QUANDO O CORAÇÃO FLORESCE (Summertime, 1955, United Artists, 99min) Direção: David Lean. Roteiro: David Lean, H.E. Bates, peça teatral "The time of the cuckoo", de Arthur Laurents. Fotografia: Jack Hildyard. Montagem: Peter Taylor. Música: Alessandro Cicognini. Direção de arte/cenários: Vincent Korda. Produção: Ilya Lopert. Elenco: Katharine Hepburn, Rossano Brazzi, Isa Miranda, Darren McGavin, Mari Aldon, Gaetano Autiero. Estreia: 29/5/55 (Festival de Veneza)
2 indicações ao Oscar: Diretor (David Lean), Atriz (Katharine Hepburn)
Quando aceitou o papel de Jane Hudson, uma secretária solteirona que descobre o amor em uma viagem à Itália, a atriz Katharine Hepburn já estava longe dos sets de filmagem desde "A mulher absoluta", de George Cukor - uma de suas várias colaborações com o ator Spencer Tracy. Seu retorno ao cinema, depois de três anos afastada, lhe rendeu a sexta indicação ao Oscar de melhor atriz. Baseado em uma peça de teatro estrelada por Shirley Booth e estreada em 1952, "Quando o coração floresce" é um filme perfeito para os românticos e um deleite para os olhos. Filmado quase totalmente na própria Veneza, o filme ofereceu à Hepburn o raro desafio de interpretar uma mulher apaixonada e vulnerável, e ao diretor David Lean a chance de assinar um último filme de pequena escala antes de dedicar-se a produções épicas e monumentalmente caras - seu filme seguinte seria "A ponte do Rio Kwai", lançado em 1957. Simples e sem afetações, "Quando o coração floresce" é, ao mesmo tempo, a história de um amor maduro e um cartão postal de seu cenário natural. E também o preferido de Lean dentre toda a sua filmografia - o que, haja visto seu currículo, é um elogio e tanto.
O primeiro cineasta interessado em dirigir a adaptação a peça de Arthur Laurents, chamada originalmente de "The time of the cuckoo", foi Roberto Rosselini. Um dos criadores do neorrealismo italiano planejava entregar à sua amada Ingrid Bergman o papel principal, mas o projeto não foi adiante em suas mãos. Olivia de Havilland também chegou a considerar a ideia de protagonizá-lo, e até mesmo Vittorio De Sica esteve entre os possíveis nomes do elenco - e não como diretor, mas no papel do galante Renato de Rossi, o galã que balança o coração da solitária Jane. Quando David Lean assumiu as rédeas da produção é que as coisas encontraram seu rumo, ou ao menos, era a impressão. Quando decidiu filmar tudo em locações, o premiado cineasta não tinha ideia dos problemas que teria de enfrentar: a equipe chegou em Veneza em plena alta temporada, e as filmagens, logicamente, demandavam de controle, o que significava que muitos dos turistas não contavam com tais transtornos. Lean teve de pagar pelos prejuízos dos comerciantes, dos condutores de gôndolas e até pela restauração de uma igreja da cidade. Afora esse pequeno empecilho, porém, tudo transcorreu tranquilamente - até mesmo a filmagem da cena em que Katharine Hepburn teve que cair em um dos canais de Veneza (e que lhe rendeu uma infecção no olho que nunca mais a abandonou). Foi tudo tão pacífico que Lean confirmou sua paixão pela cidade e fez dela seu segundo lar.
Já os moradores de Veneza, depois da confusão proporcionada pelas filmagens, foram surpreendidos com um efeito positivo para sua economia: após o lançamento de ""Quando o coração floresce" (justamente no festival de cinema realizado na cidade), o turismo no local simplesmente dobrou. Os espectadores conquistados pela história de amor contada por Lean queriam visitar os cenários do filme - e desde então Veneza é considerada uma das cidades mais românticas do mundo. Tudo por conta de uma história de amor madura, que rejeita o sentimentalismo e abraça um tom de romance outonal que trata o espectador com respeito - e que apresenta mais uma interpretação impecável de Hepburn. Ela vive Jane Hudson, que depois de anos de trabalho finalmente consegue realizar a viagem dos sonhos. Sozinha - acompanhada apenas por sua câmera filmadora -, ela passeia por Veneza absorvendo a atmosfera lírica da cidade. Ao entrar em um antiquário para comprar um objeto pelo qual se apaixonou, ela conhece Renato de Rossi (Rossano Brazzi), que acaba por se tornar seu amigo. Aos poucos, no entanto, Jane percebe que quer mais do que a amizade do sedutor Renato - mas nem tudo é o que parece, e em breve ela terá de lutar contra seus próprios valores para se entregar ao amor.
