MELANCOLIA (Melancholia, 2011, Zentropa Entertainments/Memfis Films, 130min) Direção e roteiro: Lars Von Trier. Fotografia: Manuel Alberto Claro. Montagem: Molly M. Stensgaard. Figurino: Manon Rasmussen. Direção de arte/cenários: Jette Lehman/Simone Grau Roney. Produção executiva: Peter Garde, Peter Albaek Jensen. Produção: Meta Louise Foldager, Louise Vesth. Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Alexander Skarsgard, Stellan Skarsgard, Brady Corbet, John Hurt, Charlotte Rampling, Udo Kier. Estreia: 18/5/11 (Festival de Cannes)
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes: Melhor Atriz (Kirsten Dunst)
Foi durante a entrevista coletiva de lançamento de "Melancolia", em maio de 2011, que o cineasta Lars Von Trier deu a infame declaração em que afirmava compreender Adolf Hitler. A controvérsia acabou fazendo com que o normalmente polêmico diretor fosse banido do festival, mas não impediu que seu belo filme saísse premiado com a Palma de Ouro de Melhor Atriz para Kirsten Dunst. Substituindo a primeira opção para o papel - Penélope Cruz, que pulou fora para navegar com Johnny Depp no tenebroso terceiro capítulo da cinessérie "Piratas do Caribe"- Dunst mereceu a premiação: basta poucos minutos em cena para que seu desempenho, intenso e febril, apague da mente do espectador que ele está diante da faceira Mary Jane da trilogia do Homem-aranha dirigida por Sam Raimi. Tornando-se a terceira atriz dirigida por Von Trier a sair laureada do festival francês - antes dela foram laureadas a cantora Bjork, por "Dançando no escuro", em 2000, e Charlotte Gainsbourg, por "Anticristo", de 2009 - Dunst mostrou que os elogios que recebeu ao interpretar a pequena morta-viva Claudia de "Entrevista com o vampiro" não foram levianos e que, adulta, ela é uma atriz repleta de nuances e recursos.
Segunda parte da entitulada "Trilogia da Depressão", de Von Trier - que começou com "Anticristo" e terminou com os dois volumes de "Ninfomaníaca", todos com Charlotte Gainsbourg no elenco - "Melancolia" é, sem dúvida, a obra que tem o visual mais deslumbrante dos três - cortesia da fotografia de Manuel Alberto Claro - e a trama menos polêmica e mais acessível, apesar do tema difícil. Dividido em dois capítulos com os nomes das protagonistas (depois de um belíssimo prólogo, como já passou a ser uma marca registrada do diretor), o filme conta, a grosso modo, a história de duas irmãs (e sua família) que aguardam a colisão de um planeta chamado Melancolia com a Terra, fato que, logicamente, significaria o fim do mundo. No entanto, nas mãos do cineasta, o que poderia ser mais um longa de ficção científica corriqueiro e recheado de clichês, se transforma em um estudo poderoso e angustiante sobre amor, família e depressão - esta última retratada de forma exemplar através de Justine, a personagem de Dunst.
Justine - que dá nome ao primeiro capítulo - tem tudo para ser uma mulher feliz e realizada. Bonita, inteligente e rica, ela trabalha em uma agência de publicidade, é reconhecida profissionalmente e está se casando com o homem que aparentemente ama, o carinhoso Michael (Alexander Skarsgard, da série "True blood"). Acontece que as coisas não são tão simples assim para ela: sofrendo de uma severa depressão, ela atravessa a sofisticada e caríssima festa de casamento organizada pela irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg) e pelo cunhado John (Kiefer Sutherland) - um cientista que não acredita na colisão iminente entre os dois planetas - como quem atravessa um calvário. Nada lhe excita, nada lhe impressiona, nada lhe deixa alegre e tal situação acaba ficando óbvia até para o pouco atento noivo - o que acarreta em um final pouco feliz para a cerimônia. O segundo capítulo - batizado com o nome de Claire - se passa nos dias seguintes à festa, quando Justine, ao lado da irmã, do cunhado e do sobrinho, tenta superar o agravamento de sua crise depressiva enquanto aguarda o momento em que a natureza irá decidir o destino da Terra e de seus habitantes. Dessa vez, porém, é Claire quem não tem certeza se conseguirá suportar tanta tensão e angústia.
