EM TRANSE (Trance, 2013, 20th Century Fox, 101min) Direção: Danny Boyle. Roteiro: John Hodge, Joe Ahearne, estória de Joe Ahearne. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Montagem: Jon Harris. Música: Rick Smith. Figurino: Suttirat Larlab. Direção de arte/cenários: Mark Tildesley/Dominic Capon. Produção executiva: Bernard Bellew, François Ivernel, Cameron McCracken, Steven Rales, Tessa Ross, Mark Royball. Produção: Christian Colson. Elenco: James McAvoy, Rosario Dawson, Vincent Cassell, Danny Sapani, Matt Cross. Estreia: 19/3/13
Quem esperava que Danny Boyle fosse escolher um projeto ambicioso logo após a chuva de Oscar de "Quem quer ser um milionário?" (2008) e dos elogios rasgados ao angustiante "127 horas" (2010) levou um susto quando o cineasta escocês lançou "Em transe". Barato - custou apenas 20 milhões de dólares, o que costuma ser o cachê de astros como Julia Roberts e Tom Cruise - e sem o apelo de um livro conhecido ou atores com apelo de arrastar multidões aos cinemas, "Em transe" passou quase em brancas nuvens pelos cinemas americanos e só conseguiu se pagar com a bilheteria do mercado internacional, que comprou com mais entusiasmo a complexa e intrigante trama de suspense urdida pelo diretor a partir de um roteiro de seu habitual colaborador John Hodge (indicado ao Oscar por "Trainspotting:sem limites") e Joe Ahearne. Um filme inteligente e que mergulha o espectador em um universo repleto de meias-verdades e pistas falsas, "Em transe" faz parte do seleto grupo de produções que se divertem em enganar a plateia ao conduzí-la por um caminho específico apenas para, em seu desfecho, revelar uma trama completamente diferente (e igualmente excitante).
Tudo começa como mais um "filme de roubo": em um leilão de obras de arte em um conceituado salão londrino, um grupo de homens armados e liderados pelo ameaçador Franck (Vincent Cassel herdando o papel de Michael Fassbender) tenta se apossar de um raro e famoso quadro de Goya, mas é impedido por um dos leiloeiros, o jovem Simon Newton (James McAvoy), que acaba atingido por uma forte pancada na cabeça que o deixa em coma. Percebendo que o rapaz escondeu a pintura em algum lugar desconhecido, o criminoso o espera deixar o hospital para obrigá-lo a revelar a localização da obra: o problema é que Simon não lembra de nada do que aconteceu no dia do assalto e, para salvar sua pele, concorda em tentar lembrar dos detalhes do caso através de hipnose. É assim que ele chega até Elizabeth Lamb (Rosario Dawson), especialista em ajudar pacientes a superar traumas e recuperar memórias perdidas. Quando médica e paciente se envolvem romanticamente, porém, as coisas saem do controle, e nada mais parece correr conforme o esperado.
Emoldurada pela fotografia instigante de Anthony Dod Mantle, que ajuda a confundir o público com suas elegantes distorções, a trama rocambolesca de "Em transe" viaja através de flashbacks que tanto podem ser verdadeiros quanto falsos, por lembranças escondidas ou plantadas, por relacionamentos sinceros ou interesseiros. A ambiguidade do roteiro - que ousa também por criar um herói falível, de caráter duvidoso e atitudes pouco exemplares - se estende também à criatividade da direção de Boyle, que simplesmente impede o espectador de antecipar as reviravoltas da história ou descobrir, antes dos minutos finais, quem realmente está do lado de quem. Para isso também contribui, e muito, a excelência de seu elenco: Vincent Cassel é insuperável na pele de tipos marginais e perigosos, e Rosario Dawson segura bem a oportunidade de ficar com um papel para o qual foram cotadas Scarlett Johansson, Eva Green e Zoe Saldana, uma mistura de inteligência e sensualidade que serve magistralmente à personagem. Mas é James McAvoy, com seu misto de pureza e coragem, o grande achado do filme.
Um dos atores mais talentosos de sua geração, McAvoy está perfeito como Simon Newton, um personagem que, apesar de servir como os olhos da plateia em uma narrativa recheada de surpresas e reviravoltas, também se permite cair em armadilhas e manipular as regras do jogo, quando necessário. Essa ambiguidade moral - que pode mostrar-se um defeito ou uma qualidade, conforme a trama vai se desenrolando - só é completamente verossímil e aceitável porque o ator transmite, em cada cena, uma variedade de sentimentos e emoções de que somente os grandes intérpretes são capazes. Revelado em dramas densos e potentes, como "O último rei da Escócia" (2006) e "Desejo e reparação" (2007) e posteriormente se provando capaz de sair-se muito bem em produções com intenções bem mais comerciais, a exemplo de "O procurado" (2008) e "X-Men: Primeira Classe" (2011), McAvoy é o protagonista ideal para um filme que equilibra com tanta propriedade a seriedade de um suspense e toques de puro escapismo de uma produção de ação como "Em transe". É ele, com seus angustiados olhos azuis, a alma de uma pequena pérola que merece ser descoberta pelos fãs do gênero - e que confirma Danny Boyle como um diretor nem um pouco disposto a deitar sobre as próprias láureas.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sábado
sexta-feira
O DONO DO JOGO
O DONO DO JOGO (Pawn sacrifice, 2014, Universal Pictures, 115min) Direção: Edward Zwick. Roteiro: Steven Knight, estória de Steven Knight, Stephen J. Rivele, Christopher Wilkinson. Fotografia: Bradford Young. Montagem: Steven Rosenblum. Música: James Newton Howard. Figurino: Renée April. Direção de arte/cenários: Isabelle Guay/Fred Berthiaume. Produção executiva: Kevin Frakes, Árni Bjorn Helgason, Mike Ilitch Jr., Dale Armin Johnson, Julie B. May, Glenn P. Murray, Josette Perrotta, Stephen J. Rivele, Raj Singh, Christopher Wilkinson. Produção: Gail Katz, Tobey Maguire, Edward Zwick. Elenco: Tobey Maguire, Liev Schreiber, Michael Stuhlbarg, Peter Sarsgaard, Lily Rabe. Estreia: 11/9/14 (Festival de Toronto)
Mais conhecido por produções grandiosas que retratam períodos históricos abalados por conflitos bélicos, como "Tempo de glória" (89), "Lendas da paixão" (94) e "O último samurai" (2003), o cineasta Edward Zwick deu um tempo no sangue e mudou um pouco a imagem com o romântico "Amor e outras drogas", estrelado por Jake Gyllenhaal e Anne Hathaway em 2010. Mesmo assim não deixa de ser uma surpresa que seja ele o nome por trás de "O dono do jogo", um filme que contrasta bastante com sua filmografia mais conhecida ao apostar no minimalismo como principal elemento. Ao contar a história real da maior disputa já travada no universo do xadrez, Zwick aposta em um viés político-social inusitado, que mistura drama psicológico, suspense e muitos elementos biográficos em uma trama que só não é mais interessante devido a um ritmo claudicante e sua indecisão em escolher seu principal foco narrativo. No mais, é um trabalho inteligente que demonstra a capacidade do diretor em transitar por diferentes gêneros cinematográficos.
