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sexta-feira

TERAPIA DO SEXO

TERAPIA DO SEXO (Thanks for sharing, 2012, Class 5 Films/Olympus Pictures, 112min) Direção: Stuart Blumberg. Roteiro: Stuart Blumberg, Matt Winston. Fotografia: Yaron Orbach. Montagem: Anne McCabe. Música: Christopher Lennertz. Figurino: Peggy Schnitzer. Direção de arte/cenários: Beth Mickle/Lisa K. Nilsson. Produção executiva: Edward Norton. Produção: Miranda de Pencier, David Koplan, William Migliore, Leslie Urdang, Dean Vanech. Elenco: Mark Ruffalo, Gwyneth Paltrow, Tim Robbins, Josh Gad, Joely Richardson, Alecia Moore (Pink), Patrick Fugit, Carol Kane, Emily Meade. Estreia: 08/9/12 (Festival de Toronto)

Uma pista para se descobrir o que se pode esperar da comédia dramática "Terapia do sexo" é o nome de seu diretor e corroteirista Stuart Blumberg. Indicado ao Oscar de roteiro original por "Minhas mães e meu pai" - que escreveu com a diretora do filme, Lisa Cholodenko - Blumberg parece ter com seus personagens um carinho e um respeito que torna quase impossível à plateia ser-lhes indiferente. Ao construir sua trama em torno de três viciados em sexo em estágios diferentes do problema, ele não apenas fala de um assunto ainda pouco explorado no cinema como humaniza os protagonistas, aproximando cada um deles, com seus erros e acertos, de qualquer espectador. Esse cuidado é que faz toda a diferença: seu filme de estreia pode não ser uma obra-prima, mas é agradável, despretensioso e, o que não é nada desprezível, conta com um elenco acima de qualquer suspeita.

Mark Ruffalo - que concorreu ao Oscar de coadjuvante por "Minhas mães e meu pai" - é, de certa forma, o centro da história. Ele interpreta Adam, um viciado em sexo que comemora o quinto aniversário de sobriedade mantendo absoluto controle sobre as tentações que o cercam (não assiste televisão, não tem acesso à Internet e ainda frequenta as reuniões de seu grupo de apoio). Seu padrinho é Mike (Tim Robbins), que superou os vícios em sexo e álcool mas não consegue manter uma relação saudável com o filho Danny (Patrick Fugit), que se afastou da família por causa das drogas e retorna afirmando estar limpo há oito meses. Ao contrário dos dois, porém, o jovem Neil (Josh Gad) ainda está nos primeiros passos do tratamento: médico que tem sua carreira prejudicada por seu vício, ele tem dificuldades de abandonar sua rotina de masturbação compulsiva e assédios no metrô. Seguindo esses três personagens, a trama acompanha também suas vitórias e derrotas pessoais, sem esquecer de outras personagens que lhes servem de apoio.


Sentindo-se confiante em recomeçar sua vida, Adam conhece e se apaixona por Phoebe (Gwyneth Paltrow), sobrevivente de um câncer de mama que dedica seus dias à alimentação saudável e aos treinos para um triatlo. Mike conta com a compreensão incondicional de Katie (Joely Richardson), a esposa que o perdoou pelos erros do passado e tenta lidar com sua dificuldade de expressar afeto pelo único filho. E Neil encontra em outra paciente do grupo de apoio, Dede (a cantora Pink, creditada como Alecia Moore), uma relação calcada na amizade e no companheirismo que ajuda a ambos a superar seus problemas e descobrir uma nova forma de viver com eles. Todas essas relações - familiares, amorosas, de amizade - mostram que é a ajuda dos outros que faz de cada um uma pessoa melhor. E é esse otimismo outro ponto positivo de "Terapia do sexo".

Optando por fugir da densidade psicológica de "Shame" - dirigido por Steve McQueen, estrelado por Michael Fassbender e que também tinha o vício em sexo como tema central - Stuart Blumberg tempera seu filme com pitadas de humor (em especial na relação entre Josh Gad e Pink), referências à cultura popular contemporânea e um visual claro e ensolarado que contrasta com o peso que o drama de seus personagens exige. O elenco acerta o tom proposto pelo diretor - nem um dramalhão sofrido nem uma comédia rasgada - e tira de letra todas as nuances dos protagonistas, que, como afirmado anteriormente, soam como pessoas reais, com todas as idiossincrasias a que tem direito. Não é um grande filme - nem tem pretensões quanto a isso - mas é um entretenimento honesto e bem realizado, que demonstra o talento de Blumberg em contar histórias sobre gente como a gente. Que venham as próximas!

O SUSPEITO DA RUA ARLINGTON

O SUSPEITO DA RUA ARLINGTON (Arlington Road, 1999, Screen Gems/Lakeshora Entertainment, 117min) Direção: Mark Pellington. Roteiro: Ehren Kruger. Fotografia: Bobby Bukowski. Montagem: Conrad Buff IV. Música: Angelo Badalamenti. Figurino: Jennifer Barrett-Pellington. Direção de arte/cenários: Thèrese DePrez/Barbara Haberecht. Produção executiva: Tom Rosenberg, Sigurjon Sighvatsson, Ted Tannenbaum. Produção: Tom Gorai, Marc Samuelson, Peter Samuelson. Elenco: Jeff Bridges, Tim Robbins, Joan Cusack, Hope Davis, Robert Gossett, Mason Gamble, Spencer Treat Clark. Estreia: 19/3/99

Dois anos antes dos atentados que devastaram os EUA - e consequentemente o mundo inteiro - o medo do terrorismo já rondava a mente dos executivos de Hollywood, ainda que banhadas pelo verniz da ficção. Porém, um dos filmes que ousavam mexer em tal ferida (que ainda seria uma das mais doloridas e assustadoras da história) teve uma recepção apenas morna quando estreou, no início de 1999. Dirigido por Mark Pellington - oriundo do mundo dos videoclipes, onde comandou nomes de peso como U2 e Pearl Jam - "O suspeito da Rua Arlington" escancarava a paranoia ianque como poucos filmes de sua época, construindo um suspense crescente que enfatizava com seriedade um dos maiores medo da sociedade: a possibilidade de estar bem mais perto do inimigo do que se poderia imaginar (ou desejar).

Tudo começa com uma sequência impressionante, que mostra um menino chegando tropegamente à casa onde mora, com a mão esquerda mutilada violentamente. Quem o socorre é Michel Faraday (Jeff Bridges), professor de História Americana na Universidade George Washington e que, por coincidência, mora na mesma rua. No hospital, Faraday fica sabendo que o garoto se chama Brady e é um dos filhos de um casal de vizinhos, o engenheiro Oliver Lang (Tim Robbins) e a dona-de-casa Cheryl (Joan Cusack). Ainda traumatizado pela inesperada morte da esposa, agente do FBI morta em serviço, Faraday está aos poucos se envolvendo em um novo romance, com a ex-assistente Brooke (Hope Davis) e sente-se aliviado ao perceber que seu único e solitário filho, Grant (Spencer Treat Clark), finalmente está se enturmando com Brady. As duas famílias aos poucos iniciam uma amizade repleta de churrascos aos fins-de-semana e jantares íntimos, até que, por um acaso do destino, o professor passa a desconfiar que Lang não é quem diz ser: investigando algumas informações incoerentes, ele chega à conclusão (não confirmada nem mesmo pelo colega de sua falecida esposa) de que o misterioso engenheiro é, na verdade, um terrorista - e que tem planos aterrorizantes.


