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sexta-feira

HELENO: O PRÍNCIPE MALDITO

 


HELENO: O PRÍNCIPE MALDITO (Heleno: O príncipe maldito, 2012, Downtown Filmes, 116min) Direção: José Henrique Fonseca. Roteiro: Felipe Bragança, Fernando Castets, José Henrique Fonseca, colaboração de L.G. Bayão, Roberto Ceuninck. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Sérgio Mekler. Música: Berna Ceppas. Figurino: Rita Murtinho, Valeria Stefani. Direção de arte: Marlise Storchi. Produção executiva: Beto Bruno, Eliane Ferreira. Produção: José Henrique Fonseca, Eduardo Pop, Rodrigo Santoro, Rodrigo Teixeira. Elenco: Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Othon Bastos, Erom Cordeiro, Herson Capri. Estreia: 30/3/2012

Décadas antes que jogadores de futebol se tornassem notícia mais por seus escândalos fora de campo do que por seu desempenho profissional - o que de certa forma já faz parte do cotidiano de quem acompanha o esporte -, um atleta talentoso e ídolo absoluto da torcida ilustrava páginas de jornais por seus ataques de estrelismo, suas rumorosas noitadas regadas a mulheres, álcool e drogas... e, nas horas vagas, por jogadas geniais que o marcaram indelevelmente no imaginário dos fãs. Heleno de Freitas, nascido em 1920 e morto em 1959 - com apenas 39 anos de idade - foi o maior ídolo alvinegro antes de Garrincha e um dos maiores artilheiros da história do Botafogo, além de formar, em 1945, junto com Zizinho, Jair da Rosa Pinto Tesourinha e Ademir de Menezes, um quinteto de ataque considerado como o melhor jamais escalado para a Seleção Brasileira. Suas façanhas profissionais, no entanto, por mais importantes, foram ofuscadas por seu comportamento errante nos bastidores - e sua luta contra os próprios demônios é o foco de "Heleno: o príncipe maldito", estupendo retrato de sua glória e decadência, sob a lente do cineasta José Henrique Fonseca e com a presença hipnotizante de Rodrigo Santoro no papel-título.

Heleno de Freitas não era um jogador de futebol comum. Filho do dono de um cafezal que também tinha negócios com papel e chapéus, tinha amigos na alta sociedade carioca, além de conviver com juristas, diplomatas e empresários. Formado em Direito pela UFRJ, foi descoberto quando jogava futebol na praia e tornou-se ídolo do Botafogo assim que chegou ao time, em 1940. Objeto de uma das maiores transações financeiras do futebol da época, chegou a jogar na Argentina antes de retornar ao Brasil - pelo Vasco da Gama - e dedicar seus últimos anos de carreira pulando de time em time (e arrumando problemas em todos eles). Casado com a bela Ilma (que no filme foi rebatizada como Sílvia e encontrou uma intérprete fabulosa em Alinne Moraes), Heleno nunca abandonou a boemia, as mulheres e os vícios em álcool e drogas como éter e lança-perfume - uma vida desregrada que cobrou um preço alto: internado em um sanatório nos últimos anos de sua vida, o ex-jogador viu a sífilis destruir completamente sua saúde física e mental, sofrendo de alucinações até seus momentos finais. 

Um dos produtores do filme, Santoro mais uma vez se entrega de corpo e alma, construindo um Heleno de Freitas sedutor e autodestrutivo na mesma medida, um homem capaz de encantar torcedores com a mesma desenvoltura com que passava as noites envolvido com todo tipo de excessos. Indo além da mera transformação física - que enfatiza o contraste entre seu auge como atleta e seu declínio como vítima de sífilis -, o ator busca a empatia do público através de uma atuação que evita ao máximo os clichês e encontra brechas emocionas mesmo tendo em mãos um personagem facilmente detestável. Poucos atores conseguiriam angariar simpatia para alguém tão arrogante e autocentrado, mas Santoro se aproveita de seu carisma e experiência para amenizar as características negativas de um anti-herói que era a cara de seu tempo. Sua química com Alinne Moraes (belíssima e sempre ótima atriz) amplia ainda mais o alcance catártico proposto pelo roteiro, que se sobressai como uma das mais dignas e bem cuidadas cinebiografias nacionais, enquanto foge da armadilha de um tema ainda pouco explorado a contento no cinema brasileiro, o futebol. E mesmo quando se propõe a investigar a maior paixão nacional, o filme de Fonseca não faz feio: graças à espetacular fotografia em preto-e-branco de Walter Carvalho e à edição precisa de Sérgio Mekler, "Heleno" é praticamente uma experiência imersiva, que simplesmente coloca o espectador no meio do gramado, acompanhando seu protagonista em decisivos momentos da carreira. São momentos em que a técnica se sobrepõe à emoção - e é impossível não se deixar conquistar pelo talento do cineasta em unir os dois extremos, especialmente quando são contrapostos de forma inteligente e elegante, com o auxílio luxuoso da maquiagem do mexicano Martin Macias Trujillo.