O protagonista do filme é o mundialmente conhecido e celebrado jogador de xadrez Bobby Fischer, até hoje a maior lenda do esporte e um dos nomes mais admirados por especialistas e pelo público que, em 1972, no auge da Guerra Fria, tornou-se o maior símbolo da luta dos EUA contra o comunismo russo sem disparar um único tiro ou fazer sequer uma ameaça de ataques nucleares: como gênio enxadrista, Fischer desafiou o campeão mundial Boris Spassky e, em um campeonato repleto de lances dramáticos e torcidas fanáticas, estampou capas de revistas, frequentou noticiários virou ídolo nacional - tudo isso enquanto lidava com sérios problemas mentais que logo o fariam buscar o isolamento social e o auto-exílio. Interpretado por Tobey Maguire, que embarcou no projeto também como produtor logo que se apaixonou pela história, Fischer surge em cena como uma celebridade de personalidade instável e difícil, capaz de enervar tanto seu empresário, Paul Marshall (Michael Stuhlbargh), quanto seu mentor espiritual, o Padre Phil Lombardy (Peter Sarsgaard), que o acompanham em sua trajetória rumo à vitória. Dado a frequentes ataques de paranoia e agressividade que remetem à uma infância de convivência constante com a perseguição política aos comunistas, o rapaz que cresceu desafiando jogadores mais velhos e experientes tem a chance de sua vida ao bater de frente com o regime soviético, representado pela figura de seu maior campeão. Vivido com excelência pelo cada vez melhor Liev Schreiber, o herói russo é o contraponto total de Fischer: centrado, calmo e pouco afeito a estrelismos. Sua rivalidade não é apenas no xadrez: o que está em jogo em suas disputas é a imagem que o mundo terá de seus países a partir de um simples campeonato de xadrez.
É difícil imprimir emoção e suspense em jogos de xadrez, mas Edward Zwick consegue quase o impossível ao fazer com que o público consiga sentir, pelo menos em parte, a atmosfera de tensão e expectativa que cercava cada partida. Com o apoio da edição criativa de Steven Rosenblum (seu parceiro habitual), o diretor mergulha a plateia em um período muito especial da história norte-americana - já castigada pela Guerra do Vietnã - para fazê-la compreender toda a extensão do conflito entre Fischer e Spassky. Experiente condutor de atores - por suas mãos Denzel Washington ganhou seu primeiro Oscar, como coadjuvante por "Tempo de glória" - Zwick não hesita em arrancar o melhor de seus intérpretes, oferecendo à Toby Maguire momentos bastante intensos na pele do complicado protagonista e à Liev Schreiber mais uma oportunidade de mostrar que é um dos atores mais subestimados de Hollywood. Ainda que deixe de lado o sempre ótimo Peter Sarsgaard (com um personagem pouco explorado), o filme tem a seu favor o cuidado na reconstituição de época e a seriedade com que trata seus temas, nunca escorregando na caricatura ou no exagero (mesmo que Maguire, vez ou outra, esbarre em alguns tons excessivos). Essas qualidades, porém, não impedem que seu maior problema seja bastante perceptível até mesmo ao mais distraído espectador: afinal, qual é o principal foco de "O dono do jogo"?
Não é errado que um filme trate de diversos assuntos ao mesmo tempo, principalmente quando esses temas estão conectados. O problema do roteiro de "O dono do jogo", porém, é que seus temas, apesar de intimamente ligados, não conseguem dialogar um com o outro de forma satisfatória. Em vez da fusão orgânica de suas tramas - os problemas psicológicos de Fischer; sua relação com a família; a disputa do campeonato mundial - o filme as apresenta quase como independentes entre si, sem uma conexão consistente ou empolgante entre elas. A impressão que se tem é que qualquer uma das subtramas poderia ser um filme diferente, tendo apenas os personagens como ligação. Essa falta mais significativa de elos entre os focos narrativos acaba enfraquecendo o resultado final e tornando o filme um entretenimento de qualidade, sim, mas longe de ser a produção memorável que poderia ser. Além do mais, seu desfecho - a partida final do campeonato mundial - é morno e anti-climático, responsabilidade que pode ser dividida entre o roteiro que tenta abraçar mais do que consegue e a direção que não dá conta de tanta indecisão. No final das contas, "O dono do jogo" é apenas um filme ok. Bobby Fischer e suas conquistas ainda estão esperando por uma produção à altura.
Mais conhecido por produções grandiosas que retratam períodos históricos abalados por conflitos bélicos, como "Tempo de glória" (89), "Lendas da paixão" (94) e "O último samurai" (2003), o cineasta Edward Zwick deu um tempo no sangue e mudou um pouco a imagem com o romântico "Amor e outras drogas", estrelado por Jake Gyllenhaal e Anne Hathaway em 2010. Mesmo assim não deixa de ser uma surpresa que seja ele o nome por trás de "O dono do jogo", um filme que contrasta bastante com sua filmografia mais conhecida ao apostar no minimalismo como principal elemento. Ao contar a história real da maior disputa já travada no universo do xadrez, Zwick aposta em um viés político-social inusitado, que mistura drama psicológico, suspense e muitos elementos biográficos em uma trama que só não é mais interessante devido a um ritmo claudicante e sua indecisão em escolher seu principal foco narrativo. No mais, é um trabalho inteligente que demonstra a capacidade do diretor em transitar por diferentes gêneros cinematográficos.
O protagonista do filme é o mundialmente conhecido e celebrado jogador de xadrez Bobby Fischer, até hoje a maior lenda do esporte e um dos nomes mais admirados por especialistas e pelo público que, em 1972, no auge da Guerra Fria, tornou-se o maior símbolo da luta dos EUA contra o comunismo russo sem disparar um único tiro ou fazer sequer uma ameaça de ataques nucleares: como gênio enxadrista, Fischer desafiou o campeão mundial Boris Spassky e, em um campeonato repleto de lances dramáticos e torcidas fanáticas, estampou capas de revistas, frequentou noticiários virou ídolo nacional - tudo isso enquanto lidava com sérios problemas mentais que logo o fariam buscar o isolamento social e o auto-exílio. Interpretado por Tobey Maguire, que embarcou no projeto também como produtor logo que se apaixonou pela história, Fischer surge em cena como uma celebridade de personalidade instável e difícil, capaz de enervar tanto seu empresário, Paul Marshall (Michael Stuhlbargh), quanto seu mentor espiritual, o Padre Phil Lombardy (Peter Sarsgaard), que o acompanham em sua trajetória rumo à vitória. Dado a frequentes ataques de paranoia e agressividade que remetem à uma infância de convivência constante com a perseguição política aos comunistas, o rapaz que cresceu desafiando jogadores mais velhos e experientes tem a chance de sua vida ao bater de frente com o regime soviético, representado pela figura de seu maior campeão. Vivido com excelência pelo cada vez melhor Liev Schreiber, o herói russo é o contraponto total de Fischer: centrado, calmo e pouco afeito a estrelismos. Sua rivalidade não é apenas no xadrez: o que está em jogo em suas disputas é a imagem que o mundo terá de seus países a partir de um simples campeonato de xadrez.
