Costner discreto, que não se deixa engrandecer pela personagem - depois que Harrison Ford e Mel Gibson declinaram do papel - Jim Garrison é o mais próximo de um herói que a trama de "JFK" pode oferecer à plateia. Lembrando em certos momentos seu Elliot Ness de "Os intocáveis" - um homem honesto e quase obcecado em sua busca pela verdade - Garrison serve também como os olhos do público, incrédulos, chocados, absolutamente apavorados com a gama de mentiras que vão sendo desvendadas pouco a pouco. E a forma como as verdades - ou o mais perto possível delas - surgem diante dos olhos de Garrison e da audiência é nunca menos do que brilhante. Nas mãos de Oliver Stone, a morte de John Kennedy, um dos maiores traumas coletivos da história americana, transforma-se em um espetáculo dos mais empolgantes que o cinema pode proporcionar.
Além do roteiro impecável - tão cheio de informações que é desaconselhável até mesmo uma piscadela - Stone também cercou-se de uma equipe excepcional. A edição nunca aquém de espetacular levou um merecidíssimo Oscar, ao alternar vídeos reais com cenas incrivelmente reconstituídas, e a fotografia de Robert Richardson, também oscarizada, se equilibra entre a cor, o preto-e-branco e 8mm (com as recorrentes cenas do filme de Abraham Zapruder, que testemunhou a tragédia, sendo apresentadas quase como uma personagem). A trilha sonora de John Williams comenta a ação com sabedoria, destacando com força os momentos mais tensos - trabalhando longe de Steven Spielberg, Williams criou uma de suas mais sensacionais trilhas, que dá o tom exato das intenções de Oliver Stone em manter intacta a atenção do público mesmo diante da quantidade de nomes, fatos e contradições que se espalham na tela. E se as informações são em número quase assustador, o elenco formado pelo cineasta é de tirar o fôlego. Trabalhando com cachês bem abaixo de seu normal, os atores de "JFK" são um show à parte.
Naturalmente, Kevin Costner lidera o elenco como protagonista absoluto.Mas, a seu lado, desfila um elenco de causar inveja a Robert Altman - em personagens maiores ou menores, eles sustentam com garra e elegância uma estrutura complexa que dá espaço para que todos brilhem em seu devido momento. Somente Tommy Lee Jones chegou a ser indicado ao Oscar, por sua atuação como Clancy Shaw, o único a ser julgado pela morte do presidente, mas sua indicação pode ter sido uma forma de a Academia homenagear todas as feras dirigidas por Stone. Como Lee Harvey Oswald, o inglês Gary Oldman transforma-se absurdamente (como já o havia feito em "Sid & Nancy, o amor mata", onde viveu o roqueiro Sid Vicious). Como o misterioso X, que dá dicas preciosas a Garrison, Donald Sutherland é dono de uma das sequências mais arrepiantes do longa. E além deles, estão presentes Kevin Bacon, Joe Pesci (magnífico), Sissy Spacek e os indescritíveis Jack Lemmon e Walter Matthau. Pode-se pedir mais de um elenco?
"JFK" é eletrizante, inteligente, fascinante e dirigido com uma paixão evidente. Graças a ele, documentos a respeito das investigações da Comissão Warren foram a público muito antes do previsto e, mais importante do que tudo, Oliver Stone conseguiu abalar as estruturas americanas com um filme que nunca deixa de ser também entretenimento da mais alta qualidade. Suas teorias talvez não sejam tão realistas quanto ele afirma, mas só o fato de fazer um trabalho tão impecável do ponto de vista cinematográfico já é motivo o bastante para que seja louvado. Infelizmente bateu de frente com "O silêncio dos inocentes" na corrida pelo Oscar. Ganhou duas estatuetas. Merecia muito mais.