Ao modo hitchcockiano de contar uma história, o cineasta Mark Pellington introduz aos poucos toda a aura de mistério e paranoia que cerca Michael Faraday, transformando-o em mais um heroi desacreditado por todos à sua volta até que as evidências tornam-se mais e mais próximas da verdade. Sublinhado pela trilha sonora eficiente do veterano Angelo Badalamenti - habitual colaborador de David Lynch - o medo do protagonista vai se acentuando conforme o cerco se fecha em torno de si, envolvendo sem piedade seu filho e a namorada, que acabam se tornando vítimas inocentes de sua paranoia. Uma pena, porém, que assim que a verdade finalmente esteja diante do espectador - e ela chega de forma inteligente e sem pressa - o roteiro resolva mudar o tom, transformando um suspense sofisticado e sufocante em um filme de ação que, apesar de bem dirigido e editado, inevitavelmente perde sua aura de sutileza para metamorfosear-se em um thriller bem menos incomum - e consertar a sensação de decepção com um final ousado e surpreendente.

Contando com a ajuda mais do que especial de uma dupla de atores capazes de dar credibilidade a qualquer história, Mark Pellington não hesita em concentrar-se em seus inspirados trabalhos para enfatizar todas as nuances de sua trama. Enquanto Jeff Bridges brilha mais uma vez como o heroi incompreendido cujo desespero aumenta a cada cena (é emocionante a sequência em que ele relembra a estúpida morte da esposa, em um flashback inserido corretamente na edição), Tim Robbins deita e rola com seu dúbio Oliver Lang, um homem cuja verdade só é revelada ao espectador no terço final de exibição - e que até lá consegue manter uma dúvida angustiante sobre sua vida pregressa. Vale ressaltar também a atuação imprevisível de Joan Cusack, mostrando que, por trás de uma comediante de mão cheia existe uma atriz de muitos recursos dramáticos.

Inteligente, empolgante e sério, "O suspeito da Rua Arlington" é um dos mais importantes filmes de suspense do final dos anos 90, que antecipava de forma trágica a atmosfera de medo e paranoia que tomaria conta dos EUA em pouco tempo.

quinta-feira

NA RODA DA FORTUNA

NA RODA DA FORTUNA (The Hudsucker Proxy, 1994, Warner Bros, 111min) Direção: Joel Coen. Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen, Sam Raimi. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Thom Noble. Música: Carter Burwell. Figurino: Richard Hornung. Direção de arte/cenários: Dennis Gassner/Nancy Haigh. Produção executiva: Tim Bevan, Eric Fellner. Produção: Ethan Coen. Elenco: Tim Robbins, Jennifer Jason Leigh, Paul Newman, Bruce Campbell, John Mahoney, Charles Durning, Peter Gallagher. Estreia: 11/3/94

No cinema abertamente corporativo de Hollywood nos gananciosos anos 90, não deixa de ser surpreendente que os irmãos Coen conseguissem realizar filmes tão fora do comum quanto "Na roda da fortuna" - que se seguia aos igualmente estranhos no ninho "Um gosto de sangue" (84), "Arizona nunca mais" (87), "Ajuste final" (90) e "Barton Fink, delírios de Hollywood" (91), todos dotados de uma personalidade própria rara no cinemão mainstream. Uma espécie de sátira aos ingênuos filmes de Frank Capra com altas doses de cinismo na receita, o filme logicamente não encontrou seu público nas bilheterias - talvez porque a audiência não tenha compreendido a brincadeira, talvez porque os próprios irmãos cineastas não tivessem a intenção de agradar ninguém a não ser eles mesmos, com seu humor iconoclasta e repleto de ironia ao american way of life. O fato é que, apesar do fracasso comercial, "Na roda da fortuna" também é um dos menos lembrados filmes dos Coen, sempre relegado a uma prateleira virtual de obras menores. Injustiça pura, já que é uma comédia deliciosa, visualmente deslumbrante e protagonizada por um Tim Robbins no auge da carreira.

Imaginar como ficaria o filme com Tom Cruise no papel central - ideia sem o menor cabimento do produtor não-creditado Joel Silver - chega a soar como um pesadelo, mas felizmente Joel, o diretor, e Ethan, o produtor (ambos também são roteiristas) tem, entre várias outras qualidades artísticas, firmeza nas suas escolhas, e não abriram mão de escalar Robbins como o caipira Norville Barnes, protagonista de sua saga sobre a ambição e a força da inocência. Vindo de uma bem-sucedida estreia como diretor em "Bob Roberts" e um Golden Globe de melhor ator cômico por "O jogador", ambos lançados em 1992, o então marido de Susan Sarandon entrega mais uma performance consagradora na pele de um homem comum e sonhador que, aportando na Nova York do final de 1958, dá de cara com um mundo hostil à sua simplicidade com uma poderosa engrenagem que esmaga toda e qualquer generosidade. É claro que, em se tratando de um filme dos Coen, não existe espaço para sentimentalismo barato nessa descoberta - há até mesmo um Charles Durning de anjo da guarda, com auréola e tudo, aconselhando Barnes no final - mas sua mensagem otimista é transmitida da mesma forma, graças à formidável quantidade de acertos do produto final.



A maior de todas as qualidades é uma que acompanha os diretores desde sua estreia, com o noir "Gosto de sangue": a escalação certeira do elenco. Se Tim Robbins dá um show particular desfilando todas as nuances de seu personagem com extrema competência e naturalidade, o mesmo pode ser dito de Paul Newman, poucas vezes visto na tela se divertindo tanto: como o maquiavélico Sidney J. Mussburger, o veterano demonstra um invejável senso de humor, sempre de posse de um gigantesco e fálico charuto e disparando barbaridades a quem quiser ouvir. Quem não acerta muito o tom de sua personagem, no entanto, é Jennifer Jason Leigh - apesar de ótima atriz, ela parece exagerar na composição de sua repórter disfarçada de secretária que acaba se tornando o interesse amoroso do protagonista, emulando Carole Lombard e Claudette Colbert com uma dose a mais de histrionismo. Além disso, há os deslumbrantes cenários de Dennis Gassner, a fotografia impecável de Roger Deakins e a música imponente e debochada de Carter Burwell, que compõem um extraordinário quadro para os diálogos espertos e a trama imprevisível.

A trama, aliás, é um achado do humor sofisiticado: justamente quando suas empresas estão no auge do sucesso, o diretor das indústrias Hudsucker (vivido por um igualmente divertido Charles Durning) se joga da janela do 44º andar de seu prédio, para susto de sua diretoria. Com o objetivo de comprar suas ações a um preço acessível e tornar-se acionista majoritário da empresa, o vice-presidente Sidney J. Mussburger (Newman) tem a ideia de nomear para a presidência alguém capaz de fazer com que o preço de tais ações caiam assustadoramente e escolhe para isso o recém-contratado Norville Barnes (Robbins) - formado em Administração em sua cidade do interior, totalmente perdido na imensa Nova York e funcionário do setor de correspondência da empresa. O que Mussburger jamais poderia imaginar é que, por trás da aparente ingenuidade de Barnes existe um homem inteligente e que tem uma ideia inovadora para alavancar os lucros: o ainda inédito bambolê.