É difícil imprimir emoção e suspense em jogos de xadrez, mas Edward Zwick consegue quase o impossível ao fazer com que o público consiga sentir, pelo menos em parte, a atmosfera de tensão e expectativa que cercava cada partida. Com o apoio da edição criativa de Steven Rosenblum (seu parceiro habitual), o diretor mergulha a plateia em um período muito especial da história norte-americana - já castigada pela Guerra do Vietnã - para fazê-la compreender toda a extensão do conflito entre Fischer e Spassky. Experiente condutor de atores - por suas mãos Denzel Washington ganhou seu primeiro Oscar, como coadjuvante por "Tempo de glória" - Zwick não hesita em arrancar o melhor de seus intérpretes, oferecendo à Toby Maguire momentos bastante intensos na pele do complicado protagonista e à Liev Schreiber mais uma oportunidade de mostrar que é um dos atores mais subestimados de Hollywood. Ainda que deixe de lado o sempre ótimo Peter Sarsgaard (com um personagem pouco explorado), o filme tem a seu favor o cuidado na reconstituição de época e a seriedade com que trata seus temas, nunca escorregando na caricatura ou no exagero (mesmo que Maguire, vez ou outra, esbarre em alguns tons excessivos). Essas qualidades, porém, não impedem que seu maior problema seja bastante perceptível até mesmo ao mais distraído espectador: afinal, qual é o principal foco de "O dono do jogo"?
Não é errado que um filme trate de diversos assuntos ao mesmo tempo, principalmente quando esses temas estão conectados. O problema do roteiro de "O dono do jogo", porém, é que seus temas, apesar de intimamente ligados, não conseguem dialogar um com o outro de forma satisfatória. Em vez da fusão orgânica de suas tramas - os problemas psicológicos de Fischer; sua relação com a família; a disputa do campeonato mundial - o filme as apresenta quase como independentes entre si, sem uma conexão consistente ou empolgante entre elas. A impressão que se tem é que qualquer uma das subtramas poderia ser um filme diferente, tendo apenas os personagens como ligação. Essa falta mais significativa de elos entre os focos narrativos acaba enfraquecendo o resultado final e tornando o filme um entretenimento de qualidade, sim, mas longe de ser a produção memorável que poderia ser. Além do mais, seu desfecho - a partida final do campeonato mundial - é morno e anti-climático, responsabilidade que pode ser dividida entre o roteiro que tenta abraçar mais do que consegue e a direção que não dá conta de tanta indecisão. No final das contas, "O dono do jogo" é apenas um filme ok. Bobby Fischer e suas conquistas ainda estão esperando por uma produção à altura.
quarta-feira
CRIMES OCULTOS
CRIMES OCULTOS (Child 44, 2015, Worldview Entertainment/Scott Free Productions, 137min) Direção: Daniel Espinosa. Roteiro: Richard Price, romance de Tom Rob Smith. Fotografia: Oliver Wood. Montagem: Pietro Scalia, Dylan Tichenor. Música: Jon Ekstrand. Figurino: Jenny Beavan. Direção de arte/cenários: Jan Roelfs/Mykyta Brazhnyk, Sophie Hervieu. Produção executiva: Maria Cestone, Molly Conners, Elishia Holmes, Sarah E. Johnson, Adam Merims, Hoyt David Morgan, Kevin Plank, Douglas Urbanski. Produção: Michael Schaefer, Ridley Scott, Greg Shapiro. Elenco: Tom Hardy, Gary Oldman, Noomi Rapace, Paddy Considine, Joel Kinnaman, Jason Clarke, Vincent Cassel. Estreia: 15/4/15
Em 1990, uma produção para a televisão americana, "Cidadão X", estrelada por Stephen Rea e Donald Sutherland, contava a história real da caçada da polícia russa ao mais famoso serial killer do país, Andrei Chikatilo, que matou dezenas de crianças e escondeu seus corpos pelas florestas de sua região por mais de duas décadas. Em 2008, o escritor Tom Rob Smith lançou "Criança 44", um romance policial que, inspirado no caso, expandia sua trama ao adicionar a ela um drama ético e uma história de amor ameaçada pelas paranoias do regime soviético. Adaptado para as telas pelas mãos do sueco Daniel Espinosa - e rebatizado como "Crimes ocultos" - o filme acabou banido das salas de exibição na Rússia, que não viu com bons olhos a crítica aos costumes políticos da era Stalin. Fracasso de bilheteria e pouco reconhecido pela crítica especializada, "Crimes ocultos" é um policial acima da média, mas que infelizmente não chega a empolgar tanto como poderia, a julgar pela reunião de grandes talentos que apresenta.
A começar por Tom Hardy, uma das mais valiosas aquisições de Hollywood nos últimos anos, que demonstra imensa versatilidade passeando por gêneros diversos, como a comédia romântica ("Guerra é guerra"), drama familiar ("Guerreiro") e filmes de ação ("Batman: O Cavaleiro das Trevas ressurge" e "Mad Max: estrada da fúria") e já chegou até a uma indicação ao Oscar de coadjuvante (por "O regresso", que deu a estatueta a Leonardo DiCaprio). Hardy está estupendo na pele de Leo Demidov, um dedicado membro da polícia militar russa que, para salvar a pele da esposa, Raisa (Noomi Rapace, da versão original da trilogia "Millenium"), acusada de traição, acaba por cair em desgraça junto à corporação. Relegado a uma cidadezinha do interior do país, ele se vê compelido a mergulhar de cabeça na investigação de uma série de mortes de crianças - que o General Mikhail Nesterov (Gary Oldman) insiste em considerar acidentes de trem. Ao lado de Raisa, ele tenta capturar o assassino e se redimir junto a um amigo que perdeu o filho pelas mãos do criminoso. Nesse meio-tempo, precisa também desviar-se da perseguição feita por um antigo colega,Vasili (Joel Kinnaman), e lidar com as dúvidas acerca da lealdade da esposa.
Ousado ao bifurcar sua narrativa em dois caminhos complementares, o roteiro de "Crimes ocultos" acerta em fugir da óbvia e convencional busca ao criminoso - revelado antes da metade do filme - e tentar acrescentar camadas políticas à trama policial. Mais do que simplesmente investigar e caçar o serial killer que impulsiona a história, Leo serve como o guia do espectador pelas entranhas de um sistema político rígido e incapaz de reconhecer suas rachaduras sociais. A perseguição de Vasili ao protagonista - com direito inclusive à assédio à sua esposa - e as tentativas ferozes de Nesterov em assumir a possibilidade de que possam estar acontecendo violentos homicídios em seu país - "Não há assassinatos no Paraíso!" - são o retrato inclemente de uma mentalidade construída a ferro e fogo e mantida com controle absoluto por um governo totalitário e violento. Nem sempre as duas partes funcionam à perfeição quando unidas - em vários momentos tem-se a impressão de que o filme não sabe exatamente seu foco - mas a caprichada reconstituição de época e o empenho de seus atores compensam qualquer derrapada. Tom Hardy não tem muita química com Noomi Rapace (que mantém o mesmo tom antipático por toda a duração do filme), mas é um ator tão carismático e competente que engole tudo à sua volta, conseguindo eclipsar inclusive o normalmente ótimo Gary Oldman. Equilibrando fragilidade e agressividade, Hardy constrói um personagem repleto de nuances, apoiado pela direção competente de Daniel Espinosa e pela capacidade do roteiro de manter a elegância e a discrição mesmo com um tema tão sangrento.
Ao contrário de "Cidadão X", que lidava diretamente com a questão dos assassinatos e da busca por seu perpetrador, "Crimes ocultos" vai mais além no retrato de uma Rússia despreparada para lidar com crimes tão chocantes.