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Oliver Stone), Ator Coadjuvante (Tommy Lee Jones), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Som
Vencedor de 2 Oscar: Fotografia, Montagem
Vencedor do Golden Globe de Melhor Diretor (Oliver Stone)
Em 22 de novembro de 1963, em uma viagem a Dallas, o presidente John Fitzgerald Kennedy foi alvejado fatalmente, para desespero de milhares de americanos que o idolatravam. Pouco tempo depois, a polícia apresentava o culpado, o jovem Lee Harvey Oswald. Antes de qualquer tipo de julgamento, o acusado foi assassinado, frente às câmeras de TV, por Jack Ruby, o dono de um bar de strippers, ligado à máfia. Uma comissão formada pelo governo para investigar o caso - a Comissão Warren - chegou à conclusão de que Oswald agiu por contra própria, por discordar das ideias de Kennedy a respeito de Cuba e Fidel Castro. A investigação teria tido um ponto final se Jim Garrison, o promotor público de Nova Orleans, não tivesse dado continuidade ao assunto. Com a ajuda de uma equipe dedicada e incorruptível, ele levou um empresário local ao banco de réus, acusando-o de conspiração. Segundo Garrison, a morte de Kennedy foi o ato final de uma conspiração gigantesca envolvendo o FBI, a CIA e até mesmo o próprio governo americano. E é justamente sua batalha atrás da verdade sobre o assassinato que mudou a história dos EUA que é retratada em "JFK, A pergunta que não quer calar", a obra-prima absoluta do polêmico cineasta Oliver Stone.
Utilizando dois livros como base para seu complexo e instingante roteiro - um escrito pelo próprio Jim Garrison e outro pelo jornalista Jim Marrs, nem sempre de teorias compatíveis - Oliver Stone construiu um dos thrillers políticos mais fascinantes da história do cinema. Ao eleger a investigação de Garrison como fio condutor para sua narrativa, Stone entrega ao público um trabalho detalhista e admiravelmente bem construído. O roteiro, repleto de camadas que escondem camadas que escondem camadas, é um primor de inteligência, que gruda o espectador na cadeira em seus primeiros minutos e não o deixa abandoná-la até seu final - na versão do diretor, mais de três horas depois.
Interpretado por um Kevin Costner discreto, que não se deixa engrandecer pela personagem - depois que Harrison Ford e Mel Gibson declinaram do papel - Jim Garrison é o mais próximo de um herói que a trama de "JFK" pode oferecer à plateia. Lembrando em certos momentos seu Elliot Ness de "Os intocáveis" - um homem honesto e quase obcecado em sua busca pela verdade - Garrison serve também como os olhos do público, incrédulos, chocados, absolutamente apavorados com a gama de mentiras que vão sendo desvendadas pouco a pouco. E a forma como as verdades - ou o mais perto possível delas - surgem diante dos olhos de Garrison e da audiência é nunca menos do que brilhante. Nas mãos de Oliver Stone, a morte de John Kennedy, um dos maiores traumas coletivos da história americana, transforma-se em um espetáculo dos mais empolgantes que o cinema pode proporcionar.
Além do roteiro impecável - tão cheio de informações que é desaconselhável até mesmo uma piscadela - Stone também cercou-se de uma equipe excepcional. A edição nunca aquém de espetacular levou um merecidíssimo Oscar, ao alternar vídeos reais com cenas incrivelmente reconstituídas, e a fotografia de Robert Richardson, também oscarizada, se equilibra entre a cor, o preto-e-branco e 8mm (com as recorrentes cenas do filme de Abraham Zapruder, que testemunhou a tragédia, sendo apresentadas quase como uma personagem). A trilha sonora de John Williams comenta a ação com sabedoria, destacando com força os momentos mais tensos - trabalhando longe de Steven Spielberg, Williams criou uma de suas mais sensacionais trilhas, que dá o tom exato das intenções de Oliver Stone em manter intacta a atenção do público mesmo diante da quantidade de nomes, fatos e contradições que se espalham na tela. E se as informações são em número quase assustador, o elenco formado pelo cineasta é de tirar o fôlego. Trabalhando com cachês bem abaixo de seu normal, os atores de "JFK" são um show à parte.