Para que "Melancolia" seja melhor compreendido pelo seu público, é essencial que se saiba o que esperar da proposta de Lars Von Trier - que confessou ter escrito o roteiro sob forte influência de drogas e álcool, o que já dá pistas a respeito do tom pouco festivo da trama. Pouco afeito a conceitos como otimismo e felicidade, o cineasta faz desfilar pela tela personagens que não retratam exatamente as melhores qualidades do ser humano - até mesmo a mãe interpretada por Charlotte Rampling parece desprovida de qualquer traço de simpatia ou solidariedade - e não poupa o espectador de mergulhar sem reservas na doença de Justine, filmada sem filtros de glamour ou romantismo. Menos simbólico do que "Anticristo" mas ainda assim um prato cheio para quem busca no cinema uma forma de analisar o mundo contemporâneo - física ou psicologicamente - o filme de Von Trier faz uso de metáforas visuais e temáticas para atingir seus objetivos artísticos e os faz com maestria. Não é, mais uma vez em sua carreira, um filme para todos os tipos de público. Mas é um belo espetáculo narrativo e um ponto alto de sua filmografia.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
Mostrando postagens com marcador CHARLOTTE RAMPLING. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador CHARLOTTE RAMPLING. Mostrar todas as postagens
terça-feira
domingo
NÃO ME ABANDONE JAMAIS
NÃO ME ABANDONE JAMAIS (Never let me go, 2010, Fox Searchlight Pictures, 103min) Direção: Mark Romanek. Roteiro: Alex Garland, romance de Kazuo Ishiguro. Fotografia: Adam Kimmel. Montagem: Barney Pilling. Música: Rachel Portman. Figurino: Rachael Fleming. Direção de arte/cenários: Mark Digby/Michelle Day. Produção executiva: Alex Garland, Kazuo Ishiguro, Tessa Ross. Produção: Andrew Macdonald, Allon Reich. Elenco: Carey Mulligan, Andrew Garfield, Keira Knightley, Charlotte Rampling, Sally Hawkings, Domhnall Gleeson. Elenco: 03/9/10 (Festival de Teluride)
Quando se fala em ficção científica,
imediatamente o que se imagina são naves espaciais infestadas de alienígenas
malvados, efeitos visuais de última geração, orçamentos generosos à disposição
de diretores megalomaníacos e tramas que misturam, sem muito critério,
sociedades distópicas com complexas viagens no tempo – impedindo assim, com sua
ação incessante, que o público perceba a vastidão de furos em seus roteiros.
Mas é justamente o caminho oposto o seguido por Mark Romanek em “Não me
abandone jamais”: baseado em um romance de Kazuo Ishiguro (o mesmo de
“Vestígios do dia”, adaptado por James Ivory e estrelado por Anthony Hopkins e
Emma Thompson), o filme de Romanek é uma inusitada história de amor que
utiliza, com delicadeza e criatividade, elementos básicos de dois gêneros
aparentemente antagônicos que se unem harmonicamente em um interessante e
inteligente híbrido.
O roteiro de Alex Garland – escritor
e autor de “A praia”, que também virou filme, com Leonardo DiCaprio e que em
2015 estrearia como cineasta com o elogiado “Ex-machina”, que lhe rendeu uma
indicação ao Oscar – mantém o tom melancólico e quase desconfortável do livro
(em que os detalhes da trama são revelados ao leitor com uma parcimônia que
beira o minimalismo). Oferecendo pistas sobre o destino de seus protagonistas
apenas conforme a história vai avançando, a obra de Romanek - que tem apenas um
filme anterior no currículo, o suspense “Marcas de uma obsessão” (01), com
Robin Williams – envolve a plateia com um equilíbrio sutil de amor, angústia,
conformismo e, por último, mas não menos importante, uma calada esperança que
vai se tornando, a cada cena, o único pilar no qual se pode escorar como forma
de evitar o desespero total. Amparado ainda nas atuações brilhantes de Carey
Mulligan e Andrew Garfield em sua fase pré-Homem-Aranha, “Não me abandone
jamais” é um avassalador estudo sobre a alma humana e sua constante sensação de
finitude.
Contrariando as regras da ficção
científica de situar a trama em um futuro qualquer, a história de “Não me
abandone jamais” tem lugar no passado. Mais precisamente começa em 1978, quando
o público conhece seu trio de protagonistas, crianças que moram em uma escola
especial do interior da Inglaterra. A introvertida Kathy (Isobel Meikle-Small,
excelente), a esperta Ruth (Ella Purnell) e o inconstante Tommy (Charlie Rowe)
são apenas três alunos comuns do lugar, cujo conjunto de regras inclui um
cuidado excessivo com a saúde, criação de obras de arte que podem ou não serem
exibidas em uma nunca vista Galeria, brechós onde se compram objetos usados (e
muitas vezes deteriorados) e muitos segredos, mantidos sob o olhar rígido da
diretora, Sra. Emily (Charlotte Rampling). O que os estudantes não sabem – e
nem o público, até que isso seja revelado pela nova e sensível tutora da quinta
série, Sra. Lucy (Sally Hawkings) – é que eles na verdade são clones, criados
unica e exclusivamente para, quando chegar a hora certa, servirem de doadores
de órgãos a pessoas com condições financeiras de pagar por eles. Para a
romântica Kathy, o choque de tal revelação só não é maior do que o início de um
inesperado romance juvenil entre Ruth e Tommy – por quem ela é apaixonada
secretamente.