"Heleno" é um filme repleto de qualidades - técnicas e dramáticas. Isso não significa, porém, que não tem pequenos defeitos - que não comprometem o resultado final, mas o impedem de ser uma obra-prima. O excesso de vai-e-voltas do roteiro, por exemplo, atrapalha o ritmo - mas, ao mesmo tempo, sublinha a diferença entre o apogeu e a queda do jogador. A linha do tempo também não chega a ser exatamente clara, e quem não conhece detalhes e cronologia da história do atleta corre o risco de ficar perdido - mesmo que o roteiro tente ser o mais didático possível sem interromper o fluxo narrativo. Apesar disso, o visual deslumbrante e o elenco impecável - até mesmo nos menores papéis - comprovam o apurado senso estético e artístico de José Henrique Fonseca - filho do escritor Rubem Fonseca e com os ótimos "Traição" (1998) e "O homem do ano" (2003) no currículo. Um exemplo inequívoco das potencialidades do cinema brasileiro, "Heleno: o príncipe maldito" é também um ponto alto na carreira de Rodrigo Santoro.

sábado

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?


O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (O que é isso, companheiro?, 1997, Columbia Pictures/Luiz Carlos Barreto Produções, 110min) Direção: Bruno Barreto. Roteiro: Leopoldo Serran, livro de Fernando Gabeira. Fotografia: Félix Monti. Montagem: Isabelle Rathery. Música: Stewart Copeland. Figurino: Emilia Duncan. Direção de arte/cenários: Marcos Flaksman, Alexandre Meyer/Carlos Eduardo Mallet. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto. Elenco: Alan Arkin, Pedro Cardoso, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Matheus Nachtergaele, Luiz Fernando Guimarães, Caio Junqueira, Selton Mello, Marco Ricca, Alessandra Negrini, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Luiz Armando Queiroz, Nelson Dantas, Maurício Gonçalves, Milton Gonçalves, Eduardo Moscovis, Othon Bastos. Estreia: 19/4/97

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Publicado em 1979 e logo alçado ao posto de um clássico contemporâneo, "O que é isso, companheiro?" narrava, em primeira pessoa, as experiências de Fernando Gabeira na luta armada contra a ditadura militar brasileira, sua participação no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sua prisão e seu exílio na Europa. Com mais de 250 mil exemplares vendidos, o livro foi peça fundamental na consolidação da carreira política do autor e uma das obras seminais a respeito de um dos períodos mais sombrios da história do país. Cinco anos depois de servir como uma das bases da minissérie global "Anos rebeldes" - um sucesso estrondoso que voltou a colocar os anos de chumbo em evidência - e quase duas décadas depois de seu lançamento, as memórias de Gabeira voltaram à tona com sua adaptação para o cinema. Com produção de Lucy e Luiz Carlos Barreto, direção de Bruno Barreto - já com carreira internacional consolidada - e coprodução da Columbia Pictures, a versão para as telas do infame sequestro de Elbrick ganhou a simpatia do público, da crítica e da Academia de Hollywood, que lhe indicou ao Oscar de melhor filme estrangeiro: não chegou a sair como vencedor - teve os planos atrapalhados pelo holandês "Caráter" -, mas foi um passo adiante do cinema brasileiro em direção ao respeito mundial.

