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segunda-feira

TREM-BALA


TREM-BALA (Bullet train, 2022, Sony Pictures Entertainment, 127min) Direção: David Leitch. Roteiro: Zak Olkewicz, romance de Kôtarô Isaka. Fotografia: Jonathan Sela. Montagem: Elisabet Ronaldsdóttir. Música: Dominic Lewis. Figurino: Sarah Evelyn. Direção de arte/cenários: David Scheunemann/Elizabeth Keenan. Produção executiva: Brent O'Connor, Ryosuke Saegusa, Kat Samick, Yuma Terada. Produção: Antoine Fuqua, David Leitch, Kelly McCormick. Elenco: Brad Pitt, Aaron Taylor-Johnson, Joey King, Brian Tyree-Henry, Andrew Koji, Hiroyuki Sanada, Michael Shannon, Bad Bunny, Logan Lerman, Sandra Bullock. Estreia: 18/7/2022 (Paris)

Publicado no Japão em 2010, o livro "Trem-bala", escrito por Kôtarô Isaka, tornou-se um fenômeno, com mais de 700 mil exemplares vendidos, e acabou, como não poderia deixar de ser, chamando a atenção de Hollywood. Com os direitos adquiridos pela Sony Pictures e produzido com um orçamento de 90 milhões de dólares, a intrincada história de cinco assassinos profissionais cujas missões se cruzam em uma inusitada viagem chegou às telas com um elenco de primeira linha, um diretor acostumado a sequências recheadas de adrenalina e a responsabilidade de devolver ao público o hábito de ir às salas de exibição depois do longo hiato provocado pela Covid-19. Com uma renda acumulada de quase 240 milhões de dólares internacionalmente, é difícil dizer que fracassou em seu intento - mas dividiu a crítica e não fez o barulho que se poderia esperar. Mesmo assim, o resultado final é um delicioso filme de ação, com inspirados momentos de humor e um visual dos mais caprichados dos últimos anos.

Na direção, que ficaria a cargo de Antoine Fuqua, o cineasta David Leitch, cujo currículo apresenta produções extremamente comerciais, como "Deadpool 2" (2018) e "Velozes e furiosos: Hobbs & Shaw (2019) - além do subestimado e estiloso "Atômica" (2017) - deixou de lado o tom mais sério proposto no projeto original para assumir sem medo o caos, o deboche e a ironia. Com diálogos rápidos, idas e vindas no tempo, cenas de luta empolgantes e personagens excêntricos, o roteiro de "Trem-bala" nem sempre é rigorosamente fiel a seu material original, mas até mesmo as alterações feitas na trama do livro servem com perfeição à visão iconoclasta de Leitch, que prescinde das definições levianas de heróis e vilões, algozes e vítimas: durante as pouco mais de duas horas de duração do filme, nada que é dito é completamente confiável e nenhuma verdade é absoluta. Tal opção pelo dúbio e pela diversão ao invés da sobriedade faz de "Trem-bala" um produto raro, um respiro muito bem-vindo a um gênero que normalmente falha em tal equilíbrio. E se a presença de Brad Pitt parece apontar para um filme calcado em um grande astro - e caro, com um cachê milionário de 20 milhões de dólares -, o desenvolvimento do roteiro insiste em sua principal característica: não há um personagem central além do trem que dá nome ao filme. 

A princípio até pode parecer que Pitt é o personagem principal da trama, já que é o maior nome do cartaz e o primeiro a surgir na tela, mas não demora para que fique perceptível que seu Ladybug é apenas uma peça em um tabuleiro repleto delas. Escalado por sua superior (cuja intérprete-surpresa surge apenas nos momentos finais) a recuperar uma maleta em um trem-bala que viaja de Tóquio a Kyoto, Ladybug - que está passando por momentos difíceis na carreira, sendo acusado de não conseguir lidar com a agressividade - embarca no veículo sem ter a menor ideia de que sua missão está longe de ser simples como parece. No mesmo local, estão outros dois assassinos de aluguel, Tangerine (Aaron Taylor-Johnson) e Lemon (Bryan Tyree Henry), e a misteriosa Prince (Joey King) - que apesar do nome, esconde uma identidade feminina e um violento trauma familiar. Contratados pelo infame mafioso White Death (Michael Shannon) para salvar seu jovem filho das mãos de sequestradores, Lemon e Tangerine acabam por cruzar o caminho de outros criminosos beligerantes e cruéis - e, no decorrer do caminho, alianças são feitas e desfeitas, fatos do passado são trazidos à tona, reviravoltas acontecem a cada parada e até uma cobra assassina parece fazer parte de uma trama cujos desdobramentos remetem a coincidências das mais bizarras.

"Trem-bala" é um filme com inúmeras qualidades, mas justamente elas podem incomodar parte dos espectadores. Seu humor - um tanto macabro e violento - não é exatamente convencional. A estrutura do roteiro - repleta de flashbacks e flash forwards -  obriga a uma atenção extra que poucos estão dispostos a conceder diante do cinema quase preguiçoso que vem sendo oferecido pelos grandes estúdios. A falta de um herói - por mais que Ladybug seja uma espécie de fio condutor da trama ele não é o protagonista absoluto - talvez confunda àqueles que buscam uma narrativa mais simples. E o visual elaborado (cortesia da fotografia admirável de Jonathan Sela) pode soar como excessivamente colorido e kitsch. Mas o fato é que, somadas todas as características que fazem dele um filme de ação que tenta fugir da pasteurização do gênero, o resultado é uma produção muito acima da média, que não perde o ritmo em momento algum, que apresenta personagens interessantes interpretados por um elenco impecável e que não hesita em oferecer sequências coreografadas com precisão cirúrgica. É divertido, inteligente e produzido com extrema competência. Quanto ao fato de ser baseado em um livro japonês e contar com atores ocidentais é uma outra discussão, mais séria e mais profunda que em nada atrapalha o prazer de ser envolvido por um filme por 127 minutos de entretenimento puro.

quinta-feira

ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD


ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD (Once upon a time in... Hollywood, 2019, Sony Pictures, 161min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Fred Raskin. Figurino: Arianne Phillips. Direção de arte/cenários: Barbara Ling/Nancy Haigh. Produção executiva: Jeffrey Chan, Georgia Kacandes, Yu Dong. Produção: David Heyman, Shannon McIntosh, Quentin Tarantino. Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Dakota Fanning, Bruce Dern, Al Pacino, Luke Perry, Costa Ronin, Lena Dunham, Kurt Russell, Rafal Zawierucha, Damon Herriman. Estreia: 21/5/2019 (Festival de Cannes)

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Quentin Tarantino), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários. Edição de Som, Mixagem de Som

Vencedor de 2 Oscar: Ator (Brad Pitt), Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 3 Golden Globe Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro

Foi na madrugada de 6 de agosto de 1969 que um crime - violento e chocante em sua gratuidade - acabou, segundo a escritora Joan Didion, com o movimento hippie, a era do amor livre e a atmosfera dos anos 60 como um todo. Um grupo de seguidores do messiânico Charles Manson invadiu a casa da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses do cineasta Roman Polanski (em alta com o sucesso de seu "O bebê de Rosemary", lançado no ano anterior) e a assassinou, juntamente com um grupo de amigos, deixando no local uma série de detalhes macabros que alimentaram as manchetes dos jornais por meses a fio. A investigação do crime, a prisão dos responsáveis e o julgamento midiático ocuparam a mente do mundo - e em especial dos EUA - por anos a fio e ainda permanecem como uma lembrança trágica de uma época encerrada abruptamente com um banho de sangue. O trauma foi tanto que demorou meio século para que um grande estúdio de Hollywood finalmente rompesse o silêncio a respeito do assunto - e mesmo assim somente com o aval de um nome de prestígio, com coragem o suficiente para mexer em um vespeiro mantido sob uma redoma de respeito pelos envolvidos e pelo medo de um fracasso de bilheteria. Foi somente quando Quentin Tarantino anunciou que seu filme seguinte ao western "Os oito odiados" (2016) teria Sharon Tate como uma de suas personagens principais que a história (até então contada mal e porcamente em documentários e telefilmes de pouca repercussão) voltou a povoar o imaginário mundial - e despertar uma curiosidade que só fez aumentar conforme chegava a data de estreia.

Pensando em marcar a estreia de "Era uma vez em... Hollywood" para 6 de agosto de 2019, data em que o crime completaria 50 anos, Tarantino foi voto vencido quando a Sony Pictures - que ganhou os direitos de distribuição em uma disputa acirradíssima com a Warner, a Universal, a Paramount, a Lionsgate e Annapurna Pictures - preferiu adiantar a data para 26 de julho, pouco mais de dois meses depois do lançamento da produção no Festival de Cannes. Até que tal evento acontecesse, porém, muito foi dito, inventado, polemizado e misteriosamente escondido a respeito do filme. Com um roteiro secreto (lido apenas por parte da equipe de filmagem, como forma de evitar os dissabores que quase cancelaram "Os oito odiados" depois do vazamento de seu script) e notícias que chegavam aos poucos, "Era uma vez em... Hollywood" já era, muito antes de chegar às telas, uma das produções mais comentadas e esperadas da temporada - por inúmeras razões. Além do marketing espontâneo que qualquer trabalho de Tarantino gera, não era nada mal ter Brad Pitt e Leonardo DiCaprio nos papéis principais em uma trama que misturava, da forma como apenas o cineasta consegue fazer sem soar prolixo, a trajetória de Sharon Tate, a desilusão de um astro da antiga indústria com os novos tempos, a decadência de um gênero específico (o western), bastidores do cinema pelos olhos de um dublê e diálogos preciosos. Tido por Tarantino como seu filme mais pessoal - algo como "Roma" foi em relação a Alfonso Cuarón - e escrito em um período de cinco anos (nos quais o cineasta também o transformou em um romance, lançado em seguida à estreia), "Era uma vez em... Hollywood" provou que a espera valeu a pena, tanto em termos artísticos quanto comerciais. Com uma renda internacional que ultrapassou os 370 milhões de dólares, dez indicações ao Oscar (e duas categorias no bolso), o filme pode até não ter agradado a todo mundo - algo corriqueiro na filmografia de Tarantino -, mas é, inegavelmente, uma das obras cinematográficas mais importantes de seu tempo.


 Com um título inspirado em Sergio Leone e seus "Era uma vez no Oeste" (1968) e "Era uma vez na América" (1984), o nono filme de Tarantino - se as duas partes de "Kill Bill" forem consideradas apenas um único projeto - quase foi realizado em preto-e-branco e poderia ter estreado com uma duração de 4 horas e 20 minutos. Mas cinema é uma arte de concessões e do jeito que está, o filme é uma pequena obra-prima (mais uma na carreira do Tarantino diretor ). Tudo funciona perfeitamente - até mesmo o que parece gratuito tem ressonâncias bem mais profundas do que aparenta. Por trás dos longos diálogos (característica inconfundível do Tarantino roteirista) e das referências que podem soar como grego ao público médio, a trama é uma pérola de nostalgia, melancolia e pitadas generosas de uma ironia tão fina que pode até passar despercebida - ao menos até o clímax, tão inesperado e surpreendente que foi objeto de um pedido especial dos realizadores para que não fosse comentado pela imprensa ou pela plateia. Justificável: assim como em "Bastardos inglórios" (2009), Tarantino rege seu próprio universo, manda em seus próprios domínios, subverte as próprias regras e a história, se for preciso. Longe de desagradar aos puristas, encontra uma maneira de fazer com que a magia do cinema sempre se sobressaia - e sublinhe seu talento em encantar e decepcionar com a mesma intensidade.