Naturalmente, Kevin Costner lidera o elenco como protagonista absoluto.Mas, a seu lado, desfila um elenco de causar inveja a Robert Altman - em personagens maiores ou menores, eles sustentam com garra e elegância uma estrutura complexa que dá espaço para que todos brilhem em seu devido momento. Somente Tommy Lee Jones chegou a ser indicado ao Oscar, por sua atuação como Clancy Shaw, o único a ser julgado pela morte do presidente, mas sua indicação pode ter sido uma forma de a Academia homenagear todas as feras dirigidas por Stone. Como Lee Harvey Oswald, o inglês Gary Oldman transforma-se absurdamente (como já o havia feito em "Sid & Nancy, o amor mata", onde viveu o roqueiro Sid Vicious). Como o misterioso X, que dá dicas preciosas a Garrison, Donald Sutherland é dono de uma das sequências mais arrepiantes do longa. E além deles, estão presentes Kevin Bacon, Joe Pesci (magnífico), Sissy Spacek e os indescritíveis Jack Lemmon e Walter Matthau. Pode-se pedir mais de um elenco?
"JFK" é eletrizante, inteligente, fascinante e dirigido com uma paixão evidente. Graças a ele, documentos a respeito das investigações da Comissão Warren foram a público muito antes do previsto e, mais importante do que tudo, Oliver Stone conseguiu abalar as estruturas americanas com um filme que nunca deixa de ser também entretenimento da mais alta qualidade. Suas teorias talvez não sejam tão realistas quanto ele afirma, mas só o fato de fazer um trabalho tão impecável do ponto de vista cinematográfico já é motivo o bastante para que seja louvado. Infelizmente bateu de frente com "O silêncio dos inocentes" na corrida pelo Oscar. Ganhou duas estatuetas. Merecia muito mais.
quarta-feira
NEBLINA E SOMBRAS
NEBLINA E SOMBRAS (Shadows and fog, 1991, Orion Pictures, 85min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Carlo Di Palma. Montagem: Susan E. Morse. Figurino: Jeffrey Kurland. Direção de arte/cenários: Santo Loquasto/George DeTitta Jr., Amy Marshall. Casting: Juliet Taylor. Produção executiva: Charles H. Joffe, Jack Rollins. Produção: Robert Greenhut. Elenco: Woody Allen, Mia Farrow, John Malkovich, Madonna, Donald Pleasance, Lily Tomlin, Jodie Foster, Kathy Bates, John Cusack, John C. Reilly, Philip Bosco, Kurtwood Smith, Kate Nelligan, Fred Gwyne, William H. Macy, Wallace Shawn. Estreia: 05/12/91
Os detratores adoram dizer que os filmes de Woody Allen são repetitivos, que seu estilo não é exatamente criativo e que seu humor judaico/neurótico/nova-iorquino/sofisticado não sai do chove-não molha. No entanto, se o diretor não estivesse no elenco de "Neblina e sombras" - seu filme de maior orçamento até hoje - era bem pouco provável que qualquer crítico do cineasta pudesse reconhecer no filme qualquer das características que marcaram sua carreira. Com exceção da inteligência - e da marca registrada de usar nomes famosos em papéis pequenos ou quase pontas - nada nessa bela homenagem ao expressionismo alemão do início do século XX aponta para o fato que seu diretor é Allen.
A primeira diferença entre "Neblina e sombras" e o resto da filmografia de Woody diz respeito à geografia. Enquanto a vasta maioria de seus filmes se passa em Nova York e arredores, aqui a história acontece em uma pequena cidade da Alemanha aterrorizada por um assassino serial que mata suas vítimas estranguladas. Para caçar o criminoso vários grupos se formam, com moradores buscando resolver a situação com as próprias mãos, uma vez que o governo parece não se importar com os trágicos acontecimentos. Kleinman (vivido pelo diretor) é um homem comum - preocupado em ser deixado em uma promoção no trabalho - que é escalado por uma dessas facções, que pedem sua ajuda, sem nunca lhe explicar sua missão. Enquanto vaga pela cidade, envolta em neblina e sombras como o título do filme sugere, ele dá de cara com Irmy (Mia Farrow), a engolidora de espadas de um circo que está se apresentando na cidade. Depois de flagrar o marido, o palhaço do circo (John Malkovich) nos braços de sua sedutora colega Marie (Madonna), Irmy encontra abrigo no bordel da cidade, onde desperta o desejo do jovem estudante Jack (John Cusack). Ao lado de Kleinman, ela tentará manter-se longe do assassino e reconstruir sua vida.