Em 1990, uma produção para a televisão americana, "Cidadão X", estrelada por Stephen Rea e Donald Sutherland, contava a história real da caçada da polícia russa ao mais famoso serial killer do país, Andrei Chikatilo, que matou dezenas de crianças e escondeu seus corpos pelas florestas de sua região por mais de duas décadas. Em 2008, o escritor Tom Rob Smith lançou "Criança 44", um romance policial que, inspirado no caso, expandia sua trama ao adicionar a ela um drama ético e uma história de amor ameaçada pelas paranoias do regime soviético. Adaptado para as telas pelas mãos do sueco Daniel Espinosa - e rebatizado como "Crimes ocultos" - o filme acabou banido das salas de exibição na Rússia, que não viu com bons olhos a crítica aos costumes políticos da era Stalin. Fracasso de bilheteria e pouco reconhecido pela crítica especializada, "Crimes ocultos" é um policial acima da média, mas que infelizmente não chega a empolgar tanto como poderia, a julgar pela reunião de grandes talentos que apresenta.
A começar por Tom Hardy, uma das mais valiosas aquisições de Hollywood nos últimos anos, que demonstra imensa versatilidade passeando por gêneros diversos, como a comédia romântica ("Guerra é guerra"), drama familiar ("Guerreiro") e filmes de ação ("Batman: O Cavaleiro das Trevas ressurge" e "Mad Max: estrada da fúria") e já chegou até a uma indicação ao Oscar de coadjuvante (por "O regresso", que deu a estatueta a Leonardo DiCaprio). Hardy está estupendo na pele de Leo Demidov, um dedicado membro da polícia militar russa que, para salvar a pele da esposa, Raisa (Noomi Rapace, da versão original da trilogia "Millenium"), acusada de traição, acaba por cair em desgraça junto à corporação. Relegado a uma cidadezinha do interior do país, ele se vê compelido a mergulhar de cabeça na investigação de uma série de mortes de crianças - que o General Mikhail Nesterov (Gary Oldman) insiste em considerar acidentes de trem. Ao lado de Raisa, ele tenta capturar o assassino e se redimir junto a um amigo que perdeu o filho pelas mãos do criminoso. Nesse meio-tempo, precisa também desviar-se da perseguição feita por um antigo colega,Vasili (Joel Kinnaman), e lidar com as dúvidas acerca da lealdade da esposa.
Ousado ao bifurcar sua narrativa em dois caminhos complementares, o roteiro de "Crimes ocultos" acerta em fugir da óbvia e convencional busca ao criminoso - revelado antes da metade do filme - e tentar acrescentar camadas políticas à trama policial. Mais do que simplesmente investigar e caçar o serial killer que impulsiona a história, Leo serve como o guia do espectador pelas entranhas de um sistema político rígido e incapaz de reconhecer suas rachaduras sociais. A perseguição de Vasili ao protagonista - com direito inclusive à assédio à sua esposa - e as tentativas ferozes de Nesterov em assumir a possibilidade de que possam estar acontecendo violentos homicídios em seu país - "Não há assassinatos no Paraíso!" - são o retrato inclemente de uma mentalidade construída a ferro e fogo e mantida com controle absoluto por um governo totalitário e violento. Nem sempre as duas partes funcionam à perfeição quando unidas - em vários momentos tem-se a impressão de que o filme não sabe exatamente seu foco - mas a caprichada reconstituição de época e o empenho de seus atores compensam qualquer derrapada. Tom Hardy não tem muita química com Noomi Rapace (que mantém o mesmo tom antipático por toda a duração do filme), mas é um ator tão carismático e competente que engole tudo à sua volta, conseguindo eclipsar inclusive o normalmente ótimo Gary Oldman. Equilibrando fragilidade e agressividade, Hardy constrói um personagem repleto de nuances, apoiado pela direção competente de Daniel Espinosa e pela capacidade do roteiro de manter a elegância e a discrição mesmo com um tema tão sangrento.
Ao contrário de "Cidadão X", que lidava diretamente com a questão dos assassinatos e da busca por seu perpetrador, "Crimes ocultos" vai mais além no retrato de uma Rússia despreparada para lidar com crimes tão chocantes.
terça-feira
DESCOMPENSADA
DESCOMPENSADA (Trainwreck, 2015, Apatow Productions, 125min) Direção: Judd Apatow. Roteiro: Amy Schumer. Fotografia: Jody Lee Lipes. Montagem: William Kerr, Paul Zucker. Música: Jon Brion. Figurino: Jessica Albertson, Leesa Evans. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/Debra Schutt. Produção executiva: David Householter. Produção: Judd Apatow, Barry Mendel. Elenco: Amy Schumer, Bill Hader, Tilda Swinton, Ezra Miller, Brie Larson, Lebron James, Marisa Tomei, Daniel Radcliffe. Estreia: 17/7/15
Os fãs de comédias românticas conhecem exatamente as engrenagens que as movem, e a julgar pela longevidade do gênero - um dos mais populares do cinema - não se importam muito com os clichês que as cercam. Por isso não deixa de ser saudável que um filme como "Descompensada" tenha feito tanto sucesso de bilheteria, alcançando uma marca superior a 100 milhões de dólares somente no mercado doméstico: mesmo subvertendo muitas das regras básicas ditadas pela indústria quando se trata de histórias de amor tradicionais, o filme escrito e estrelado por Amy Schumer é, no fundo, mais um exemplar do estilo, mas distorce seus elementos de forma tão debochada e contemporânea que soa como uma lufada de ar fresco em um universo bastante engessado. A começar pela presença de Schumer, cujo visual "gente como a gente" já a distancia das princesas bem vestidas e de corpo escultural que protagonizam tais histórias, o divertido filme dirigido por Judd Apatow - considerado o mestre das comédias adultas realizadas em Hollywood desde o sucesso de "O virgem de 40 anos", lançado em 2005 - foge dos estereótipos e aposta na reversão de papéis para conquistar o público. O resultado? Até mesmo a plateia masculina, normalmente avessa a comédias românticas, acaba se deixando seduzir pelo humor cáustico e no limite do chulo oferecido pelo roteiro.
Longe de ser a donzela desprotegida, frágil e romântica que se poderia esperar, a protagonista de "Descompensada" - sintomaticamente batizada de Amy, como a roteirista e atriz principal - é uma jornalista adepta de baladas, bebedeiras e sexo casual que não passa os dias esperando o príncipe encantado e nem acredita muito nessa história toda de "e foram felizes para sempre". Ao contrário da irmã caçula, Kim (Brie Larson, Oscar de melhor atriz por "O quarto de Jack"), Amy levou muito a sério o discurso de seu pai para justificar as traições à sua mãe e não vê muitas vantagens na monogamia e na fidelidade. Tudo começa a mudar quando ela é escalada por sua arrogante chefe, Dianna (Tilda Swinton, surpreendente), para uma série de entrevistas com um jovem médico chamado Aaron Conners (Bill Hader), conhecido como cirurgião de celebridades esportivas. Logo de cara Amy vai pra cama com o entrevistado, mas, ao contrário do que poderia esperar, a relação aos poucos vai se tornando mais séria, para seu desespero e surpresa. O problema é que Amy não sabe comportar-se em uma relação duradoura, e quando Aaron assume estar apaixonado tudo que ela consegue fazer é trocar os pés pelas mãos.