O filme se passa em 1969, quando a Era de Ouro de Hollywood está em seus estertores. Longe de ainda ter a relevância que tinha na década de 1950, quando estrelava populares séries de western na televisão, Rick Dalton (vivido por Leonardo DiCaprio) paira sob uma Los Angeles a que mal reconhece, tentando encontrar uma maneira de manter uma carreira já tida como acabada. Vizinho do cineasta Roman Polanski (praticamente um símbolo de uma nova indústria, moderna e jovem), Dalton luta contra o próprio instinto de autodestruição enquanto relembra seus melhores momentos, ao lado de grandes atores e cercado de respeito e adulação. Invariavelmente acompanhado de seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt, vencedor do Oscar de ator coadjuvante) - bem mais confortável com as novas regras do jogo, a ponto de quase deixar-se envolver com um grupo de hippies bem mais jovens -, o ex-astro vê, aos poucos, uma nova Hollywood surgir diante de seus olhos. Enquanto isso, sua deslumbrante vizinha, Sharon Tate (Margot Robbie), começa a sentir o gostinho da fama e vislumbrar um brilhante futuro, tanto na carreira quanto na vida doméstica. Com visões distintas de sua época e de sua profissão, Dalton e Tate terão suas vidas cruzadas de forma totalmente inesperada e violenta.

Lançado no mesmo Festival de Cannes que 25 anos antes deu a Tarantino a Palma de Ouro e o aval necessário para que se tornasse um dos autores mais prestigiados do cinema norte-americano, "Era uma vez em... Hollywood" não saiu ileso a críticas e polêmicas. Se Debra Tate, irmã de Sharon, viu sua resistência ao projeto ruir ao encontrar Margot Robbie e reconhecer nela qualidades que a faziam lembrar da saudosa atriz, o mesmo não pode ser dito em relação às queixas de Shannon Lee, filha do ator Bruce Lee que não achou graça nenhuma na forma como o roteiro retratou seu pai - bastou uma única sequência para que Shannon considerasse tudo um insulto à memória do ator. Também foi alvo de críticas as liberdades artísticas tomadas pelo cineasta em relação à uma trama crucial para o roteiro: ao criar personagens novos na famigerada Família Manson (ou mesclar personagens reais com fictícios), Tarantino incomodou os puristas que esperavam uma descrição real dos crueis fatos de 6 de agosto de 1969 - que não tiveram interesse em perceber as reais intenções do diretor ao unir a realidade (ainda que alterada) com a fantasia: "Era uma vez em... Hollywood" não é um documentário sobre os assassinatos cometidos naquela fatídica noite - é uma comédia dramática sobre a união de dois mundos, sobre os meandros do destino e sobre a inexorabilidade do tempo até mesmo dentro de um universo que vende fantasia. É um filme com a cara de seu diretor - para o bem ou para o mal - e uma inteligente homenagem a uma atriz cujo futuro foi interrompido pela força do fanatismo. Como qualquer filme de Tarantino, não é para todos os públicos. Mas é sensacional!

A GRANDE APOSTA

A GRANDE APOSTA (The big short, 2015, Plan B Entertainment/Regency Enterprises, 130min) Direção: Adam McKay. Roteiro: Adam McKay, Charles Randolph, livro de Michael Lewis. Fotografia: Barry Ackroyd. Montagem: Hank Corwin. Música: Nicholas Britell. Figurino: Susan Matheson. Direção de arte/cenários: Clayton Hartley/Linda Sutton-Doll. Produção executiva: Kevin Messick, Louise Rosner-Meyer. Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Arnon Milchan, Brad Pitt. Elenco: Ryan Gosling, Steve Carrell, Christian Bale, Brad Pitt, Marisa Tomei, Tracy Letts, Rafe Spall, Melissa Leo, Finn Wittrock. Estreia: 12/11/15

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Adam McKay), Ator Coadjuvante (Christian Bale), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor do Oscar de Roteiro Adaptado 

Subprime. Trenchs. Bolha imobiliária. Termos como esses, comuns a quem lida com o mercado financeiro mas totalmente desconhecidos de 95% da população mundial, são frequentemente mencionados em "A grande aposta", vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado de 2015, batendo nomes fortes, como "Perdido em Marte", de Ridley Scott, e "Carol", de Todd Haynes. Dirigido pelo mesmo Adam McKay de "O Âncora" (2005) e "Tudo por um furo" (2013), e estrelado por astros do porte de Brad Pitt, Christian Bale, Ryan Gosling e Steve Carrell, o filme, baseado em uma história real, caiu nas graças da crítica e chegou a concorrer a outras quatro estatuetas, entre elas melhor filme e direção. Tanto sucesso (inclusive de bilheteria, já que ultrapassou os 70 milhões de dólares no mercado doméstico) não deixa de ser estranho e surpreendente: apesar do elenco milionário e das tentativas de familiarizar a plateia com seu palavreado técnico através de inserções cômicas e didáticas, "A grande aposta" não deixa de ser um filme muito complexo para os não-iniciados (e até para aqueles mais ou menos interessados no assunto). Como cinema é muito bom (bem editado, ágil, inteligente, com ótimos atores e uma direção precisa), mas falha em sua principal missão: se fazer compreender completamente.

Talvez seja exagero afirmar que é preciso um conhecimento prévio de economia para melhor aproveitar todos os detalhes de "A grande aposta", mas é fato que inúmeros de seus diálogos são repletos de jargões e conceitos simplesmente complicados demais para o padrão médio do público. A trama - dividida em vários núcleos cuja intersecção é justamente a grande crise imobiliária de 2005, que arruinou milhares de americanos e causou uma onda de demissões, falências e prisões - apresenta personagens pouco simpáticos, quase todos francamente amorais e/ou meramente gananciosos, o que dificulta ainda mais sua conexão com o público, por mais que sejam interpretados por grandes atores. Quem sai-se melhor nesse quesito é Steve Carrell, que consegue imprimir um pouco de humanidade a seu Mark Baum, um homem torturado pelas lembranças do irmão suicida e por um casamento em frangalhos com a compreensiva Cynthia (Marisa Tomei). Afora ele, os personagens falham em se comunicar com a emoção da plateia, desfilando pela tela desesperados por dinheiro e tentando lucrar com a desgraça alheia. É difícil encontrar um ponto de conexão com qualquer um deles, o que, somado à relativa complexidade da trama, torna o espetáculo ainda mais árduo para o público que procura apenas um entretenimento leve. Por mais que o esforço da produção em se fazer entender seja louvável, o filme de Adam McKay esbarra na própria natureza de seu tema, hermético desde sempre.



Christian Bale chegou a ser indicado ao Oscar de ator coadjuvante - e é seu personagem quem dá o pontapé inicial na história: Michael Burry é um excêntrico investidor, dono de um olho de vidro e modos esquisitos que, analisando o mercado, percebe que em alguns anos a bolha imobiliária que sobrevive de hipotecas da população norte-americana irá estourar, causando uma crise sem precedentes na economia. Esperto, ele resolve apostar nessa certeza e compra milhares de dólares em títulos - e acaba chamando a atenção de outros ambiciosos especialistas no setor, entre eles o próprio Mark Baum, que entra por acaso no negócio depois de um telefonema por engano e leva seus sócios e colegas de trabalho com ele na aventura. É também buscando a fortuna rápida que dois jovens empresários, Charlie Geller (John Magaro) e Jamie Shipley (Finn Wittrock), embarcam na arriscada tentativa de vencer contra o mercado - e tudo é visto à distância (mas não muita) pelo experiente Jared Vennett (Ryan Gosling), que é uma espécie de narrador, que tenta dar luz a todas as tramoias e complicações do roteiro.

Baseado em um livro do mesmo Michael Lewis de "O homem que mudou o jogo" - em que Brad Pitt tentava vencer como gerente de um time de futebol americano baseado exclusivamente em cálculos matemáticos - e dotado de um ritmo empolgante que quase disfarça o fato de ser tão complicado, "A grande aposta" se ressente basicamente de tratar de um assunto tão radicalmente distante do público médio. Não há nada de errado em sua estrutura ou sua costura cinematográfica, tudo funciona como um relógio, desde as atuações inspiradas até a direção precisa e a edição exata. O que atrapalha é unicamente seu tema, por mais que o roteiro oscarizado tente traduzir em imagens e exemplos mundanos todo o festival de jargões e complexidades de seu universo. Quem quiser arriscar-se a uma sessão mesmo sabendo de antemão que deixará passar muitos detalhes tem muito com o que se divertir, mas não deixa de ser um tanto chato passar mais de duas horas batalhando arduamente com o cérebro quando o objetivo é se divertir. Não é um filme ruim, apenas bastante complicado.

domingo

ALIADOS

ALIADOS (Allied, 2016, Paramount Pictures, 127min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Steven Knight. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Mick Audsley, Jeremiah O'Driscoll. Música: Alan Silvestri. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Gary Freeman/Raffaella Giovanetti. Produção executiva: Steven Knight, Jacqueline Levine, Patrick McCormick, Denis O'Sullivan, Jack Rapke. Produção: Graham King, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Brad Pitt, Marion Cottilard, Matthew Goode, Jared Harris. Estreia: 13/11/16

Indicado ao Oscar de Figurino

Talvez tenha sido a expectativa gerada em torno da união de três grandes nomes de Hollywood no projeto. Talvez tenha sido o excesso de boatos a respeito dos bastidores, que insistiam em um rumoroso caso extraconjugal entre os atores principais. Ou talvez tenha sido a estratégia de lançamento justamente na época do ano em que chegam aos cinemas os filmes que irão disputar as principais indicações ao Oscar. O fato é que "Aliados", uma caprichada produção de época, passada durante a II Guerra Mundial, que mistura ação, suspense e romance em doses homeopáticas, dirigida por Robert Zemeckis e estrelada por Brad Pitt e Marion Cottilard naufragou nas bilheterias americanas: com um custo estimado em 85 milhões de dólares, rendeu pouco mais de 40 milhões no mercado doméstico (EUA e Canadá) e nem mesmo chegou a ser lembrado pela Academia, arrebatando uma solitária indicação ao Oscar de melhor figurino. Porém, seu relativo fracasso de bilheteria (a renda internacional ajudou a chegar aos 100 milhões de faturamento) não reflete as qualidades do filme, que, mesmo estando aquém do talento dos envolvidos, é um thriller romântico acima da média, que peca apenas por não apresentar nenhuma novidade ao gênero ou surpreender o espectador.