Assim como em "Desencanto" (1945), um de seus mais memoráveis filmes, David Lean retrata uma relação amorosa condenada pelas regras sociais. Mais uma vez seus personagens são jogados em um turbilhão sentimental e precisam encontrar forças para lutar por sua felicidade, que está justamente em um local aparentemente inalcançável. Katharine Hepburn é uma força da natureza: qualquer cena, por mais insignificante que pareça, é transformada em um espetáculo à parte - principalmente no terço final, quando ela precisa decidir entre a felicidade (ainda que fugaz) ou a ética social. A Rossano Brazzi resta pontuar com discrição o desempenho de Hepburn e entregar uma performance correta, mas jamais brilhante. A química entre os dois não chega a ser faiscante - o amor talvez surja de forma um tanto rápida -, mas é inegável que juntos eles conseguem cumprir o que o filme promete: um romance entre pessoas adultas e com sentimentos palpáveis, que pode fazer com que os mais sensíveis espectadores derramem uma ou outra lagrimazinha. Não é nem de longe o melhor filme de David Lean, mas oferece ao público uma trama séria e emocionante.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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TUDO QUE O CÉU PERMITE
TUDO O QUE O CÉU PERMITE (All that heaven allows, 1955, Universal
Pictures, 89min) Direção: Douglas Sirk. Roteiro: Peg Fenwick, estória de
Edna L. Lee, Harry Lee. Fotografia: Russell Metty. Montagem: Frank
Gross. Música: Frank Skinner. Figurino: Bill Thomas. Direção de
arte/cenários: Alexander Golitzen, Eric Orbom/Russell A. Gausman, Julia
Heron. Produção: Ross Hunter. Elenco: Rock Hudson, Jane Wyman, Agnes
Moorehead, Conrad Nagel, Virginia Grey. Estreia: 2525/8/55 (Londres)
Um dos gêneros mais subestimados da era de ouro de Hollywood, o melodrama sofreu por muitos anos de um preconceito escancarado por parte da crítica, por mais sucesso de bilheteria que fizesse, especialmente junto ao público feminino. Seu maior representante – e justamente por isso muitas vezes desprezado pelos intelectuais – foi o dinamarquês Douglas Sirk, que, com seu olhar estrangeiro (nascido na Dinamarca e criado na Alemanha, ele só chegou aos EUA no início da década de 40) lançou um olhar perspicaz e crítico da sociedade norte-americana dos anos 50, ainda que sob o verniz da sofisticação visual e com tramas dignas de uma telenovela. Com filmes de viés notadamente romântico – com títulos que já diziam muito sobre seu estilo, como “Palavras ao vento” (57) e “Imitação da vida” (59) – Sirk levava as plateias às lágrimas, mas foi somente com o passar dos anos que ele deixou de ser considerado um diretor menor para encontrar seu lugar ao sol como um artesão de emoções primevas, capaz de falar de amor na superfície e criticar as convenções sociais em uma camada mais abaixo.
Homenageado pelo diretor Todd Haynes no belo “Longe do paraíso” (02) – que emulava seu estilo visual e temático – “Tudo que o céu permite” é um perfeito exemplo do cinema forjado por Douglas Sirk. Sua primeira colaboração com a dupla romântica Rock Hudson e Jane Wyman apresenta todos os elementos básicos de sua filmografia dentro do gênero, buscando em uma trama romanesca a identificação dos espectadores. Se à época de seu lançamento – 1956 – o que chamava a atenção era principalmente a química entre os atores, o colorido quase irreal e a história de amor proibido concebida pela escritora Edna L. Lee (e adaptada pela própria, em conjunto com Peg Fenwick e Harry Lee), hoje em dia fica óbvia a intenção do cineasta em expor as mazelas escondidas nos aparentemente pacatos subúrbios americanos. Se isso tornou-se até comum a partir do final do século XX, com obras como “Felicidade”, de Todd Solondz, e “Beleza americana”, de Sam Mendes (ambos de 1999), o mesmo não acontecia em plena década de 50, quando os EUA ainda viviam o sonho dourado pré-Vietnã e o assassinato de Kennedy. O tão caro american way of life era o tema favorito de Sirk, mesmo quando ele falava de um assunto a princípio tão banal quanto o amor.