Fotografado em belíssimo preto-e-branco por Carlo Di Palma, "Neblina e sombras" também foge do estilo forjado pelo cineasta em décadas de experiência ao evitar piadas intelectualizadas demais - talvez Allen já soubesse que o projeto em si já era suficientemente arriscado comercialmente para que ele confiasse na fidelidade cega de seu público. Ao misturar um humor muito disfarçado e um suspense sem sustos, ele criou um gênero híbrido que, obviamente, não encontrou sua audiência e nem encantou a crítica. Motivos não faltam para essa frieza toda, mas não deixa de ser um exagero essa absoluta apatia em relação ao filme.
Sem dúvida nenhuma, "Neblina e sombras" não é nem de longe um Woody Allen das melhores safras: não é particularmente engraçado, nem denso ou mesmo leve. Mas é inteligente como qualquer trabalho seu - com ecos de "O processo", de Kafka e do filme "M, o vampiro de Dusseldorf", de Fritz Lang -, é extraordinariamente bem realizado - os sets foram construídos especificamente - e só o fato de reunir o elenco que reuniu é de aplaudir entusiasticamente: ao lado dos já citados, desfilam pela tela Jodie Foster, Kathy Bates, Kate Nelligan, Lily Tomlin e Donald Pleasance. Mas aparenta ser mais longo, talvez culpa da morosidade do roteiro e tem um clímax um tanto quanto fraco em relação ao que promete em seu promissor começo.
Para os fãs de Woody Allen, é obrigatório como todos os seus filmes. Para aqueles que acreditam que ele é sempre o mesmo, é necessário. Mas para quem simplesmente não gosta do diretor, não é a maneira correta de começar a gostar.
Os detratores adoram dizer que os filmes de Woody Allen são repetitivos, que seu estilo não é exatamente criativo e que seu humor judaico/neurótico/nova-iorquino/sofisticado não sai do chove-não molha. No entanto, se o diretor não estivesse no elenco de "Neblina e sombras" - seu filme de maior orçamento até hoje - era bem pouco provável que qualquer crítico do cineasta pudesse reconhecer no filme qualquer das características que marcaram sua carreira. Com exceção da inteligência - e da marca registrada de usar nomes famosos em papéis pequenos ou quase pontas - nada nessa bela homenagem ao expressionismo alemão do início do século XX aponta para o fato que seu diretor é Allen.
A primeira diferença entre "Neblina e sombras" e o resto da filmografia de Woody diz respeito à geografia. Enquanto a vasta maioria de seus filmes se passa em Nova York e arredores, aqui a história acontece em uma pequena cidade da Alemanha aterrorizada por um assassino serial que mata suas vítimas estranguladas. Para caçar o criminoso vários grupos se formam, com moradores buscando resolver a situação com as próprias mãos, uma vez que o governo parece não se importar com os trágicos acontecimentos. Kleinman (vivido pelo diretor) é um homem comum - preocupado em ser deixado em uma promoção no trabalho - que é escalado por uma dessas facções, que pedem sua ajuda, sem nunca lhe explicar sua missão. Enquanto vaga pela cidade, envolta em neblina e sombras como o título do filme sugere, ele dá de cara com Irmy (Mia Farrow), a engolidora de espadas de um circo que está se apresentando na cidade. Depois de flagrar o marido, o palhaço do circo (John Malkovich) nos braços de sua sedutora colega Marie (Madonna), Irmy encontra abrigo no bordel da cidade, onde desperta o desejo do jovem estudante Jack (John Cusack). Ao lado de Kleinman, ela tentará manter-se longe do assassino e reconstruir sua vida.
Fotografado em belíssimo preto-e-branco por Carlo Di Palma, "Neblina e sombras" também foge do estilo forjado pelo cineasta em décadas de experiência ao evitar piadas intelectualizadas demais - talvez Allen já soubesse que o projeto em si já era suficientemente arriscado comercialmente para que ele confiasse na fidelidade cega de seu público. Ao misturar um humor muito disfarçado e um suspense sem sustos, ele criou um gênero híbrido que, obviamente, não encontrou sua audiência e nem encantou a crítica. Motivos não faltam para essa frieza toda, mas não deixa de ser um exagero essa absoluta apatia em relação ao filme.
