quinta-feira

MAIS QUE AMIGOS


MAIS QUE AMIGOS (Bros, 2022, Universal Pictures, 115min) Direção: Nicholas Stoller. Roteiro: Billy Eichner, Nicholas Stoller. Fotografia: Brandon Trost. Montagem: Daniel Gabbe. Música: Marc Shaiman. Figurino: Tom Broecker. Direção de arte/cenários: Lisa Myers/Nicki Ritchie. Produção executiva: Billy Eichner, Karl Frankenfield. Produção: Judd Apatow, Josh Church, Nicholas Stoller. Elenco: Billy Eichner, Luke Macfarlane, Guy Branum, Harvey Fierstein, Miss Lawrence, Debra Messing. Estreia: 09/9/2022 (Festival de Toronto)

Primeiro, uma opinião polêmica: filmes de temática LGBTQIA+ que fogem do tradicional drama feito para ganhar Oscar dificilmente encontrarão, em um futuro próximo, público suficiente para fazer deles campeões de bilheteria. Por se tratar de um nicho (ainda) marginalizado dentro da indústria, produções que tentam desviar das tragédias e/ou biografias históricas gays fatalmente fracassam comercialmente. É difícil imaginar, por exemplo, heterossexuais saindo de casa e pagando um ingresso para assistir à comédia romântica "Mais que amigos" - primeiro filme do gênero com elenco principal formado por atores homossexuais a ser lançado por um grande estúdio de Hollywood (no caso, a Universal Pictures). Apesar dos elogios entusiasmados da crítica e de suas inegáveis qualidades, a produção dirigida por Nicholas Stoller ficou bem aquém das expectativas, em termos financeiros - o que provavelmente irá desencorajar outros estúdios a tentar a sorte nesta seara (ainda) espinhosa. A boa notícia é que, apesar da bilheteria decepcionante, o filme de Stoller é divertido para qualquer um que se proponha a deixar o preconceito de lado.

Logicamente, o público LGBTQIA+ encontrará muito mais razões para rir, uma vez que boa parte das referências pop que permeiam o roteiro diz respeito a seu universo todo próprio. Mas, ao contrário do que se poderia supor, a trama criada pelo diretor e pelo ator principal, Billy Eichner, sobrevive muito bem sem as piadas sobre "Queer eye for the straight guy" ou "Will & Grace", por exemplo. Na verdade, é uma comédia romântica simples, sobre um par aparentemente incompatível que descobre que, para viver um grande amor, é preciso aceitar as diferenças e as pressões sociais - nada de muito diferente de produções estreladas por Meg Ryan nos anos 1990, Katherine Heigl nos anos 2000 e Jennifer Aniston nos anos 2010, mas dessa vez com dois homens estampando o cartaz e buscando a torcida da plateia.



Billy Eichner dá vida a Bobby, um homossexual de trinta e poucos anos, conhecido por um podcast ácido e que está correndo atrás de um patrocínio para o lançamento do primeiro museu de história queer dos EUA - que, entre suas ousadias, quer provar a bissexualidade de Abraham Lincoln. Solteiro, ele deve boa parte de sua solidão à sua própria dificuldade de aprofundar-se em relações amorosas. Cansado de buscar parceiros em aplicativos de relacionamentos, ele conhece, em uma balada, o advogado Aaron (Luke Macfarlane), que considera além de suas possibilidades de conquista: sarado, popular, bonito e afeito a transas casuais, Aaron se aproxima de Bobby como amigo, mas não demora a  perceber que entre eles existe algo mais do que uma simples amizade. Avesso a compromissos, porém, propões ao escolado novo amigo uma relação aberta. Bobby aceita, a princípio, mas logo passa a ver que está (ao menos em sua perspectiva) em grande desvantagem. O conflito nasce - e aumenta até proporções que os impede de (ainda) ficarem juntos.

Repleto de diálogos espirituosos e inteligentes, "Mais que amigos" brinca com todos os clichês das comédias românticas e os estereótipos do mundo gay, sem medo de ofender suscetibilidades ou afugentar plateias mais puritanas. Não se priva de cenas de sexo (ousadas, mas ainda muito aquém do que é mostrado no cinema comercial heterossexual), não foge do sentimentalismo, quando necessário, e tampouco evita tocar em assuntos que povoam o universo LGBTQIA+ - a apologia ao corpo perfeito, o amor incondicional por divas pop, o preconceito dentro da própria bolha, o sexo casual como subterfúgio à solidão. Mas faz tudo com tanta leveza, tanto bom humor, tanta propriedade, que é difícil não se deixar levar e dar boas risadas. Billy Eichner brilha como o azedo e desiludido Bobby, que esconde, por trás de uma fachada cáustica, sérios problemas de autoestima, e Luke Macfarlane (conhecido pela série "Brothers & Sisters") é o contraponto perfeito a seu mau-humor quase encantador. Contando ainda com uma participação impagável de Debra Messing (de "Will & Grace") como ela mesma, "Mais que amigos" é um programa ideal para quem procura um passatempo inofensivo - e, apesar do fracasso comercial, tem tudo para virar cult. Basta mergulhar sem medo e se preparar para torcer para um casal (ainda) atípico.

CONCORRÊNCIA OFICIAL


CONCORRÊNCIA OFICIAL (Competencia oficial, 2021, ICAA/Orange/RTVE, 115min) Direção: Mariano Cohn, Gastón Duprat. Roteiro: Andrés Duprat, Gastón Duprat, Mariano Cohn. Fotografia: Arnaud Valls Colomer. Montagem: Alberto del Campo. Figurino: Wanda Morales. Direção de arte/cenários: Alain Bainée/Sara Natividad. Produção executiva: Antonio Banderas, Penélope Cruz, Laura Férnadez Espeso, Oscar Martínez, Javier Méndez, Javier Pons. Produção: Jaume Roures. Elenco: Penélope Cruz, Antonio Banderas, Oscar Martínez, José Luiz Gómez. Estreia: 04/9/2021

O que fazer quando se chega aos 80 anos de idade, tem dinheiro de sobra e sonha em ter o nome para a posteridade? O empresário Humberto Suárez (José Luiz Gómez), depois de pensar em inúmeras possibilidades (como uma ponte, por exemplo) chega à conclusão de que o melhor negócio que pode fazer é financiar um filme. Mas não um filme qualquer, e sim um grande filme, o melhor que o dinheiro pode comprar. E é com esse objetivo que ele contrata a premiada Lola Cuevas (Penélope Cruz) para dirigir a adaptação de um célebre romance que tem todos os ingredientes para transformar-se em sucesso. Dona de uma personalidade bastante excêntrica, Lola embarca no projeto com a condição de contar, no elenco, com dois dos maiores atores do país: o prestigiado Iván Torres (Oscar Martínez) e o popular Félix Rivero (Antonio Banderas). O que nem Humberto nem os tarimbados atores poderiam imaginar é que os métodos de Lola para atingir a perfeição fogem muito do convencional - e transformam os ensaios em um inferno, fazendo emergir ressentimentos, inseguranças e sentimentos pouco nobres de todos os envolvidos no processo.

Dirigido pelos argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, "Concorrência oficial" é um deleite para os fãs de cinema em geral e artistas em particular: ao mergulhar em um universo repleto de egos inflados e talentos superestimados, a dupla de cineastas e roteiristas brinca com o próprio métier sem nunca perder, apesar do tom de deboche, o respeito pelo cinema e seus realizadores. Ao retratar diretores egóicos, atores autocentrados e produtores sem o menor tino artístico, a trama surpreende o espectador com uma narrativa imprevisível e personagens repletos de camadas, reveladas aos poucos, conforme suas barreiras vão sendo demolidas a ferro, fogo e dinâmicas bizarras criadas por Lola - interpretada com perceptível prazer por Penélipe Cruz, uma das produtoras executivas do filme, ao lado de seus colegas de elenco. Com um visual exuberante que lembra seus melhores momentos com o espanhol Pedro Almodóvar - nitidamente uma influência na paleta de cores vivas e na excentricidade dos personagens -, Cruz deita e rola com diálogos saborosos, repletos de absurdos e referências à cultura pop. De maneira inteligente, os diretores conseguem até mesmo uma auto-citação: o romance adaptado por Cuevas, "Rivalidade", é de autoria de Daniel Mantovani, personagem do filme anterior dos realizadores, "Um cidadão ilustre", vivido pelo mesmo Oscar Martínez que interpreta aqui o celebrado Iván Torres.


 

Iván Torres é um ator de métodos clássicos, do tipo que cria um passado para os personagens que irá interpretar e mergulha profundamente em sua criação. A forma como lida com seu ofício bate de frente com a quase irresponsabilidade de Féliz Rivero, seu colega e rival, que leva a profissão bem menos a sério - e, paradoxalmente, é bem mais popular entre o público. O confronto entre dois estilos de atuação é a faísca procurada por Lola, que os escolhe justamente por sua radical diferença, que ela julga apropriada para a história de dois irmãos rivais. Enquanto ensaia cada linha de diálogo do roteiro - para enfado de ambos, cada um por uma razão diferente - e cria dinâmicas quase humilhantes para arrancar deles interpretações viscerais (a ponto de fazê-los ler o roteiro sob uma rocha que pesa toneladas e pode vir a desabar a qualquer momento), a polêmica diretora não percebe que, em determinado momento, torna-se também vítima de suas técnicas quando passa a questionar o que é verdade ou não na relação entre seus astros - o que pode até acarretar uma tragédia inesperada.