O roteiro do experiente Leopoldo Serran - responsável pela adaptação de "O quatrilho", outra produção dos Barreto a ter concorrido ao Oscar, em 1996 - não abarca todo o livro de Gabeira, concentrando-se exclusivamente em seu elemento mais cinematográfico: sua entrada para o temido Movimento Revolucionário 8 de outubro (ou MR-8) e sua participação naquele que se tornaria um dos momentos mais emblemáticos da luta armada do final dos anos 1960. O próprio autor admite que sua personificação no filme (na pele do ótimo Pedro Cardoso) tem mais importância do que ele teve na realidade, mas a licença poética é plenamente compreensível em termos dramáticos: como elemento narrativo, é muito mais interessante um personagem como Fernando - um jovem sem experiência na luta que se vê no olho de um furacão e assume papel fundamental em um episódio muito maior que ele - do que um espectador passivo, servindo apenas de testemunha da história. Fernando é um homem de letras, de propensões intelectuais, e não alguém cuja índole previa pegar em armas e participar de assaltos (ou expropriações) e sequestros. É assim, graças a tal personalidade pacífica, que Fernando se aproxima do público, que se identifica com sua (falta de) vocação para a guerrilha ao mesmo tempo em que sabe que ela é a (talvez) única solução imediata. Ajuda, é claro, o talento de Pedro Cardoso em transmitir a insegurança de seu personagem e seu tom quase cômico mesmo em situações perigosas - e o grande elenco, tão incrível que pode se dar ao luxo de contar com Fernanda Montenegro em uma participação mínima mas crucial.


 

Em uma tentativa bem-sucedida de aproximar seu filme do público consumidor de programas de televisão, Bruno Barreto escolheu seu elenco a dedo. Dos consagrados Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães ao então novato Matheus Nachtergaele - passando por uma Cláudia Abreu no auge da popularidade e pelo norte-americano Alan Arkin -, a lista de créditos de "O que é isso, companheiro?" é admirável , com espaço até mesmo para pontas do cantor Lulu Santos como um militar. Se é questionável o fato de lotar o elenco de globais como forma de buscar o sucesso comercial - ainda que todos estejam excelentes em cena, independentemente de suas personas artísticas mais conhecidas -, o resultado foi bastante favorável. Além de dialogar com a audiência com mais facilidade, tal opção deu visibilidade o bastante ao filme em sua trajetória rumo a uma indicação ao Oscar - um objetivo para o qual contou também o nome de Bruno Barreto no exterior. Já bem instalado em Hollywood - principalmente graças ao êxito internacional de "Dona Flor e seus dois maridos" (1976) e produções de prestígio como "Assassinato sob duas bandeiras" (1990), estrelado por Amy Irving, com quem foi casado até 2005 -, Barreto nunca abandonou completamente suas raízes, e assim como seu irmão Fábio dois anos antes, chegou à corrida da estatueta com o apoio de nomes poderosos da indústria americana, como Steven Spielberg e a máquina de marketing da Columbia Pictures internacional. Não foi suficiente para arrebatar o prêmio - mas voltou a colocar o cinema brasileiro no mapa e jogar luz sobre um tema nunca desgastado.

Apesar de se passar durante a ditadura militar brasileira e contar uma de suas histórias mais emblemáticas, "O que é isso, companheiro?" dificilmente pode ser considerado um filme político. Longe dos questionamentos da filmografia de um Costa-Gavras, por exemplo - cujo "Z" (1969) é um cânone do gênero - e sem maior aprofundamentos do contexto histórico, o roteiro de Serran prefere focar-se na interrelação entre seus personagens, pressionados pela máquina governamental e diante da possibilidade de um fracasso que pode levá-los à morte. Boa parte da trama se passa durante o período do cativeiro do embaixador, interpretado com excelência por Alan Arkin - daí o título internacional, "Four days in September" - e são os vínculos entre os personagens que interessam a Serran e Barreto, mais do que os desdobramentos sociais e políticos de sua aventura. Tal escolha é válida, mas esbarra em alguns momentos um tanto quanto desconcertantes - como as crises de consciência do torturador a que Marco Ricca dá vida: Ricca é um ótimo ator e transmite verdade em suas cenas, mas é pouco crível que pessoas que ganham a vida com tal violência sejam tão suscetíveis a remorsos (em especial no calor do momento). Detalhes assim enfraquecem o filme como um todo - é uma tentativa não feliz em evitar o maniqueísmo - e o impedem de ter a potência que poderia. É uma produção caprichada - bem dirigida, com uma edição ágil e uma trilha sonora adequada - mas longe da obra-prima que se poderia esperar. Ainda assim, um belo produto do cinema nacional em sua fase de mesclar sucesso financeiro e prestígio internacional.