Fazendo piada a respeito de qualquer assunto sem medo de soar politicamente incorreto, o roteiro de "Descompensada" é uma sucessão de bobagens extremamente divertidas, que mesclam o típico humor "vergonha alheia" com momentos bastante inteligentes, com diálogos repletos de referências culturais, com direito até a participações especiais de Daniel Radcliffe e Marisa Tomei - em um filme dentro do filme - e Matthew Broderick e Martin Short como eles mesmos (uma prova do poder de fogo de Appatow em Hollywood). O que mais chama a atenção no filme, no entanto, é sua coragem em ter uma protagonista tão fora dos padrões de beleza e comportamento ditados por Hollywood através dos anos. Com um linguajar de corar cantores de funk e atitudes de fazer muitas moderninhas de plantão se roer de inveja, Amy dificilmente pode ser considerada uma heroína convencional, mas o carisma de Schumer (em um papel que é a sua cara) é o bastante para que a plateia fique do seu lado mesmo quando ela comete uma série de erros que podem comprometer sua felicidade. Suas cenas com a irmã e o enteado dela (um moleque nerd que mais a apavora do que qualquer outra coisa) são hilariantes, e sua química com Bill Hader é inegavelmente perfeita. Hader - que já havia demonstrado ser um ótimo parceiro de cena quando interpretou o irmão gay de Kristen Wiig em "Irmãos Desastre" (2014) - se confirma como um ator versátil e dono de uma simpatia contagiante, a perfeita definição de cara normal, com quem o espectador pode facilmente se conectar. Juntos, eles formam o mais improvável dos casais - e por isso mesmo parecem tão reais.
As fãs de histórias de amor mais convencionais talvez se incomodem com o tanto de subversão de "Descompensada", que não hesita em quebrar todos os paradigmas da comédia romântica. Porém, aquelas que se despirem de preconceitos e estiverem dispostas a rir de si mesmas podem ter uma bela surpresa: poucas vezes um filme do gênero conseguiu ser tão abusado, ousado e sem papas na língua. Amy Schumer não tem medo de servir de material para suas próprias piadas e, ao contrário do que normalmente acontece, os coadjuvantes são tratados com inteligência e sensibilidade - desde o pai irascível da protagonista até seus colegas de trabalho (em especial a chefe vivida por Tilda Swinton e o estagiário interpretado por Ezra Miller, seu filho no drama "Precisamos falar sobre o Kevin", de 2011): são personagens secundários, sim, mas com importância o bastante para determinar alguns rumos da narrativa e fazer rir ao mesmo tempo - a cena em que Amy vai pra casa do colega adolescente e descobre que ele tem preferências sexuais um tanto exóticas é, sem dúvida, candidata à antológica.
Ainda é cedo para dizer se Amy Schumer - atriz com a mesma verme cômica de Tina Fey, Amy Pohler e Kristen Wiig - irá firmar-se no universo do humor hollywoodiano ou se é apenas fogo de palha. Indicada ao Golden Globe ela já foi - assim como seu filme. Aprovada pelo público idem. Resta ficar de olho e descobrir se fará as escolhas certas para manter-se no jogo ou se irá ser relegada a um injusto esquecimento. Até lá, é deliciar-se com as desventuras amorosas e sexuais de seu encantador alter-ego.
Os fãs de comédias românticas conhecem exatamente as engrenagens que as movem, e a julgar pela longevidade do gênero - um dos mais populares do cinema - não se importam muito com os clichês que as cercam. Por isso não deixa de ser saudável que um filme como "Descompensada" tenha feito tanto sucesso de bilheteria, alcançando uma marca superior a 100 milhões de dólares somente no mercado doméstico: mesmo subvertendo muitas das regras básicas ditadas pela indústria quando se trata de histórias de amor tradicionais, o filme escrito e estrelado por Amy Schumer é, no fundo, mais um exemplar do estilo, mas distorce seus elementos de forma tão debochada e contemporânea que soa como uma lufada de ar fresco em um universo bastante engessado. A começar pela presença de Schumer, cujo visual "gente como a gente" já a distancia das princesas bem vestidas e de corpo escultural que protagonizam tais histórias, o divertido filme dirigido por Judd Apatow - considerado o mestre das comédias adultas realizadas em Hollywood desde o sucesso de "O virgem de 40 anos", lançado em 2005 - foge dos estereótipos e aposta na reversão de papéis para conquistar o público. O resultado? Até mesmo a plateia masculina, normalmente avessa a comédias românticas, acaba se deixando seduzir pelo humor cáustico e no limite do chulo oferecido pelo roteiro.
Longe de ser a donzela desprotegida, frágil e romântica que se poderia esperar, a protagonista de "Descompensada" - sintomaticamente batizada de Amy, como a roteirista e atriz principal - é uma jornalista adepta de baladas, bebedeiras e sexo casual que não passa os dias esperando o príncipe encantado e nem acredita muito nessa história toda de "e foram felizes para sempre". Ao contrário da irmã caçula, Kim (Brie Larson, Oscar de melhor atriz por "O quarto de Jack"), Amy levou muito a sério o discurso de seu pai para justificar as traições à sua mãe e não vê muitas vantagens na monogamia e na fidelidade. Tudo começa a mudar quando ela é escalada por sua arrogante chefe, Dianna (Tilda Swinton, surpreendente), para uma série de entrevistas com um jovem médico chamado Aaron Conners (Bill Hader), conhecido como cirurgião de celebridades esportivas. Logo de cara Amy vai pra cama com o entrevistado, mas, ao contrário do que poderia esperar, a relação aos poucos vai se tornando mais séria, para seu desespero e surpresa. O problema é que Amy não sabe comportar-se em uma relação duradoura, e quando Aaron assume estar apaixonado tudo que ela consegue fazer é trocar os pés pelas mãos.
Fazendo piada a respeito de qualquer assunto sem medo de soar politicamente incorreto, o roteiro de "Descompensada" é uma sucessão de bobagens extremamente divertidas, que mesclam o típico humor "vergonha alheia" com momentos bastante inteligentes, com diálogos repletos de referências culturais, com direito até a participações especiais de Daniel Radcliffe e Marisa Tomei - em um filme dentro do filme - e Matthew Broderick e Martin Short como eles mesmos (uma prova do poder de fogo de Appatow em Hollywood). O que mais chama a atenção no filme, no entanto, é sua coragem em ter uma protagonista tão fora dos padrões de beleza e comportamento ditados por Hollywood através dos anos. Com um linguajar de corar cantores de funk e atitudes de fazer muitas moderninhas de plantão se roer de inveja, Amy dificilmente pode ser considerada uma heroína convencional, mas o carisma de Schumer (em um papel que é a sua cara) é o bastante para que a plateia fique do seu lado mesmo quando ela comete uma série de erros que podem comprometer sua felicidade. Suas cenas com a irmã e o enteado dela (um moleque nerd que mais a apavora do que qualquer outra coisa) são hilariantes, e sua química com Bill Hader é inegavelmente perfeita. Hader - que já havia demonstrado ser um ótimo parceiro de cena quando interpretou o irmão gay de Kristen Wiig em "Irmãos Desastre" (2014) - se confirma como um ator versátil e dono de uma simpatia contagiante, a perfeita definição de cara normal, com quem o espectador pode facilmente se conectar. Juntos, eles formam o mais improvável dos casais - e por isso mesmo parecem tão reais.