Assim como o clássico dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em 1942, "Aliados" começa sua trama em Casablanca, no Marrocos. É lá que o Comandante Max Vatan, integrante da resistência canadense na II Guerra Mundial, chega para cumprir uma missão imposta por seus superiores: encontrar a francesa Marianne Beauséjour e, junto com ela, assassinar o embaixador alemão no país. Para isso, eles precisam fingir ser casados, e não demora para que, solteiros e atraentes, eles acabem por se apaixonar de verdade depois da convivência forçada. Logo após o sucesso de sua missão, eles se casam e, resolvidos a formar uma família, vão morar na Inglaterra, onde passam a viver uma vida tranquila ao lado da filha pequena. Tal paz se mostra frágil, no entanto, quando Max é informado que sua mulher é, na verdade, uma espiã nazista que matou a verdadeira Marianne e assumiu sua identidade. Sem acreditar na verdade - mas abalado a ponto da dúvida - ele passa a investigar o passado da mulher que ama, na tentativa de provar sua inocência. No caminho, ele encontra como principal fonte de informações um antigo companheiro de Marianne, Guy Sangster (Matthew Goode), que vive preso a uma cadeira de rodas com o rosto desfigurado.


Com uma ambientação sofisticada e um cuidado extremo no visual - cortesia da fotografia climática de Don Burgess, habitual parceiro de Zemeckis - "Aliados" ganha muitos pontos por sua semelhança com os grandes clássicos produzidos em Hollywood nas décadas de 30 e 40. Amparado por um tom que dialoga diretamente com grandes filmes do passado, o roteiro de Steven Knight - indicado ao Oscar pelo script de "Coisas belas e sujas" (2003) - acerta quando direciona seu foco para as investigações de Vatan e as intrigas relacionadas à guerra, mas falha em seu ponto crucial: o relacionamento entre o casal de protagonistas. Apesar das fofocas que insistiam em colocar Marion Cottilard como pivô da separação de Brad Pitt e Angelina Jolie, sua química com o colega de cena nunca chega a esquentar a tela com cenas mais intensas (sejam elas de sexo ou de romance puro e simples). Essa falta de combustão acaba por ser um defeito mortal para as intenções do filme: sem acreditar totalmente no amor de Max por Marianne, como acreditar em tudo que ele faz para provar sua inocência?

Justiça seja feita: "Aliados" não é um filme ruim. É plasticamente impecável, dirigido com precisão e com uma dupla de atores extremamente talentosos - e da qual sobressai-se a impressionante naturalidade de Marion Cottilard em interpretar absolutamente qualquer papel. O problema é, definitivamente, a total falta de surpresas do roteiro. Até mesmo a reviravolta final soa deslocada e sem muito sentido, como se estivesse sendo tirada da cartola para caber na receita para um filme de sucesso. Os fãs do casal central não terão do que reclamar, mas não deixa de ser um tanto decepcionante ver tantos bons elementos misturados de forma tão mecânica e sem inspiração. Vale como passatempo, mas jamais será um filme inesquecível.

quinta-feira

O HOMEM QUE MUDOU O JOGO

O HOMEM QUE MUDOU O JOGO (Moneyball, 2011, ColumbiaPictures, 131min) Direção: Bennett Miller. Roteiro: Steven Zaillian, Aaron Sorkin, livro de Michael Lewis. Fotografia: Wally Pfister. Montagem: Christopher Tellefsen. Música: Mychael Danna. Figurino: Kasia Malicja Maione. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Nancy Haigh. Produção executiva: Mark Bakshi, Andrew Karsch, Sidney Kimmel, Scott Rudin. Produção: Michael De Luca, Rachael Horovitz, Brad Pitt. Elenco: Brad Pitt, Jonah Hill, Philip Seymour Hoffman, Robin Wright, Chris Pratt, Spike Jonze, Stephen Bishop, Brent Jennings, Tammy Blanchard, Arliss Howard. Estreia: 09/9/11 (Festival de Toronto)

06 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Brad Pitt), Ator Coadjuvante (Jonah Hill), Roteiro Adaptado, Montagem, Mixagem de Som

Poucas pessoas em Hollywood conseguiriam convencer um estúdio a bancar um filme a respeito de beisebol e matemática, dois assuntos não exatamente populares - especialmente fora dos EUA, onde o esporte é praticamente veneno de bilheteria. E uma dessas poucas pessoas é o diretor Steven Soderbergh, que desde 1989, quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com "sexo, mentiras e videotape", consagrou-se como o cineasta independente mais bem-sucedido do cinema norte-americano. Nem mesmo alguns tiros n'água foram o suficiente para diminuir seu prestígio na indústria - e o Oscar de melhor diretor por "Traffic" (2000) no mesmo ano em que também concorria por "Erin Brokovich, uma mulher de talento" só aumentou seu cacife. Portanto, quando Soderbergh surgiu com a ideia de fazer um filme sobre o esporte com o elenco formado por ex-jogadores e profissionais da liga, poucos se surpreenderam com a aquiescência da Columbia Pictures em bancar os custos da produção. A surpresa veio mesmo quando o próprio diretor saiu fora do projeto, por divergências em relação ao roteiro, escrito pelo premiado Steven Zaillian. A entrada em cena de um novo comandante - Bennett Miller, indicado ao Oscar por "Capote" (05) - e um astro de primeira grandeza no papel principal - Brad Pitt - imediatamente inchou o orçamento, e o que seria uma produção menor ganhou destaque na mídia e nas cerimônias de premiação. Indicado a seis Oscar - incluindo melhor filme e ator - e com uma considerável bilheteria doméstica de mais de 75 milhões de dólares, "O homem que mudou o jogo" talvez tenha sido super-apreciado, mas é um filme bastante interessante, a despeito de seu tema pouco atraente.

Desprovido de seu charme de galã e de seu carisma irresistível, Brad Pitt arrancou uma indicação ao Oscar de melhor ator por seu desempenho como Billy Beane, o gerente geral de um time de beisebol de Oakland que tenta, com a ajuda de seu novo assistente, Peter Brand (Jonah Hill, lembrado como coadjuvante pela Academia), melhorar os índices de aproveitamento de sua equipe mesmo com um orçamento irrisório em comparação com os rivais. Perdendo os atletas-astros para times maiores, Beane e Brand - formado em Economia e sem nenhuma relação com o esporte em si - criam uma nova forma de calcular o quanto cada jogador pode render em campo, através de gráficos e percentuais. Contratando homens até então desacreditados ou relegados ao banco de reservas, eles enfrentam a descrença dos analistas técnicos e até do treinador, Art Howe (Philip Seymour Hoffman); Mas, para surpresa de todos, depois de um período de tempo as vitórias começam a acumular-se, transformando o Oakland Athletics em uma espécie de fenômeno inesperado.


Baseado em uma história real, contada por Michael Lewis em seu livro "Moneyball", o filme de Bennet Miller se beneficia de uma edição inteligente, que mergulha o espectador dentro não apenas dos jogos em si - cujas regras não são tão facilmente compreensíveis quanto as do futebol - mas das entranhas do esporte em geral. A melancolia dos estádios vazios, a frieza das negociações contratuais, a agonia das derrotas e a euforia das vitórias são retratadas de forma quase documental, com a câmera de Wally Pfister (diretor de fotografia preferido de Christopher Nolan) sempre atenta a qualquer detalhe capaz de humanizar cada um de seus personagens. Mesclando imagens de arquivo com cenas feitas especialmente para o filme, Miller consegue a proeza de enfatizar a emoção do esporte sem precisar, para isso, abdicar de uma certa dose de racionalidade que dá ao resultado final uma curiosa mescla entre cérebro e coração: é impossível não torcer pelos desacreditados jogadores menosprezados, mesmo que a direção quase cirúrgica evite qualquer traço de sentimentalismo. Até mesmo a relação entre Beane e a filha pré-adolescente é tratada com discrição, apesar de permitir à Pitt que demonstre a sutileza de sua atuação.

Centrando todo seu foco nos dois protagonistas, "O homem que mudou o jogo" conta com participações especiais ilustres - além de Philip Seymour Hoffman como o treinador Art Howe, aparecem em cena Robin Wright (como a ex-mulher de Beane), o diretor Spike Jonze (como o novo marido dela) e Chris Pratt, antes de tornar-se popular como o herói de "Guardiões da galáxia" (2014), como um dos jogadores resgatados pelo método audacioso de Beane e Brand. Como um filme que se propõe a narrar uma história quase inacreditável sem apelar para grandes reviravoltas ou artifícios dramáticos, se utiliza de um excelente roteiro - que, inicialmente escrito por Steven Zaillian, foi burilado por Aaron Sorkin e indicado ao Oscar a categoria, perdendo para "Os descendentes" - para celebrar a persistência e o amor ao esporte, na figura de um protagonista falível e realista, iluminado por flashbacks reveladores que explicam sua trajetória de atleta promissor a gerente em crise profissional. Sem excesso de nenhuma natureza - característica de seu diretor - é uma obra que cresce em uma revisão, desde que se saiba exatamente quais são seus objetivos e seu estilo narrativo. Mais uma bola dentro na carreira de Brad Pitt.

quarta-feira

CORAÇÕES DE FERRO

CORAÇÕES DE FERRO (Fury, 2014, Columbia Pictures, 134min) Direção e roteiro: David Ayer. Fotografia: Roman Vasyanov. Montagem: Jay Cassidy, Dody Dorn. Música: Steven Price. Figurino: Maja Meschede, Anna B. Sheppard. Direção de arte/cenários: Andrew Menzies/Lee Gordon, Malcolm Stone. Produção executiva: Anton Lessine, Alex Ott, Brad Pitt, Sasha Shapiro, Ben Waisbren. Produção: David Ayer, Bill Block, John Lesher, Ethan Smith. Elenco: Brad Pitt, Logan Lerman, Shia LaBeouf, Michael Peña, Jon Bernthal, Jim Parrack, Jason Isaacs. Estreia: 15/10/14

Sim, esse é mais um daqueles filmes que retratam a II Guerra Mundial sob a ótica dos aliados - leia-se norte-americanos - e que fazem a alegria dos pseudointelectuais que adoram reclamar da forma com que Hollywood romantiza o conflito a favor dos EUA. E sim, não foge muito da tradicional receita das produções do gênero, lembrando principalmente o excepcional "O resgate do soldado Ryan", obra-prima de Steven Spielberg lançada em 1998. Escrito e dirigido por David Ayer - autor do roteiro do premiado "Dia de treinamento" (2000) e da vergonhosa adaptação para as telas do seriado televisivo "SWAT" (2003) - "Corações de ferro" tem a seu favor, porém, a despeito de sua quase previsibilidade, um elenco impecável e um tom que se equilibra com sucesso entre a violência e a poesia. Com uma renda abaixo do esperado nas bilheterias - pouco mais de 80 milhões, pouco se considerada a presença de um astro do calibre de Brad Pitt encabeçando os créditos - o filme falhou também em ser lembrado pelas cerimônias de premiação da temporada 2014, sendo ignorado até mesmo nas categorias técnicas, onde normalmente filmes do estilo encontram espaço.