É difícil saber o que é mais precioso em "Concorrência oficial". Do roteiro, original e mordaz, à escalação do elenco, absolutamente certeira, tudo no filme de Cohn e Duprat funciona às mil maravilhas. O estranhamento do primeiro ato - quando Lola Cuevas inicia seu processo criativo - dá lugar, gradativamente, a uma trama recheada de ironias, brilhantemente abraçadas por seus atores, todos em estado de graça. Equilibrando-se entre o humor mais fino e o suspense por vezes inesperado, o filme transita com facilidade por diversos gêneros, extraindo o melhor de cada um deles para oferecer à plateia um banquete cuidadosamente preparado. Criticando o culto à celebridade ao mesmo tempo em que não perdoa o exagerado pedantismo de certa parcela da elite artística, a produção faz rir e pensar na mesma intensidade - é um programa inteligente e leve, que mostra, mais uma vez, a inegável qualidade do cinema argentino contemporâneo.

terça-feira

NÃO FALE O MAL


NÃO FALE O MAL (Speak no evil, 2022, Profile Pictures/OAK Motion Pictures/Det Danske Filminstitut, 97min) Direção: Christian Tafdrup. Roteiro: Christian Tafdrup, Mads Tafdrup. Fotografia: Erik Molberg Hansen. Montagem: Nicolaj Monberg. Música: Sune Kolster. Figurino: Louize Nissen. Direção de arte/cenários: Sabine Hvidd/Jeanett Brahe, Floris Eysink Smeets. Produção executiva: Ditte Milsted. Produção: Jacob Jarek. Elenco: Morten Burian, Sidsel Siem Koch, Fedja van Huet, Karina Smulders, Liva Forsberg, Marius Damslev. Estreia: 21/01/2022 (Festival de Sundance)

Em certa ocasião, enquanto passava férias na Toscana, o cineasta e roteirista dinamarquês Christian Tafdrup e sua família travaram conhecimento com uma família holandesa, com quem se deram imediatamente bem. Logo depois do final do período de férias, Tafdrup recebeu um convite dos novos amigos para que passassem um período em sua casa. O cineasta chegou a considerar a ideia, mas acabou recusando a oportunidade - afinal de contas, ficar por um período em outro país, com pessoas que ele mal conhecia, poderia ser um tanto estranho. Tal acontecimento, no entanto, nunca saiu de sua cabeça e, como bom roteirista, ele não demorou a imaginar o que poderia ter acontecido caso tivesse aceito o inusitado convite. Surgia, então, a história de "Não fale o mal", um dos filmes mais incômodos e perturbadores de 2022, e um sucesso imediato no Festival de Sundance do mesmo ano. Em pouco mais de 90 minutos, Tafdrup simplesmente aterroriza a plateia com um thriller psicológico que vai aos poucos construindo uma atmosfera de tensão - para chegar a um clímax desolador.

O ponto de partida de "Não fale o mal" é justamente o que aconteceu com o cineasta em suas férias: o casal dinamarquês Bjorn (Morten Burian) e Louise (Sidsel Siem Koch) conhece, durante um verão na Toscana, um casal holandês bastante simpático e agradável, Patrick (Fedja van Huêt) e Karin (Karina Smulders). Logo surge uma identificação entre as duas famílias e, um tempo depois, Bjorn e Louise são convidados para passar um tempo na Holanda - Patrick e Karin insistem no chamado, alegando que, além deles, seu filho pequeno, Abel (Marius Damslev), está com saudades da filha do casal, Agnes (Liva Forsberg). A princípio pouco propensos a aceitar a aventura, logo eles topam a viagem e chegam à casa dos amigos, uma bela propriedade afastada da cidade. Não demora, no entanto, para que as diferenças entre todos comecem a se mostrar maiores que sua identificação - enquanto os dinamarqueses são mais formais e sérios, os holandeses parecem mais dispostos a curtir a vida sem maiores preocupações. Sentindo-se pouco confortáveis - os anfitriões não demonstram cuidado ou atenção a suas particularidades -, eles decidem ir embora antes do previsto. E então descobrem que, para soarem educados e gentis, entraram em uma situação da qual é muito complicado sair.

 

Sem maiores spoilers: o que começa com pequenos incômodos - dirigir em alta velocidade e bêbado, música alta, carne servida a vegetarianos - vai se avolumando conforme o tempo vai passando. O fato do pequeno Abel ter uma condição médica que lhe impede de falar (ele não tem parte da língua) é a menor das aflições propostas pelo roteiro tenso criado por Christian Tafdrup e seu irmão, Mads: a cada cena, em cada momento de desconforto sublinhado pela trilha sonora impecável e pela fotografia claustrofóbica, o filme parece desnudar, aos olhos do espectador, um pesadelo cujas consequências são inimagináveis. Quase uma fábula a respeito da tendência do ser humano em ser sociável - independentemente do que isso pode acarretar -, o filme transforma a atmosfera festiva de seus primeiros minutos em um sombrio conto de horror, onde os monstros não são seres do além ou assassinos mascarados, e sim o vizinho, o amigo, o colega de trabalho. E para isso, conta com duas duplas de atores sensacionais, que extrapolam sua aparência civilizada em sequências de deixar qualquer um se retorcendo na poltrona.

Casados na vida real, assim como no filme, Fedja van Huêt e Karina Smulders brilham como o casal anfitrião, transitando entre a docilidade e a opressão com sutileza rara. Na pele dos dinamarqueses pegos de surpresa em uma viagem praticamente surreal, Morten Burian e Sidsel Siem Koch vão do constrangimento ao desespero - levando junto o espectador, descrente do turbilhão de violência emocional que se acumula diante de seus olhos. Assim como em "Violência gratuita", que Lars Von Trier lançou com controvérsia em 1997, a angústia que surge em "Não fale o mal" não vem do horror explícito ou do sangue escorrendo: é a sensação da maldade, a certeza de que algo irrecuperável irá irromper na tela é que constrói toda a estrutura do filme. Aqueles que preferem um ritmo ágil, com reviravoltas a cada quinze minutos certamente irá se aborrecer com a confecção precisa da direção de Tafdrup, mas aqueles que procuram formas mais sutis de mexer com os nervos não conseguirá tirar da mente seu final ríspido e seco como um bom soco no estômago.

OS OLHOS DE LAURA MARS


OS OLHOS DE LAURA MARS (Eyes of Laura Mars, 1978, Columbia Pictures, 104min) Direção: Irvin Kershner. Roteiro: John Carpenter, David Zelag Goodman, estória de John Carpenter. Fotografia: Victor J. Kemper. Montagem: Michael Kahn. Música: Artie Kane. Figurino: Theoni V. Aldredge. Direção de arte/cenários: Gene Callahan/John Godfrey. Produção executiva: Jack H. Harris. Produção: Jon Peters. Elenco: Faye Dunaway, Tommy Lee Jones, Brad Dourif, Rene Auberjournois, Raul Julia. Estreia: 02/8/78

No final dos anos 1970,  John Carpenter, então um cineasta à procura do primeiro grande sucesso, vendeu à Columbia Pictures um roteiro com o título de "Eyes", que contava a história de uma fotógrafa que tinha o poder paranormal de ver através dos olhos de um assassino. Quando tal roteiro finalmente chegou às telas, em agosto de 1978, sob a direção de Irvin Kershner, pouco restava de suas ideias originais: além das alterações propostas pelo estúdio e pelo diretor, o desfecho era diferente do imaginado por Carpenter, que, apesar de tantas modificações, manteve o crédito como autor da trama e se viu, dois meses depois, alçado à condição de ícone do cinema de terror com seu "Halloween", lançado em outubro do mesmo ano. E se o primeiro capítulo das matanças promovidas por Michael Meyers é, ainda hoje, um clássico do gênero, seu roteiro renomeado como "Os olhos de Laura Mars" tampouco pode ser subestimado. Estrelado por Faye Dunaway pouco depois de seu Oscar por "Rede de intrigas" (1976), o filme se mantém como um suspense eficiente, a despeito de seu visual um tanto datado e de sua narrativa por vezes lenta em excesso.

O filme conta a história de Laura Mars, uma fotógrafa influente, celebrada e que vive o auge da carreira com suas imagens que vinculam arte, sexo e violência. Sem ter consciência do fato, Laura criou sua obra a partir de visões que frequentemente surgiam em sua mente. Tal dom, no entanto, torna-se um fardo quando ela começa a perceber que tem o poder de ver através dos olhos de um criminoso. Quando várias pessoas a seu redor começam a morrer violentamente assassinadas diante de seus olhos - sem que ela possa impedir -, ela resolve buscar a ajuda da polícia, que, por motivos compreensíveis, faz pouco caso de suas informações. O único a acreditar em sua narrativa é John Neville (Tommy Lee Jones), um tenente que se apaixona por ela durante as investigações. Apavorada com a possibilidade de ser a próxima vítima do assassino, Laura inicia um processo de paranoia que envolve a todos que conhece - incluindo seu violento ex-marido, Michael Reisler (Raul Julia), e seu motorista, Tommy Ludlow (Brad Dourif), cujo passado criminoso pode ter voltado à tona.


 

"Os olhos de Laura Mars" caiu nas mãos de Irvin Kershner depois da saída de Michael Miller, que abandonou o projeto devido às tradicionais "diferenças criativas" entre ele e o estúdio. Nem mesmo a estrela inicialmente pensada para o papel central, Barbra Streisand, se manteve - apesar de Barbra emprestar sua bela voz na canção-tema, "Prisoner", que toca nos criativos créditos iniciais. Antes que Faye Dunaway assumisse o protagonismo, nomes tão díspares quanto Jane Fonda, Diane Keaton, Goldie Hawn e Catherine Deneuve chegaram a ser cogitadas. A entrada de Dunaway, no auge do sucesso, acabou oferecendo à produção uma seriedade até então rara em filmes do gênero e ajudou muito no êxito comercial do filme - com um orçamento estimado em sete milhões de dólares, rendeu quase três vezes no mercado internacional. A seu lado, um então jovem Tommy Lee Jones - que dois anos depois estaria no elenco do oscarizado "O destino mudou sua vida", com Sissy Spacek -, Brad Dourif (indicado à estatueta de ator coadjuvante por "Um estranho no ninho", de 1975) e Raul Julia, antes de tornar-se um dos atores latino-americanos mais celebrados de Hollywood.  

Com um visual típico dos anos 1970 - com sua fotografia granulada, figurinos exóticos e uma narrativa sóbria mesmo quando apela para a sanguinolência -, "Os olhos de Laura Mars" conquista justamente por levar-se a sério, evitando o tom de deboche que viria a infestar o gênero na década seguinte. Ao localizar sua trama no ambiente sofisticado das fotografias de moda, Irvin Kershner usa e abusa de ângulos criativos para mergulhar o espectador no universo de pesadelo vivido por sua protagonista. Interpretada com garra por Dunaway - que três anos mais tarde escorregaria na caricatura ao interpretar Joan Crawford no polêmico "Mamãezinha querida" (1981) -, Laura Mars é uma heroína típica de sua época, quando as mulheres assumiam as rédeas do próprio destino: apesar de contar com a ajuda do policial vivido por Lee Jones, a fotógrafa jamais se deixa acomodar na posição de vítima, lutando pela sobrevivência ao mesmo tempo em que corre atrás da identidade do assassino que a persegue - uma revelação que não escapa do clichê mas não compromete o resultado final. Talvez a única questão que incomoda no roteiro é o romance entre os dois personagens principais, que soa um tanto deslocado e forçado (mas faz certo sentido nos momentos finais).