Sem dúvida nenhuma, "Neblina e sombras" não é nem de longe um Woody Allen das melhores safras: não é particularmente engraçado, nem denso ou mesmo leve. Mas é inteligente como qualquer trabalho seu - com ecos de "O processo", de Kafka e do filme "M, o vampiro de Dusseldorf", de Fritz Lang -, é extraordinariamente bem realizado - os sets foram construídos especificamente - e só o fato de reunir o elenco que reuniu é de aplaudir entusiasticamente: ao lado dos já citados, desfilam pela tela Jodie Foster, Kathy Bates, Kate Nelligan, Lily Tomlin e Donald Pleasance. Mas aparenta ser mais longo, talvez culpa da morosidade do roteiro e tem um clímax um tanto quanto fraco em relação ao que promete em seu promissor começo.
Para os fãs de Woody Allen, é obrigatório como todos os seus filmes. Para aqueles que acreditam que ele é sempre o mesmo, é necessário. Mas para quem simplesmente não gosta do diretor, não é a maneira correta de começar a gostar.
terça-feira
CABO DO MEDO
CABO DO MEDO (Cape fear, 1991, Amblin Entertainment, 128min) Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Wesley Strick, roteiro original de James E. Webb, romance de John D. MacDonald. Fotografia: Freddie Francis. Montagem: Thelma Schoonmaker. Figurino: Rita Ryack. Direção de arte/cenários: Henry Bumstead/Alan Hicks. Casting: Ellen Lewis. Produção executiva: Kathleen Kennedy, Frank Marshall. Produção: Barbara De Fina. Elenco: Robert DeNiro, Nick Nolte, Jessica Lange, Juliette Lewis, Joe Don Baker, Robert Mitchum, Gregory Peck, Martin Balsam, Ileana Douglas. Estreia: 13/11/91
2 indicações ao Oscar: Ator (Robert DeNiro), Atriz Coadjuvante (Juliette Lewis)
Martin Scorsese é o cara! Quando lança um projeto pessoal - como "Taxi driver", "Touro indomável" ou "Os bons companheiros" - se supera em técnica e paixão. E até mesmo quando trabalha praticamente sob encomenda, deixa no chinelo qualquer um que se considere cineasta. "Círculo do medo", realizado em 1962, e dirigido por J. Lee Thompson é um belo suspense. Mas empalidece consideravelmente em comparação à refilmagem comandada por Scorsese. "Cabo do medo", a reinvenção produzida pela Amblin Entertainment de Steven Spielberg, é uma das experiências mais angustiantes dos anos 90, amparada por um assustador Robert DeNiro.
Na verdade o próprio Spielberg é quem tinha interesse em refilmar "Círculo do medo" e, depois que ele deixou o filme de lado para realizar "Hook, a volta do Capitão Gancho", teve que praticamente implorar a Scorsese que comprasse a ideia. Contando com a valiosa ajuda de DeNiro, o diretor de "ET" finalmente foi feliz - mas só depois que o roteiro inicial de Wesley Strick sofreu profundas transformações. Nas mãos de Scorsese a banal luta entre advogado e cliente vingativo tornou-se um claustrofóbico embate entre dois homens dispostos a qualquer coisa para atingir seus objetivos. Com elementos novos adicionados à mistura - como sexualidade reprimida, adultério e uma personalidade bem menos unidimensional a seus protagonistas - o filme tornou-se a maior bilheteria da carreira do cineasta até "Os infiltrados", de 2006.
Quando "Cabo do medo" começa, Max Cady (Robert DeNiro, indicado a mais um Oscar por uma atuação apavorante) está saindo da cadeia, depois de passar 14 anos preso por estupro. Analfabeto à época de sua condenação, o violento agressor utilizou seu período de condenação para aprender a ler e estudar, descobrindo, nesse meio-tempo, que seu advogado de defesa, Sam Bowden (Nick Nolte em papel oferecido a Harrison Ford e Robert Redford) escondeu documentos que poderiam ter lhe amenizado o veredicto - ou até mesmo absolvê-lo. No momento de sua libertação, então, só o que lhe passa pela doentia mente é vingar-se de Bowden e, para isso, ele inicia um processo de violência psicológica contra ele e sua família, formada pela esposa, Leigh (Jessica Lange) e pela filha adolescente Danielle (Juliette Lewis). Passando por uma crise - despertada pela infidelidade conjugal de Sam - a estrutura familiar aparentemente sólida começa a ruir diante da fúria de Cady, que não mede esforços em direção a realizar sua missão.