Brad Pitt - que também é um dos produtores executivos do filme - lidera o elenco de "Corações de ferro", mas generosamente divide seu espaço em cena com outros cinco atores mais jovens, que interpretam os subordinados de seu Sargento Collier na missão de enfrentar os nazistas em plenas linhas inimigas, já nos meses finais da guerra. Experiente e quase cínico, Collier se torna o mentor e protetor do introvertido Norman Ellison (Logan Lerman), que entra na batalha por acaso, sendo escalado para ser um dos pilotos do tanque "Fury" - um dos pouco veículos ainda em funcionamento quando a trama tem início. Extremamente jovem e sem histórico em batalhas campais, Norman a princípio é hostilizado e desprezado pelos colegas (como convém a uma boa história do gênero), mas com a amizade do sargento e o desenrolar dos acontecimentos (quando é obrigado a tomar parte de momentos sangrentos e chocantes), aos poucos torna-se ciente de seu papel no jogo. No meio do caminho, descobre - da pior maneira possível - que a guerra não escolhe vítimas.


O roteiro de David Ayer não chega a ser um primor de criatividade, mas ao menos tem o mérito de proporcionar a seus atores alguns bons diálogos e algumas cenas bastante interessantes, principalmente quando dá um tempo em suas sequências de guerra - bem filmadas, mas nada excepcionais - e concentra-se na forma como cada um dos soldados lida com a trágica situação em que se encontram. Como dita o clichê, existe o soldado cristão Bible (vivido por um discreto e eficiente Shia LaBeouf), o latino Gordo (Michael Peña), o fanfarrão violento Coon-Ass (Jon Bernthal, da série "The walking dead") e o boa-gente Binkowski (Jim Parrack). Ayer não se dá muito ao trabalho de desenvolver com profundidade nenhum deles e nem dar-lhes um passado, mas ainda assim fica difícil não se deixar envolver com eles e seus medos diante de um inimigo real e imediato. Ao contar (mais) uma história de perda de inocência, o diretor disfarça a quase burocracia do roteiro com sua segurança em comandar sequências bem orquestradas de batalha, valorizadas pela fotografia e pelo trabalho de som, que mergulham o espectador no meio do conflito, como é mandatório em um filme de guerra que se preze.

Mesmo que não seja um triunfo completo e não esteja destinado a tornar-se um clássico do gênero, "Corações de ferro" não decepciona aos fãs nem de obras sobre a II Guerra Mundial nem de Brad Pitt. Apesar de contida e discreta, a atuação do ator é um dos maiores destaques do filme de Ayer, mesclando com sutileza sentimentos díspares como fúria, desespero, ternura e firmeza sem nunca deixar de convencer a plateia de que é realmente um homem comum tornado herói diante de circunstâncias extremas. Suas cenas com Logan Lerman - cujo personagem dócil e encantador ele acaba por adotar informalmente, apesar de saber que tais características estão com as horas contadas - são as melhores do filme. Apesar da abundância de lugares-comuns, "Corações de ferro" é um filme de guerra com alma, o que lhe dá um diferencial muito bem-vindo em relação a seus semelhantes. Impossível ficar insensível a suas intenções.

sexta-feira

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO (12 years a slave, 2013, Regency Enterprises/River Road Entertainment, 134min) Direção: Steve McQueen. Roteiro: John Ridley, livro de Solomon Northup. Fotografia: Sean Bobbitt. Montagem: Joe Walker. Música: Hans Zimmer. Figurino: Patricia Norris. Direção de arte/cenários: Adam Stockhausen/Alice Baker. Produção executiva: John Ridley, Tessa Ross, Bianca Stigter. Produção: Dede Gardner, Anthony Katagas, Jeremy Kleiner, Steve McQueen, Arnon Milchan, Brad Pitt, Bill Pohlad. Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Brad Pitt. Estreia: 30/8/13 (Festival de Telluride)

9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Steve McQueen), Ator (Chiwetel Ejiofor), Ator Coadjuvante (Michael Fassbender), Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong'o), Roteiro Adaptado, Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Vencedor de 3 Oscar: Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong'o), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme/Drama 

A ainda curta filmografia em longa-metragem do cineasta Steve McQueen - até então restrita a dois nomes, os poderosos "Hunger" e "Shame" - ganhou um importante terceiro capítulo com "12 anos de escravidão", um filme que se utiliza de seu requintado senso estético para contar uma trama pungente e cruel sobre um dos períodos mais nefastos da história da humanidade. Baseado em um história real, seu trabalho - premiado com um Golden Globe de melhor drama e três estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme) - tem um apelo mais universal do que os anteriores, mas, assim como eles, prescinde dos clichês ao evitar o sentimentalismo fácil, armadilha na qual os filmes sobre o tema frequentemente caem. Se a intenção do espectador é emocionar-se com longas sequências de maus-tratos ao som de um música grandiloquente e discursos empolados sobre liberdade, o filme não é este. "12 anos de escravidão" é forte, sim, mas sua força reside justamente em seu distanciamento milimetricamente calculado para emocionar sem pieguice.

O roteiro repleto de elipses - o que tanto ajuda na agilidade quanto atrapalha na compreensão de alguns fatos para quem está acostumado à maneira quase didática com que Hollywood normalmente trata seu público - talvez seja o primeiro fator de estranhamento do filme de McQueen."12 anos de escravidão" já começa sem explicar muito, deixando a audiência tão atônita quanto o protagonista, que se vê, sem entender muito o que está se passando, como um escravo, muito tempo depois de já ter sido liberto e ter uma vida como um homem comum nos EUA pré-Guerra de Secessão. É aos poucos que a trama começa a ser explicada, e mesmo assim, não de maneira linear. O roteirista John Ridley (também oscarizado) parece ter compreendido exatamente o estilo do cineasta, preferindo mostrar a luta do protagonista pela reconquista da liberdade mais através de imagens poderosas do que por diálogos - não chega a ser nervosamente silencioso como seus filmes anteriores, mas aposta acertadamente nas sensações em detrimento da manipulação sentimental.


E é a opção de Steve McQueen em fugir da manipulação o grande diferencial de seu filme. Por ser negro - e consequentemente ter uma ligação bastante emocional com o tema da obra - seria previsível que McQueen se deixasse levar pela tendência a enfatizar o lado fisicamente cruel da narrativa, forçando o espectador a emocionar-se com uma música redundante e interpretações exageradas. Seguindo o caminho oposto, ele prefere documentar a história sem subterfúgios outros que não o absurdo da situação, acreditando - acertadamente - que não é necessário aumentar o que já é sofrido o suficiente. A tática dá certo? Sim e não. Sim porque oferece mais ao público do que o esperado em termos de qualidade narrativa. Não porque talvez esse mesmo público - mal-acostumado que está - tivesse em mente mais um espetáculo de sadismo do que um libelo delicado à liberdade.

E não dá para falar de "12 anos de escravidão" - e louvar suas inúmeras qualidades - sem mencionar o elenco excepcional escalado por Steve McQueen. Chiwetel Ejiofor, até então um ator relegado a papéis coadjuvantes em filmes grandes ("Simplesmente amor" e "2012") ou papéis importantes em filmes bons pouco vistos ("Coisas belas e sujas") entrega uma performance silenciosa e expressiva no papel de Solomon Northup, um homem determinado a encarar seu destino sem deixar de perder a dignidade de ser humano - mesmo diante de atrocidades e golpes baixos. A estreante Lupita Nyong'o dá um show como a desesperada Patsey, objeto de desejo de seu senhor - e por isso mesmo alvo da ira de sua senhora - em pelo menos uma grande cena (seu Oscar de atriz coadjuvante foi mais do que merecido). E, se o elenco masculino conta ainda com bons momentos de Paul Dano e a presença do produtor Brad Pitt, é novamente Michael Fassbender (em seu terceiro trabalho com o diretor) quem rouba todas as cenas em que aparece. Como o cruel Edwin Epps, o ator alemão comprova seu imenso talento em um personagem a anos-luz de distância de seu militante político de "Hunger" ou o viciado em sexo de "Shame". Basta que apareça em cena para que Fassbender convença a audiência de sua maldade inerente. Não é pouca coisa.

No final das contas, "12 anos de escravidão" é um grande filme, contado com elegância e emoção nas medidas certas e que tem a ousadia de manter o estilo de seu diretor mesmo que ele não seja o que a grande massa espera. Vai fazer história, independente de ter sido eclipsado na cerimônia do Oscar pelos efeitos especiais de "Gravidade" - não teve um orçamento milionário, mas tem um coração imenso.

quarta-feira

GUERRA MUNDIAL Z



GUERRA MUNDIAL Z (World War Z, 2013, Paramount Pictures, 116min) Direção: Marc Forster. Roteiro: Matthew Michael Canahan, Drew Goddard, Damon Lindelof, adaptação de Matthew Michael Canahan, J. Michael Straczynski, romance de Max Brooks. Fotografia: Ben Seresin. Montagem: Roger Barton, Matt Cheese. Música: Marco Beltrami. Figurino: Mayes C. Rubino. Direção de arte/cenários: Ben Collins, James Foster/Jennifer Williams. Produção executiva: David Ellison, Marc Forster, Dana Goldberg, Tim Headington, Paul Schwake, Brad Simpson. Produção: Ian Bryce, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Brad Pitt. Elenco: Brad Pitt, Mireille Enos, David Morse, James Badge Dale, Daniella Kertesz, Ludi Boeken, Pierfrancesco Favino, Moritz Bleibtreu. Estreia: 02/6/13

Em uma época em que zumbis viraram mainstream - graças ao sucesso da série de TV "The walking dead" - não é de se admirar que até mesmo Brad Pitt - um dos atores mais confiáveis de Hollywood, incapaz de entrar em um projeto no qual não acredite - tenha aderido à tendência. A boa notícia é que "Guerra Mundial Z", um dos filmes mais caros da história do cinema - ao custo estimado de 400 milhões de dólares - e, segundo consta, com uma história de bastidores das mais complicadas, é um filmaço, capaz de deixar o espectador tenso e grudado na poltrona do início ao fim da projeção. Comandada com surpreendente segurança por Marc Forster - acostumado a produções menos ambiciosas e mais intimistas, como "A última ceia" e "Em busca da Terra do Nunca", mas que teve a experiência de dirigir um filme de James Bond em "007 - Quantum of Solace" - a adaptação bastante livre do livro de Max Brooks (filho de Mel) é capaz de agradar até mesmo àqueles que não são fãs do gênero, graças a um roteiro bem equilibrado, cenas de ação impressionantes e um elenco bem escalado.