 E se existe uma prova da perenidade cultural de "Os olhos de Laura Mars" é o fato de, em 2002, quase vinte e cinco anos depois de seu lançamento, sua protagonista ter sido citada na canção "Gold dust", da cantora Tori Amos (parte de seu álbum "Scarlet's walker"). Não é toda personagem de filmes de suspense que merece tal reconhecimento!

sábado

CHOCOLATE


CHOCOLATE (Chocolate, 2000, Miramax, 121min) Direção: Lasse Halstrom. Roteiro: Robert Nelson Jacobs, romance de Joanne Harris. Fotografia: Roger Pratt. Montagem: Andrew Mondshein. Música: Rachel Portman. Figurino: Renée Ehrlich Kalfus. Direção de arte/cenários: David Gropman/Stephenie McMillan. Produção executiva: Alan C. Blomquist, Meryl Poster, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: David Brown, Kit Golden, Leslie Holleran. Elenco: Juliette Binoche, Judi Dench, Johnny Depp, Lena Olin, Alfred Molina, Carrie-Anne Moss, Peter Stormare, Leslie Caron, Victoire Thivisol. Estreia: 15/12/2000

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Juliette Binoche), Atriz Coadjuvante (Judi Dench), Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original

 Dentre os indicados ao Oscar de melhor filme do ano de 2000 - com produções aplaudidas pela crítica ("Traffic" e "O tigre e o dragão") e sucessos de bilheteria ("Erin Brockovich: uma mulher de talento" e o grande vencedor, "Gladiador") -, a presença do apenas correto "Chocolate", dirigido pelo sueco Lasse Halstrom, pegou muita gente de surpresa. Porém, não era preciso pensar muito para descobrir os motivos de sua lembrança pelos membros da Academia: com uma campanha agressiva que caracterizava sua produtora, a Miramax (responsável pelo sucesso de "Shakespeare apaixonado" contra o superior "O resgate do soldado Ryan", da temporada 1998), os então todo-poderosos Bob e Harvey Weinstein fizeram de um drama convencional e simpático o candidato da temporada preferido dos mais românticos - e de quebra arrancou ainda indicações importantes, como atriz (Juliette Binoche), atriz coadjuvante (Judi Dench) e roteiro adaptado. Porém, a verdade é que, se não fosse o belo empurrão dos irmãos Weinstein, o filme adaptado do romance de Joanne Harris até poderia encantar o público, mas dificilmente chegaria ao páreo final. Isso não significa, no entanto, que o filme de Halstrom seja medíocre - ele é apenas pouco memorável, apesar da união de enormes talentos.

A trama se passa em uma pequena cidade francesa, em 1959. É lá que chega a misteriosa e sedutora Vianne Rocher (Juliette Binoche), acompanhada de sua pequena filha, Anouk (Victoire Thivisol). As duas chegam às vésperas da Semana Santa com o objetivo de abrir uma chocolateria - e o fato de desafiarem - ainda que inconscientemente - os dogmas religiosos da cidade, esmagadoramente católica e liderada com mão de ferro pelo prefeito, Conde de Reynaud (Alfred Molina), um homem de preceitos morais rígidos e que é assombrado pelo desaparecimento da esposa, anos antes. Espontânea e independente, Vianne divide opiniões na pequena cidade: enquanto boa parte da população segue a opinião equivocada de Reynaud, outros habitantes se deixam seduzir por seus belos e deliciosos chocolates e por seus conselhos - que abalam o até então pacato local. É Vianne, por exemplo, que aproxima sua locatária, Amande Voizin (Judi Dench), de seu neto, mantido afastado por obra de sua filha, Caroline (Carrie-Anne Moss), e incentiva a submissa Josephine Muscat (Lena Olin) a dar um basta em casamento com o abusivo Serge (Peter Stormare). Como se não bastasse tantos problemas, a situação fica ainda pior com a chegada de um grupo de nômades, que reacendem os preconceitos dos moradores. Quando seu líder, Roux (Johnny Depp) se envolve romanticamente com Vianne não é apenas a magia de seus doces que passa a perturbar Reynaud e a parcela conservadora do local: tratados com rispidez e intolerância, resta a eles lutarem por seus direitos ou partir para outra cidade.


 

A atmosfera romântica e lúdica de "Chocolate" é seu maior trunfo: a fotografia suave de Roger Pratt e a trilha sonora de Rachel Portman conduzem o espectador a um universo quase de contos-de-fada, valorizado pela cuidadosa reconstituição de época. A presença de Juliette Binoche - em papel recusado por Gwyneth Paltrow (queridinha dos irmãos Weinstein) - é outro achado do filme: mesmo que não tenha necessitado utilizar-se de todo seu potencial, a atriz francesa oferece ao espectador o carisma necessário para envolver o público em uma trama que, se não apresenta maiores novidades, tampouco decepciona aos fãs do gênero. Explorando com delicadeza o clichê da forasteira misteriosa que altera a dinâmica de uma sociedade conservadora, a trama de Joanne Harris - adaptada por Robert Nelson Jacobs, indicado ao Oscar da categoria - brinda o público com personagens fascinantes (ainda que não devidamente aprofundados) interpretados por atores acima de qualquer crítica. Lena Olin (casada com o diretor Lasse Halstrom) brilha na pele de uma mulher descobrindo sua própria força, soterrada em um casamento tóxico. Alfred Molina exercita sua persona de vilão com um Conde Reynaud com sentimentos escondidos sob uma carcaça insensível. E Judi Dench, excelente como sempre, mereceu sua indicação ao Oscar de atriz coadjuvante como a aparentemente ríspida Amande - que se revela uma mulher ansiando pelo reencontro com a família que lhe foi tirada pela própria filha.

Acertando em colocar o romance entre Vienna e Roux como trama secundária - preferindo focar a relação da doceira com os preconceitos locais em primeiro plano -, "Chocolate" é um filme que, assim como o doce que lhe dá título, oferece conforto e satisfação, ao menos durante as duas horas de sua duração. Mas é inegável que, apesar de ser vendido como uma produção ao estilo europeu, não consegue disfarçar certa superficialidade em seu roteiro e até mesmo na direção quase mecânica de Halstrom - que pouco antes havia brindado os cinéfilos com o doce "Regras da vida" (1999). Esteticamente caprichado e com um elenco de sonhos, "Chocolate" é o filme ideal para quem procura um drama mais leve e com um pé na fantasia - elemento sublinhado pela narração em off, que lhe empresta um tom de fábula apropriado e delicado. Talvez não tenha merecido um lugar entre os melhores filmes de um ano que deu ao mundo "Billy Elliot", "Quase famosos" e "Réquiem para um sonho", mas é difícil não se deixar seduzir pelo menos enquanto dura a sessão.

quinta-feira

A MULHER DO AÇOUGUEIRO


A MULHER DO AÇOUGUEIRO (The butcher's wife, 1991, Paramount Pictures, 107min) Direção: Terr Hughes. Roteiro: Ezra Litwak, Marjorie Schwartz. Fotografia: Frank Tidy. Montagem: Donn Cambern. Música: Michael Gore. Figurino: Theadra Van Runkle. Direção de arte/cenários: Charles Rosen/Donald J. Remacle. Produção executiva: Arne Schmidt. Produção: Lauren Lloyd, Wallis Nicita. Elenco: Demi Moore, Jeff Daniels, George Dzunza, Frances McDormand, Mary Steenburgen, Margaret Colin, Max Perlich. Estreia: 25/10/91

Em 1987, quando ainda não era uma estrela de primeira grandeza, Demi Moore tentou convencer a Tri-Star Pictures a comprar um roteiro escrito por Ezra Litak e Marjorie Schwartz,  chamado "A mulher do açougueiro". O estúdio não demonstrou entusiasmo e o script acabou nas mãos da Paramount. Em 1990, com o mega-sucesso "Ghost: do outro lado da vida" no currículo, a então sra. Bruce Willis finalmente teve a oportunidade de ver seu desejo atendido. Já considerada um nome em ascensão em Hollywood, porém, Demi já não tinha mais interesse no projeto, mas foi convencida a reconsiderar a decisão diante de um polpudo salário oferecido pelos executivos - que viam no encontro da estrela do filme de Jerry Zucker com uma produção de temática espiritualista a receita para mais um êxito incontestável. Mas logo o que parecia uma aposta sem riscos se mostrou um tiro n'água: atacado pela crítica e com uma bilheteria decepcionante, o primeiro longa-metragem de Terry Hughes acabou sendo um dos inúmeros fracassos comerciais que pavimentaram o caminho de Demi rumo ao limbo sacramentando com fiascos como "Striptease" (1996) e "Até o limite da honra" (1997).

Conhecido na indústria principalmente pelos 108 episódios que dirigiu da série "Super gatas", Terry Hughes assumiu o comando de "A mulher do açougueiro" com a saída do cineasta inicialmente contratado para o projeto, o polonês Yurek Bogayevicz, dispensado por causa das famosas "diferenças artísticas". Sem experiência cinematográfica, Hughes apresenta um tom apropriadamente leve à sua estreia, mas falha em imprimir personalidade à lúdica história criada por Litak e Schwartz em sua única incursão hollywoodiana. Talvez seja o maior defeito de uma produção que, apesar do massacre da imprensa, não é melhor nem pior que boa parte das comédias românticas que lotam as salas de cinema mesmo sem acrescentar nada ao gênero. Dono de uma atmosfera mágica - sublinhada pela bela trilha sonora de Michael Gore - e recheado de personagens encantadores (ainda que não necessariamente aprofundados pelo roteiro), o filme de Hughes se beneficia da beleza de Demi e do talento de seu elenco coadjuvante para disfarçar uma trama quase simplória, cuja ingenuidade tanto pode ser vista como defeito quanto qualidade.