As fãs de histórias de amor mais convencionais talvez se incomodem com o tanto de subversão de "Descompensada", que não hesita em quebrar todos os paradigmas da comédia romântica. Porém, aquelas que se despirem de preconceitos e estiverem dispostas a rir de si mesmas podem ter uma bela surpresa: poucas vezes um filme do gênero conseguiu ser tão abusado, ousado e sem papas na língua. Amy Schumer não tem medo de servir de material para suas próprias piadas e, ao contrário do que normalmente acontece, os coadjuvantes são tratados com inteligência e sensibilidade - desde o pai irascível da protagonista até seus colegas de trabalho (em especial a chefe vivida por Tilda Swinton e o estagiário interpretado por Ezra Miller, seu filho no drama "Precisamos falar sobre o Kevin", de 2011): são personagens secundários, sim, mas com importância o bastante para determinar alguns rumos da narrativa e fazer rir ao mesmo tempo - a cena em que Amy vai pra casa do colega adolescente e descobre que ele tem preferências sexuais um tanto exóticas é, sem dúvida, candidata à antológica.
Ainda é cedo para dizer se Amy Schumer - atriz com a mesma verme cômica de Tina Fey, Amy Pohler e Kristen Wiig - irá firmar-se no universo do humor hollywoodiano ou se é apenas fogo de palha. Indicada ao Golden Globe ela já foi - assim como seu filme. Aprovada pelo público idem. Resta ficar de olho e descobrir se fará as escolhas certas para manter-se no jogo ou se irá ser relegada a um injusto esquecimento. Até lá, é deliciar-se com as desventuras amorosas e sexuais de seu encantador alter-ego.
segunda-feira
CLUBE DE COMPRAS DALLAS
CLUBE DE COMPRAS DALLAS (Dallas Buyers Club, 2013, Truth Entertainment, 117min) Direção: Jean-Marc Vallée. Roteiro: Craig Borten, Melisa Wallack. Fotografia: Yves Bélanger. Montagem: Martin Pensa, Jean-Marc Vallée. Figurino: Kurt and Bart. Direção de arte/cenários: John Paino/Robert Covelman. Produção executiva: David Bushell, Nicolas Chartier, Cassian Elwes, Xev Foreman, Logan Levy, Joe Newcomb, Tony Notargiacomo, Nathan Ross, Holly Wiersma. Produção: Robbie Brenner, Rachel Winter. Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Denis O'Hare, Steve Zahn, Dallas Roberts, Griffin Dunne, Michael O'Neill. Estreia: 07/9/13 (Festival de Toronto)
6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto), Roteiro Adaptado, Montagem, Maquiagem
Vencedor de 3 Oscar: Ator (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto), Maquiagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Ator/Drama (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto)
Levando-se em consideração o quão repleta de elementos dramáticos foi a história do eletricista texano Ron Woodroof e sua batalha contra o sistema de saúde americano que impedia a importação de medicamentos experimentais para a cura da AIDS no início dos anos 80 (no começo da epidemia, portanto), é surpreendente que Hollywood tenha demorado tanto tempo para transformá-la em filme. Tudo bem que o projeto inicial surgiu na metade da década de 90, com Dennis Hopper na direção e Woody Harrelson interessado no papel principal, mas foi somente em 2013 - quase trinta anos depois dos acontecimentos narrados no roteiro aconteceram - que finalmente o que era apenas uma ideia viu a luz das telas... e o brilho do Oscar. Indicado em seis categorias, inclusive melhor filme, "Clube de Compras Dallas" saiu da cerimônia de premiação que consagrou "Gravidade" e "12 anos de escravidão" com três estatuetas debaixo do braço: ator, ator coadjuvante e maquiagem. De certa forma, a Academia acertou em homenagear o que de melhor há no filme de Jean-Marc Vallée, de resto um trabalho apenas razoável e carente de um roteiro mais consistente (ainda que o texto de Craig Borten e Melisa Wallack também tenha tentado uma vitória impossível contra o genial "Ela", de Spike Jonze).
A trama de "Clube de Compras Dallas" começa em 1985, quando Woodroof, heterossexual convicto, machista e homofóbico, descobre ter contraído o vírus HIV, então praticamente uma incógnita até mesmo para a comunidade médica e tratada como uma doença restrita praticamente ao universo gay. Desesperado com a notícia e com a forma como passa a ser tratado por seus amigos - que assim como ele também não tem a menor informação sobre o vírus - ele resolve desafiar a sentença de 30 dias de vida dada por seu médico, Servard (Denis O'Hare) e buscar tratamentos alternativos e ainda ilegais nos EUA. Começando com AZT e passando por drogas testadas em outras partes do mundo, ele cria uma atividade de distribuição de tais medicamentos através de um clube de compras, onde o paciente paga uma taxa de inscrição e passa a receber seus tratamentos. Com a ajuda do travesti Rayon (Jared Leto) e com a anuência de outra médica, Eve (Jennifer Garner), ele desafia a justiça americana enquanto tenta manter-se vivo e na esperança de que encontrem uma cura. Utilizando-se de disfarces variados, ele consegue manter o contrabando por tempo suficiente para incomodar o sistema de saúde do país.
Vindo de um realizador criativo e sensível como o canadense Jean-Marc Vallée, revelado com o ótimo "C.R.A.Z.Y", de 2005, o resultado final de "Clube de Compra Dallas" não deixa de ser uma grande decepção. É quadrado, mecânico e - pecado mortal para um filme que trata de um assunto com tanto potencial dramático - indiferente. Mesmo que fique evidente a entrega de McConaughey e Leto a seus papéis é difícil envolver-se com a narrativa, porque o roteiro não permite a aproximação do espectador, tratando tudo com um distanciamento que, se mirou na neutralidade, acertou apenas na frieza. Por mais que os atores se esforcem em cativar a plateia - especialmente Jared Leto, mostrando que suas ótimas performances em "Réquiem para um sonho" (2000) e "Capítulo 27" (2008), em que interpretava o assassino de John Lennon não eram meros golpes de sorte - a opção do diretor em fugir do sentimentalismo contrasta violentamente com a potência emocional da história verdadeira de Woodroof, que chegou perto de ser interpretado por Brad Pitt e Ryan Gosling, em versões anteriores do projeto. Matthew McConaughey - em uma virada espetacular na carreira, deixando para trás comédias românticas bobas para concentrar-se em papéis mais desafiadores - está bem, mas é quase impossível dissociar seu Oscar de sua impressionante transformação física, que acaba por eclipsar suas tentativas de aprofundar-se em um texto pouco ousado, que jamais escapa do superficial mesmo com um protagonista tão intrigante.
Preconceituoso e sem maiores preparos psicológicos para lidar com sua nova situação, Woodroof é um personagem e tanto, mas McConaughey esbarra frequentemente em um roteiro incapaz de explorar a contento todas as possibilidades de sua personalidade conflituosa. Nesse ponto novamente Leto sai-se melhor, já que seu Rayon consegue ser um pouco (não muito) melhor desenvolvido, apesar do filme jogar fora a promissora relação entre ele - um jovem travesti que se prostitui e é contaminado pelo vírus da AIDS - e seu pai - um homem rico e conservador que não aceita seu modo de vida. Tal conflito é explorado em apenas uma cena rápida, matando um dos poucos focos mais emocionantes do filme. Ainda assim, é do vocalista da banda 30 Seconds To Mars a cena mais impactante da produção: quando ele conversa consigo mesmo diante de um espelho é difícil ficar indiferente, apesar do mérito ser muito mais do ator do que da direção. No final das contas, "Clube de Compras Dallas" cumpriu seu objetivo (ganhar Oscar), mas desperdiça uma boa história e bons personagens em um resultado raso e dinamicamente falho, que encontra espaço até para uma dispersiva relação entre o protagonista e sua médica (a sempre fraca Jennifer Garner) mas não encontra um foco narrativo capaz de cativar ou emocionar a plateia. Um filme muito aquém do que poderia ser.