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964, Copacabana Filmes, 120min) Direção e roteiro: Glauber Rocha. Fotografia: Waldemar Lima. Montagem: Rafael Valverde. Música: Sérgio Ricardo. Figurino/Direção de arte: Paulo Gil Soares. Produção: Luiz Augusto Mendes. Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle, Lídio Silva, Sonia dos Humildes. Estreia: 11/5/64 (Festival de Cannes)

Quando "Deus e o Diabo na Terra do Sol" estreou, no Festival de Cannes de 1964, o Brasil já havia começado a sofrer o impacto de uma ditadura militar que durou mais de duas décadas. Coincidência ou não, o filme do baiano Glauber Rocha usa e abusa de alegorias políticas e religiosas, criticando sem medo o autoritarismo tanto do governo quanto da Igreja (seja ela qual for). Elogiado pela imprensa mundial e por nomes como Fritz Lang e Luis Buñuel, o segundo longa de Glauber acabou se tornando, com o tempo, o mais icônico de seus trabalhos, e uma das mais bem acabadas produções do Cinema Novo - a resposta brasileira à nouvelle vague francesa. Clássico absoluto e referência obrigatória da cinematografia nacional, é, também, uma prova da inventividade do cineasta em mesclar a linguagem do cinema clássico hollywoodiano (mais precisamente os faroestes de John Ford) e os experimentalismos de Eisenstein. O resultado é um fascinante sincretismo cultural, que une a brasilidade árida do sertão nordestino aos elementos mais universais da técnica cinematográfica em uma ópera grandiloquente e emocionante sobre os perigos do messianismo.

A trama já começa de forma explosiva, quando o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) mata o patrão explorador e foge com a esposa, Rosa (Yoná Magalhães, no auge da beleza e do carisma). No meio do sertão, os dois conhecem e se tornam seguidores de Santo Sebastião (Lídio Silva), o líder de uma seita religiosa combatida com violência pelo governo - um personagem nitidamente inspirado por Antônio Conselheiro, figura real e cabeça da guerra de Canudos, também no Nordeste brasileiro. A influência de Sebastião é tanta que não demora para que a Igreja, sentindo-se ameaçada em seu poder, resolva dar um fim à sua vida. Sob as mãos do jagunço Antônio das Mortes (Maurício do Vale), o grupo é sumariamente liquidado, mas o casal consegue escapar com vida - não sem antes passar por uma série de testes humilhantes e dolorosos para serem aprovados pelo beato. Na fuga depois do massacre, Manuel e Rosa encontram Corisco (Othon Bastos), cangaceiro sobrevivente do bando de Lampião e, ainda sem rumo definido, o vaqueiro aceita converter-se ao cangaço, apesar das dúvidas de sua mulher. Com o codinome de Satanás, Manuel entra no bando de Corisco, mas novamente Antônio das Mortes surge em seu caminho.


Unindo o erudito ao popular também através de sua trilha sonora, que mistura canções de Sérgio Ricardo e trechos da obra de Heitor Villa-lobos, "Deus e o Diabo na Terra do Sol" é uma viagem sensorial das mais instigantes para dentro do universo nordestino, sem que tal regionalidade se torne algo limitante. Glauber Rocha cria um belíssimo jogo de paradoxos - Deus/Diabo; lírico/popular; violência/religiosidade - para construir uma narrativa alegórica em que palavras são quase desnecessárias. Fala-se mais através das poderosas imagens e da música do que de diálogos - que, quando surgem, demonstram o senso de poesia e teatralidade do cineasta. Na pele de Corisco, o ator Othon Bastos apresenta um dos melhores (se não O melhor) trabalho de sua carreira, enquanto a Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães cabem o desafio de costurar, com seus personagens, as linhas que separam (ou unem) todas as dualidades concebidas pelo roteiro. E nem mesmo alguns momentos um tanto esquisitos - cenas de ação não exatamente realistas - conseguem atrapalhar o maior mérito do filme, que é imprimir identidade brasileira e discussões políticas em um gênero aparentemente norte-americano e de puro entretenimento: o faroeste.