 

Demi, de peruca loura - e em papel que chegou a ser pensado para Meg Ryan -, interpreta a misteriosa Marina, uma bela clarividente que vê, em seus sonhos a chegada do amor de sua vida à ilha onde vive com sua idosa avó. Quando o açougueiro Leo Lemke (George Dzunza) surge à sua frente, então, ela imediatamente o reconhece como o homem que irá mudar o rumo de sua existência. Casada com ele mesmo sem conhecê-lo direito, ela se muda para Nova York e, com seus poderes, passa a alterar a rotina da pacata vizinhança - quase toda envolvida pessoal ou profissionalmente com o terapeuta Alex Tremor (Jeff Daniels): é graças a seus conselhos, por exemplo, que a tímida Stella Keefover (Mary Steenburgen) cria coragem para dar vazão a seu talento musical; que a vendedora de roupas Grace (Frances McDormand) parte em busca do amor; e que Robyn Graves (Margaret Colin) resolve pressionar o namorado - justamente o indeciso Alex, que, incomodado, confronta a bela esposa de seu vizinho e se apaixona por ela. A ciranda de amores - correspondidos ou não - se completa com a presença de Eugene (Max Perlich), empregado de Leo que vê em Marina a única pessoa capaz de compreendê-lo e aceitar seu passado contraventor.

Não há nada em "A mulher do açougueiro" que seja ofensivamente ruim, como fizeram crer boa parte dos críticos à época de seu lançamento. Se o romance central, entre Marina e Alex, não chega a ser fascinante, tampouco é irritante ou aborrecido. Se os personagens periféricos carecem de profundidade, também não deixam de ser encantadores em sua simplicidade. E se Demi Moore não é exatamente uma atriz de recursos ilimitados, seus colegas compensam o suficiente - e vale lembrar que Demi, carismática ao extremo, foi uma das atrizes mais atacadas dentro da indústria hollywoodiana, talvez pelo sucesso profissional, talvez pelo casamento (até então) bem-sucedido com Bruce Willis, talvez pela beleza irretocável. A má-vontade contra ela talvez explique o fracasso monumental de "A mulher do açougueiro" - menos de dez milhões de dólares arrecadados no total -, mas o fato é que sua carreira ainda emplacaria alguns sucessos de bilheteria ("Questão de honra", em 1992, e "Assédio sexual", em 1993) antes de seus maiores fiascos. "A mulher do açougueiro" é, para o bem ou para o mal, um filme que se sustenta na presença de Demi. Quem é fã não tem do que se queixar. Aos detratores, resta apenas ignorar.


quarta-feira

O PLANO PERFEITO


O PLANO PERFEITO (Inside man, 2006, Universal Pictures, 129min) Direção: Spike Lee. Roteiro: Russell Gewirtz. Fotografia: Matthew Libatique. Montagem: Barry Alexander Brown. Música: Terence Blanchard. Figurino: Donna Berwick. Direção de arte/cenários: Wynn Thomas/Geore DeTitta Jr.. Produção executiva: Karen Kehela Sherwood, Jon Kilik, Daniel M. Rosenberg, Kim Roth, Christian Stibbe. Produção: Brian Grazer. Elenco: Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster, Willem Dafoe, Christopher Plummer, Chiwetel Ejiofor. Estreia: 20/3/2006

Um dos filmes mais populares da carreira de Spike Lee, "O plano perfeito" é, também, um de seus projetos menos pessoais. Assumindo o comando da produção depois da saída do diretor original - Ron Howard abandonou o barco para realizar "A luta pela esperança", com Russell Crowe -, Lee deixou de lado a maioria de suas marcas registradas para assinar uma obra inserida em um subgênero de grande tradição cinematográfica - os filmes de roubo  - e que, com um elenco de nomes conhecidos, não teve dificuldade em encontrar seu público. Com uma renda de mais de 180 milhões de dólares e elogios da maior parte da crítica, o 17º longa-metragem de Lee abraça todas as convenções do estilo e só não se tornou uma pequena obra-prima devido ao roteiro um tanto confuso de Russell Gerwitz, que insiste em reviravoltas por vezes desnecessárias e no desenvolvimento raso de seus personagens - nenhum deles carismático o bastante para despertar a torcida do espectador.

O filme começa com um monólogo de Dalton Russell (Clive Owen), explicando como aconteceu o roubo a banco no qual ele tomou parte. Em um flashback, o público é então jogado ao momento em que Dalton e seus cúmplices entram em uma agência do Manhattan Trust Bank de Nova York. Mascarados e armados, eles dão início à ação criminosa, tomando funcionários e clientes como reféns. Quem é chamado para comandar a resposta ao assalto é o detetive Keith Frazier (Denzel Washington), que não demora a chegar ao local com o parceiro, Bill Mitchell (Chiwetel Ejiofor) e unir-se a outro líder da polícia, o Capitão John Darius (Willem Dafoe). Sem saber ao certo quantas pessoas estão mantidas dentro do banco - e nem ao menos com quantos criminosos estão lidando - Frazier e seus colegas começam a dialogar com Russell, que aparenta não ter a menor pressa em concluir seu roubo e faz exigências surpreendentes para liberar os prisioneiros. A situação fica ainda mais complexa quando entra em cena Madeline White (Jodie Foster), contratada pelo dono do banco, Arthur Case (Christopher Plummer), para impedir que um cofre secreto seja descoberto e tenha seu conteúdo exposto.


 

Dirigindo com inteligência mas sem os rasgos de ironia e fúria de seus trabalhos mais conhecidos, Spike Lee faz de "O plano perfeito" um filme correto mas nunca brilhante. Tudo está em seu devido lugar: a trilha sonora de Terence Blanchard (uma das poucas marcas registradas do cineasta), o elenco acima de qualquer crítica (mais uma colaboração entre Lee e Denzel Washington), a fotografia elegante de Matthew Libatique (que seria indicado ao Oscar alguns anos depois, por "Cisne negro"), que substitui as cores quentes por uma paleta mais sóbria e claustrofóbica. Porém, apesar de suas inúmeras qualidades - devidamente louvadas pela crítica -, o filme falha em conectar-se emocionalmente com o espectador. A opção do roteiro em não aprofundar seus personagens e, com uma pequena exceção ao Keith Frazier vivido por Denzel, não fornecer informações de seu passado ou suas motivações, pode até ser interessante - focar no momento da ação tem prós e contras em uma narrativa -, mas impede o espectador de realmente se importar com os desdobramentos além do que está no centro da trama.  O excesso de questões a serem resolvidas também atrapalha - o que Arthur Case está escondendo em seu cofre pessoal? Por que Dalton Russell escolheu justamente o Manhattan Trust Bank? Quem dentre as pessoas interrogadas por Frazier é cúmplice no assalto? O exagero de perguntas (nem todas respondidas a contento) é o calcanhar de Aquiles de "O plano perfeito".

Com um roteiro que força suas reviravoltas - ingrediente básico do gênero - e não consegue deixar de ser mais confuso do que surpreendente, "O plano perfeito" peca ao negar ao público um elemento crucial: a diversão. Ao contrário de Steven Soderbergh e sua trilogia iniciada com "Onze homens e um segredo" (2000), que aposta no humor e na leveza para seduzir a plateia, Spike Lee prefere se levar a sério demais, optando por conduzir o público em um emaranhado de pistas e personagens dúbios que jamais conquistam o espectador completamente. O clímax frio tampouco ajuda a elevá-lo acima da média e torná-lo o clássico moderno que poderia ser. Mesmo assim, com seu elenco impecável, o filme de Lee agrada ao não subestimar a inteligência de quem se dispõe a passar duas horas envolvido em uma trama que foge do derivativo e do lugar comum. Um filme de adulto, ideal para quem gosta de ter suas células cinzentas desafiadas.

quinta-feira

O PENTELHO


O PENTELHO (The cable guy, 1996, Columbia Pictures, 96min) Direção: Ben Stiller. Roteiro: Lou Holt Jr.. Fotografia: Robert Brinkmann. Montagem: Steven Waisberg. Música: John Ottman. Figurino: Erica Edell Phillips. Direção de arte/cenários: Sharon Seymour/Maggie Martin. Produção executiva: Bernie Brillstein, Brad Grey, Marc Gurvitz. Produção: Judd Apatow, Andrew Licht, Jeffrey A. Mueller. Elenco: Jim Carrey, Matthew Broderick, Leslie Mann, Jack Black, Ben Stiller, Owen Wilson, George Segal, Diane Baker, Bob Odenkirk, Janeane Garofalo. Estreia: 10/6/96

Quando "O pentelho" estreou, no verão norte-americano de 1996, a carreira e o potencial comercial de Jim Carrey estavam em jogo. Não apenas o ator canadense teria que provar ser mais do que apenas um humorista cujo humor físico agradava ao público mas constrangia a crítica, mas também precisaria provar à indústria de que seu astronômico salário de 20 milhões de dólares (um recorde absoluto na época) não era um exagero irresponsável da Columbia Pictures. O resultado nas bilheterias, se não foi o sucesso esperado por aqueles que testemunharam a ascensão meteórica do astro - a soma da renda de seus dois "Ace Ventura" e de "O máskara" ultrapassava 500 milhões de dólares, sem contar os números de "Batman eternamente" (1995), uma máquina de fazer dinheiro que nem mesmo o massacre da crítica pode atrapalhar -, ao menos não decepcionou completamente. Apesar de constar na história como um fracasso, o filme dirigido por Ben Stiller não fez tão feio quanto fizeram crer os analistas: com mais de 100 milhões arrecadados ao redor do mundo, "O pentelho" pode não ter sido o arrasa-quarteirão que era previsto, mas ficou longe de ser um fiasco. Mais importante ainda: ao contrário de muitas críticas negativas, é uma produção com muito mais qualidades do que defeitos.

Lançado como o filme que mostraria um lado novo de Carrey - que já demonstrava interesse em fugir dos papéis de palhaço que lhe deram fama e dinheiro -, "O pentelho" seria, a princípio, um veículo para o estrelato de Chris Farley. Com a saída de Farley do projeto, por compromissos com a Paramount, o roteiro de Lou Holt Jr., comprado pela Columbia Pictures por um milhão de dólares, ficou à deriva, à procura de um novo astro. Nomes como os de Robin Williams, Adam Sandler e Paul Giamatti chegaram a ser considerados, até que, alterando substancialmente as ambições da produção, Carrey entrou na jogada. Sequioso por dar um novo rumo à carreira e emprestar credibilidade a uma trajetória que corria o sério risco de um desgaste iminente, o ator agarrou com unhas e dentes a possibilidade de deixar de lado seus personagens bobalhões e assumir uma persona mais sombria. Sua chegada ao grupo alterou também outros fatores: o roteiro de Holt Jr. passou a ser reescrito por Judd Apatow (que acabou não creditado, por regras do sindicato) e o que seria apenas uma comédia sobre a amizade bizarra entre dois homens virou um filme que flerta abertamente com o suspense - ainda que não tenha a coragem de ir até as últimas consequências principalmente por suas ambições comerciais junto ao público fiel de seu ator central.