Vasto de piadas visuais, diálogos inteligentes e dotado de uma direção criativa e nada vulgar, "Na roda da fortuna" é um triunfo. Merece ser descoberto, redescoberto ou finalmente reconhecido como mais um grande trabalho dos irmãos Coen.

terça-feira

SHORT CUTS, CENAS DA VIDA

SHORT CUTS, CENAS DA VIDA (Short cuts, 1993, Fine Line Features/Spelling Films International, 187min) Direção: Robert Altman. Roteiro: Robert Altman, Frank Barhydt, contos de Raymond Carver. Fotografia: Walt Lloyd. Montagem: Geraldine Peroni. Música: Mark Isham. Figurino: John Hay. Direção de arte/cenários: Stephen Altman/Susan J. Emshwiller. Produção executiva: Scott Bushnell. Produção: Cary Brokaw. Elenco: Andie MacDowell, Bruce Davison, Jack Lemmon, Julianne Moore, Matthew Modine, Anne Archer, Fred Ward, Jennifer Jason-Leigh, Chris Penn, Lily Taylor, Robert Downey Jr., Madeleine Stowe, Tim Robbins, Lily Tomlin, Tom Waits, Frances McDormand, Peter Gallagher, Annie Ross, Lori Singer, Lyle Lovett, Buck Henry, Huey Lewis. Estreia: 05/9/93 (Festival de Veneza)
Indicado ao Oscar de Diretor (Robert Altman)

Desde que recuperou o prestígio e as boas graças da indústria e do público com "O jogador" (92), que lhe deu a Palma de Ouro em Cannes e uma indicação ao Oscar de diretor, Robert Altman entrou em uma boa fase sem precedentes em sua carreira. Qualquer projeto que levasse sua assinatura no começo da década era garantia de entusiasmadas expectativas por parte da indústria e dos fãs - situação que acabou com "Pret-a-porter" (95), malfadada tentativa de desvendar os bastidores do mundo da moda que fracassou nas bilheterias e desagradou a gregos e troianos. Antes disso, porém, Altman encantou a crítica com um ambicioso projeto que reunia contos de Raymond Carver em um único filme, misturando seu próprio estilo de cinema (uma tênue linha narrativa abarcando inúmeros personagens independentes entre si) com a prosa minimalista e frequentemente poetica do escritor norte-americano. "Short cuts, cenas da vida" resultou em uma produção longa (três horas de duração que soam exatamente como três horas de duração), irregular e calcada basicamente em seu vasto elenco de ótimos atores, porque, apesar de todos os aplausos, é um filme cansativo e que vai do nada pra lugar nenhum.

É fácil de entender porque os atores gostam de trabalhar com Altman: é perceptível que o veterano cineasta lhes dá a liberdade de improvisar e criar em cima de personagens com uma carga humana muitas vezes inexistente no cinema comercial americano. É também fácil de compreender o entusiasmo com que a crítica muitas vezes recebe seus trabalhos: diretores autorais, com uma visão especial do mundo e da própria indústria são raros, especialmente depois que a era dos visionários deu lugar à era dos efeitos especiais e dos lucros milionários. Porém, para gostar de Robert Altman é preciso, mais do que tudo, gostar do seu estilo peculiar de cinema. Quem procura filmes com tramas bem amarradas ou narrativas estruturadas do modo convencional corre o sério risco de decepcionar-se com a obra do diretor, normalmente avessa a tais regras. Altman é o típico caso de amar ou odiar. E talvez "Short cuts" seja um de seus mais radicais exercícios.


Justamente por não ter uma espinha dorsal rígida - os detratores diriam que falta uma trama central - "Short cuts" depende muito da boa-vontade do espectador em seguir todas as histórias contadas pelo roteiro, que se cruzam sutil e aleatoriamente pelos subúrbios de uma Los Angeles ameaçada tanto por fenômenos naturais (terremotos, enxames de moscas) quanto pelos problemas de relacionamento entre famílias e amigos. Se existe um incidente que dá o empurrão inicial em tudo pode-se dizer que é o atropelamento do pequeno Casey (Zane Cassidy), filho da dona-de-casa Ann (Andie MacDowell) e do comentarista de telejornal Howard (Bruce Davison) - cujo pai, Paul (Jack Lemmon dando olé em cena), abandonou a família anos antes e retorna como se nada tivesse acontecido. Quem atropela o menino e o manda para o hospital sem que saiba das consequências do seu ato é a garçonete Doreen Piggot (Lily Tomlin), que, ironicamente, é casada com um chofer particular que luta contra o alcoolismo, Earl (Tom Waits). Sua filha, Honey (Lily Taylor) é casada com um aprendiz de maquiador de cinema, Bill (Robert Downey Jr.), que é o melhor amigo de Jerry Kaiser (Chris Penn), casado com Lois (Jennifer Jason Leigh), que trabalha como atendente em uma empresa de sexo por telefone.

E assim por diante. Duas dezenas de personagens desfilam pela tela, repletos de problemas cotidianos e dramas pessoais que se equilibram entre o banal e o surreal. Há casamentos em crises, ex-maridos truculentos, pescadores que continuam seu passatempo a despeito do cadáver de uma jovem a poucos metros, traições extraconjugais e até mesmo uma Julianne Moore em nu frontal em uma cena que espanta pela naturalidade: enquanto discute com o marido a respeito de um possível adultério passado, ela - totalmente nua da cintura pra baixo - Moore passa a ferro a roupa amarrotada por acidente. Assim é o cinema de Altman: banal, simples, direto. Enquanto uma jovem violoncelista sofre com a tristeza do mundo e um padeiro se revolta com o que considera um desrespeito a seu trabalho, a terra treme, a vida segue e raivas enrustidas explodem com violência. Nem sempre o trabalho do cineasta é palatável. Mas quem gosta de fugir do feijão-com-arroz do cinemão americano pode se interessar bastante.

BOB ROBERTS

BOB ROBERTS (Bob Roberts, 1992, Miramax Films, 102min) Direção e roteiro: Tim Robbins. Fotografia: Jean Lépine. Montagem: Lisa Zeno Churgin. Música: David Robbins. Figurino: Bridget Kelly. Direção de arte/cenários: Richard Hoover/Brian Kasch. Produção executiva: Tim Bevan, Ronna B. Wallace, Paul Webster. Produção: Forrest Murray. Elenco: Tim Robbins, Giancarlo Esposito, Alan Rickman, Ray Wise, Gore Vidal, David Straithairn. Estreia: 04/9/92

Imagine um Bolsonaro sem a cara de insano e dotado de carisma. Imagine também que, antes de candidatar-se a qualquer cargo político, ele tenha iniciado uma carreira de cantor, espalhando suas ideias neofascistas e ridiculamente racistas pelas emissoras de rádio e televisão a ponto de conquistar um público apaixonado (se bem que essa parte do público bovino aplaudindo barbaridades nem é preciso imaginar). E por fim, imagine que ele estivesse envolvido em escândalos relacionados a tráfico de drogas e manobras sujas para denegrir a honra de seu adversário direto. Pois é exatamente assim que é Bob Roberts, personagem criado por Tim Robbins para sua estreia na direção. Republicano arraigado, cantor folk de canções que defendem a pena de morte e o extermínio de moradores de rua entre outras barbaridades, demagogo e ídolo de uma parcela da sociedade americana tão podre quanto ele, Roberts é candidato ao Senado e, disputando voto a voto com Brickley Paiste (o escritor Gore Vidal), não hesita em apelar para os mais golpes baixos para alavancar sua campanha. Interpretado na medida certa de ironia pelo próprio Tim Robbins - que concorreu ao Golden Globe por seu desempenho - o venal político é a prova cabal de que não é só no Brasil que o povo tem os representantes que merece. As situações absurdas mostradas no filme seriam cômicas se não fossem trágicas. Mas divertem e fazem massagem no cérebro, o que pode ser dito de pouquíssimos filmes americanos.