O herói do filme - logicamente interpretado pelo sr. Angelina Jolie - é Gerry Lane, agente aposentado da ONU que é chamado às pressas para ajudar a organização quando um vírus desconhecido começa a atacar a população do mundo inteiro. Sem saber as origens ou as características específicas do vírus - que transforma imediatamente os infectados em zumbis ágeis e vorazes - o alto escalão da agência insiste para que Gerry os auxilie em sua busca por maiores informações que possam resultar em uma cura ou vacina para a pandemia. Para manter a família em segurança, ele aceita a missão, que o leva à Coreia do Sul, à Israel e à Moscou - sempre testemunhando sanguinolentas batalhas entre os humanos e os mortos-vivos.


Violento - mas não a ponto de impedir que o público juvenil lote as salas de exibição e garantam sua continuação - e capaz de momentos mais tranquilos - que tentam explicar a situação caótica do mundo em tempos de contaminação - "Guerra Mundial Z" é um filme raro, que sustenta sua ação não apenas em sequências aterrorizantes (e elas realmente o são) mas também em caprichadas cenas dramáticas, que dão o tom de urgência e suspense necessário para seu desenvolvimento. A estrutura do roteiro - que joga Gerry sempre no meio do furacão, lutando por sua vida enquanto tenta encontrar uma saída para a grave crise mundial - segue os livros policiais clássicos, sempre empurrando seu protagonista em direção à verdade através de coadjuvantes bastante interessantes (como o jovem médico que dá a primeira pista a respeito do vírus ou os líderes políticos que podem ou não saber mais do que aparentam). Esses personagens secundários são tão cruciais à trama quanto Gerry, e Forster, como bom diretor de atores, tira o melhor deles, sem deixar de preocupar-se com o que realmente é o ponto forte de seu filme: as impressionantes cenas dos ataques dos zumbis.

Desde a primeira sequência - que começa com um caminhão desgovernado destruindo o que vê pela frente em plena Filadélfia - até o tenso ato final em um laboratório (que deixa qualquer "Resident evil" com vergonha de ter sido feito), "Guerra mundial Z" não poupa os nervos do espectador, praticamente jogando-o dentro da estória - especialmente quando assistido em uma sala com tecnologia IMAX. A fotografia de Ben Seresin e a edição quase histérica são componentes essenciais para que a concepção de Forster atinja seus objetivos: em alguns momentos fica quase impossível saber o que está acontecendo em cena, devido à velocidade da câmera, exatamente como ocorre com as personagens, que só vão realmente ter noção da desgraça quando talvez já seja tarde demais. E se normalmente os zumbis da ficção são morosos e dormentes, aqui a coisa é bem diferente: basta piscar o olho para perder o ataque dos vilões, que apavoram os habitantes das cidades justamente por sua velocidade estonteante.

Visto na tela grande, "Guerra mundial Z" parece exatamente o que é: um filme extremamente caro e complicado. Cada centavo gasto na produção está visível ao público, em momentos intensos que mostram os ataques zumbis e no cuidado com a direção e a técnica. Diferentemente do que acontece com a maioria dos blockbusters, que gasta centenas de milhões em filmes onde não se percebe os motivos para tal, é um produto caprichado, forte e por que não?, inteligente. Pode não o gênero preferido de todo mundo, mas jamais será uma perda de tempo.

sexta-feira

SNATCH - PORCOS E DIAMANTES

SNATCH - PORCOS E DIAMANTES (Snatch., 2000, Columbia Pictures Corporation, 104min) Direção e roteiro: Guy Ritchie. Fotografia: Tim Maurice-Jones. Montagem: Jon Harris. Música: John Murphy. Figurino: Verity Hawkes. Direção de arte/cenários: Hugo Luczyc-Whyhowski. Produção executiva: Stephen Marks, Peter Morton, Angad Paul, Trudie Styler, Steve Tisch. Produção: Matthew Vaughn. Elenco: Benicio Del Toro, Brad Pitt, Dennis Farina, Jason Statham, Vinnie Jones, Rade Serbedzija, Alan Ford, Jason Flemyng, Ewen Bremner, Stephen Graham. Estreia: 23/8/00

À primeira vista, "Snatch - porcos e diamantes", segundo filme do cineasta inglês Guy Ritchie, parece uma espécie de continuação de seu primeiro trabalho, o incensado "Jogos, trapaças e dois canos fumegantes": gângsteres trapalhões, edição acelerada, um roteiro recheado de diálogos sarcásticos e politicamente incorretos e uma variedade insana de subtramas que se atropelam quase ao ponto da incompreensibilidade. Mas não é apenas a inclusão de nomes consagrados internacionalmente como Brad Pitt e Benicio Del Toro no elenco - ao lado dos colaboradores habituais do diretor - que faz dele mais do que isso. Mais experiente e confiante do que em sua estreia, Ritchie manteve todas as qualidades que fizeram dele um dos cineastas mais festejados de sua época e expandiu-as em uma comédia policial quase histérica que mistura humor e violência na medida exata.

Difícil de resumir - assim como acontecia com "Jogos, trapaças" - a trama de "Snatch" é uma miscelânea de histórias paralelas que convergem para um único (a absurdamente climático) desfecho. Jason Statham - um dos atores preferidos de Ritchie, antes de tornar-se astro do cinema de ação - interpreta Turkish, um gângster barato que, ao lado do eterno comparsa Tommy, se envolve no mundo das lutas de boxe comandadas pelo perigoso Brick Top (Alan Ford), que não hesita em comprar resultados para enriquecer ilicitamente. Tentando convencer o cigano Mickey O'Neill (Brad Pitt) a juntar-se a eles em seus esquemas fraudulentos, Turkish acaba no caminho de um grupo de ladrões de diamantes, comandado pelo misterioso Franky "Quatro dedos" (Benicio Del Toro), que, de posse de uma pedra gigantesca de 84 quilates, tenta vendê-la ao ambicioso Primo Avi (Dennis Farina) - até que ela é roubada por um bando de larápios pés-de-chinelo a mando do mafioso russo Boris "The Blade" (Rade Serbedzija). Aos poucos, todos cruzarão uns com os outros, com consequências inesperadas e surreais.


Guy Ritchie - dono de um senso de humor particular e por vezes nos limites do bom-gosto - usa e abusa de recursos estilísticos para sublinhar o tom quase de história em quadrinhos de seu filme, o que ajuda a amenizar a crueldade de algumas sequências (ainda que todas as mortes da trama aconteçam fora de cena). Editado com uma velocidade que deixa o espectador tonto de tanta informação, "Snatch" faz rir graças principalmente ao excesso de acontecimentos bizarros que toma conta da narrativa desde suas primeiras cenas - com direito a um assalto durante uma explicação sobre a tradução da Bíblia, bem ao estilo Quentin Tarantino - e às referências de cultura contemporânea - até mesmo a então esposa do diretor, Madonna, é citada indiretamente, com uma canção tocando no rádio de um carro - mas é inegável que boa parte da graça do filme reside na escalação certeira de Brad Pitt como o cigano boxeador de dicção ininteligível Mickey One Punch.

Dotado de um timing cômico impecável, Pitt - que telefonou para Ritchie se oferecendo para trabalhar com ele depois de uma sessão de "Jogos, trapaças" - rouba cada cena em que aparece como o truculento e esperto lutador que se vinga da morte da mãe passando a perna nos "empresários" do mundo do boxe: deixando de lado qualquer traço de vaidade (apesar do corpo sarado), ele mostra mais uma vez que, por debaixo do galã cobiçado existe um ator disposto a arriscar-se por um bom papel. Suas cenas são, invariavelmente, as mais divertidas do filme, diluindo as cores um tanto quanto machistas e misóginas do roteiro (as mulheres, quando aparecem, não são exatamente em papéis de respeito, servindo apenas como apoio quase figurativo). Esperto e engraçado, "Snatch" é um belo segundo filme, mas que acabou esgotando o estilo de Ritchie, que nunca mais acertou - exceto em projetos de encomenda, como a versão de "Sherlock Holmes" estrelada por Robert Downey Jr. em 2009 e sua continuação. Mesmo assim, fica claro em seus dois primeiros trabalhos, sua energia, criatividade e segurança em contar uma história, por mais complexa que ela seja.

quinta-feira

AMOR À QUEIMA-ROUPA

AMOR À QUEIMA-ROUPA (True romance, 1993, Morgan Creek Productions, 120min) Direção: Tony Scott. Roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Jeffrey L. Kimball. Montagem: Michael Tronick, Christian Wagner. Música: Hans Zimmer. Figurino: Susan Becker. Direção de arte/cenários: Benjamín Fernández/Thomas L. Roysden. Produção executiva: James G. Robinson, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Gary Barber, Samuel Hadida, Steve Perry, Bill Unger. Elenco: Christian Slater, Patricia Arquette, Gary Oldman, Christopher Walken, Dennis Hopper, Brad Pitt, Saul Rubinek, Michael Rapaport, James Gandolfini, Samuel L. Jackson, Val Kilmer, Bronson Pinchot, Chris Penn, Tom Sizemore, Maria Pitillo. Estreia: 10/9/93

Antes de tornar-se febre e ser considerado o "novo Martin Scorsese" graças ao sucesso imediato de seu violento "Cães de aluguel" (92), Quentin Tarantino trabalhava como gerente de uma video-locadora, como qualquer fã de cinema bem informado sabe. O que talvez pouca gente saiba é que, durante esse período, ele e seu colega Roger Avary trabalharam em uma gigantesca história com mais de 500 páginas recheada de todas as características que posteriormente marcariam a obra do mais venerado cineasta da década de 90. Logicamente um roteiro de 500 páginas jamais seria produzido, nem mesmo pelo mais alucinado estúdio de Hollywood e a trama acabou sendo dividida em dois filmes que aparentemente nada tem em comum: o primeiro, "Assassinos por natureza", acabou se transformando em um gigantesco manifesto anti-violência dirigido por Oliver Stone e anabolizado com um excesso de efeitos de filmagem que descaracterizou o texto de Tarantino e provocou duras críticas de seu autor (apesar de ser um grande filme ainda não devidamente reconhecido por todo mundo). O segundo, com narrativa mais tradicional - mas ainda assim extremamente violento - é "Amor à queima-roupa", vendido por meros 50 mil dólares e dirigido pelo inglês Tony Scott, irmão de Ridley e mais conhecido como o autor de filmes bem-sucedidos comercialmente mas ocos em conteúdo, como "Top Gun, ases indomáveis" (86) e "Um tira da pesada II" (87). De posse do roteiro ágil e sem melindres de Tarantino - e com um grande elenco em dias pra lá de inspirados - Scott conseguiu assinar o melhor filme de sua carreira, tragicamente encerrada em agosto de 2012 com um suicídio que abalou Hollywood.