 

Na verdade, apesar de viver um protagonista mais complexo do que em seus filmes anteriores, Carrey não chega a abandonar de vez seus trejeitos histriônicos em "O pentelho", mesmo que os equilibre com momentos mais discretos. A trama tem início com a separação do jovem executivo Steven Kovacs (Matthew Broderick), que, voltando a morar sozinho, contrata um serviço de televisão a cabo para ocupar suas noites solitárias. Quem aparece para a instalação é Chip (Jim Carrey), um rapaz um tanto estranho que, confundindo a atenção do novo cliente por um desejo de amizade, passa a perseguí-lo sem folga. A princípio aceitando a atenção de Chip, o tímido Steven logo passa a sentir-se incomodado com a obsessão do novo amigo. Quando resolve impor limites à relação, acaba por despertar um lado perigoso do instalador, que começa a utilizar-se de todas as suas forças para destruir sua vida, incluindo as chances de uma reconciliação com a ex-namorada, Robin (Leslie Mann).

Sob a direção acertadamente claustrofóbica de Ben Stiller - que dá as caras no filme em uma subtrama veiculada na televisão, sobre um homicídio entre irmãos gêmeos -, Jim Carrey dá, em "O pentelho", os primeiros passos em direção a uma carreira de ator sério, que culminaria em performances precisas em "O show de Truman: o show da vida" (1998), "O mundo de Andy" (1999) e "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (2004). Extremamente à vontade em cena, o astro mescla momentos de seu humor físico inconfundível com sequências onde exercita um lado dramático (ainda) um tanto exagerado. Seu colega de cena, Matthew Broderick (que recebeu um salário de apenas um milhão de dólares), está constrangido na medida certa, oferecendo uma contraparte adequada aos quase excessos de Carrey, mas é inegável que, ao alterar o roteiro original, a produção não consegue esconder certa irregularidade em sua segunda metade. Com um ritmo instável e algumas sequências arrastadas, "O pentelho" é nitidamente um degrau acima das bobagens até então estreladas por Carrey, mas sofre com sua indecisão entre uma comédia rasgada e um suspense com toques cômicos. Pode não ter sido o fracasso que foi alardeado por Hollywood - onde muita gente torcia pela queda do ator, não exatamente fácil de lidar -, mas tampouco é a obra marcante que poderia ter sido. Pode-se dizer, sem medo, que foi o primeiro capítulo de uma fase menos comercial e mais artística de sua trajetória - ainda que, em 1999, ele tenha voltado um pouco às origens com o sucesso de "O mentiroso", menos ousado mas bem mais regular.

segunda-feira

DUPLEX


DUPLEX (Duplex, 2003, Miramax/Buena Vista Pictures, 89min) Direção: Danny DeVito. Roteiro: Larry Doyle. Fotografia: Anastas Michos. Montagem: Greg Hayden, Lynzee Klingman. Música: David Newman. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: Stephen Alesch/Robin Stafender. Produção executiva: Alan C. Blomquist, Richard N. Gladstein, Meryl Poster, Jennifer Wachtell, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Drew Barrymore, Stuart Cornfeld, Nancy Juvonen, Jeremy Kramer, Ben Stiller. Elenco: Ben Stiller, Drew Barrymore, Eileen Essell, Harvey Fierstein, Maya Rudolph, Justin Theroux, Wallace Shawn, James Remar, Robert Wisdom, Swoosie Kurtz. Estreia: 26/9/2003

O primeiro longa-metragem de Danny DeVito como diretor, "Joga a mamãe do trem" (1987), já traía sua visão bastante particular de comédia, extraída de situações corriqueiras mas com os dois pés fincados em um tom sombrio e ácido. No filme, ele mesmo interpretava um aspirante a escritor que tentava convencer seu professor de escrita criativa a matar sua mãe autoritária - em troca dele mesmo assassinar a ex-esposa traidora do autor, como em "Pacto sinistro" (1951). Em seu trabalho seguinte atrás das câmeras, "A guerra dos Roses" (1989), um casal em processo de divórcio usava dos mais sórdidos artifícios para ficar com a posse da mansão que dividiam - mesmo que isso significasse sua destruição. "Duplex", lançado em 2003, confirmava a tendência de DeVito em rir de situações sérias e criticar, sem muita sutileza, o verniz que separa a civilização da barbárie. Ao contrapor um jovem casal em busca de um lar para chamar de seu e uma idosa aparentemente dócil que os separa da realização de seu sonho, a comédia estrelada por Ben Stiller e Drew Barrymore substitui a gargalhada óbvia pelo riso nervoso - opção inteligente que talvez explique sua decepcionante recepção comercial.

 

Com uma renda mundial que não chegou a cobrir nem mesmo a metade de seu orçamento, estimado em 40 milhões de dólares, "Duplex" provavelmente esbarrou na resistência do público em abraçar comédias que ousam fugir do esperado binômio pastelão/sofisticação. Situado em um meio-termo arriscado entre irmãos Farrelly e Woody Allen, o filme de DeVito aposta em personagens de caráter dúbio (ainda que facilmente adoráveis e de fácil empatia) e sequências de humor físico que deveriam dialogar diretamente com uma plateia ávida por risadas fáceis - mas que, por algum motivo, a afugentaram. O fraco resultado financeiro do filme, no entanto, não reflete sua qualidade. Assim como várias produções acima da média que naufragaram sem maior explicação, "Duplex" é um produto destinado a tornar-se cult. Talvez uma daquelas sessões da tarde queridas, com um público cativo e fiel, sempre disposto a rir das desventuras de um dos casais mais azarados de Nova York.

Alex Rose (Ben Stiller) e Nancy Kendricks (Drew Barrymore) são jovens, apaixonados, felizes e no caminho para se tornarem bem-sucedidos profissionais. Ela trabalha em uma revista e tem ambições de ascender na carreira, e ele é um escritor em vias de entregar seu segundo livro - apesar do atraso considerável no cronograma especificado no contrato. Depois de muito procurarem um lar para chamar de seu, os dois pombinhos mal podem acreditar na sorte grande quando surge, diante de seus olhos, a oportunidade de comprar um espaçoso duplex no Brooklyn - a um preço atrativo, ainda que apertado dentro de suas condições financeiras. Apaixonados pelo apartamento, os dois resolvem investir suas economias na compra do imóvel, mesmo sabendo que o andar superior do imóvel está ocupado. A inquilina é uma senhora idosa chamada Miss Connelly (Eileen Essell), solitária, doce e de saúde frágil. Alex e Nancy tem certeza de que não irá demorar para que sua vizinha morra e eles possam finalmente tomar posse de todo o seu duplex - mas as coisas não são como parecem. A dócil velhinha logo se transforma em uma enorme pedra no sapato do casal: espaçosa, cínica e irascível, ela não hesita em utilizar-se de sua imagem meiga para esconder uma personalidade insuportável. Sem ter a quem recorrer, Alex e Nancy chegam à conclusão de que a única maneira que eles tem de se livrar de seu pesadelo é apressando sua morte.

Assim como em seus filmes anteriores, Danny DeVito leva seus personagens ao limite do eticamente aceitável, transformando cidadãos normais e pacíficos em potenciais homicidas. Ao contrário de fazer disso um discurso pessimista sobre a maldade intrínseca do ser humano, porém, ele o faz com humor e leveza. Alex e Nancy não são pessoas ruins - o que não pode ser dito a respeito da respeitável anciã que os tira do sério -, e não é difícil simpatizar com eles e (pasmem!) torcer para que seus planos mirabolantes deem certo. Completamente inaptos para o crime, Alex e Nancy são mais vítimas do que assassinos (ou pretensos assassinos) e, dona de um talento inesgotável para transformar a vida dos vizinhos em um inferno na Terra, Miss Connelly passa rapidamente da condição de velhinha indefesa a alguém capaz de tirar a paciência do mais pacífico cidadão. Criando maneiras surpreendentes de tentativas de homicídio, o roteiro de Larry Doyle brinca sem medo com uma completa inversão de expectativas, e encontra em Ben Stiller, Drew Barrymore e Eileen Essell os intérpretes ideais de sua imaginação fértil - e seu casamento com a direção debochada de DeVito resulta em um filme cujo humor inteligente infelizmente não encontrou seu público. Talvez pelo tema, talvez pelo tom sombrio, a plateia ignorou "Duplex" no cinema - e acabou privada de uma das comédias mais ousadas e divertidas da temporada.

quinta-feira

BUSCA FRENÉTICA


BUSCA FRENÉTICA (Frantic, 1988, Warner Bros, 120min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski, Gérard Brach. Fotografia: Witold Sobocinski. Montagem: Sam O'Steen. Música: Ennio Morricone. Figurino: Anthony Powell. Direção de arte/cenários: Pierre Guffroy. Produção: Tim Hampton, Thom Mount. Elenco: Harrison Ford, Emmanuelle Seigner, Betty Buckley, John Mahoney, Gérard Klein. Estreia: 19/02/88

Nada como, depois de um fracasso de proporções homéricas, voltar às origens para recuperar, se não o caminho das bilheteria, ao menos boa parte do prestígio acumulado em décadas de sucesso. Dois anos depois do fiasco irrecuperável de "Piratas" (1986) - que custou cerca de 40 milhões de dólares e rendeu menos de dois ao redor do mundo -, a carreira de Roman Polanski precisava urgentemente de um filme que resgatasse o respeito da crítica e relembrasse ao público o cineasta por trás de obras impecáveis como "O bebê de Rosemary" (1968) e "Chinatown" (1974). Nada mais natural, então, do que recorrer ao gênero que fez dele um dos mais importantes realizadores europeus de sua geração: de volta à Paris onde filmou seu clássico "O inquilino" (1976) e munido de intenções hitchcockianas, Polanski atingiu parte de seus objetivos. Apesar de não ter se tornado o grande êxito comercial esperado pela Warner Bros, sua primeira colaboração com a futura mulher Emmanuelle Seigner (com quem se casaria em agosto de 1989) o reconciliou com a maioria da crítica e mostrou que abandonar a grandiosidade e abraçar o minimalismo foi sua melhor opção.