Robbins, que foi comparado a Orson Welles por sua estreia - por ter dirigido, escrito e produzido o filme, além de interpretar o papel-título, cantar e compor as canções da trilha sonora ao lado do irmão David - fez de seu primeiro trabalho uma espécie de "O jogador" da política (com a diferença de ter alcançado menos sucesso comercial e ser superior ao filme de Robert Altman que ele coincidentemente estrelou). Não apenas escancara o lado sujo dos bastidores políticos - ainda que pouca gente tenha se surpreendido com tal podridão - como conta com um numeroso elenco de astros convidados em pequenas pontas. Até mesmo como forma de posicionar-se diante das atrocidades do governo Bush (o pai, não o filho igualmente boçal) estão em cena, em papéis diminutos, Susan Sarandon (esposa de Robbins à época), Peter Gallagher, Helen Hunt, James Spader, Fred Ward e John Cusack, além de um estreante Jack Black e, em papéis mais importantes, Alan Rickman e David Straithairn. Juntos, eles compõem um painel divertido e por vezes assustador do tamanho das mentiras e manipulações de que são capazes os homens e mulheres que almejam chegar ao poder nos EUA. Narrada em estilo semi-documental (o filme em si é um documentário que está sendo feito sobre a carreira e a ascensão de Roberts), é uma estreia genial de um ator que sempre esteve abertamente ligado à causas políticas (e por isso mesmo sempre comprou brigas, juntamente com Sarandon, principalmente com os produtores do Oscar, que os baniram da cerimônia por anos depois que eles se manifestaram, ao vivo, contra a política do governo em barrar haitianos portadores do vírus HIV).


Utilizando-se da ironia como ferramenta central de seu roteiro, Robbins leva o público a acompanhar a meteórica ascensão de Bob Roberts de cantor pouco conhecido a ídolo de uma geração de eleitores que compartilham, como ele, de ideias dramaticamente contra a democracia. Roberts renega o legado dos anos 60 e dos jovens que lutavam contra a Guerra do Vietnã, prega a utilização de um orçamento ainda maior para a segurança do país em detrimento de ajudar aos mais necessitados (parasitas, segundo ele, que tiram o lugar de trabalhadores mais dispostos) e é abertamente racista. Suas ideias são transmitidas em suas músicas e videoclipes (todos eles realizados de maneira séria mas decididamente hilariantes em sua crítica), além de discursos inflamados e entrevistas que invariavelmente acabam com a fúria dos apresentadores - é especialmente divertida a sequência em que ele vai participar de um programa ao estilo "Saturday night live" e pé francamente hostilizado pelo elenco. Sua máscara, no entanto, não engana a um homem em especial: o repórter independente Bugs Raplin (Giancarlo Esposito, irreconhecível e excepcional), que tem como principal objetivo de vida mostrar ao público quem é de verdade o almofadinha que, por trás de um homem preocupado com o bem-estar das crianças, esconde alguém capaz de usar dinheiro de casas populares para traficar drogas.

"Bob Roberts" é um rasgo de sarcasmo e mordacidade na bem-comportada comédia americana. Politicamente ousado e sem medo de tocar em feridas bem abertas no imaginário ianque - tais como a guerra inventada por George Bush e a manipulação da opinião pública através da mídia - o filme de Tim Robbins também é cruel por expor uma juventude desinformada e manobrável, capaz dos atos mais insanos para defender seus pontos de vista tortuosos. Mesmo que o roteiro trate os eleitores de Roberts como um bando de idiotas (como o são aqueles que assinam embaixo dos absurdos da bancada evangélica da nossa câmara de deputados e do já citado Bolsonaro), isso não transforma a obra em um produto maniqueísta: não interessa ao diretor discutir o que não deve ser discutido. Bob Roberts - o candidato - é um câncer no sistema político. "Bob Roberts" - o filme - é uma das comédias mais inteligentes da década de 90.

sexta-feira

O JOGADOR

O JOGADOR (The player, 1992, Avenue Pictures Productions/ Spelling Entertainment/Addis Weschler Pictures, 124min) Direção: Robert Altman. Roteiro: Michael Tolkin, romance de sua autoria. Fotografia: Jean Lépine. Montagem: Maysie Hoy, Geraldine Peroni. Música: Thomas Newman. Figurino: Alexander Julian. Direção de arte/cenários: Stephen Altman/Susan Emshwiller. Produção executiva: Cary Brokaw. Produção: David Brown, Michael Tolkin, Nick Weschler. Elenco: Tim Robbins, Greta Schacchi, Fred Ward, Whoopi Goldberg, Peter Gallagher, Brion James, Cynthia Stevenson, Vincent D'Onofrio, Dean Stockwell, Sydney Pollack, Lyle Lovett, Jeremy Piven, Gina Gershon. Estreia: 03/4/92 (Festival de Cleveland)

3 indicações ao Oscar: Diretor (Robert Altman), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Comédia/Musical (Tim Robbins)
Vencedor do Festival de Cannes: Diretor (Robert Altman), Ator (Tim Robbins) 

Apesar de algumas vezes acertar direto no alvo - ao menos em relação à bilheteria e à crítica - o cineasta Robert Altman dificilmente pode ser considerado um filho exemplar da indústria cinematográfica norte-americana. Quase como um estranho no ninho, ele construiu uma carreira atípica, onde sucessos comerciais e artísticos como "M.A.S.H" (70) e "Nashville" (76) conviviam com furos n'água gigantescos, como "Quando os homens são homens" (71) e a tenebrosa versão para o cinema de "Popeye" (80), estrelada por Robin Williams. Tendo conhecido os dois lados da moeda - e visto as mesmas mãos que lhe davam tapinhas nas costas diante do sucesso se recusando a assinar os cheques para a realização de novos filmes quando deparavam com o fracasso - foi a pessoa certa para comandar "O jogador", uma comédia - ainda que disfarçada de thriller policial - ácida, cínica e iconoclasta sobre os bastidores de Hollywood. O que Altman oferece ao espectador, porém, não são os bastidores glamourosos de tapetes vermelhos e festas badaladas (ainda que elas inevitavelmente apareçam) mas sim o que se esconde por trás dos sorrisos falsos e das negociações frequentemente sujas que fazem parte do mundo aparentemente maravilhoso da sétima arte. Ironia suprema, esse "retorno" de Altman ao primeiro time dos realizadores americanos saiu ovacionado do Festival de Cannes de 1992 - onde conquistou os prêmios de direção e ator (Tim Robbins) - e o colocou na disputa pelo Oscar ao lado de Clint Eastwood.

No melhor ano de sua carreira até então, Tim Robbins - que ainda em 1992 lançou sua estreia como diretor, a sátira política "Bob Roberts" e ganhou ainda o Golden Globe de melhor ator em comédia/musical - interpreta Griffin Mill, executivo de um estúdio de Hollywood que tem o poder de decidir quais, dentre as dezenas que chegam a seu escritório, quais as ideias de histórias serão ou não transformadas em filme. Um tanto arrogante e autocentrado, Mill começa a receber ameaçadores cartões-postais de um suposto roteirista que não teve a sorte de ser aprovado por ele, justamente em um momento crucial de sua carreira: com a chegada de um novo executivo, Larry Levy (Peter Gallagher), seu cargo pode estar a perigo - e com ele, todas as bajulações, luxos e poder que vem atrelados. Sentindo-se acuado, ele procura David Kahane (Vincent D'Onofrio), a quem julga ser o autor das ameaças e, por acidente, acaba matando-o. Atraído por June (a fraca Greta Scaachi), namorada do morto, ele passa também a ser investigado pela polícia, na figura da detetive Avery (Whoopi Goldberg).