Apesar de parecer estranha a afirmação, "Amor à queima-roupa" é, como diz o título, uma história de amor, ainda que revestida de todas as obsessões e neuroses da década de 90 - bem com de suas referências à cultura contemporânea e às cenas de sexo bem fotografadas e quentes na medida certa. A fotogênica (ainda que um tanto canastrona) dupla central serve perfeitamente às intenções da trama, rocambolesca, exagerada e extremamente divertida. Clarence (Christian Slater no melhor papel de sua carreira) é um jovem atendente de uma loja de quadrinhos raros (referência autobiográfica de Tarantino) que sofre com sua falta de aptidões sociais. Na noite de seu aniversário, ele vai ao cinema assistir a uma sessão tripla de filmes de kung-fu e conhece a doce Alabama (Patricia Arquette), com quem sente uma identificação imediata. Os dois passam a noite juntos, se apaixonam e a verdade cai sobre eles como um balde de água fria: ela é prostituta e foi contratada pelo chefe do rapaz como presente de aniversário. Ao invés de ficar arrasado e sentir-se traído, Clarence sente na confissão da moça uma prova de sinceridade e a pede em casamento. Para que possam viver sua vida em paz, porém, eles precisam se livrar do cafetão de Alabama, o bizarro Drexl (Gary Oldman). E é aí que os problemas realmente começam.


Depois de um confronto com Drexl, em que tanto o cafetão quanto todos os seus comparsas são mortos, Clarence fica de posse de uma mala com 500 mil dólares em cocaína. Vendo nessa trágica circunstância a chance de ficar rico e poder viver ao lado da amada Alabama, eles viajam até Hollywood para vender a droga ao produtor de cinema (Saul Rubinek), mas não sabem que atrás deles está o verdadeiro dono da mercadoria - um mafioso pouco dado a sutilezas que não hesita em matar quem atrapalhe seu caminho - e a polícia de Los Angeles, disposta a tudo para desbaratar a quadrilha de traficantes. O resultado, como se poderia esperar, é um daqueles massacres que só Hollywood sabe orquestrar sem ofender a suscetibilidade da plateia. Exercitando a violência como poucas vezes em sua filmografia, Scott deita e rola em sequências feitas para o delírio dos fãs do gênero - em especial a luta entre Alabama e o capanga vivido pelo saudoso James Gandolfini, em que até mesmo um saca-rolhas serve de arma. É para nenhum fã de sangue botar defeito.

Mas, por trás da violência, das sacadas pop de Quentin Tarantino e do elenco cool, "Amor à queima-roupa" é um bom filme? Sem dúvida. Apesar de nunca ter conseguido realizar antes um filme que combinasse o visual apurado de suas produções com um conteúdo digno de tanto capricho, aqui ele tem a chance de explorar tanto a direção de atores - o que não é difícil quando se tem em cena dois monstros como Christopher Walken e Dennis Hopper, por exemplo - quanto o desenvolvimento de uma trama que, apesar dos clichês (utilizados com destreza ímpar), é inteligente e bem construída. O ritmo imposto a partir da morte de Drexl é alucinado, equilibrado com doses de humor negro e participações especiais que vão desde um Brad Pitt chapado em todas as cenas até a um Val Kilmer que não mostra o rosto como o fantasma de Elvis Presley que aconselha Clarence em suas aventuras. É uma história de amor ao gosto de Quentin Tarantino, com tudo que faz do seu cinema bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. É pegar ou largar.

domingo

KALIFORNIA, UMA VIAGEM AO INFERNO

KALIFORNIA, UMA VIAGEM AO INFERNO (Kalifornia, 1993, Polygram Filmed Entertainment, 117min) Direção: Dominic Sena. Roteiro: Tim Metcalfe, estória de Stephen Levy, Tim Metcalfe. Fotografia: Bojan Bazelli. Montagem: Martin Hunter. Música: Carter Burwell. Figurino: Kelle Kutsugeras. Direção de arte/cenários: Michael White/Kate Sullivan. Produção executiva: Jim Kouf. Produção: Steve Golin, Aristides McGarry, Sigurjon Sighvatsson. Elenco: Brad Pitt, Juliette Lewis, David Duchovny, Michelle Forbes. Estreia: 03/9/93

Um visual úmido, escuro e claustrofóbico. Um psicopata violento e carismático. Brad Pitt encabeçando os créditos de abertura. Apesar das nítidas semelhanças, não é "Seven, os sete crimes capitais", obra-prima do suspense dirigida por David Fincher em 1995. Lançado dois anos antes, quando Pitt ainda não tinha nem o poder de levar multidões aos cinemas nem o respeito de três indicações ao Oscar, "Kalifornia, uma viagem ao inferno" não fez muito barulho nas bilheterias, adquirindo o status de cult movie somente anos mais tarde, quando suas qualidades (e a fama de seu ator central, somada à curiosidade de ver David Duchovny, da série "Arquivo X" em um de seus primeiros trabalhos) foram percebidas por parte do público. Seu fracasso comercial à época de seu lançamento, no entanto, não deixa de ser injusto: apesar de apelar para alguns clichês do gênero, especialmente em seu desfecho, o filme do estreante Dominic Sena tem estilo, ritmo e uma boa dose de violência - elementos interessantes o bastante para a construção de um thriller tenso e instigante em boa parte de sua duração.

David Duchovny - em vias de tornar-se o eterno agente Fox Mulder, papel que o persegue até hoje - vive Brian Kessler, um jornalista que tem a brilhante ideia de escrever um livro sobre serial killers e visitar o local dos crimes, como forma de entender as mentes dos assassinos. Quem o acompanha na viagem através dos EUA é sua namorada, a fotógrafa Carrie Laughlin (Michelle Forbes), frustrada com o pouco reconhecimento de seu trabalho com imagens eróticas. Para economizar nas despesas de viagem, o casal conta com uma dupla de desconhecidos que respondeu seu anúncio: os caipiras Early Gracye e Adele Corners (Brad Pitt e Juliette Lewis, que foram namorados durante as filmagens). Com hábitos que contrastam com a rotina certinha de seus dois novos amigos, Early imediatamente desperta a antipatia de Carrie, que aos poucos começa a perceber a má influência que ele exerce em Brian e o domínio que tem sobre Adele, uma jovem infantilizada que o mantém praticamente em um altar de adoração. Suas suspeitas de que há algo de errado com seu companheiro de viagem se confirmam quando ela descobre que ele é procurado por vários assassinatos - o que pode significar que ela e Brian podem ser as próximas vítimas.


Boa parte das críticas que foram feitas à "Kalifornia" diziam respeito à suposta preponderância da imagem estilosa sob o roteiro, o que, em tese, transformava o filme de Sena em um produto muito mais agradável aos olhos do que ao cérebro. Levando-se em conta de que os filmes seguintes do diretor - "60 segundos" (01) e "A senha: Swordfish" (03) - foram muito mais longe nessa equação, deixando a história de lado para concentrar-se nas cenas de ação, pode-se dizer tranquilamente que as tijoladas em seu primeiro trabalho foram bastante exageradas. Certo, o roteiro não é exatamente um primor de criatividade, mas é inegável que existe um forte elemento psicológico nas relações entre os personagens - Brian admira a masculinidade agressiva de Early, que ao mesmo tempo repele Carrie em sua razão e a atrai em seus instintos mais selvagens - que acrescenta interessantes camadas à trama. Afora isso, há a maneira inteligente de Sena em filmar os assassinatos que acontecem no decorrer da história e a interpretação acima da média de Brad Pitt, já mostrando nos primórdios de sua carreira o excelente ator em que iria se transformar.

Na pele do frio e amoral Early Gracye, que não se furta a matar o cliente de um posto de gasolina apenas para roubar o dinheiro necessário para pagar o abastecimento do carro em que viaja, Brad Pitt rouba a cena sem fazer muito esforço. Com um carregado sotaque caipira e um visual desleixado - que nem mesmo assim conseguem esconder sua beleza - Pitt consegue seduzir e assustar na medida certa, tornando seu personagem tão fascinante que chega a ofuscar o heroi da trama, transformado, no terço final do filme, em um coadjuvante quase sem importância. Só quem consegue bater de frente com o ator é Juliette Lewis, que vinha de uma indicação ao Oscar de coadjuvante por "Cabo do medo" (91) e construiu uma Adele frágil e indefesa que contrasta com a truculência do amado. Logo em seguida a jovem atriz encararia outro violento filme pela frente - "Assassinos por natureza" (94), de Oliver Stone, ao lado de um Woody Harrelson que ficou com o papel justamente porque Pitt recusou-se a fazer um personagem tão semelhante em tão pouco tempo - e ficaria sumida das telas por um bom tempo, dedicando-se à sua banda de rock, "Juliette and the licks". Quando se revisita "Kalifornia", porém, fica clara a falta que ela faz no cinema.

quinta-feira

NADA É PARA SEMPRE

NADA É PARA SEMPRE (A river runs through it, 1992, Allied Filmmakers/Wildwood Enterprises, 130min) Direção: Robert Redford. Roteiro: Richard Friedenberg, estória de Norman MacLean. Fotografia: Philippe Rousselot. Montagem: Robert Estrin, Lynzee Klingman. Música: Mark Isham. Figurino: Kathy O'Rear. Direção de arte/cenários: Jon Hutman/Gretchen Rau. Produção executiva: Jake Eberts. Produção: Patrick Markey,Amalia Mato, Robert Redford. Elenco: Tom Skerrit, Brad Pitt, Craig Scheffer, Brenda Blethyn, Emily Lloyd, Joseph Gordon-Levitt. Estreia: 30/10/92

3 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Fotografia, Trilha Sonora Original
Vencedor do Oscar de Fotografia


Há de se reconhecer que, vez ou outra, a Academia de Hollywood acerta em cheio em suas escolhas. Um perfeito exemplo dessa afirmação é o Oscar de melhor fotografia concedido a Philippe Rousselot na cerimônia de 1993: as belíssimas sequências captadas por ele para o filme "Nada é para sempre", são o que há de melhor no filme de Robert Redford, baseado na estória real do escritor Norman MacLean e na sua relação com a família e a natureza (mais especificamente a pesca). Tratando cada cena como se fosse um quadro, o diretor de fotografia francês - que já tinha no currículo uma indicação à estatueta por seu trabalho em "Esperança e glória" (87) - transforma as vastas paisagens de Montana em um personagem de crucial importância para a trama, ditando o ritmo da narrativa e emoldurando em deslumbrantes takes a bela e trágica história contada com delicadeza e poesia por um inspirado Redford - que conseguiu os direitos de filmagem por muito tempo cobiçados por gente como William Hurt.

Diretor bissexto - ele assinou apenas três filmes em doze anos - Robert Redford ganhou um Oscar já por sua estreia na função, com o dramático "Gente como a gente", de 1980, que, assim como "Nada é para sempre", tem um núcleo familiar como base para uma história que versa sobre amor, amizade, perdas e o duro aprendizado que vem com elas. Um cineasta arraigado aos valores mais tradicionais da sociedade americana - apesar de sua postura política liberal - Redford traduz, em seus filmes, uma visão poética e melancólica de seu país, seja através de um vilarejo lutando por seus direitos básicos - tema de "Rebelião em Milagro" (88) - ou de uma família desestruturada pelo suicídio de um adolescente incapaz de lidar com suas inseguranças frente a um futuro incerto. Em "Nada é para sempre", ele viaja até o inicio do século XX para vasculhar os preconceitos, a religiosidade e a estrutura social de uma pequena cidade americana que serve como microcosmo de um país em construção. E encontra uma poderosa história, que conta de maneira suave e caudalosa como um rio em toda a sua extensão.