Não é preciso ser graduado em Cinema para perceber que a inspiração de "Busca frenética"" - em termos temáticos e visuais - é o mestre do suspense Alfred Hitchcock. Com uma trama que remete diretamente a "A dama oculta" (1938), sequências que homenageiam obras como "Janela indiscreta" (1953) e a indefectível loura misteriosa que foi marca registrada de boa parte de sua filmografia , o filme de Polanski recorre até mesmo a um dos truques preferidos do cineasta britânico: o infame mcguffin - aqui representado por um artefato capaz de detonar armas nucleares (!!). Tal artifício até chega a incomodar de tão pueril, mas é fato que, até que se descubra os motivos por trás do desaparecimento da esposa do protagonista (interpretado por um apático Harrison Ford, provavelmente responsável por boa parte da repercussão popular do filme), a produção envolve e intriga na medida certa, aproveitando as ruas escuras de uma Paris bem menos acolhedora do que nos cartões postais mas charmosa o bastante para desfilar com beleza pelas lentes da fotografia do veterano polonês Witold Sobocinski - colaborador de nomes como Andrzej Wajda e Krysztof Zanussi. Percorrendo becos inferninhos, a câmera nervosa de Sobocinski mergulha o público em uma trama onde tudo parece perigoso e todos parecem suspeitos de algum crime inconfessável.

 

A trama começa com a chegada de Richard Walker (Harrison Ford) à Paris. Acompanhado da mulher, Sondra (Betty Buckley), ele está na capital francesa para uma conferência profissional, mas o casal tem também a intenção de reviver os bons momentos que passaram na cidade em sua lua-de-mel. Seus planos começam a dar errado quando Sondra simplesmente desaparece do quarto de hotel enquanto o marido está no chuveiro. Completamente perdido - não sabe falar francês e não tem a menor ideia do que pode ter acontecido com a esposa -, Walker tampouco recebe ajuda das autoridades locais, pouco interessadas em sua história. Depois de tentativas quase infrutíferas de investigar por conta própria, o médico descobre que o sumiço de Sondra está ligado a uma troca de malas ocorrida ainda no aeroporto - e tal descoberta o leva até Michelle (Emmanuelle Seigner), uma bela jovem que pode estar de posse do objeto procurado pelos sequestradores, que tem ligações com um grupo com intenções de controlar armas nucleares. Juntos, Walker e Michelle partem em busca de uma forma de resgatar Sondra e evitar uma tragédia maior, já que a polícia aparenta estar mais preocupada em desbaratar a quadrilha do que manter a mulher do médico viva.

A trama rocambolesca e com ares de aventura obsoleta de James Bond é o calcanhar de Aquiles de "Busca frenética". Roman Polanski é um diretor com o dom de buscar sempre ângulos desconfortáveis e criativos para enfatizar suas ideias frequentemente claustrofóbicas, mas acaba tropeçando em um roteiro - coescrito com o parceiro Gérard Brach - frequentemente confuso e sem foco bem definido. A presença de Emmanuelle Seigner soa gratuita a maior parte do tempo e a atuação de Harrison Ford, morna e indiferente, prejudica a empatia com seu personagem - que foi cogitado para cair nas mãos de Nick Nolte, William Hurt e Kevin Costner. Salva-se a primeira metade, intrigante, algumas sequências interessantes e até mesmo a presença magnética de Seigner. No mais, é um Polanski mais palatável ao gosto médio (ou seja sem maior personalidade) e menos marcante. Um supercine de luxo!!

quarta-feira

LOUCAMENTE APAIXONADOS


LOUCAMENTE APAIXONADOS (Like crazy, 2011, Paramout Vantage, 89min) Direção: Drake Doremus. Roteiro: Drake Doremus, Ben York Jones. Fotografia: John Guleserian. Montagem: Jonathan Alberts. Música: Dustin O'Halloran. Figurino: Mairi Chisholm. Direção de arte/cenários: Katie Byron/Rachel Ferrara. Produção executiva: Steven Rales, Mark Roybal, Audrey Wilf, Zygi Wilf. Produção: Jonathan Schwartz, Andrea Sperling. Elenco: Anton Yelchin, Felicity Jones, Jennifer Lawrence, Charlie Bewley, Alex Kingston, Oliver Muirhead, Chris Messina. Estreia: 22/01/2011 (Festival de Sundance)

Anna Gardner é uma jovem britânica que está em Los Angeles estudando Jornalismo. Jacob Helm sonha em fazer carreira como desenhista de móveis. Os dois se apaixonam perdidamente e fazem planos de passar o resto da vida juntos. Decidida a permanecer ao lado do namorado por mais tempo que o permitido em seu visto, Anna acaba por ver-se proibida de voltar aos EUA e retomar a relação. Desesperados com a situação, os namorados resolvem manter o relacionamento mesmo à distância, enquanto tentam resolver a questão. Todas as alternativas, no entanto, soam inadequadas: ele está começando uma bem estruturada carreira profissional e não vê sentido mudar de país, e um casamento (que pode dar um green card a ela) parece algo radical demais - e tampouco é garantia de sucesso, uma vez que o processo na imigração não é tão simples. Nesse meio-tempo, depois de uma breve separação, eles se envolvem com outras pessoas, mas não conseguem esquecer a força de seus sentimentos.

Com essa trama simples e direta, que fala direto ao coração do público, o cineasta Drake Doremus fez de "Loucamente apaixonados" um dos maiores sucessos do cinema independente de 2011: de sua estreia, em Sundance (de onde saiu com dois prêmios) até o lançamento comercial, aproximadamente um ano mais tarde, o filme foi exibido em festivais pelo mundo (Toronto, Vancouver, San Diego, Austin, Amsterdam, Montreal, Estocolmo, Oslo) e conquistou a crítica com sua delicadeza e energia juvenil e romântica. Longe de ter se tornado um campeão de bilheteria - ao menos dentro do conceito de lotar salas de exibição e formar filas quilométricas - e ignorado por cerimônias de premiação mais tradicionais (Oscar, Golden Globe, SAG Awards), o filme de Doremus cativa justamente por fugir das receitas mais óbvias de sucesso comercial e abraçar uma estética mais livre de amarras ao mesmo tempo em que permite ao espectador reconhecer nas telas todos os elementos que fazem do gênero um dos mais populares do cinema. Mais próxima do dolorido "Namorados para sempre" do que do alto astral "Questão de tempo" - todos lançados no mesmo ano -, a história de amor e desencontros entre Anna e Jacob se move com desenvoltura entre bons e maus momentos, delícias e tormentos, paixão e saudade, confiança plena e dúvidas angustiantes, sempre amparada no desempenho fascinante de seus dois atores centrais, um trunfo do qual Doremus lança mão sem o menor resquício de vergonha.

 

Donos de uma química palpável que salta das tela, Anton Yelchin e Felicity Jones são a alma de "Loucamente apaixonados". Improvisando boa parte dos diálogos - depois de exaustivos ensaios -, os jovens atores se entregam nitidamente às desventuras do casal de protagonistas, a ponto de não dar espaço algum para qualquer dúvida da plateia de que foram feitos realmente um para o outro. Mesmo quando a realidade dura se impõe à fantasia romântica, ambos são capazes, sem precisar mais do que expressões faciais ou movimentos discretos, de transmitir ao espectador um leque de emoções que resume todo o turbilhão pelo qual passam. Yelchin, primeira escolha do cineasta para viver Jacob, está encantador - e sua morte precoce, em 2016, com apenas 27 anos, parece ainda mais trágica quando se vislumbra o que o futuro poderia lhe oferecer. Felicity - premiada em Sundance e posteriormente alçada à grande promessa de Hollywood graças à sua indicação ao Oscar por "A teoria de tudo" (2014) - conquistou o diretor a ponto de estrelar seu filme seguinte, "Paixão inocente" (2013) e mostra um carisma e uma delicadeza raras. O trabalho dos dois é tão brilhante que até mesmo a sempre ótima Jennifer Lawrence - que seria oscarizada dois anos depois, por "O lado bom da vida" (2013) - consegue ser eclipsada (mesmo que, quando em cena, demonstre todo o seu potencial). 

Ao apresentar vários elementos consagrados pelo cinema independente norte-americano contemporâneo - edição ágil, trilha sonora moderna - e utilizá-los a seu favor, "Loucamente apaixonados" aponta o talento de Drake Doremus, um cineasta ainda restrito a pequenos circuitos, com filmes interessantes mas pouco vistos, como "Quando te conheci" (2015) e "Amor a três" (2019). Conduzindo sua história com sutilezas visuais e dotado de grande senso de ritmo, Doremus evita o sentimentalismo fácil e aposta em uma trama de forte apelo popular sem deixar-se contaminar pelo caminho mais óbvio. Seu filme é simpático até mesmo quando se torna incômodo - afinal, a realidade como mostrada sob suas lentes é amenizada pela fotogenia de seus astros centrais e pela inteligência de um roteiro cuja principal inspiração é a vida como ela é, ainda que vista por um ângulo poético e generoso.

terça-feira

FAMÍLIA HOLLAR


FAMÍLIA HOLLAR (The Hollars, 2016, Sony Pictures Classics, 88min) Direção: John Krasinski. Roteiro: Jim Strouse. Fotografia: Eric Alan Edwards. Montagem: Heather Persons. Música: Josh Ritter. Figurino: Caroline Eselin. Direção de arte/cenários: Daniel B. Clancy/Gretchen Gattuso. Produção executiva: Michael London, Mike Sablone, Jim Strouse, Janice Williams. Produção: John Krasinski, Ben Nearn, Tom Rice, Allyson Seeger. Elenco: John Krasinski, Richard Jenkins, Margo Martindale, Anna Kendrick, Shartlo Copley, Charlie Day, Randall Park, Josh Groban, Mary Kay Place, Ashley Dyke. Estreia: 24/01/2016 (Festival de Sundance)

Quando o terror "Um lugar perigoso" estreou, em 2018, muita gente se surpreendeu com o talento de seu diretor: conhecido por seu desempenho na série "The office" (2005-2013), onde interpretava o bom-moço Jim Halpert, o jovem John Krasinski mostrava, então, uma faceta que não era exatamente nova para os fãs de cinema independente, que o acompanhavam desde sua estreia como diretor de longas-metragens - com o elogiado mas pouco visto "Breves entrevistas com homens hediondos", de 2009. Sensível, discreto e dotado de um senso de humor caloroso e humano, Krasinski atingiu, em seu segundo filme, o equilíbrio perfeito entre drama, comédia e romance. "Família Hollar" pode não ser um exemplo de originalidade (e tampouco tenta subverter as regras do cinema mainstream), mas é uma deliciosa sessão de risadas e lágrimas, defendida por um elenco acima de qualquer crítica e amparada por um roteiro redondinho, do qual é impossível não se gostar.