A diferença entre "Cabo do medo" e dezenas de outros suspenses que fazem a festa dos programadores dos sábados televisivos é justamente o comando certeiro de Martin Scorsese. Dono de uma sensibilidade ímpar e de uma inteligência acima da média - além de uma cultura cinematográfica de cair o queixo - Scorsese imprime em seu filme uma personalidade inconfundível. Além de assustar o espectador em diversos momentos - afinal, um filme de suspense pede por isso - ele acrescenta à história uma densidade quase palpável. A trilha sonora tonitruante de Elmer Bernstein - que utiliza trechos da obra que Bernard Herrmann criou para o filme original - é tensa, forte e marcante, surgindo sempre como uma ameaça, um comentário ou um aviso de que Max Cady, com todo o seu ódio, está à espreita. A fotografia quente de Freddie Francis localiza com perfeição a trama no sul dos EUA - um lugar onde o medo já é costume, como bem diz uma personagem acostumada a sua terra natal. E o fato da família Bowden dessa nova versão não compartilhar da mesma felicidade de margarina do primeiro filme proporciona ao espetáculo um senso de realidade e modernidade que, ao contrário de distorcer a ideia inicial do romance de John D. MacDonald, apenas colabora em lhe dar mais profundidade.
E a profundidade do roteiro de Strick encontra no elenco escolhido por Scorsese um amparo espetacular. Enquanto DeNiro dispensa qualquer tipo de comentário, com uma atuação que supera qualquer expectativa - apesar de algumas críticas terem-no considerado um pouco exagerado. Nick Nolte transmite a angústia e a perplexidade de Sam Bowden com a segurança que seus vários anos de carreira lhe garantem e Jessica Lange vive uma Leigh equilibrada entre a fragilidade feminina e a força absoluta da maternidade. Gregory Peck e Robert Mitchum, atores da primeira versão do filme, participam em pequenas cenas, em uma homenagem carinhosa dos produtores. Mas é Juliette Lewis quem se destaca mesmo diante de seus consagrados colegas de cena. Indicada ao Oscar de coadjuvante aos 17 anos, ela abiscoitou o papel para o qual foram testados nomes como Reese Witherspoon, Jennifer Connelly e Winona Ryder e se revelou uma das grandes promessas do início da década de 90. A cena em que sua Danielle Bowden é praticamente seduzida por Cady em um cenário de peça de teatro infantil é um primor de sutileza, tensão e erotismo, uma ambivalência que perpassa todo o filme.
"Cabo do medo" pode ser assistido como um filme de suspense dos bons - com uma força crescente a cada sequência. Mas psicologicamente ele vai anda mais longe, discorrendo, ainda que discretamente, sobre complexo de Édipo, taras sexuais, frustrações eróticas e o suave equilíbrio entre o certo e o errado. É uma experiência única, como somente um diretor do porte de Scorsese é capaz de proporcionar.
2 indicações ao Oscar: Ator (Robert DeNiro), Atriz Coadjuvante (Juliette Lewis)
Martin Scorsese é o cara! Quando lança um projeto pessoal - como "Taxi driver", "Touro indomável" ou "Os bons companheiros" - se supera em técnica e paixão. E até mesmo quando trabalha praticamente sob encomenda, deixa no chinelo qualquer um que se considere cineasta. "Círculo do medo", realizado em 1962, e dirigido por J. Lee Thompson é um belo suspense. Mas empalidece consideravelmente em comparação à refilmagem comandada por Scorsese. "Cabo do medo", a reinvenção produzida pela Amblin Entertainment de Steven Spielberg, é uma das experiências mais angustiantes dos anos 90, amparada por um assustador Robert DeNiro.
Na verdade o próprio Spielberg é quem tinha interesse em refilmar "Círculo do medo" e, depois que ele deixou o filme de lado para realizar "Hook, a volta do Capitão Gancho", teve que praticamente implorar a Scorsese que comprasse a ideia. Contando com a valiosa ajuda de DeNiro, o diretor de "ET" finalmente foi feliz - mas só depois que o roteiro inicial de Wesley Strick sofreu profundas transformações. Nas mãos de Scorsese a banal luta entre advogado e cliente vingativo tornou-se um claustrofóbico embate entre dois homens dispostos a qualquer coisa para atingir seus objetivos. Com elementos novos adicionados à mistura - como sexualidade reprimida, adultério e uma personalidade bem menos unidimensional a seus protagonistas - o filme tornou-se a maior bilheteria da carreira do cineasta até "Os infiltrados", de 2006.