O segundo ato do filme começa
quando, já aos 18 anos, o trio de protagonistas abandona Hilsham e vai morar em
um lugar conhecido como Os Chalés. Pela primeira vez na vida eles tem contato
com pessoas de fora de sua escola – e portanto, conhecedoras de fatos da vida
que eles ignoram completamente. É com um misto de fascinação e inferioridade
que Kathy (já interpretada por Carey Mulligan), Tommy (Andrew Garfield) e Ruth
(Keira Knightley) tentam acomodar-se em um novo estilo de vida, que inclui
programas de televisão, lanchonetes e revistas eróticas. Com a sexualidade
despertada, Tommy e Ruth mantém o romance iniciado ainda na infância, para
angústia da centrada Kathy. É nesse período também que eles iniciam – de uma
forma tímida - a busca pelas pessoas que lhes deram suas características (as
chamadas originais) e ficam sabendo de um boato que pode lhes adiar o início
das doações de órgãos – ou, em outras palavras, o início de sua morte. Dois
amigos, esperançosos, lhes informam que, segundo histórias ouvidas, quando um
casal se prova apaixonado, lhes é dado um prazo maior para viverem seu amor sem
a interferência nefasta de um iminente fim. Tal possibilidade não altera a rotina
de Kathy, que, sofrendo de amor, decide afastar-se dos amigos tornando-se
“cuidadora” – ou seja, acompanhante dos pacientes em vias de doar seus órgãos.
Quase dez anos depois, já
estabelecida como uma competente cuidadora, Kathy irá reencontrar seus dois
amigos de infância – não mais juntos, Tommy e Ruth já passaram por várias
cirurgias e finalmente Kathy tem a chance de declarar seu amor ao rapaz e
tentar, desesperadamente, que eles possam ter a grande chance de ter as últimas
doações adiadas para que finalmente possam viver seu amor. E é nesse ato final
que “Não me abandone jamais” consegue, de forma sutil e delicada, unir um
romance de extrema melancolia a um drama avassalador, passando pelos domínios
da ficção científica sem prender-se a eles em excesso. A bela trilha sonora de
Rachel Portman pontua com sensibilidade a trajetória dos personagens rumo a seu
destino inevitável e a fotografia acinzentada de Adam Kimmel transmite com
precisão o clima de desesperança que perpassa toda a trama criada por Ishiguro.
Quando o quadro inteiro está diante do espectador – montado com todas as peças
que foram entregues durante a narrativa – é difícil resistir à tristeza de uma
história que discute, sem parecer pedante ou filosófica, temas pungentes como
os efeitos da clonagem humana e suas questões éticas e humanistas. Ajuda essa
discussão o fato de Romanek ser um diretor sem vícios estilísticos ou
pretensões artísticas que poderiam deformar a simplicidade da trama e roubar
dela sua essência nitidamente romântica.
E romantismo é o que não falta a
“Não me abandone jamais”, especialmente quando o roteiro sai de suas polêmicas
científicas para concentrar-se na sensibilidade de seus protagonistas,
especialmente Kathy e Tommy – Ruth acaba se tornando uma coadjuvante no
decorrer da trama, parte porque sua personagem serve como uma espécie de
obstáculo ao amor puro entre os outros dois jovens, parte porque sua
intérprete, Keira Knightley, mais uma vez demonstra uma intensa fragilidade
dramática, usando e abusando de caras e bocas que contrastam violentamente com
a economia dramática de seus colegas de cena. Carey Mulligan, uma das grandes
atrizes surgidas a partir de 2009 – quando foi indicada ao Oscar por “Educação”
– conquista a simpatia e a solidariedade da plateia sem precisar apelar para
muito mais do que seu carisma delicado e suave e Andrew Garfield surpreende ao
criar um Tommy quase passivo em sua tranquilidade conformada que extravasa em
crises de gritos e agressão toda a impotência de uma vida implacavelmente
criada com o objetivo de ser-lhe tirada no auge da saúde. O que pode parecer
estranho ao espectador – a forma acomodada com que os personagens assumem seu
destino – é explicada através de Mulligan e Garfield, dois jovens atores que
filtram, em seus olhares e expressões delicadas, os tormentos de almas que
sabem de sua missão na Terra e preferem cumprir seu destino a lutar contra ele.