Se o filme tem um personagem principal, este é John Hollar, interpretado pelo próprio diretor: às vésperas de tornar-se pai pela primeira vez e frustrado com uma carreira de desenhista de graphic novels que não deslancha, ele é chamado às pressas para voltar à sua cidade natal quando sua mãe, a agregadora Sally (Margo Martindale), é diagnosticada com um tumor cerebral. Chegando em casa, ele encontra uma família à beira do colapso: seu pai, Don (Richard Jenkins), está falido, e seu irmão, Ron (Shartlo Copley), não consegue superar o divórcio e vive em constante conflito com a ex-mulher a respeito das duas filhas pequenas. Além disso, o enfermeiro que cuida de sua mãe, Jason (Charlie Day), agora é casado com sua ex-namorada, Gwen (Mary Elizabeth Winstead) - que deixa bem claro a quem quiser ouvir que ainda não o esqueceu. Enquanto tenta lidar com toda a pressão que subitamente caiu em sua cabeça, John conta com o apoio da apaixonada Rebecca (Anna Kendrick) - com quem não consegue se comprometer completamente.

 

Alternando sequências de um humor ingênuo e momentos que desafiam o público a não derramar rios de lágrimas, "Família Hollar" se sustenta em dois pilares fundamentais para cativar a plateia: seu roteiro, enxuto e nitidamente influenciado pelo bom cinema de personagens europeu, e seus atores, excepcionais e em dias de grande inspiração. Sem medo de abraçar carinhosamente os clichês que inundam os dramas familiares - e explorando-os a seu favor -, o script do também produtor Jim Strouse apresenta personagens com os quais a identificação é fácil e imediata e conduz com sensibilidade a trajetória de pessoas cuja complexidade vai se revelando pouco a pouco, conforme as situações vão se apresentando, muitas vezes de forma inexorável e avassaladora. É um imenso acerto não dotar nenhum de seus protagonistas com almas irretocáveis - todos os membros da família já erraram e acertaram da mesma forma, o que faz deles seres humanos falíveis e que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo, em qualquer classe social, em qualquer raça. Tal universalidade é um gol de placa - especialmente quando seus representantes são interpretados por um elenco de aplaudir de pé.

Se John Krasinski não precisa se esforçar muito para convencer no papel de um rapaz que é o orgulho da família, não deixa de ser surpreendente ver o sul-africano Shartlo Copley (de "Distrito 9") no papel de um desajustado mas amoroso pai, capaz de desatinos lamentáveis para ficar ao lado das filhas - é difícil não se deixar conquistar por ele, apesar de suas atitudes nem sempre éticas. Anna Kendrick volta a viver uma personagem dócil, emprestando a sua Rebecca um senso de responsabilidade essencial para o clã do namorado. Mas é impossível não reconhecer que o maior show em "Família Hollar" vem de seus protagonistas veteranos: oferecendo uma generosa dose humanidade ao casal de patriarcas, Richard Jenkins e Margo Martindale brilham em cada cena, em cada sequência, em cada momento, fazendo uso de sua vasta experiência para transmitir à plateia um sentimento de amor incondicional que somente a maturidade consegue atingir. Vem deles as lágrimas mais sentidas, as risadas mais honestas e a sensação de calor humano que persiste muito tempos depois dos créditos finais. Se "Um lugar perigoso" mostrou Krasinski como um cineasta inteligente em utilizar-se de todas as ferramentas técnicas de seu ofício, em "Família Hollar" ele já havia comprovado que também não lhe falta coração e o olhar afetuoso a seus personagens. Bravíssimo

segunda-feira

ASSASSINATO NUM DIA DE SOL


ASSASSINATO NUM DIA DE SOL (Evil under the sun, 1982, Universal Pictures, 117min) Direão: Guy Hamilton. Roteiro: Anthony Shaffer, romance de Agatha Christie. Fotografia: Christopher Challis. Montagem: Richard Marden. Figurino: Anthony Powell. Direção de arte/cenários: Elliot Scott/Peter Howitt. Produção: John Brabourne, Richard Goodwin. Elenco: Peter Ustinov, Colin Blakely, Jane Birkin, Nicholas Clay, Maggie Smith, Roddy McDowall, James Mason, Sylvia Miles, Diana Rigg, Denis Quilley, Emily Hone. Estreia: 25/01/82 (Festival de Manilla)

Encorajados pelo sucesso de "Assassinato no Expresso Oriente" (1974) - que deu o Oscar de atriz coadjuvante a Ingrid Bergman e ainda concorreu a outras cinco estatuetas da Academia -, os produtores John Brabourne e Richard Goodwin descobriram um filão dos mais rentáveis: adaptações caprichadas de obras de Agatha Christie, a rainha do romance policial. Foi assim que surgiram "Morte sobre o Nilo" (1978), "A maldição do espelho" (1980) e "Assassinato num dia de sol", lançado em 1982. Ao contrário de seus antecessores, porém, a segunda personificação de Peter Ustinov como o célebre detetive Hercule Poirot (de um total de seis) não atingiu as expectativas: não apenas fracassou em termos comerciais, com uma bilheteria bem aquém do esperado, como não repercutiu como o esperado junto à crítica e às cerimônias de premiação. Talvez por ser a transposição de um livro não tão famoso da autora, talvez por ser a menos ambiciosa das adaptações da série - sem nenhum nome estelar no elenco -, o filme sofre também de um ritmo pouco envolvente e personagens pouco carismáticos, mas ainda assim tem o charme inegável das tramas da escritora inglesa.

Com algumas pequenas alterações que não chegam a desfigurar a obra original - como a mudança de cenário (da Inglaterra para uma ilha banhada pelo Mar Adriático), a fusão de dois personagens em um e a mudança de gênero de outro - e a direção elegante de Guy Hamilton (também responsável por "A maldição do espelho"), "Assassinato num dia de sol" apresenta, em sua concepção, todos as marcantes características de Agatha Christie, que vão desde locações exóticas e personagens pouco confiáveis até uma resolução surpreendente - ainda que rocambolesca em excesso. A figura de Hercule Poirot, sua criação mais notável e popularmente conhecida, encontrou em Peter Ustinov a encarnação perfeita - mais até do que aquela forjada por Albert Finney em "Assassinato no Expresso Oriente" e anos-luz à frente da caricatura engendrada por Kenneth Branagh em suas duas (até agora) incursões no universo do detetive - e os suspeitos do crime imaginado pela romancista formam uma deliciosa seleção de milionários fúteis, serviçais abelhudos e uma vítima fácil de detestar: elementos que constroem uma estrutura sólida, amplamente celebrada pelos fãs do gênero e fielmente reconstituída por Hamilton e sua equipe.


 

A trama urdida por Christie e adaptada por Anthony Shaffer - também autor do roteiro de "Morte sobre o Nilo" - começa quando o veterano detetive Hercule Poirot é contratado, por uma seguradora, para investigar o caso de um diamante falsificado que ele descobre estar nas mãos do milionário Horace Blatt (Colin Blakely). Blatt está em lua-de-mel com Arlena Marshall (Diana Rigg), uma atriz aposentada, em uma idílica ilha no litoral do Mar Adriático, e é para lá que Poirot embarca, às custas de seus empregadores. O hotel onde Blatt e Marshall estão é de propriedade de Daphne Castle (Maggie Smith), que no passado abandonou a carreira artística e ainda tenta superar a rivalidade com a nova hóspede - que tampouco é benquista pelos demais visitantes do local. Quando Marshall é encontrada morta na praia, a Poirot caberá elucidar o crime: além do viúvo e da própria Daphne, também são suspeitos um casal de empresários do meio teatral - Odel e Myra Gardener (James Mason e Sylvia Miles) -, o autor de uma biografia não autorizada sobre a vítima - Rex Brewster (Roddy McDowall) - e um jovem casal em crise devido ao romance extraconjugal do marido - Patrick e Christine Redfern (Nicholas Clay e Jane Birkin).

"Assassinato num dia de sol" sofre principalmente de um ritmo claudicante, que, ao contrário das adaptações anteriores da dupla de produtores, falha ao criar a atmosfera de suspense necessária a um gênero que depende basicamente dela. Não ajuda também que as pistas que levam à resolução do crime sejam jogadas de forma tão morna - da mesma forma que o clímax, que nem de longe reflete os melhores momentos da autora do romance original. A própria solução do assassinato soa um tanto difícil de engolir, tamanho o excesso de reviravoltas e detalhes, e o elenco, apesar de talentoso, é mal aproveitado por Hamilton, que parece mais interessado em explorar as belas paisagens do que desenvolver os personagens - e, por consequência, torná-los importantes para o espectador. Peter Ustinov brilha como Hercule Poirot, assim como Maggie Smith como a dona do hotel (personagem que é uma amálgama de dois personagens do livro) e Jane Birkin como a sofrida e frágil Christine Redfern, uma mulher vitimizada pelos maus-tratos do marido adúltero. Porém, falta mais consistência à trama (ou à maneira com que foi traduzida para as telas) e nem tudo sai com a excelência esperada em uma produção de Bradbourne e Goodwin. Mesmo assim, é um entretenimento luxuoso, muito bem embalado e muito mais eficiente do que as modernizações vergonhosas realizadas por Kenneth Branagh e seu egocentrismo.

sexta-feira

BESAME MUCHO


BESAME MUCHO (Besame mucho, 1987, Francisco Ramalho Júnior Filmes/HB Filmes, 108min) Direção: Francisco Ramalho Jr.. Roteiro: Francisco Ramalho Jr.,Mário Prata, peça teatral de Mário Prata. Fotografia: José Tadeu Ribeiro. Montagem: Mauro Alice. Música: Wagner Tiso. Figurino: Domingos Fuschini. Direção de arte/cenários: Marcos Weinstock. Produção: Hector Babenco, Francisco Ramalho Jr.. Elenco: Antônio Fagundes, José Wilker, Christiane Torloni, Glória Pires, Giulia Gam, Paulo Betti, Isabel Ribeiro. Estreia: 13/8/87

Montada pela primeira vez em 1982 nos palcos de São Paulo - e no ano seguinte no Rio de Janeiro -, a peça teatral "Besame mucho", de Mário Prata, não demorou a chegar às telas de cinema. Adaptada pelo cineasta Francisco Ramalho Jr e pelo próprio Prata, a história com traços autobiográficos estreou em agosto de 1987, embalada pelos prêmios (roteiro e figurino) do Festival de Gramado e pela popularidade de seu elenco principal, formado por astros globais. Com um texto nostálgico e uma produção caprichada, acabou por se tornar um dos filmes nacionais mais queridos de sua temporada - apesar de raramente ser lembrado pela crítica ou até mesmo pelo público em listas de principais produções do cinema brasileiro, deixa a sensação, após os créditos finais, de um passatempo inofensivo dos mais agradáveis.