A espinha dorsal de "O jogador" é bastante frágil, servindo apenas como desculpa para Altman criticar de forma mordaz o jogo de aparências e interesses que está por trás da produção de um filme. O roteiro de Michael Tolkin - também autor do romance que lhe deu origem - sublinha com sarcasmo alguns dos mais tradicionais rituais da terra do cinema, como os almoços de negócios (onde por trás de cumprimentos cordiais são disparados comentários maldosos e rancorosos) e os famosos "pitchs", onde roteiristas tentam vender suas estórias para gente como Mill, que não tem o menor interesse em realizar obras de arte e sim vender ingressos. É particularmente engraçada a trajetória de um desses roteiristas, o inglês Tom Oakley (Richard E. Grant), que se recusa a ver seu genial argumento - com conotações sociais fortes e que dispensa astros milionários, diz ele - vendido como puro entretenimento, até que se vê obrigado a mudar de ideia quando percebe como se movimentam as engrenagens escondidas do sistema. Essas finas ironias - e a participação de dezenas de astros hollywoodianos em aparições-relâmpago - acabaram por fazer de "O jogador" o filme mais comentado de 1992 dentro da comunidade cinematográfica (e fora dela, também, afinal que fã de cinema não tem curiosidade de penetrar nas entranhas da sétima arte? Mas, afora esse nocaute de Altman em seus detratores - que foram obrigados a vê-lo indicado ao Oscar também no ano seguinte, com "Short cuts, cenas da vida" - o filme é tão bom quanto foi alardeado?

Sim e não. Robert Altman é um cineasta veterano que sabe exatamente o que faz quando pega uma câmera na mão, e seu brilhante plano-sequência de abertura já seria justificativa o bastante para conferir o filme. Além do mais, como outsider da indústria, ele tem conhecimento de causa para sustentar as afirmações um tanto quanto cínicas da trama de Tolkin a ponto de brincar com elas sem ranço de despeito. Porém, seu estilo aparentemente desleixado de filmar pode incomodar àqueles que procuram um produto mais convencional. Altman frequentemente parece deixar sua câmera bisbilhotar invisível pelos cenários sem maiores preocupações estéticas e sem foco dramático - uma maneira de filmar que lhe é característica e não agrada a todos. Mas mesmo que talvez não seja a obra-prima tão incensada à época de seu lançamento, "O jogador" tem uma inteligência acima da média, diverte com suas surpreendentes participações especiais e mostrou que Tim Robbins merecia mais atenção de Hollywood. Missão mais do que cumprida!

terça-feira

ALUCINAÇÕES DO PASSADO

ALUCINAÇÕES DO PASSADO (Jacob's ladder, 1990, Carolco Films, 113min) Direção: Adrian Lyne. Roteiro: Bruce Joel Rubin. Fotografia: Jeffrey L. Kimball. Montagem: Tom Rolfe. Música: Maurice Jarre. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Brian Morris/Kathleen Dolan. Produção executiva: Mario Kassar, Andrew Vajna. Produção: Alan Marshall. Elenco: Tim Robbins, Elizabeth Peña, Danny Aiello, Matt Craven, Pruitt Taylor Vince, Jason Alexander, Patricia Kalember, Eriq La Salle, Ving Rhames. Estreia: 02/11/90

Não deixa de ser interessante que um dos filmes mais corajosos, assustadores e surpreendentes de 1990 - e por consequência totalmente ignorado pelas cerimônias de premiação e até pelo público que lotava as salas de cinema para assistir a produções leves como "Esqueceram de mim" e "Uma linda mulher" - tenha sido dirigido por um cineasta até então massacrado e desacreditado quase unanimemente pela crítica, o inglês Adrian Lyne. Autor de filmes tão populares quanto desprezados pelos especialistas como "Flashdance" (84), "9 1/2 semanas de amor" (86) e "Atração fatal" (87) - pelo qual foi surpreendentemente indicado a um Oscar - Lyne saiu da publicidade para transformar-se em sinônimo de filmes rápidos, de estética moderna e pouco afeitos a detalhes como roteiro. Por isso, quando "Alucinações do passado" - escrito pelo mesmo Bruce Joel Rubin que viu seu "Ghost, do outro lado da vida" ganhar milhares de espectadores e uma estatueta da Academia - estreou, no final do ano, todo mundo que havia virado a cara para suas produções anteriores teve que repensar suas convicções. Denso, cruel, poético e intrigante, o conto de horror estrelado por Tim Robbins mistura paranoia militar, suspense e espiritualidade em um conjunto hipnotizante que é - e provavelmente sempre será - o melhor trabalho de seu diretor.

As primeiras tomadas, de uma emboscada na Guerra do Vietnã, podem dar a impressão de tratar-se de mais um capítulo da leva de filmes sobre o assunto tornados moda desde que Oliver Stone levou seus Oscar por "Platoon" (86) e "Nascido em 4 de julho" (89), mas esse é apenas o primeiro erro dos espectadores menos pacientes: é esse episódio no conflito oriental que está o cerne de toda a torturante trajetória posterior do protagonista, Jacob Singer (Tim Robbins em atuação espetacular), que já na cena seguinte está em Nova York, anos mais tarde, trabalhando em uma agência de correios. Separado da primeira mulher e ainda lamentando a morte do filho pequeno - ocorrida ainda antes de sua viagem para a guerra - Jacob vive no apartamento da nova namorada, Jezzie (Elizabeth Peña) e, quando o filme começa, está sofrendo de violentas e angustiantes visões que remetem aos piores pesadelos kafkianos. Pessoas sem rosto, humanos com características de répteis e até sonhos constantes com sua antiga vida passam a ser parte de sua rotina. Desesperado, ele é procurado por um grupo de soldados que lhe sugerem a ideia de que todos fizeram parte de um experimento do governo americano durante o Vietnã. Ele parte em busca da verdade, mas será que as coisas são assim tão simples?


Outro fator que surpreende bastante em "Alucinações do passado" é o roteiro de Bruce Joel Rubin, que abdica de toda a delicadeza e o senso de humor presentes em seu "Ghost" para oferecer um banquete de sensações desagradáveis e desconfortáveis que perpassam o caminho de Jacob em direção a seu desfecho. Se no filme estrelado por Patrick Swayze e Demi Moore o plano espiritual parecia pacífico e etéreo - exceto para os vilões, como convém a um produto com ambições mercadológicas - aqui a coisa é bem diferente. Somado à direção firme de Lyne - que se inspirou na obra mórbida de Francis Bacon, William Blake e da fotógrafa Diane Arbus para compor suas cenas mais impactantes - o roteiro de Rubin constroi uma nova faceta para os filmes a respeito de experiências sensoriais. É impressionante como é negada ao público, até seus minutos finais, a possibilidade de um completo entendimento de tudo que se passa em seus 113 minutos. Afinal, o que está se passando com Jacob? É alucinação, como diz o título nacional? São resquícios do experimento do governo? Ele está simplesmente embarcando na loucura tão comum aos soldados veteranos? Ou a explicação é outra, mais corriqueira... e ainda mais apavorante?