6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto), Roteiro Adaptado, Montagem, Maquiagem
Vencedor de 3 Oscar: Ator (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto), Maquiagem
Vencedor de 2 Golden Globes: Ator/Drama (Matthew McConaughey), Ator Coadjuvante (Jared Leto)
Levando-se em consideração o quão repleta de elementos dramáticos foi a história do eletricista texano Ron Woodroof e sua batalha contra o sistema de saúde americano que impedia a importação de medicamentos experimentais para a cura da AIDS no início dos anos 80 (no começo da epidemia, portanto), é surpreendente que Hollywood tenha demorado tanto tempo para transformá-la em filme. Tudo bem que o projeto inicial surgiu na metade da década de 90, com Dennis Hopper na direção e Woody Harrelson interessado no papel principal, mas foi somente em 2013 - quase trinta anos depois dos acontecimentos narrados no roteiro aconteceram - que finalmente o que era apenas uma ideia viu a luz das telas... e o brilho do Oscar. Indicado em seis categorias, inclusive melhor filme, "Clube de Compras Dallas" saiu da cerimônia de premiação que consagrou "Gravidade" e "12 anos de escravidão" com três estatuetas debaixo do braço: ator, ator coadjuvante e maquiagem. De certa forma, a Academia acertou em homenagear o que de melhor há no filme de Jean-Marc Vallée, de resto um trabalho apenas razoável e carente de um roteiro mais consistente (ainda que o texto de Craig Borten e Melisa Wallack também tenha tentado uma vitória impossível contra o genial "Ela", de Spike Jonze).
A trama de "Clube de Compras Dallas" começa em 1985, quando Woodroof, heterossexual convicto, machista e homofóbico, descobre ter contraído o vírus HIV, então praticamente uma incógnita até mesmo para a comunidade médica e tratada como uma doença restrita praticamente ao universo gay. Desesperado com a notícia e com a forma como passa a ser tratado por seus amigos - que assim como ele também não tem a menor informação sobre o vírus - ele resolve desafiar a sentença de 30 dias de vida dada por seu médico, Servard (Denis O'Hare) e buscar tratamentos alternativos e ainda ilegais nos EUA. Começando com AZT e passando por drogas testadas em outras partes do mundo, ele cria uma atividade de distribuição de tais medicamentos através de um clube de compras, onde o paciente paga uma taxa de inscrição e passa a receber seus tratamentos. Com a ajuda do travesti Rayon (Jared Leto) e com a anuência de outra médica, Eve (Jennifer Garner), ele desafia a justiça americana enquanto tenta manter-se vivo e na esperança de que encontrem uma cura. Utilizando-se de disfarces variados, ele consegue manter o contrabando por tempo suficiente para incomodar o sistema de saúde do país.
Vindo de um realizador criativo e sensível como o canadense Jean-Marc Vallée, revelado com o ótimo "C.R.A.Z.Y", de 2005, o resultado final de "Clube de Compra Dallas" não deixa de ser uma grande decepção. É quadrado, mecânico e - pecado mortal para um filme que trata de um assunto com tanto potencial dramático - indiferente. Mesmo que fique evidente a entrega de McConaughey e Leto a seus papéis é difícil envolver-se com a narrativa, porque o roteiro não permite a aproximação do espectador, tratando tudo com um distanciamento que, se mirou na neutralidade, acertou apenas na frieza. Por mais que os atores se esforcem em cativar a plateia - especialmente Jared Leto, mostrando que suas ótimas performances em "Réquiem para um sonho" (2000) e "Capítulo 27" (2008), em que interpretava o assassino de John Lennon não eram meros golpes de sorte - a opção do diretor em fugir do sentimentalismo contrasta violentamente com a potência emocional da história verdadeira de Woodroof, que chegou perto de ser interpretado por Brad Pitt e Ryan Gosling, em versões anteriores do projeto. Matthew McConaughey - em uma virada espetacular na carreira, deixando para trás comédias românticas bobas para concentrar-se em papéis mais desafiadores - está bem, mas é quase impossível dissociar seu Oscar de sua impressionante transformação física, que acaba por eclipsar suas tentativas de aprofundar-se em um texto pouco ousado, que jamais escapa do superficial mesmo com um protagonista tão intrigante.
Preconceituoso e sem maiores preparos psicológicos para lidar com sua nova situação, Woodroof é um personagem e tanto, mas McConaughey esbarra frequentemente em um roteiro incapaz de explorar a contento todas as possibilidades de sua personalidade conflituosa. Nesse ponto novamente Leto sai-se melhor, já que seu Rayon consegue ser um pouco (não muito) melhor desenvolvido, apesar do filme jogar fora a promissora relação entre ele - um jovem travesti que se prostitui e é contaminado pelo vírus da AIDS - e seu pai - um homem rico e conservador que não aceita seu modo de vida. Tal conflito é explorado em apenas uma cena rápida, matando um dos poucos focos mais emocionantes do filme. Ainda assim, é do vocalista da banda 30 Seconds To Mars a cena mais impactante da produção: quando ele conversa consigo mesmo diante de um espelho é difícil ficar indiferente, apesar do mérito ser muito mais do ator do que da direção. No final das contas, "Clube de Compras Dallas" cumpriu seu objetivo (ganhar Oscar), mas desperdiça uma boa história e bons personagens em um resultado raso e dinamicamente falho, que encontra espaço até para uma dispersiva relação entre o protagonista e sua médica (a sempre fraca Jennifer Garner) mas não encontra um foco narrativo capaz de cativar ou emocionar a plateia. Um filme muito aquém do que poderia ser.
domingo
CAROL
CAROL (Carol, 2015, The Weinstein Company, 118min) Direção: Todd Haynes. Roteiro: Phyllis Nagy, romance de Patricia Highsmith. Fotografia: Edward Lachman. Montagem: Affonso Gonçalves. Música: Carter Burwell. Figurino: Sandy Powell. Direção de arte/cenários: Judy Becker/Heather Loeffler. Produção executiva: Dorothy Berwin, Cate Blanchett, Robert Jolliffe, Danny Perkins, Tessa Ross, Thorsten Schumacher, Andrew Upton, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Elizabeth Karlsen, Christine Vachon, Stephen Wooley. Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Sarah Paulson, Kyle Chandler, Jake Lacy, John Magaro. Estreia: 17/5/15 (Festival de Cannes)
6 indicações ao Oscar: Atriz (Cate Blanchett), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado, Fotografia, Trilha Sonora Original, Figurino
Vencedor da Palma de Ouro (Melhor Atriz) no Festival de Cannes: Rooney Mara
Em 1952, um romance chamado "The price of salt", escrito por uma autora chamada Claire Morgan chegou às livrarias norte-americanas contando a história de amor entre uma socialite e uma jovem aspirante a fotógrafa, mais jovem e inexperiente. Nos anos 60, uma tentativa de adaptar o livro para as telas, com a estrela Lana Turner no papel principal, acabou abortada - e é difícil, hoje em dia, imaginar como poderia ter sido, uma vez que na época a censura sobre os estúdios hollywoodianos era rígida e conservadora ao extremo, a ponto de, segundo consta, uma adaptação ter sido feita com a alteração do sexo da protagonista. Relançado em 1984 por uma editora especializada em literatura lésbica, o livro voltou à pauta, mas foi somente em 1990 que, depois de muitos rumores, finalmente a desconhecida Morgan resolveu assumir sua verdadeira identidade em uma nova edição inglesa: a autora do polêmico romance era a mesma Patricia Highsmith cujo talento para as tramas de suspense já havia inspirado Alfred Hitchcock (em "Pacto sinistro", de 1951), René Clement ("O sol por testemunha", de 1960) e Wim Wenders ("O amigo americano", de 1977). Inspirada em uma história vivida pela própria Highsmith nos anos 40, "The price of salt"só viu a luz dos refletores mais de sessenta anos depois de sua primeira publicação: com o título de "Carol", o filme de Todd Haynes estreou no Festival de Cannes de 2015 sob uma chuva de calorosos e demorados aplausos, e saiu da Riviera Francesa com o prêmio de melhor atriz para Rooney Mara. Começava ali sua consagração como um dos melhores filmes da temporada.