Quando "Cabo do medo" começa, Max Cady (Robert DeNiro, indicado a mais um Oscar por uma atuação apavorante) está saindo da cadeia, depois de passar 14 anos preso por estupro. Analfabeto à época de sua condenação, o violento agressor utilizou seu período de condenação para aprender a ler e estudar, descobrindo, nesse meio-tempo, que seu advogado de defesa, Sam Bowden (Nick Nolte em papel oferecido a Harrison Ford e Robert Redford) escondeu documentos que poderiam ter lhe amenizado o veredicto - ou até mesmo absolvê-lo. No momento de sua libertação, então, só o que lhe passa pela doentia mente é vingar-se de Bowden e, para isso, ele inicia um processo de violência psicológica contra ele e sua família, formada pela esposa, Leigh (Jessica Lange) e pela filha adolescente Danielle (Juliette Lewis). Passando por uma crise - despertada pela infidelidade conjugal de Sam - a estrutura familiar aparentemente sólida começa a ruir diante da fúria de Cady, que não mede esforços em direção a realizar sua missão.
A diferença entre "Cabo do medo" e dezenas de outros suspenses que fazem a festa dos programadores dos sábados televisivos é justamente o comando certeiro de Martin Scorsese. Dono de uma sensibilidade ímpar e de uma inteligência acima da média - além de uma cultura cinematográfica de cair o queixo - Scorsese imprime em seu filme uma personalidade inconfundível. Além de assustar o espectador em diversos momentos - afinal, um filme de suspense pede por isso - ele acrescenta à história uma densidade quase palpável. A trilha sonora tonitruante de Elmer Bernstein - que utiliza trechos da obra que Bernard Herrmann criou para o filme original - é tensa, forte e marcante, surgindo sempre como uma ameaça, um comentário ou um aviso de que Max Cady, com todo o seu ódio, está à espreita. A fotografia quente de Freddie Francis localiza com perfeição a trama no sul dos EUA - um lugar onde o medo já é costume, como bem diz uma personagem acostumada a sua terra natal. E o fato da família Bowden dessa nova versão não compartilhar da mesma felicidade de margarina do primeiro filme proporciona ao espetáculo um senso de realidade e modernidade que, ao contrário de distorcer a ideia inicial do romance de John D. MacDonald, apenas colabora em lhe dar mais profundidade.
E a profundidade do roteiro de Strick encontra no elenco escolhido por Scorsese um amparo espetacular. Enquanto DeNiro dispensa qualquer tipo de comentário, com uma atuação que supera qualquer expectativa - apesar de algumas críticas terem-no considerado um pouco exagerado. Nick Nolte transmite a angústia e a perplexidade de Sam Bowden com a segurança que seus vários anos de carreira lhe garantem e Jessica Lange vive uma Leigh equilibrada entre a fragilidade feminina e a força absoluta da maternidade. Gregory Peck e Robert Mitchum, atores da primeira versão do filme, participam em pequenas cenas, em uma homenagem carinhosa dos produtores. Mas é Juliette Lewis quem se destaca mesmo diante de seus consagrados colegas de cena. Indicada ao Oscar de coadjuvante aos 17 anos, ela abiscoitou o papel para o qual foram testados nomes como Reese Witherspoon, Jennifer Connelly e Winona Ryder e se revelou uma das grandes promessas do início da década de 90. A cena em que sua Danielle Bowden é praticamente seduzida por Cady em um cenário de peça de teatro infantil é um primor de sutileza, tensão e erotismo, uma ambivalência que perpassa todo o filme.
"Cabo do medo" pode ser assistido como um filme de suspense dos bons - com uma força crescente a cada sequência. Mas psicologicamente ele vai anda mais longe, discorrendo, ainda que discretamente, sobre complexo de Édipo, taras sexuais, frustrações eróticas e o suave equilíbrio entre o certo e o errado. É uma experiência única, como somente um diretor do porte de Scorsese é capaz de proporcionar.
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