"Alucinações do passado" é um triunfo. Tecnicamente é impecável, contando com a fotografia em tons escuros de Jeffrey L. Kimball, a edição ágil de Tom Rolfe e a música nunca invasora de Maurice Jarre. Como suspense é admirável, tanto por seu roteiro corajoso e inteligente quanto pela direção nunca aquém de surpreendente de Adrian Lyne. E seu elenco, liderado pelo ótimo Tim Robbins (que ficou com um papel que por pouco não esteve nas mãos de Tom Hanks, Don Johnson, Mickey Rourke ou Richard Gere), mantém o nível de tensão nas alturas - em especial a participação do sempre estranho e eficaz Pruitt Taylor Vince, como um colega de batalhas do protagonista. Também é louvável seu final, coerente, emocionante e poético, dando ao espectador o alívio buscado durante toda a projeção. Grande filme, que merece ser conhecido. Por causa dele, Lyne pode ser perdoado pelas (muitas) bobagens que já fez na carreira.

sexta-feira

SOBRE MENINOS E LOBOS

SOBRE MENINOS E LOBOS (Mystic River, 2003, Warner Bros, 138min) Direção: Clint Eastwood. Roteiro: Brian Elgeland, romance de Dennis Lehane. Fotografia: Tom Stern. Montagem: Joel Cox. Música: Clint Eastwood. Figurino: Roger Furse (Deborah Hopper). Direção de arte/cenários: Henry Bumstead/Richard C. Goddard. Produção executiva: Bruce Berman. Produção: Clint Eastwood, Judy G. Hoyt, Robert Lorenz. Elenco: Sean Penn, Kevin Bacon, Tim Robbins, Laurence Fishburne, Laura Linney, Marcia Gay Harden, Eli Wallach, Tom Guiry, Emmy Rossum, Spencer Treat Clark. Estreia: 23/5/03 (Festival de Cannes)

6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Clint Eastwood), Ator (Sean Penn), Ator Coadjuvante (Tim Robbins), Atriz Coadjuvante (Marcia Gay Harden), Roteiro Adaptado
Vencedor de 2 Oscar: Ator (Sean Penn), Ator Coadjuvante (Tim Robbins)
Vencedor de 2 Golden Globes: Ator/Drama (Sean Penn), Ator Coadjuvante (Tim Robbins)


Às vezes Clint Eastwood mira, mira e erra feio quando resolve dirigir adaptações literárias para as telas de cinema. Foi assim com "Poder absoluto", baseado em David Baldacci e "Meia-noite no jardim do bem e do mal", que nem Kevin Spacey, John Cusack e Jude Law conseguiram salvar. No entanto, quando acerta, o veterano ator e diretor se dá muitíssimo bem. Foi assim com o belo "As pontes de Madison", inspirado no romance de Robert James Waller. E é assim também com "Sobre meninos e lobos", uma história forte e poderosa criada pelo escritor Dennis Lehane.

Ao contrário do que muitas vezes acontece em adaptações para o cinema, onde o clima e os detalhes do livro muitas vezes são sacrificados a favor de ritmo e convenções comerciais, o filme de Eastwood é bastante fiel ao estilo seco de Lehane, não se importando nem mesmo com o possível pessimismo do final. Provavelmente isso se deva bastante ao roteiro de Brian Helgeland, que já havia assumido a hercúlea tarefa de transformar as mais de 500 páginas de “Los Angeles, Cidade Proibida”, de James Ellroy em um palatável e brilhante filme de duas horas, em 1997 (pelo qual ganhou um merecido Oscar). Aqui, Helgeland teve menos trabalho, uma vez que a prosa de Lehane é seca, direta e mesmo que fuja em vários momentos da tradição do cinema policial – a construção psicológica das personagens é muito mais rica do que o comum – se presta facilmente a uma adaptação menos complexa e bem mais fiel do que normalmente se espera nesses dias em que as páginas de um livro são apenas a idéia para filmes completamente diferentes. Quem leu o livro pode esperar uma adaptação quase literal, o que, levando-se em consideração a trama formidável criada por Lehane, é uma bênção.

 

O filme começa quando três adolescentes são abordados por dois homens que se apresentam como policiais. Um dos meninos é levado por eles e é submetido por vários dias a espancamentos e abusos sexuais. Logicamente a amizade dos três rapazes sofre um abalo e eles acabam por distanciar-se. Quase trinta anos depois, no entanto, eles são obrigados a se reencontrar quando a filha adolescente de um deles, Jimmy Markum (um espetacular Sean Penn) é violentamente assassinada. Markum, que deixou uma vida de crimes pra trás para virar um pai de família, entra em desespero e deseja vingar a morte da filha. O detetive encarregado do caso é  Sean Devine (Kevin Bacon), seu amigo de infância cuja esposa o abandonou em uma crise de depressão pós-parto, e investigações feitas pelas vizinhanças do crime acabam levando tanto a polícia quanto Markum e seus violentos companheiros de farra ao nome de Dave Boyle (Tim Robbins), que superou o trauma que lhe marcou a infância casando com Celeste (Márcia Gay Harden), a prima da segunda esposa de Markum, Annabeth (Laura Linney). Julgando que Boyle é o assassino, resta a Sean impedir que Markum cometa um ato de vingança com as próprias mãos.
        
O grande diferencial de “Sobre meninos e lobos” é sem dúvida o teor psicológico de suas personagens. Ao invés de dedicar-se somente à investigação do asssassinato da jovem Katie (Emmy Rossum) – cujo desfecho chocante só confirma o alto nível de verossimilhança da trama – o roteiro de Helgeland trata de temas como amizade, confiança, traumas de infância e destino com uma precisão cirúrgica. Não há cenas desnecessárias nem personagens descartáveis em suas mais de duas horas de duração. Cada peça no jogo proposto por Eastwood tem sua devida importância, nem que ela seja revelada apenas em suas dramáticas cenas finais, cujo peso conta com a ajuda da edição eficaz de Joel Cox e da atuação de seus (grandes) atores.
        
Apesar de Laura Linney estar mal-aproveitada (culpa do papel pequeno) e Marcia Gay Harden exagerar um pouco na performance como a catalisadora da tragédia final (mesmo tendo sendo indicada ao Oscar de coadjuvante), “Sobre meninos e lobos” é sobretudo um filme de personagens fortes, defendido por atores de talento inquestionável. Kevin Bacon foi injustamente deixado de lado nas premiações, mas tanto Tim Robbins quanto Sean Penn levaram merecidos Oscar por seus desempenhos. O embate final entre os dois, quando Markum confronta Boyle sobre a morte de sua filha é dolorosamente real e cruel, digno de figurar entre as cenas antológicas da carreira de ambos.
        
Um poderoso estudo sobre o poder do destino e das conseqüências de atos aparentemente insignificantes, “Sobre meninos e lobos” é um dos melhores filmes de Clint Eastwood e um dos policiais mais inteligentes e sérios já realizados. É triste e é pesado, mas é um inesquecível trabalho de um grande diretor cercado por grandes atores e trabalhando sobre um roteiro espetacular.

terça-feira

ALTA FIDELIDADE

ALTA FIDELIDADE (High fidelity, 2000, Dogstar Films/New Crime Productions/Touchstone Pictures/Working Title Films, 113min) Direção: Stephen Frears. Roteiro: D.V. DeVincentis, Steve Pink, John Cusack, Scott Rosenberg, romance de Nick Hornby. Fotografia: Seamus McGarvey. Montagem: Mick Audsley. Música: Howard Shore. Figurino: Laura Cunningham Bauer. Direção de arte/cenários: David Chapman, Therese Deprez/Larry Lundy. Produção executiva: Liza Chasin, Alan Greenspan, Mike Newell. Produção: Tim Bevan, Rudd Simmons. Elenco: John Cusack, Iben Hjejle, Jack Black, Lisa Bonet, Todd Louiso, Joan Cusack, Natasha Gregson-Wagner, Lili Taylor, Bruce Springsteen, Sara Gilbert, Tim Robbins, Joelle Carter, Catherine Zeta-Jones. Estreia: 31/3/00

Se existe algum escritor moderno que merece ser considerado "pop" esse autor é o inglês Nick Hornby. Bem-humorado, direto e totalmente mergulhado em universo cultural que é a cara dos anos 80/90, Hornby é o autor de alguns dos livros mais deliciosamente divertidos e irônicos do final do primeiro milênio e, como tal, sua prosa não escapou dos olhares gananciosos de Hollywood. Sendo que pouca gente assistiu à adaptação de "Febre de bola" lançada em 1997 e estrelada por Colin Firth, pode-se considerar que seu primeiro grande contato com o sucesso cinematográfico foi "Alta fidelidade", a versão de Stephen Frears para aquele que muitos consideram seu melhor trabalho. Apesar do relativo fracasso de bilheteria (mal cobriu seu custo em terras ianques), o filme protagonizado pelo ótimo John Cusack é uma das melhores comédias românticas da história e um programa obrigatório para aqueles que gostam de diversão inteligente.