O cerne de "Nada é para sempre" é a pesca, esporte praticado de forma quase sagrada pelos homens da família MacLean (sim, o sistema é patriarcal, onde à mãe, vivida por Brenda Blethyn, cabem apenas os afazeres domésticos e as eventuais visitas à Igreja presbiteriana local onde seu marido é o pastor). O chefe da casa - vivido com a medida certa de aspereza e delicadeza por Tom Skerrit - é o pastor da pequena localidade onde moram, e educa os dois filhos com rigidez, dentro das normas religiosas e morais com que também foi criado. A história começa realmente quando o mais velho dos irmãos, Norman (Craig Scheffer), retorna, depois de seis anos distante, à casa dos pais. Formado mas ainda indeciso em relação à seu futuro, ele encontra o caçula, Paul (Brad Pitt em seu primeiro papel de destaque depois do furor que causou em "Thelma & Louise", de 1991) respeitado como jornalista, mas metido em diversas encrencas relacionadas a jogo e bebidas. O reencontro dos irmãos - de personalidades distintas mas profundamente ligados um ao outro - também acontece quando Norman se apaixona por Jesse (Emily Lloyd), de convições religiosas diferentes às de sua família e Paul resolve desafiar a preconceituosa sociedade local envolvendo-se com uma bela mestiça indígena.

Como se pode perceber, a história é o que menos importa em "Nada é para sempre", uma vez que nada conta de diferente. O que faz a diferença no filme - e o que o torna tão fascinante - é a união de fatores que forma o conjunto. Além da espetacular fotografia e da trilha sonora sutil de Mark Isham (que substituiu outra, de autoria de Elmer Bernstein), o roteiro de Richard Friedenberg - indicado ao Oscar - mantém a poesia da prosa de Norman MacLean, tanto na narração em off quanto em vários diálogos, valorizados pelo elenco bem escalado. Apesar de Craig Scheffer ser o protagonista, Brad Pitt rouba todas as cenas com seu carisma jovem que, logo em seguida o tornaria o astro mais popular de Hollywood. Tom Skerrit e Brenda Blethyn emocionam sem fazer alarde e até mesmo um pequeno Joseph Gordon-Levitt, em sua estreia no cinema, dá as caras com o jovem Norman. Filmado com precisão, delicadeza e a dose certa de emoção - leia-se sem apelar para o sentimentalismo - "Nada é para sempre" é para ser degustado com calma, paciência e serenidade. Como uma boa pescaria.

domingo

A ÁRVORE DA VIDA

A ÁRVORE DA VIDA (The tree of life, 2011, River Road Entertainment, 139min) Direção e roteiro: Terrence Mallick. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Hank Corwin, Jay Rabinowitz, Daniel Rezende, Billy Weber, Mark Yoshikawa. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Jacqueline West. Direção de arte/cenários: Jack Fisk/Jeanette Scott. Produção executiva: Donald Rosenfeld. Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad. Elenco: Brad Pitt, Jessica Chastain, Sean Penn, Hunter McCracken. Estreia: 16/5/11 (Festival de Cannes)

3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Terrence Mallick), Fotografia
Vencedor da Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes

Confesso: não sou fã de Terrence Malick. Não faço parte do fã-clube de um dos cineastas mais incensados pela crítica especializada, principalmente por não conhecer a fundo sua (pequena) obra. Acho "Além da Linha Vermelha" bastante enfadonho. E não tenho muita paciência para filmes-cabeça. Por isso, quando entrei na sessão de "A Árvore da Vida", seu mais novo e recente trabalho, eu estava desprovido de expectativas exageradas e  também de qualquer opinião pré-formada (apesar de muitas críticas negativas que pipocavam à minha volta). Sentei na poltrona com a mente aberta, esperando ser tocado de alguma forma pela história proposta pelo cineasta. E não me arrependi. Ainda que não seja a obra-prima alardeada a quatro ventos pelos mais entusiásticos seguidores de Malick tampouco é o soporífero descrito por seus detratores. "A Árvore da Vida" é um belo exercício de estilo, uma comovente história familiar, uma poderosa reflexão sobre a vida e a morte. Poderia ser menos lento e menos longo em alguns momentos? Em uma primeira visão, sim. Mas mexer na estrutura e até mesmo no ritmo do filme o aniquilaria. "A Árvore da Vida" é o que é. Alguns aplaudem, outros vaiam. Todos precisam ver para dar a sua opinião.

Narrado de maneira fragmentada, "A Árvore da Vida" conta, basicamente, a história de uma típica familia americana de classe média dos anos 50, liderada por um pai um tanto déspota e sem maiores arroubos de carinho (interpretado por um surpreendente Brad Pitt que substituiu Heath Ledger após sua precoce morte) e uma mãe delicada e juvenil que aguenta calada a forma quase tirana com que o marido comanda a casa (a ótima Jessica Chastain). Narrada pelo filho mais velho, Jack (vivido por Sean Penn na maturidade e pelo impressionante Hunter McCracken na infância), a trajetória da família é intercalada por imagens que remetem às origens da vida no planeta, enquanto os personagens questionam Deus a respeito de suas dúvidas sobre a vida, a morte e a justiça. Magnificamente fotografado por Emmanuel Lubezki (indicado ao Oscar por seu trabalho) e editado por uma equipe que inclui o brasileiro Daniel Rezende, "A árvore da vida" conquistou o júri do Festival de Cannes que lhe premiou com a Palma de Ouro e concorreu a 3 Oscar, incluindo melhor filme e direção.



Mas a bem da verdade, não dá para recriminar a parte da plateia que vem rechaçando "A Árvore da Vida" de forma tão violenta. Malick não faz concessões em seu trabalho, e por vezes seus objetivos estéticos e metafísicos não são claros o bastante para agradar a um público cuja predisposição a filmes mais contemplativos está cada vez mais atrofiada - e muita gente de bom-gosto também não comprou as ideias do cineasta, alimentando ainda mais a polêmica sobre a qualidade artística do projeto. No entanto, mesmo que as discussões que o filme tenta levantar não cheguem a entusiasmar de forma geral, é inegável que, quando fala de sentimentos em seu filme, o diretor de "Terra de Ninguém" é capaz de emocionar até mesmo o mais insensível dos mortais.

É quando deixa de lado suas intenções filosóficas que Terrence Malick atinge um ponto nevrálgico no coração do espectador. É a complexa relação entre Jack e seu pai (cuja frieza se alterna com raros momentos de delicadeza e carinho) e sua vida em família (seu relacionamento com a mãe quando bebê é adorável) que eleva "A Árvore da Vida" a um nível emocional de rara pungência e verdade. Qualquer pessoa que teve uma infância em família, que tem lembranças a partilhar, que tem traumas guardados e/ou tem aquela sensação nostálgica no peito tem tudo para desabar em lágrimas. É um paradoxo que, justamente quando o filme se afasta de suas ambições de ser pretensamente original que consegue captar o coração do espectador - e fazer mais sentido do que busca suas imagens da natureza (que incluiu até mesmo uma surpreendente e controversa sequência estrelada por dinossauros). E para isso conta com atuações inspiradíssimas de Brad Pitt (fazendo todo mundo esquecer que ele é Brad Pitt, com um personagem crível e bem desenvolvido), Jessica Chastain e do menino Hunter McCracken, que não precisa nem falar para transmitir o turbilhão de sentimentos pelos quais passa seu personagem. Apenas Sean Penn soa deslocado, mas é um pecado menor em um filme tão repleto de qualidades - que incluem a edição espetacular e o visual de tirar o fôlego em algumas sequências.

O conceito de "A Árvore da Vida" pode não ter agradado a gregos e troianos. Mas a coragem de Terrence Malick em levar adiante um projeto tão pessoal já merece aplausos. Seu filme é um clássico instantâneo.

segunda-feira

BASTARDOS INGLÓRIOS

BASTARDOS INGLÓRIOS (Inglourious basterds, 2009, ) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Sally Menke. Figurino: Anna B. Sheppard. Direção de arte/cenários: David Wasco/Sandy Reynolds-Wasco. Produção executiva: Lloyd Phillips, Erica Steinberg, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Lawrence Bender. Elenco: Brad Pitt, Christoph Waltz, Melanie Laurent, Diane Kruger, Michael Fassbender, Eli Roth, Mike Meyers, Daniel Bruhl, B.J. Novak, Denis Menochet, Julie Dreyfuss. Estreia: 20/5/09 (Festival de Cannes)

8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Quentin Tarantino), Ator Coadjuvante (Christoph Waltz), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Edição de Som, Mixagem de Som
Vencedor do Oscar de Ator Coadjuvante (Christoph Waltz)
Vencedor do Golden Globe de Ator Coadjuvante (Christoph Waltz)
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes: Melhor Ator (Christoph Waltz)

Em 1978, um filme italiano chamado "O expresso blindado da S.S. Nazista" estreou nos EUA com o título "The inglourious bastards". Dirigido por Enzo G. Castellari, o filme se passava na França ocupada pelos alemães e tinha como protagonistas um grupo de homens dispostos a qualquer sacrifício para completar sua perigosa missão de cruzar a fronteira com a Suíça. O filme - não exatamente um êxito comercial ou crítico - poderia ter desaparecido com o tempo se Quentin Tarantino, dono de uma prodigiosa memória cinematográfica adquirida de seus tempos como funcionário de um videolocadora não o tivesse ressuscitado... à sua maneira. Mantendo apenas seu título ianque - com uma pequena alteração na grafia - e uma participação especial do diretor Castellari, um dos cineastas mais cultuados da moderna Hollywood inventou uma história que casa com perfeição a violência dos filmes de guerra, o humor negro característico de suas obras anteriores e uma trama capaz até mesmo de alterar o desfecho da II Guerra Mundial.

Provando seu prestígio no mundo do cinema, Tarantino estreou seu "Bastardos inglórios" no Festival de Cannes de 2009, quinze anos depois que abocanhou a Palma de Ouro com seu incensado "Pulp fiction, tempo de violência" e novamente viu os jurados conquistados por seu jeito particular de contar histórias: na pele de Hans Lauda, o oficial nazista que dedica sua vida à caça aos judeus, o austríaco Christoph Waltz levou o prêmio de melhor ator, em uma interpretação impecável que também lhe rendeu o Oscar de coadjuvante no ano seguinte. Roubando a atenção com um personagem que frequentemente se equilibra entre o carisma irônico dos vilões tarantinescos e a crueldade inerente a seus atos de violência, Waltz consegue a proeza até mesmo de sobressair-se ao maior astro do filme, Brad Pitt, que, como o Tenente Aldo Raine, esbanja charme cínico, timing cômico e o carisma que lhe caracterizam e fizeram dele um dos mais confiáveis atores de Hollywood.