É triste, é melancólico e é quase depressivo. Mas, sob o comando de Mark
Romanek e das palavras de Kasuo Ishiguro e traduzidas por uma bela fotografia e
uma sublime trilha sonora, é também um dos melhores filmes de 2010,
injustamente esquecido pelas cerimônias de premiação que encheram de homenagens
o insosso e clichê “O discurso do rei”.
quinta-feira
CORAÇÃO SATÂNICO
CORAÇÃO SATÂNICO (Angel heart, 1987, TriStar Pictures, 113min) Direção: Alan Parker. Roteiro: Alan Parker, romance "Falling angel", de William Hjorstberg. Fotografia: Michael Seresin. Montagem: Gerry Hambling. Música: Trevor Jones. Figurino: Aude Bronson-Howard. Direção de arte/cenários: Brian Morris/Robert J. Franco, Leslie Pope. Casting: Risa Bramon, Billy Hopkins. Produção executiva: Mario Kassar, Andrew Vajna. Produção: Elliott Kastner, Alan Marshall. Elenco: Mickey Rourke, Robert DeNiro, Lisa Bonet, Charlotte Rampling. Estreia: 06/3/87
Uma das experiências mais apavorantes do cinema dos anos 80, “Coração satânico” não é apenas um filme de terror. Filmes de terror assustam (ou não) e quando acabam são facilmente esquecíveis. Esta obra-prima do inglês Alan Parker não dá um único susto em suas mais de duas horas de duração, mas em compensação angustia, incomoda, e o que talvez seja mais importante: fica na memória por um bom tempo.
Baseado em um romance pouco conhecido de William Hjorstberg, “Coração satânico” já começa bem pela atmosfera lúgubre e escura, que perpassa todo o filme. Passada nos anos 50, a trama gira em torno de Harry Angel (Mickey Rourke, ótimo), um detetive particular que recebe a incumbência de encontrar Johnny Favorite, um músico de jazz que deve favores a seu empregador, o misterioso Louis Cypher (Robert De Niro, apavorante). Seguindo a pista de Favorite, Angel vai parar em New Orleans, onde se depara com rituais de vudu e magia negra e se envolve com a dúbia Evangeline Proudfoot (Lisa Bonet), que aparenta saber bem mais do que quer revelar. Enquanto vai se enredando cada vez mais nas investigações, o detetive acaba sendo o suspeito de inúmeros crimes que acontecem sempre que ele está por perto. Para salvar a própria pele, ele vai mais a fundo no caso e acaba descobrindo uma verdade aterradora sobre seu cliente e sobre si mesmo.
É difícil dizer o que é mais acertado em “Coração satânico”. O roteiro, escrito pelo próprio Alan Parker é intrincado e assustador na medida certa, entregando aos poucos a verdade sobre seus personagens, defendidos por atores em plena forma. Se Robert De Niro não precisa provar nada a ninguém, é Mickey Rourke quem se destaca, na atuação de sua vida - um papel oferecido a Jack Nicholson, Al Pacino e ao próprio DeNiro. O tom sombrio da fotografia devidamente úmida e escura de Michael Seresin combina à perfeição com a música perfeita de Quincy Jones, que buscou nas raízes do gospel a inspiração para seu trabalho.
Repleto de metáforas óbvias e outras nem tão óbvias assim, “Coração satânico” é um dos mais angustiantes trabalhos do cinema de suspense da história. Sujo, desagradável e sem concessões ao comercial, o filme de Parker é cinema com C maiúsculo, um exercício para se ver e rever inúmeras vezes. E ficar chocado sempre.
sexta-feira
MEMÓRIAS
MEMÓRIAS (Stardust memories, 1980, United Artists, 89min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Gordon Willis. Montagem: Susan E. Morse. Figurino: Santo Loquasto. Direção de arte/cenários: Mel Bourne/Steven Jordan. Casting: Juliet Taylor. Produção executiva: Charles H. Joffe, Jack Rollins. Produção: Robert Greenhut. Elenco: Woody Allen, Charlotte Rampling, Jessica Harper, Marie-Christine Barrault, Tony Roberts. Estreia: 26/9/80
Há quem ache que a filmografia de Woody Allen é hermética. Até mesmo suas comédias mais populares e simples esbarram nessa crítica infundada de seus detratores, que não veem em sua obra concessões ao comercial (o que, diga-se de passagem, faz com que seu trabalho sempre esteja patamares acima do convencional). Mas quem acha que coisas como "Noivo neurótico, noiva nervosa" são de difícil assimilação (talvez por sua inteligência e seu sarcasmo) deve ficar com o cérebro inchado ao assistir "Memórias", que, assim como "Interiores" não deixa espaço para simplificações banais. Talvez seja, sim, um tanto hermético. Mas, mais do que isso, é engraçadíssimo.