Trocando (sem maiores prejuízos) o cenário da trama de Londres para Chicago (assim como a nacionalidade do protagonista), o roteiro co-escrito pelo próprio Cusack segue quase à risca o romance que lhe deu origem, que também originou a peça de teatro "A vida é feita de som e fúria". Ao deixar intactas suas maiores qualidades (o humor bem sacado, o mergulho sem medo no universo pop, o romantismo visto por uma ótica masculina e quase cafajeste), o filme de Frears presta reverência à sua origem sem nunca deixar de aparentar um frescor interno: da forma que está, a história parece ter nascido para a tela grande, tamanha sua identificação com a linguagem cinematográfica.



Rob Gordon (em atuação antológica de John Cusack) é o feliz proprietário de uma loja de discos de vinil chamada Championship Vynil, localizada em Chicago. Fanático por músicas pop e por fazer listas que enumeram suas preferências em vários setores da vida, ele sofre um golpe inesperado quando é abandonado por sua namorada, a bela Laura (Ibjen Hjejle) e fica sozinho ao lado de Harry (Jack Black) e Dick (Todd Louiso), seus funcionários e únicos amigos. Desesperado por esse revés emocional, Gordon faz, então, a lista mais importante de sua vida e resolve entrar em contato com as cinco mulheres que mais o fizeram sofrer por amor. Com isso, ele tenciona compreender porque seus relacionamentos invariavelmente acabam da mesma forma dolorosa. Assim, ele procura seu amor de infância que o trocou por um colega de escola, a namorada da faculdade (Joelle Carter) - que ele mesmo abandonou porque ela não queria sexo-, a esplendorosa Charlie (Catherine Zeta Jones em ótima forma) - que o trocou por um homem menos imaturo - e a deprimida Sarah (Lily Taylor), que também o chutou. Finalmente, ele resolve reconquistar Laura, ao mesmo tempo em que vive um rápido romance com a cantora Marie de Salle (Lisa Bonet).

Ao utilizar o batido - mas sempre eficaz - recurso de fazer seu protagonista dialogar com a câmera, tendo o espectador como confidente e ouvinte, Frears conquista a audiência logo na primeira cena, com um close sofrido de John Cusack desnudando seu coração partido e vociferando contra as músicas de amor. Aqui Cusack está no melhor papel de sua vida, um Ferris Bueller que, em vez de matar aula, resolve viver sua vida amorosa sem amarras apertadas. Seu Rob Gordon pode até parecer egoísta em determinados momentos, quase insensível e galinha, mas a sensibilidade do ator (também produtor executivo do filme e da trilha musical) faz com que o público inteiro se solidarize com ele... e torça para um final feliz entre ele e sua amada Laura.

Sem apelar para piadas fáceis e grosseiras, "Alta fidelidade" ainda tem tempo para apresentar coadjuvantes memoráveis (o asqueroso Harry vivido por Jack Black em seu melhor momento é um exemplo), de contar com participações especialíssimas de Bruce Springsteen e Tim Robbins e ainda por cima legar uma extraordinária trilha sonora, em que convivem harmonicamente Bob Dylan, Elvis Costello, Stevie Wonder e Stereolab, além de uma surpreendente versão da bela "Let's get it on" de Marvin Gaye na voz de... Jack Black (!!!)

"Alta fidelidade" é cinema pop, com tudo o que isso tem de bom e agradável. Um cult de nascimento!

quarta-feira

OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM

OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM (Dead Man Walking, 1995, Polygram Filmed Entertainment/Working Title Films, 122min) Direção: Tim Robbins. Roteiro: Tim Robbins, livro de Helen Prejean. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Lisa Zeno Churgin. Música: David Robbins. Figurino: Renée Ehrlich Kaifus. Direção de arte/cenários: Richard Hoover. Produção executiva: Tim Bevan, Eric Fellner. Produção: Jon Kilik, Tim Robbins, Rudd Simmons. Elenco: Susan Sarandon, Sean Penn, Raymond J. Barry, Robert Prosky, R. Lee Ermey, Celia Weston, Lois Smith, Clancy Brown, Margo Martindale, Peter Sarsgaard, Jack Black, Jon Abrahams. Estreia: 29/12/95

4 indicações ao Oscar: Diretor (Tim Robbins), Ator (Sean Penn), Atriz (Susan Sarandon), Canção Original ("Dead Man Walking")
Vencedor do Oscar de Melhor Atriz (Susan Sarandon)
Urso de Prata no Festival de Berlim: Melhor Ator (Sean Penn)

Militância política - não a partidária preconizada por Arnold Schwarzenegger, entenda-se - não é exatamente vista como uma qualidade pelos conservadores olhos de Hollywood, e que o digam Susan Sarandon e Tim Robbins: um dos casais mais politicamente ativos da indústria, eles despertaram a ira da Academia quando, no Oscar de 1993, fizeram um discurso criticando a maneira com que o governo do Haiti lidava com os imigrantes soropositivos. Banidos da cerimônia por dois anos consecutivos, eles, no entanto, voltaram por cima, com o poderoso "Os últimos passos de um homem", escrito, produzido e dirigido por Robbins e estrelado por Sarandon. Aclamado pela crítica e premiado no Festival de Berlim, a crítica nada velada à pena de morte saiu da festa de 1995 com a estatueta de melhor atriz para Susan, além de ter concorrido a outros três importantes prêmios. Quem ri por último ri melhor.

"Os últimos passos de um homem" é uma história real, adaptada de um livro escrito pela religiosa Helen Prejean, vivida no filme por uma Sarandon desprovida de qualquer elemento sexual ou romântico. Sua personagem é uma mulher que abandonou as regalias de uma classe social privilegiada para seguir sua vocação e trabalhar com crianças de comunidades carentes. Sua vida pacífica e sem sobressaltos sofre um abalo quando ela recebe a carta de um homem condenado à morte, acusado por estupro e duplo homicídio. Orientada por seu superior, Helen procura o presidiário, Matthew Poncelet (Sean Penn), que lhe pede ajuda para reverter sua sentença, alegando inocência. Racista, misógino, anti-semita e nem um pouco dado a sutilezas, Poncelet não é um exemplo de réu, e aos poucos a religiosa percebe que qualquer súplica às autoridades competentes será inútil para trasmutar a pena de morte em prisão perpétua. Oferencendo-se para ser sua conselheira espiritual em seus últimos dias, ela acaba despertando a revolta nos pais de suas vítimas, que não conseguem entender como ela é capaz de ficar ao lado de "um animal que merece a morte".


Apesar de ser abertamente contra a pena capital, Tim Robbins toma o cuidado muito bem-vindo de jamais deixar que seu filme assuma um tom de sermão ou discurso. Seu roteiro, equilibrado e inteligente, discute com propriedade todos os lados da questão levantada e o faz com parcimônia e bom gosto. Helen Prejean faz as vezes de espectador, sendo questionada frequentemente a respeito de sua escolha em colaborar com o homicida cruel vivido por Penn. Seus diálogos com os pais das vítimas são comoventes e jamais soam artificiais, em especial ao cuidado de Robbins na direção de atores: em especial R. Lee Ermey e Raymond J. Barry vão muito além do chamado do dever em suas cenas, o mesmo podendo ser dito de Roberta Maxwell, que não precisa falar muito para roubar a cena como a mãe de Poncelet. Coadjuvantes preciosos, eles pontuam o show inesquecível de seu par de atores centrais.