A trama criada por Prata não é das mais originais: ao acompanhar a trajetória de dois casais de amigos durante vinte anos, o dramaturgo não chega a aprofundar psicologicamente seus personagens nem tampouco apelar para reviravoltas dramáticas que possam provocar grandes catarses. Porém, é na sua estrutura que a peça (e o filme, acertadamente fiel) surpreende: ao começar a ação no final dos anos 1980 e regredindo até o fatídico 1964, o roteiro substitui a pergunta clássica "o que vai acontecer?" pela menos óbvia "como eles chegaram até esse ponto?". Dessa forma, Prata desnuda idiossincrasias, hipocrisias e inseguranças de seus protagonistas com um acento cômico que permite ao público envolver-se com o enredo sem questionar suas possíveis falhas. Além disso, aproveita para apontar, com inteligência, a mudança dos comportamentos sociais e políticos do país durante um de seus períodos mais críticos através de personagens que, de uma maneira ou outra, são afetados por tais transformações. 

 

Quando o filme começa, Xico (José Wilker) e Olga (Glória Pires) estão se divorciando, depois de uma crise longa e desgastante. Ele é um premiado autor de teatro, mas sem que ninguém saiba, sua principal peça, "Besame mucho", foi escrita, na verdade, por sua mulher - que, na juventude, passou da alienação política a um auto-exílio durante a ditadura militar. Em sentido oposto, o quase idealista Tuca (Antônio Fagundes) tornou-se um empresário de sucesso, crescendo financeiramente em sua cidadezinha natal ao lado da mulher, Dina (Christiane Torloni), que abandonou a rigidez moral da adolescência para embarcar em uma série de fantasias eróticas com o marido, como forma de enterrar um passado de frustrações sexuais. A partir desse primeiro momento, o filme começa a regredir cronologicamente e apresentar os dois casais na construção de seus relacionamentos, suas carreiras e vidas sentimentais - até chegar ao tenebroso 31 de março de 1964, data em que suas próprias relações interpessoais também chegam a um impasse - o primeiro de muitos que ainda lhes atormentariam a existência.

Se o texto de Mário Prata parece mais apropriado ao palco do que às telas de cinema - uma linguagem mais direta e simples que nem sempre se conecta perfeitamente à sua adaptação -, a direção de Francisco Ramalho Jr. explora com precisão seu maior trunfo: o elenco. Aproveitando-se do tom mais leve de seus personagens, Antônio Fagundes e Christiane Torloni brilham com uma química previamente testada na televisão (e que voltariam a repetir em trabalhos futuros). José Wilker e Glória Pires, vivendo um casal com mais nuances dramáticas, brincam sem medo com todas as incoerências de Xico e Olga, provavelmente os mais alterados pela dinâmica da sociedade e da vida de uma cidade grande. Entre os coadjuvantes, Paulo Betti e Giulia Gam quase roubam a cena com momentos de humor equilibrado entre o ingênuo e o picante. Soma-se a isso a percepção triste de que o Brasil de 1964 não está tão distante assim do Brasil de 2022 - com a sombra folclórica de uma ameaça comunista que só existia (e existe) na paranoia da direita. É essa pitada de ironia (involuntária, uma vez que a peça estreou quando havia a ilusão de que o passado já estava enterrado de vez) que faz com que "Besame mucho" deixe de ser apenas uma comédia dramática sobre a imaturidade masculina e a evolução (ou não) da sociedade e se torne quase um lembrete de quão cíclicas são as mudanças no mundo.

quinta-feira

MEN: FACES DO MEDO


MEN: FACES DO MEDO (Men, 2022, A24 Productions, 100min) Direção e roteiro: Alex Garland. Fotografia: Rob Hardy. Montagem: Jake Roberts. Música: Ben Salisbury. Figurino: Lisa Duncan. Direção de arte/cenários: Mark Digby. Produção: Andrew Macdonald, Allon Reich. Elenco: Jesse Buckley, Rory Kinnear, Paapa  Essiedu, Gayle Rankin. Estreia: 20/5/2022 (Canadá)

Aviso de utilidade pública: a quem procura um filme de terror tradicional - com sustos orquestrados com o objetivo de fazer o espectador pular da poltrona - ou uma trama de suspense que funcione como um quebra-cabeças - cujas peças façam sentido nos últimos minutos -, "Men: faces do medo" não é o programa mais indicado. Sim, ele assusta em alguns momentos. Sim, ele propõe um intrincado jogo psicológico. Mas, apesar do terço final apelar para uma violência gráfica quase desconcertante, ele não é um produto comercial puro e simples que busca o sangue gratuito. E infelizmente, apesar de envolver a plateia com uma série de questões promissoras, frustra ao não respondê-las a contento. Ao entregar mais perguntas que respostas, Garland se aproxima, paradoxalmente, de uma superficialidade que quase compromete todas as qualidades do filme - que  não são poucas e são redentoras.

Visualmente "Men" é um desbunde. A fotografia excepcional de Rob Hardy enche os olhos a cada sequência, com um colorido vibrante que acentua o tom de pesadelo que percorre todos os 100 minutos de projeção. O cenário bucólico do interior inglês é um achado, por contrapor a vastidão de seu verde com a sensação claustrofóbica experimentada pela protagonista. E merece aplausos a equipe capaz de conceber os efeitos visuais do ato final - perturbadores, doentios e radicalmente ousados até mesmo quando se sabe que a produtora do filme (A24) é aquela que revelou ao mundo os nomes de Robert Eggers e Ari Aster, responsáveis por um novo sopro de criatividade no cinema de terror: o espectador pode sentir-se incomodado, desconfortável ou enojado, mas é impossível que fique incólume ao que vê. Nesse ponto, pode-se dizer que "Men" é um casamento entre o horror visual de David Cronenberg e o suspense psicológico de David Lynch - acrescido de uma temática das mais relevantes e uma atriz com talento suficiente para segurar até mesmo os momentos mais bizarros da narrativa.

 


Indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por seu trabalho em "A filha perdida" (2021), Jesse Buckley assume, em "Men", o posto de protagonista absoluta. Ela vive Harper, uma mulher traumatizada com a morte violenta do ex-marido abusivo (que pode ou não ter cometido suicídio) que resolve afastar-se da civilização para por os pensamentos em ordem e procurar um pouco de paz de espírito. Para isso, ela aluga uma confortável e isolada casa de campo no interior da Inglaterra. Seu objetivo, porém, começa a parecer um tanto utópico logo que ela chega ao local: perseguida por uma estranha figura nua que chega a invadir a propriedade, Harper não demora a perceber que o corporativismo masculino é regra na cidade - qua aparentemente não tem mulheres entre seus habitantes. Sufocada pelo ambiente patriarcal que passa a cercá-la (nem mesmo o padre ou o policial encarregado de protegê-la parecem confiáveis), a atormentada viúva se vê diante da angústia de estar à mercê de pessoas que também a ameaçam - e ir embora de repente não parece a melhor solução.

Os dois primeiros atos de "Men" são um primor de surrealismo e tensão, sublinhados pelo clima feérico oferecidos pela fotografia de Hardy, que passa, sem escalas, do deslumbramento ao assombro - ao comer uma maçã da árvore diante da propriedade, Harper parece ter dado início a seu pesadelo, como uma forma de punição. A partir daí a sensação de perigo iminente aumenta de forma exponencial, conduzindo a personagem (e o espectador) por um labirinto de medo e constante insegurança. É admirável, também, a ideia de fazer com que todos os personagens masculinos do filme (com exceção do falecido marido de Harper) sejam interpretados pelo mesmo Rory Kinnear, em um efeito perturbador e que remete à ideia de que, afinal de contas, todos os homens são iguais. Essa teoria, reiterada durante todo o filme, pode até parecer, a princípio, simplória e superficial, mas é ela quem dá o tom de toda a produção e reafirma o desamparo a que toda mulher está propensa em um mundo que lhe é normalmente hostil. É um conceito interessante e a maneira com que é proposto no filme é aberto às mais variadas interpretações - que estão ligadas também, segundo o próprio cineasta, às duas imagens religiosas encontradas por Harper na igreja local e cujos significados podem explicar boa parte dos enigmas criados pelo roteiro.

É sempre empolgante quando um filme ousa e empurra os limites do espectador - sejam eles quais forem. Da mesma forma, é louvável quando uma produção cinematográfica expande seus domínios a outras formas de arte. Porém, quando um filme exige um conhecimento prévio (e relativamente inacessível ao público médio) para que se faça entender, há algo de errado em sua concepção. Esse é o maior problema de "Men": lançar perguntas no ar e não fazer muita questão de que suas respostas sejam compreendidas. É admirável a ousadia de Alex Garland - um diretor que aos poucos vem se firmando como um realizador com coisas a dizer - em desafiar a lógica do mercado e provocar a plateia às raias do insuportável. Mas até mesmo ousadia em excesso pode atrapalhar boas ideias, e é isso que acontece com seu terceiro longa: genialmente concebido, fantasticamente realizado, mas incapaz de satisfazer seu principal consumidor. Ainda assim, um filme muito acima da média e destinado a tornar-se cult com o passar do tempo.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...