Porém, apesar do nome de Pitt estampar com destaque o cartaz de "Bastardos inglórios", o ator divide a atenção com um elenco vasto, que deita e rola no universo criado por Tarantino em sua reimaginação do período. Dividido em capítulos, o filme apresenta seus personagens aos poucos, dando a cada um deles a devida importância, até que todos se encontram no grand finale, a pré-estreia de um filme de propaganda nazista estrelado pelo soldado tornado ator Fredrick Zoller (Daniel Bruhl) - cuja arrogância nascente o impede de perceber que a mulher por quem está interessado (Mélanie Laurent), a dona do cinema, que tem um trágico passado a suas costas, não tem a menor intenção de acatar seus desejos. Sobrevivente de uma família judia exterminada por Landa, a jovem Shosanna imagina uma vingança em grande estilo, que vai de encontro com as intenções dos Bastardos Inglórios e seus comparsas - e que acaba reescrevendo a história de uma das maneiras mais criativas do cinema americano.

Repleto de citações subliminares - como é tradicional na filmografia do diretor - "Bastardos inglórios" é a prova da maturidade de Quentin Tarantino. Sem abrir mão dos longos diálogos que caracterizam sua obra, ele cria uma narrativa que mescla um senso de humor raro com uma tensão constante desde a primeira sequência até seu clímax, de um absurdo nonsense que só faz mesmo sentido dentro do universo do cineasta. Inteligente, engraçado, violento e moderno, "Bastardos inglórios" poderia tranquilamente ter levado o Oscar de Melhor Filme que foi entregue à "Guerra ao terror", mas provavelmente a forma como tratou de um tema delicado junto à Academia deve ter lhe tirado muitos votos. Ainda assim, deve entrar na história como um dos grandes filmes de guerra de seu tempo.

sexta-feira

O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON

O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON (The curious case of Benjamin Button, 2008, Warner Bros/Paramount Pictures, 166min) Direção: David Fincher. Roteiro: Eric Roth, conto de F. Scott Fitzgerald. Fotografia: Claudio Miranda. Montagem: Kirk Baxter, Angus Wall. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Jacqueline West. Direção de arte/cenários: Donald Graham Burt/Victor J. Zolfo. Produção: Ceán Chaffin, Kathleen Kennedy, Frank Marshall. Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Taraji P. Henson, Tilda Swinton, Julia Ormond, Elias Koteas. Estreia: 25/12/08

13 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (David Fincher), Ator (Brad Pitt), Atriz Coadjuvante (Taraji P. Henson), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais, Maquiagem, Mixagem de Som
Vencedor de 3 Oscar: Direção de Arte/Cenários, Maquiagem, Efeitos Visuais

Um dos mais inventivos e inteligentes cineastas americanos surgidos a partir da década de 90, o americano David Fincher - egresso da indústria do videoclipe, onde assinou trabalhos célebres como "Freedom '90", de George Michael e "Vogue", de Madonna - demorou a ser reconhecido pela Academia de Hollywood, a despeito do prestígio de filmes como "Seven, os sete crimes capitais" e "Clube da luta", ambos estrelados por Brad Pitt e que obtiveram receptividade antagônicas junto à plateia - enquanto o primeiro tornou-se um grande sucesso, a adaptação do anarquista livro de Chuck Palahniuk tornou-se cult movie junto a uma parcela injustamente pequena dos fãs de cinema. Ignorado mesmo pelo excelente "Zodíaco", um drama policial que contava a busca por um dos assassinos seriais mais famosos dos EUA, Fincher só recebeu sua primeira indicação ao Oscar por "O curioso caso de Benjamin Button", filme livremente inspirado no célebre conto de F. Scott Fitzgerald, cujos direitos já haviam sido comprados para o cinema nos anos 70. Finalmente, em 2005, depois de anos de projetos infrutíferos - com nomes como Steven Spielberg, Ron Howard e Spike Jonze cotados para a direção - a bela história de um homem que sofre de uma rara condição que o faz rejuvenescer ao invés de envelhecer.

Trabalhando pela terceira vez com Brad Pitt - assumindo um papel que felizmente não ficou nas mãos de John Travolta e Tom Cruise, que eram as possibilidades quando Howard e Spielberg estavam atrelados ao projeto - Fincher criou uma obra-prima pictoria, repleta de uma poesia visual impressionante e uma qualidade narrativa fascinante que justificaram suas generosas 13 indicações ao Oscar. Se não tivesse batido de frente com o ótimo mas superestimado "Quem quer ser um milionário?" - visita de Danny Boyle ao cinema indiano que fez um arrastão na Academia - seu filme tranquilamente teria saído da cerimônia de premiação com mais estatuetas do que as míseras três conquistadas pela direção de arte, maquiagem e efeitos visuais. Uma história de amor que equilibra com precisão a tecnologia do cinema hollywoodiano com a sensibilidade da prosa de Fitzgerald, expandida pelo texto do premiado Eric Roth - que usa em seu roteiro elementos já vistos em seu oscarizado "Forrest Gump, o contador de histórias", o que deu motivo para várias críticas dos detratores - "O curioso caso de Benjamin Button" é deslumbrante, emocionante e dotado de um clima de melancolia que somente os grandes filmes possuem.


O protagonista que deu a Brad Pitt sua segunda chance de ganhar um Oscar é, provavelmente, um dos personagens mais interessantes da literatura americana do século XX e, na versão de Roth e Fincher - que apresenta algumas diferenças cruciais em relação ao original, desde seu cenário (alterado de Baltimore para Nova Orleans) até detalhes importantes na vida do próprio Button, transformados com o objetivo de aumentar a dramaticidade da premissa central - ele é apresentado como uma mistura de heroi romântico e aventureiro incurável. Abandonado no nascimento pelo pai viúvo - incapaz de lidar com sua condição - e criado pela responsável por um lar para idosos na Nova Orleans do começo do século XX (a excepcional Taraji P. Henson, indicada ao Oscar de coadjuvante), Button aos poucos acostuma-se com sua situação, mesmo quando ela o afasta da mulher que ama. Viajando pelo mundo em um barco pesqueiro, ele passa por situações que o aproximam de pessoas que acabam sendo importantes para ele, com uma excêntrica socialite que sonha atravessar o Canal da Mancha (Tilda Swinton, quase roubando o filme com suas poucas cenas) e, surpreendentemente, até mesmo seu pai.

Fotografado majestosamente por Claudio Miranda - que dá às imagens o tom exato para cada momento de espírito de seu protagonista - "O curioso caso de Benjamin Button" é uma experiência única, capaz de envolver a plateia com um visual estonteante e uma história comovente, interpretada por atores brilhantes e conduzida com mão firme por um dos cineastas mais inteligentes da Hollywood contemporânea. Uma pequena obra-prima.

QUEIME DEPOIS DE LER

QUEIME DEPOIS DE LER (Burn after reading, 2008, Focus Features, 96min) Direção e roteiro: Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Roderick Jaynes. Música: Carter Burwell. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Nancy Haigh. Produção executiva: Tim Bevan, Eric Fellner, Robert Graf. Elenco: George Clooney, Brad Pitt, Frances McDormand, John Malkovich, Tilda Swinton, Richard Jenkins, J.K. Simmons. Estreia: 07/8/08 (Festival de Veneza)

Depois da consagração com os Oscar de filme, direção e roteiro por "Onde os fracos não tem vez", era de se esperar que os irmãos Coen se tornassem mais ambiciosos. Acontece, porém, que a dupla - responsável pela aura de respeitabilidade que o cinema independente americano atingiu nos anos 80 - não joga exatamente pelas regras do mainstream hollywoodiano. Fugindo desesperadamente da repetição, eles lançaram, poucos meses depois da cerimônia de entrega das estatuetas, a comédia "Queime depois de ler", que mistura um roteiro anárquico com personagens que beiram a estupidez - elementos que deram muito certo em algumas de suas obras mais respeitadas, como "Fargo" e "E aí, meu irmão, cadê você?".

Escrito concomitantemente a "Onde os fracos não tem vez", o roteiro de "Queime depois de ler" tem a seu favor o fato de não se levar a sério em momento algum, devolvendo a seus autores o tom de deboche que sempre faz parte de sua filmografia. A diferença é que dessa vez os diálogos nonsense são declamados por rostos conhecidos do grande público, como John Malkovich, George Clooney e Brad Pitt, o que talvez explique a renda de mais de 60 milhões de dólares - tímida em relação aos blockbusters, mas respeitável em se tratando de um filme com o orçamento modesto de pouco mais de 35 milhões. Levando-se em conta também que não segue o padrão de comédias que o público americano gosta - a saber, bobagens sobre fluidos corporais e piadas grosseiras e apelativas. Inteligente e sarcástico, o filme dos Coen é um biscoito fino, despretensioso e muito engraçado.


Tudo começa quando Osborne Cox (John Malkovich, exercitando ainda mais sua persona enlouquecida), um agente da CIA especializado nos Balcãs, é demitido devido a seu problema de alcoolismo. Revoltado, ele resolve escrever suas memórias. Enquanto isso, sua mulher, Katie (Tilda Swinton) tem um caso extraconjugal com Harry Pfarrer (George Clooney), que trabalha no Departamento de Estado e também é casado. O quadrilátero amoroso se complica ainda mais quando Harry - que busca outras amantes em sites da Internet - conhece Linda Litzke (Frances McDormand), funcionária de uma academia de ginástica que tem a ideia fixa de realizar uma série de cirurgias plásticas. Frustrada por não ter cobertura de seu plano de saúde, ela vê uma luz no fim do túnel quando encontra, sem querer, um disquete com os primeiros capítulos das memórias de Cox. Ao lado de seu colega Chad Feldheimer (Brad Pitt), ela resolve chantagear o ex-agente, acreditando que o manuscrito trata de segredos de estado. A partir daí a confusão está formada.

Que não se espere de "Queime depois de ler" uma profusão de piadas. O roteiro dos irmãos Coen é um brilhante exercício de bom-humor e crítica política (sem precisar apelar para intelectualismo). Sua trama, repleta de mal-entendidos e reviravoltas, é um prato cheio para o talento de seu elenco, que deita e rola com personagens que tem seu charme justamente na sua falta de noção. Desde o don juan virtual vivido por Clooney - em sua terceira atuação sobre o comando dos cineastas - até a ansiosa e carente personagem de McDormand, tudo funciona divinamente, graças, logicamente, ao talento dos diretores em extrair de cada um o seu melhor. Aí inclui-se o timing cômico de Brad Pitt e J.K. Simmons e o rosto sempre repleto de nuances de Tilda Swinton. São os excelentes atores escalados que dão suporte ao tresloucado roteiro, cujo principal objetivo é divertir o espectador. E, justiça seja feita, faz isso muito bem.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...