Se Susan Sarandon levou um Oscar que já lhe era devido no mínimo desde "Thelma & Louise", Sean Penn contruiu um Matthew Poncelet irretocável. Asqueroso em sua arrogância inicial, ele faz com que o público se compadeça aos poucos de sua personagem, sem jamais perder sua essência. A mudança que ocorre com Poncelet em seus últimos passos não parece forçada ou anti-natural e sim uma consequência do amor que finalmente recebeu. Por sua capacidade de transmitir os contraditórios sentimentos do condenado, Penn foi indicado ao Oscar e levou o prêmio de melhor ator no Festival de Berlim. Nada mais merecido!

Mas e quanto à ideologia contida em "Os últimos passos de um homem"? Talvez o filme de Robbins não mude a ideia de nenhum espectador, ainda que consiga no mínimo levantar uma discussão válida e sempre pertinente - é chocante ver, por exemplo, como a execução é tratada, com sanduíches sendo distribuídos à plateia e a frieza com que tudo é tratado. Essa frieza, no entanto, não consegue impedir que o clímax do filme seja poderoso a ponto de provocar lágrimas de emoção até mesmo no mais cínico espectador. E mesmo aqueles que acham que todo o arrependimento do protagonista não teria acontecido se ele não tivesse sido também vitimado por um homícidio (ainda que legalizado) não conseguirão tirar tão cedo da mente as belas interpretações de Sarandon e Penn, sonorizadas pela bela canção final de Bruce Springsteen.

quinta-feira

UM SONHO DE LIBERDADE


UM SONHO DE LIBERDADE (The Shawshank Redemption, 1994, Castle Rock Entertainment, 142min) Direção: Frank Darabont. Roteiro: Frank Darabont, conto "Rita Hayworth and the Shawshank Redemption", de Stephen King. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Richard Francis-Bruce. Música: Thomas Newman. Figurino: Elizabeth McBride. Direção de arte/cenários: Terence Marsh/Michael Sierton. Produção executiva: Liz Glotzer, David Lester. Produção: Niki Marvin. Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton, Clancy Brown, James Whitmore, Gil Bellows. Estreia: 23/9/94

7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Morgan Freeman), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Som

Ainda bem que dinheiro não compra tudo, nem mesmo em uma terra tão gananciosa quanto Hollywood. Apaixonado pela adaptação feita por Frank Darabont do conto "Rita Hayworth and the Shawshak redemption", que Stephen King publicou em seu livro "Quatro estações", o cineasta Rob Reiner ofereceu 2,5 milhões de dólares ao roteirista para que pudesse dirigí-lo. Proposta devidamente recusada - o que salvou o mundo de um filme com Harrison Ford e Tom Cruise juntos - o roteiro chegou às telas dirigido pelo próprio Darabont com o nome de "Um sonho de liberdade" e, se não fez um estrondo nas bilheterias, hoje é considerado um dos melhores filmes de prisão de todos os tempos, adorado pela crítica e pelo público, que nem se importa se as sete indicações ao Oscar jamais tenham se convertido em estatuetas - é bom lembrar que concorreu com o incensado "Forrest Gump, o contador de histórias" e com o cultuado "Pulp fiction, tempo de violência".

Realizado com uma competência avassaladora - em especial se for levado em consideração que é o filme de estreia de Darabont - "Um sonho de liberdade" conquista o público por não cair na armadilha de ser apenas "um filme de prisão" e nem tampouco apelar para a violência explícita. Apesar de contar com o nome de Stephen King nos créditos pouca coisa denuncia que o escritor - mais conhecido por suas tramas de terror - seja o autor de uma história tão humana (ainda que do mesmo livro tenha saído o conto que deu origem ao belo "Conta comigo").  Ao deixar de lado criaturas do além, fantasmas e cachorros raivosos, King criou personagens que seduzem a audiência aos poucos e, com a ajuda do belo roteiro de Darabont, de maneira irremediável. Mesmo que chegue perto de duas horas e meia de duração, "Um sonho de liberdade" jamais cansa o espectador, graças principalmente ao enorme talento de todos os envolvidos.

A história de "Um sonho de liberdade" começa nos anos 40, quando o banqueiro Andy Dufresne (Tim Robbins) é condenado a uma pena dupla de prisão perpétua, acusado de ter assassinado sua esposa e o amante dela. Mesmo dizendo-se inocente, ele vai parar no presídio de Shawshank, no Maine (cenário habitual das histórias de King). Lá, ele faz amizade com Red Redding (Morgan Freeman), que há anos tenta uma liberdade condicional e é conhecido por conseguir levar qualquer coisa para dentro dos muros da prisão. Enquanto o relacionamento entre os dois vai se aprofundando com o passar dos anos - e das décadas - Andy testemunha várias histórias: algumas comoventes, como a do veterano bibliotecário Brooks Hatlen (o sensacional James Whitmore), que não consegue sobreviver em liberdade e outras trágicas, como a do jovem Tommy (Gil Bellows), única pessoa capaz de revelar a verdade sobre o crime que aprisionou Andy.



O impressionante roteiro - e o conto em si - não tem pressa em construir as relações entre as personagens nem tampouco atropela os acontecimentos, que vão se desenrolando frente aos olhos do público de maneira delicada. Todas os detalhes da trama vão sendo apresentadas de forma sutil, para que em seu final absolutamente inesquecível façam todo o sentido. Nada no filme é desnecessário ou supérfluo: cada linha de diálogo, cada cena é extremamente necessária. As surpresas, mais do que simples truques baixos para manter acesa a audiência, são realmente convincentes e utilizadas com parcimônia, nos momentos apropriados e casam com perfeição no clima proposto pela fotografia cinzenta de Roger Deakins e pela edição tranquila de Richard Francis-Bruce.

Talvez a maior qualidade de "Um sonho de liberdade" seja, no entanto, sua opção em brincar carinhosamente com todos os clichês dos filmes de prisão com inteligência ímpar. Estão na receita comandantes sádicos (um Clancy Brown impecável em sua frieza), apenados violentos e ameaçadores, planos mirabolantes de fuga e a crueldade de seu diretor (Bob Gunton). Mas algumas cenas criadas por Darabont e companhia são de lavar a alma e emocionam os espectadores por sua absoluta originalidade, em especial quando Dufresne se tranca na sala do diretor e oferece aos colegas prisioneiros a possibilidade de ouvir alguns minutos de ópera. Também é comovente o desfecho da história de Brooks Hantley, que sai da cadeia depois de décadas e percebe que o mundo fora das grades não lhe pertence.

Como dupla, Tim Robbins e Morgan Freeman não poderiam estar melhores. Freeman - que ficou com uma personagem que no conto de King é irlandês e branco - foi indicado ao Oscar, mas Robbins poderia tranquilamente também ter concorrido à estatueta, uma vez que a delicadeza de sua interpretação tem o tom perfeito exigido por sua personagem silenciosa e contemplativa. Juntos, ele e Morgan Freeman são a cara do filme, dando à história a complexidade e a humanidade que ela precisa. Somados ao roteiro preciso e à trilha sonora discreta mas eficiente de Thomas Newman, eles fazem de "Um sonho de liberdade" a adaptação mais brilhante de uma obra de Stephen King.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...