É difícil não lembrar da vastidão das paisagens retratadas por John Ford quando se assiste a "Deus e o Diabo na Terra do Sol". É claro que, no lugar do Monument Valley e dos cavalos ao pôr-do-sol, a fotografia de Waldemar Lima destaca a aridez do sertão e o sol escaldante do nordeste (tudo em um cuidadoso preto e branco), mas em ambos os casos há a intenção de situar o homem em sua insignificância diante da natureza e do destino. Ao contrário dos personagens criados por Ford e seu ator preferido, John Wayne, porém, o Manuel interpretado por Geraldo Del Rey é mais compassivo, mais maleável aos desígnios de uma trajetória errática em busca de redenção: não é um herói, e tampouco um bandido, e sim um homem comum, torturado pelo desespero de não encontrar um sentido para uma vida difícil e violenta. Fugindo do tradicional final feliz e deixando ao espectador a missão de traduzir suas belas imagens e seus diálogos potentes, Glauber Rocha inscreveu seu nome definitivamente na história do cinema nacional com um filme indispensável a qualquer fã de cinema - brasileiro ou não. "Deus e o Diabo na Terra do Sol" é cinema em sua essência, pura e radical, bela e angustiante, lírica e dolorida.

terça-feira

ZUZU ANGEL


ZUZU ANGEL (Zuzu Angel, 2006, Warner Bros, 108min) Direção: Sérgio Rezende. Roteiro: Marcos Bernstein, Sérgio Rezende. Fotografia: Pedro Farkas. Montagem: Marcelo Moraes. Música: Cristóvão Bastos. Figurino: Kika Lopes. Direção de arte/cenários: Daniel Flaksman, Marcos Flaksman. Produção executiva: Heloísa Rezende. Produção: Joaquim Vaz de Carvalho. Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Leandra Leal, Alexandre Borges, Regiane Alves, Othon Bastos, Luana Piovani, Antonio Pitanga, Elke Maravilha, Caio Junqueira. Estreia: 27/7/06

Praticamente um especialista em cinebiografias políticas nacionais, o cineasta Sergio Rezende tem no currículo filmes importantes, como "O homem da capa preta", "Lamarca" e "Mauá - O imperador e o rei". Dando continuidade a seu invejável currículo, "Zuzu Angel" dá um passo a frente em sua obra, injetando emoção e dor a uma técnica competente e eficaz. Evitando contar a vida inteira da estilista brasileira que dá nome ao filme e preferindo focar sua atenção a um determinado período de tempo - mais precisamente na história de sua trágica busca pela verdade a respeito do único filho homem, preso pela ditadura militar que manchou de sangue e pólvora a história do Brasil de 1964 a 1979.

Contando com uma caprichada reconstituição de época, Rezende joga o espectador em seu filme, aproximando-o corajosamente do drama de Zuzu (uma bela e competentíssima Patrícia Pillar) sem rodeios e sem medo de parecer sentimental. Mesclando um thriller político eletrizante com momentos de pura emoção - em especial quando estão em cena Patrícia e Daniel de Oliveira, que vive seu filho, Stuart Angel - o filme de Rezende, co-escrito em parceria com Marcos Bernstein atinge a plateia sem maiores dificuldades. Linear e claro, o roteiro não se furta a apontar culpados e eleger sua protagonista como heroína, mas foge do maniqueísmo por uma razão bastante simples: ela o é, como sua trajetória deixa bem explícito.



Uma das estilistas nacionais mais respeitadas no exterior, Zuzu Angel - mãe da jornalista e atriz Hildegard Angel, interpretada por Regiane Alves no filme - estava no auge de sua carreira quando uma sombra negra ofuscou seu sucesso. Seu único filho, Stuart (mais um grande trabalho de Daniel de Oliveira), é preso pelo DOPS, que nega a operação e se recusa a informar seu paradeiro. Desesperada - e contando com a ajuda velada de testemunhas temerosas - ela parte em busca de informações e, quando finalmente se conforma com a ideia da morte do rapaz, de seu corpo. Nesse meio tempo, passa a ser acuada, ameaçada e desacreditada pelos órgãos do governo, chegando inclusive a tentar chamar a atenção internacional, através do contato com Kissinger. Utilizando até mesmo suas coleções como forma de expressão, ela inspirou Chico Buarque a compor a bela "Angélica" - canção extraordinária que encerra o filme melancolicamente.