A protagonista de “Tudo que o céu permite” é Cary Scott (Jane Wyman), uma viúva que vive solitária na confortável casa onde sempre morou com a família, em um subúrbio de classe média do interior dos EUA. Mãe de dois filhos adultos que já abandonaram o ninho para cursar a universidade, Cary é constantemente cobrada por eles e pelos amigos que encontre um novo marido, o que a preveniria de acabar seus dias sentada diante da televisão e sem companhia. De tanto ouvir incentivos, Cary acaba por seguir os conselhos de todos, mas da forma menos lógica: ao invés de aceitar o pedido de casamento de um velho amigo, ela se apaixona perdidamente por Ron Kirby (Rock Hudson), filho de seu jardineiro que está substituindo o pai após sua morte. Bem mais jovem, de classe social inferior e considerado aquém das expectativas pelas rígidas regras sociais impostas pelos amigos da mulher que ama, Kirby acaba por se tornar o catalisador de uma grave crise familiar. Restará à Cary decidir se enfrentar a todos por amor é o melhor caminho para sua felicidade – ou se é melhor abdicar dele para levar uma vida mais pacífica ao lado de quem a rodeia.
Fotografado com cores fortes por Russell Metty e guiado pela trilha sonora quase melancólica de Frank Skinner, “Tudo que o céu permite” desnuda sem dó nem piedade as entranhas de uma sociedade doente, mas tal nuance do roteiro é praticamente suplantada pelos rocambolescos lances da trajetória romântica de Cary e Ron. Ao fazer desfilar na tela uma série de personagens que representam diversas facetas da sociedade americana e que tanto ajudam quanto se põem como obstáculos ao romance entre os protagonistas, o roteiro explora com sucesso as diferenças cruciais entre aparência e realidade. Os filhos de Cary – aparentemente cultos, modernos e de mentalidade aberta, mas no fundo dotados de um egoísmo e uma falta de sensibilidade atrozes – surgem como o principal empecilho para a felicidade do casal, assim como a roda social que circunda Cary, com exceção de sua melhor amiga (uma personagem surpreendente justamente por ir contra as expectativas despertadas nas cenas iniciais). Em compensação, os amigos de Ron, menos propensos aos ditames da sociedade, demonstram uma maturidade crucial para o desenvolvimento do romance. Pode soar um tanto maniqueísta, mas esta característica do melodrama serve como uma luva às pretensões de Sirk. É difícil não torcer pelo final feliz – e assim, o diretor faz um filme de viés social bem mais contundente do que muitos discursos em forma de celuloide perpetrados por Hollywood (com direito até a uma sutil crítica à então incipiente invasão da televisão na vida dos cidadãos).
Mas no resultado final “Tudo que o céu permite” é um bom filme? Depende do ponto de vista. Como realização técnica, é impecável. Visualmente impactante – para quem gosta de Technicolor, é claro – e conduzido com uma elegância à prova de críticas. Porém, como é evidente quando se trata de um melodrama clássico, seus artifícios de roteiro podem soar piegas em excesso a quem procura uma opção mais intelectual e menos emocional. O estilo de Sirk é forte e facilmente reconhecível, especialmente na forma delicada com que dirige seus atores – Rock Hudson e Jane Wyman já haviam feito par romântico em outro de seus filmes, “Sublime obsessão”, de 1954 – e transforma cada cena em um belo espetáculo de cores e sentimentos. Não é para qualquer público (talvez seja desaconselhável para os menos românticos), mas tem valor inestimável para quem gosta de aventurar-se pelo mais legítimo dramalhão hollywoodiano.
Um dos gêneros mais subestimados da era de ouro de Hollywood, o melodrama sofreu por muitos anos de um preconceito escancarado por parte da crítica, por mais sucesso de bilheteria que fizesse, especialmente junto ao público feminino. Seu maior representante – e justamente por isso muitas vezes desprezado pelos intelectuais – foi o dinamarquês Douglas Sirk, que, com seu olhar estrangeiro (nascido na Dinamarca e criado na Alemanha, ele só chegou aos EUA no início da década de 40) lançou um olhar perspicaz e crítico da sociedade norte-americana dos anos 50, ainda que sob o verniz da sofisticação visual e com tramas dignas de uma telenovela. Com filmes de viés notadamente romântico – com títulos que já diziam muito sobre seu estilo, como “Palavras ao vento” (57) e “Imitação da vida” (59) – Sirk levava as plateias às lágrimas, mas foi somente com o passar dos anos que ele deixou de ser considerado um diretor menor para encontrar seu lugar ao sol como um artesão de emoções primevas, capaz de falar de amor na superfície e criticar as convenções sociais em uma camada mais abaixo.