Decepcionado com artigos escritos sobre ele na imprensa e com a apática recepção da Academia de Hollywood a seu primeiro filme "sério", o drama "Interiores", Allen escreveu um roteiro ácido e crítico sobre a relação entre cineastas e jornalistas, bem como seu problemático relacionamento com o público. Ainda que o diretor negue veemente as origens autobriográficas de seu filme, é impossível não perceber nele algumas de suas mais marcantes características. E são justamente essas pequenas piadas internas que fazem de "Memórias" um dos filmes mais interessantes de Allen - não coincidentemente um de seus preferidos.
Em "Memórias", Allen interpreta Sandy Bates, um cineasta famoso por suas comédias de sucesso que recebe com surpresa a péssima recepção a seu primeiro trabalho dramático. Convidado para participar de uma espécie de retrospectiva de sua carreira em um festival de cinema, ele aproveita a oportunidade para refletir sobre seu legado artístico e sobre sua vida pessoal, seja nas lembranças de sua infância ou dos fracassados relacionamentos amorosos, principalmente com uma atriz psicologicamente desequilibrada, Dorrie (Charlotte Hampling). Perseguido por fãs, ele mal tem tempo para dedicar a sua nova namorada, a francesa Isobel (Marie-Christine Barrault), que acaba de deixar o marido por ele.
"Memórias" impressiona desde sua primeira sequência, claramente inspirada em "Fellini 8 1/2": em um opressivo preto-e-branco, um homem (vivido também por Allen) tenta desesperadamente sair de um trem em movimento, sendo impedido por um grupo de pessoas com feições bizarras e excêntricas (no trem ao lado, acenando para ele está uma jovem Sharon Stone estreando no cinema). A partir dessa cena - que é bem possível que tenha sido a responsável pela disseminação de que a obra do cineasta é "difícil" - Allen joga com uma espécie de metalinguagem ao mesmo tempo irônica e melancólica. É impossível não rir com alguns dos diálogos mais inspirados de sua carreira, assim como é bem pouco producente tentar evitar as comparações com a realidade vivida por ele e outros artistas que tentam sair do lugar-comum. É sintomático, inclusive, que o filme se encerre com comentários das personagens a respeito do "filme dentro do filme". Allen brinca com coisa séria, e os fãs agradecem.
Claramente felliniano (assim como "Interiores" era obviamente bergmaniano), "Memórias" tem uma fotografia inspirada de Gordon Willis (já habituado ao trabalho de Allen), que sufoca, brinca e encanta na medida certa. A química entre Allen e Charlotte Hampling funciona às mil maravilhas, proporcionando aos dois algumas das cenas mais bonitas do filme (e, segundo reza a lenda, a personagem de Hampling foi inspirada na primeira mulher do diretor, Louise Lasser). Ao equilibrar um humor dos mais inteligentes a uma crítica feroz ao "sistema", "Memórias" atinge um nível de qualidade ímpar na obra de Allen, ainda que seja um de seus filmes menos famosos.
Apesar de não ser tão premiado quanto "Noivo neurótico..." ou tão querido pelo público quanto "Manhattan", "Memórias" merece figurar entre os melhores filmes de Woody Allen, principalmente devido a suas entrelinhas nem tão disfarçadas assim. Coisa de gênio!
Assinar:
Postagens (Atom)
JADE
JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...
-
EVIL: RAÍZES DO MAL (Ondskan, 2003, Moviola Film, 113min) Direção: Mikael Hafstrom. Roteiro: Hans Gunnarsson, Mikael Hafstrom, Klas Osterg...
-
NÃO FALE O MAL (Speak no evil, 2022, Profile Pictures/OAK Motion Pictures/Det Danske Filminstitut, 97min) Direção: Christian Tafdrup. Roteir...
-
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (Presumed innocent, 1990, Warner Bros, 127min) Direção: Alan J. Pakula. Roteiro: Frank Pierson, Alan J. Paku...