Realizado como drama político, mas sem as intermináveis cenas de burocratas discutindo em volta de uma mesa, "Zuz Angel" tem a seu favor a força de sua história (recente, real e brutal) e um elenco espetacular. Patrícia Pillar brilha soberana com uma atuação sutil mas extremamente realista, que atrai a empatia do público sem maiores esforços. Daniel de Oliveira e Leandra Leal (ela como a esposa de Stuart, que também é capturada pela ditadura) estão perfeitos em sua mescla de inocência e pavor. E até mesmo Elke Maravilha - personagem da história real que aqui faz uma ponta afetiva como cantora de uma boate - se sai bem, apesar de sua caracterização na tela (na pele da insossa Luana Piovani) carecer de força e veracidade.

Um dos filmes brasileiros mais bem acabados, interessantes e pungentes da chamada retomada iniciada no início dos anos 90, "Zuzu Angel" é mais um belo gol de placa de Sergio Rezende - que ainda conta com a participação especialíssima de Paulo Betti vivendo o mesmo Lamarca do filme que fizeram juntos em 1994.

quarta-feira

CENTRAL DO BRASIL

CENTRAL DO BRASIL (1997, 120min) Direção: Walter Salles. Roteiro: Marcos Bernstein, João Emanuel Carneiro, história de Walter Salles. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Felipe Lacerda, Isabelle  Rathery. Música: Antonio Pinto, Jacques Morelenbaum. Figurino: Cristina Camargo. Direção de arte/cenários: Cássio Amarante, Carla Caffé. Produção executiva: Lillian Birnbaum, Thomas Garvin, Donald Ranvaud, Elisa Tolomelli. Produção: Robert Redford, Walter Salles. Elenco: Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Vinícius de Oliveira, Othon Bastos, Matheus Nachtergaele, Caio Junqueira, Sôia Lyra, Otávio Augusto, Stela Freitas. Estreia: 03/4/98

2 indicações ao Oscar: Melhor Filme Estrangeiro, Atriz (Fernanda Montenegro)
Vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim: Melhor Filme, Melhor Atriz (Fernanda Montenegro)
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme Estrangeiro

Houve um tempo em que para se elogiar um filme nacional era preciso das duas uma: ou realmente gostar das tentativas pífias que os cineastas apresentavam como forma de crítica social ou ter vocação para polêmicas. Roteiros ruins, atuações forçadas, técnica sofrível e uma distribuição praticamente amadora fizeram com que o público corresse das produções brasileiras como o diabo da cruz (exceção feita aos filmes infantis da Xuxa e dos Trapalhões). A partir da década de 90, porém, o cinema brasileiro reconquistou, a duras penas e com muita paciência, o respeito da audiência e da crítica. "Carlota Joaquina" foi a ponta do iceberg, levando um surpreendente público às salas de exibição. "O quatrilho" e "O que é isso, companheiro?" arrebataram indicações ao Oscar de melhor produção estrangeira. Mas foi somente a partir de "Central do Brasil" que os ufanistas de plantão puderam respirar aliviados. Aplaudido unanimente do Oiapoque ao Chuí - passando pelo Festival de Berlim, de onde saiu multi-premiado - o filme de Walter Salles emocionou milhares de pessoas pelo mundo, e deu à extraordinária Fernanda Montenegro uma inédita (e ainda única) indicação ao Oscar de melhor atriz para uma artista sul-americana.

Vindo do ótimo "Terra estrangeira" - onde utilizou elementos de filmes noir para contar uma história de brasileiros desterrados - o diretor Walter Salles encontrou, em "Central do Brasil", o equilíbrio perfeito entre a técnica e a emoção, entre o clássico e o moderno, entre a linguagem e o ritmo europeus de fazer cinema com o sofrimento palpável e árido de um país onde as desigualdades sociais fomenta de forma impiedosa o desmoronamento sistemático de regras éticas e morais. Triste, engraçado e dotado de uma melancolia otimista, o filme é também o palco para o brilho intenso de uma das maiores atrizes vivas não só do país, mas do mundo. Na pele de Dora, a seca e desiludida protagonista de "Central do Brasil", Fernanda Montenegro mostra que é preciso muito mais do que um belo corpo e juventude para ser uma atriz de verdade. Em uma interpretação devastadora (premiada no Festival de Berlim), ela é o cerne de um filme capaz de comover o mais cínico dos espectadores sem que seja necessário apelar para nada mais do que a realidade de um país distante dos cartões-postais.