Homenageado pelo diretor Todd Haynes no belo “Longe do paraíso” (02) – que emulava seu estilo visual e temático – “Tudo que o céu permite” é um perfeito exemplo do cinema forjado por Douglas Sirk. Sua primeira colaboração com a dupla romântica Rock Hudson e Jane Wyman apresenta todos os elementos básicos de sua filmografia dentro do gênero, buscando em uma trama romanesca a identificação dos espectadores. Se à época de seu lançamento – 1956 – o que chamava a atenção era principalmente a química entre os atores, o colorido quase irreal e a história de amor proibido concebida pela escritora Edna L. Lee (e adaptada pela própria, em conjunto com Peg Fenwick e Harry Lee), hoje em dia fica óbvia a intenção do cineasta em expor as mazelas escondidas nos aparentemente pacatos subúrbios americanos. Se isso tornou-se até comum a partir do final do século XX, com obras como “Felicidade”, de Todd Solondz, e “Beleza americana”, de Sam Mendes (ambos de 1999), o mesmo não acontecia em plena década de 50, quando os EUA ainda viviam o sonho dourado pré-Vietnã e o assassinato de Kennedy. O tão caro american way of life era o tema favorito de Sirk, mesmo quando ele falava de um assunto a princípio tão banal quanto o amor.
A protagonista de “Tudo que o céu permite” é Cary Scott (Jane Wyman), uma viúva que vive solitária na confortável casa onde sempre morou com a família, em um subúrbio de classe média do interior dos EUA. Mãe de dois filhos adultos que já abandonaram o ninho para cursar a universidade, Cary é constantemente cobrada por eles e pelos amigos que encontre um novo marido, o que a preveniria de acabar seus dias sentada diante da televisão e sem companhia. De tanto ouvir incentivos, Cary acaba por seguir os conselhos de todos, mas da forma menos lógica: ao invés de aceitar o pedido de casamento de um velho amigo, ela se apaixona perdidamente por Ron Kirby (Rock Hudson), filho de seu jardineiro que está substituindo o pai após sua morte. Bem mais jovem, de classe social inferior e considerado aquém das expectativas pelas rígidas regras sociais impostas pelos amigos da mulher que ama, Kirby acaba por se tornar o catalisador de uma grave crise familiar. Restará à Cary decidir se enfrentar a todos por amor é o melhor caminho para sua felicidade – ou se é melhor abdicar dele para levar uma vida mais pacífica ao lado de quem a rodeia.
Fotografado com cores fortes por Russell Metty e guiado pela trilha sonora quase melancólica de Frank Skinner, “Tudo que o céu permite” desnuda sem dó nem piedade as entranhas de uma sociedade doente, mas tal nuance do roteiro é praticamente suplantada pelos rocambolescos lances da trajetória romântica de Cary e Ron. Ao fazer desfilar na tela uma série de personagens que representam diversas facetas da sociedade americana e que tanto ajudam quanto se põem como obstáculos ao romance entre os protagonistas, o roteiro explora com sucesso as diferenças cruciais entre aparência e realidade. Os filhos de Cary – aparentemente cultos, modernos e de mentalidade aberta, mas no fundo dotados de um egoísmo e uma falta de sensibilidade atrozes – surgem como o principal empecilho para a felicidade do casal, assim como a roda social que circunda Cary, com exceção de sua melhor amiga (uma personagem surpreendente justamente por ir contra as expectativas despertadas nas cenas iniciais). Em compensação, os amigos de Ron, menos propensos aos ditames da sociedade, demonstram uma maturidade crucial para o desenvolvimento do romance. Pode soar um tanto maniqueísta, mas esta característica do melodrama serve como uma luva às pretensões de Sirk. É difícil não torcer pelo final feliz – e assim, o diretor faz um filme de viés social bem mais contundente do que muitos discursos em forma de celuloide perpetrados por Hollywood (com direito até a uma sutil crítica à então incipiente invasão da televisão na vida dos cidadãos).
Mas no resultado final “Tudo que o céu permite” é um bom filme? Depende do ponto de vista. Como realização técnica, é impecável. Visualmente impactante – para quem gosta de Technicolor, é claro – e conduzido com uma elegância à prova de críticas. Porém, como é evidente quando se trata de um melodrama clássico, seus artifícios de roteiro podem soar piegas em excesso a quem procura uma opção mais intelectual e menos emocional. O estilo de Sirk é forte e facilmente reconhecível, especialmente na forma delicada com que dirige seus atores – Rock Hudson e Jane Wyman já haviam feito par romântico em outro de seus filmes, “Sublime obsessão”, de 1954 – e transforma cada cena em um belo espetáculo de cores e sentimentos. Não é para qualquer público (talvez seja desaconselhável para os menos românticos), mas tem valor inestimável para quem gosta de aventurar-se pelo mais legítimo dramalhão hollywoodiano.
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