Dora é uma professora universitária aposentada que incrementa sua renda escrevendo cartas para analfabetos na estação de trens paulista que dá nome ao filme. Amargurada e solitária, ela tem como companhia para suas noites apenas a vizinha, Irene (Marília Pêra, também excelente), com quem divide a tarefa de escolher, ao chegar em casa, quais cartas vão para o lixo e quais vão para a gaveta da cômoda (uma espécie de limbo). Em um dia que parecia igual aos outros, porém, Dora escreve uma carta endereçada a um tal de Jeus. Sua mulher, Ana (Sôya Lira) quer que ele conheça seu filho caçula, Josué (o ótimo Vinícius de Oliveira), que nasceu em São Paulo. No dia seguinte, Ana morre atropelada e Dora, penalizada com a situação do menino, o leva para sua casa. Depois de salvá-lo de uma gangue de traficante de órgãos (a única situação meio capenga do roteiro), ela resolve acompanhá-lo em sua viagem para o Nordeste, para enfim, entregá-lo a seu pai e seus irmãos.



Inspirado na história real da presidiária Socorro Nobre (que foi tema de um documentário também dirigido por ele e que escrevia cartas para as outras detentas), Salles criou a primeira obra-prima do cinema brasileiro da retomada. Sensível ao extremo, seu filme conquista pela simplicidade de sua trama, pela honestidade de seus protagonistas e pelo carinho com que a fotografia realista de Walter Carvalho apresenta um Brasil árido externamente e caloroso por dentro. É impossível não se emocionar com a forma delicada do cineasta em aproximar público e personagens - e retratar sem maneirismos lados poucos mostrados do país (o sacro, o miserável, o solidário). Ao utilizar pessoas reais em suas primeiras cenas (pedindo cartas à Dora), o diretor imediatamente joga sua audiência dentro de uma viagem assustadora mas dona de uma ternura quase ingênua. A trilha sonora impecável de Antonio Pinto e Jaques Morelenbaum também colabora com o efeito emocional devastador provocado pelo roteiro de João Emanuel Carneiro (que depois seria autor de telenovelas) e Marcos Bernstein. A cena final, de uma pungência inegável, é a prova de que, herdeiro direto do neo-realismo italiano, "Central do Brasil" é a cara de seu país.

Antes que o cinema nacional se transformasse em sinônimo de "filmes violentos passados na favela" (onda que, sejamos justos, deu origem a excelentes produções), "Central do Brasil" mostrou às audiências acostumadas com a pasteurização global televisiva que há mais Brasil do que o Leblon, do que a Avenida Paulista, do que Fernando de Noronha. Mostrou que há aridez, há uma desigualdade social berrante e há amor onde menos se espera. Provou que gente é gente em qualquer parte do mundo (caso contrário, por que os alemães aplaudiriam tão entusiasticamente o trabalho puramente emocional de Montenegro?). E, acima de tudo, reiterou o talento de Walter Salles em envolver a plateia, em contar uma história simples de maneira eficiente. O road-movie de Salles não se preocupa tanto com o destino como o faz com a viagem e com as cicatrizes boas que deixa em Dora e Josué - em uma química mágica entre Fernanda Montenegro e o menino Vinícius de Oliveira. Por Josué, Dora volta a ser humana, volta a ser mulher (é belíssima a cena em que ela reencontra sua feminilidade em um banheiro de estrada). Por Dora, Josué abandona sua agressividade, seu medo e volta a ser uma criança esperançosa. Por eles, o Brasil pode voltar a se orgulhar de seu cinema.

PS - Como é que os eleitores da Academia puderam preferir a estética Renato Aragão de "A vida é bela" em detrimento da poesia de "Central do Brasil" será para sempre uma incógnita. Só mesmo a temática "holocausto" para justificar....

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...