Unanimemente elogiado como um drama romântico elegante e intenso, "Carol" foi colecionando prêmios e indicações por toda a sua carreira internacional, até culminar na agridoce lista dos candidatos ao Oscar: tido como certo na disputa, acabou ficando de fora dos concorrentes à melhor filme e diretor - mesmo que Haynes já tivesse, então, prêmios dos críticos de Nova York, Boston, Toronto e da National Society of Film Critics. A esnobada da Academia - que apesar disso lembrou do filme em outras categorias importantes, como atriz, atriz coadjuvante e roteiro adaptado - decepcionou os fãs, mas não diminui a importância do filme. Um dos mais sensíveis e maduros retratos do amor entre mulheres mostrados nas telas, "Carol" é também uma história sobre tolerância, amadurecimento e a importância que as escolhas tem na vida de qualquer pessoa. Emoldurado por um visual arrebatador, uma trilha sonora impecável e um elenco fascinante, é também uma bela e dolorosa história de amor e desejo, contada através da lente da sofisticação e da sutileza.
Interpretada por uma Cate Blanchett cada vez mais etérea e deslumbrante, Carol é uma mulher da alta sociedade nova-iorquina dos anos 50, presa por convenções sociais a um casamento sem amor e a um relacionamento quase abusivo com o agressivo Harge Aird (Kyle Chandler, em atuação expressiva e forte). Para não perder a guarda da filha pequena, Carol mantém discrição de seus romances extraconjugais com outras mulheres, mas é lógico que isso não escapa da atenção do marido, que finge desconhecer esse lado de sua personalidade. As coisas começam a sair do controle, porém, quando Carol conhece e se sente imediatamente atraída por Therese Belivet (Rooney Mara, indicada ao Oscar de coadjuvante mesmo sendo tão protagonista quanto Blanchett). Tímida e inexperiente, Therese sonha em seguir uma carreira de fotógrafa e conhece a delicada socialite quando está em um emprego temporário de Natal. Não demora para que o charme e a poder de sedução de Carol acabe por conquistar a jovem, que se entrega, então, em um romance até então inédito em sua vida. O idílio entre as duas, porém, é posto à prova quando Harge resolve lançar mão de seu maior trunfo para separá-las e manter a esposa a seu lado. Confrontada com a verdade sobre si mesma em vias de ser exposta, a Carol resta contar com o apoio da melhor amiga, Abby (Sarah Paulson), e decidir qual o melhor caminho para sua vida: o amor ou a filha.
Fotografado com precisão por Edward Lachman - que usa e abusa de superfícies envidraçadas como metáfora de tudo que separa as protagonistas - e com uma reconstituição de época deslumbrante (o figurino de Sandy Powell também foi lembrado pelo Oscar), "Carol" é um filme cuja elegância é indiscutível. A bela trilha sonora de Carter Burwell pontua com determinação o tom imposto pela direção romântica de Haynes, reforçando com sutileza o turbilhão de sentimentos envolvidos na trama. Cuidadoso com todos os detalhes, o cineasta faz uso de pequenas ações para sublinhar as emoções de suas personagens - Carol fuma apenas em situações extremas, nunca quando está feliz ou realizada, por exemplo - e constrói, delicadamente, uma história onde cada olhar, cada gesto, cada entonação de voz é essencial para a melhor assimilação de tudo que é mostrado, como um trabalho de ourives que dá a cada pedaço da joia sua devida importância para a beleza do conjunto. Orquestrando até mesmo as cenas de sexo com extremo bom-gosto, o diretor conta também com a ajuda imprescindível de um elenco em dias muito inspirados.
Injustamente esquecido pelas cerimônias de premiação, Kyle Chandler entrega um desempenho exemplar como o terceiro vértice do triângulo amoroso central, o marido traído que transforma em obsessão sua determinação em destruir o romance extraconjugal da esposa, mesmo que usando de subterfúgios eticamente dúbios. Rooney Mara, justificando seu prêmio em Cannes e sua indicação ao Oscar, constrói uma Therese cuja fragilidade física vai se transformando, aos poucos, em uma coragem de aço, e Cate Blanchett desfila sua classe pela tela com uma personagem que lhe dá a chance de explorar todas as nuances de seu imenso talento: sem apelar para cenas lacrimosas ou piegas, ela oferece uma atuação devastadora, centrada unicamente no uso exemplar da voz, do corpo e do olhar. Não é à toa que o filme tem o nome de sua personagem: Blanchett é uma força da natureza que transforma o ato de acompanhar uma história de amor simples e corriqueira em uma experiência recompensadora. "Carol" não é apenas uma love story homossexual: é um conto sobre a força do amor e da paixão sobre o preconceito e a intolerância. Belíssimo!
6 indicações ao Oscar: Atriz (Cate Blanchett), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado, Fotografia, Trilha Sonora Original, Figurino
Vencedor da Palma de Ouro (Melhor Atriz) no Festival de Cannes: Rooney Mara
Em 1952, um romance chamado "The price of salt", escrito por uma autora chamada Claire Morgan chegou às livrarias norte-americanas contando a história de amor entre uma socialite e uma jovem aspirante a fotógrafa, mais jovem e inexperiente. Nos anos 60, uma tentativa de adaptar o livro para as telas, com a estrela Lana Turner no papel principal, acabou abortada - e é difícil, hoje em dia, imaginar como poderia ter sido, uma vez que na época a censura sobre os estúdios hollywoodianos era rígida e conservadora ao extremo, a ponto de, segundo consta, uma adaptação ter sido feita com a alteração do sexo da protagonista. Relançado em 1984 por uma editora especializada em literatura lésbica, o livro voltou à pauta, mas foi somente em 1990 que, depois de muitos rumores, finalmente a desconhecida Morgan resolveu assumir sua verdadeira identidade em uma nova edição inglesa: a autora do polêmico romance era a mesma Patricia Highsmith cujo talento para as tramas de suspense já havia inspirado Alfred Hitchcock (em "Pacto sinistro", de 1951), René Clement ("O sol por testemunha", de 1960) e Wim Wenders ("O amigo americano", de 1977). Inspirada em uma história vivida pela própria Highsmith nos anos 40, "The price of salt"só viu a luz dos refletores mais de sessenta anos depois de sua primeira publicação: com o título de "Carol", o filme de Todd Haynes estreou no Festival de Cannes de 2015 sob uma chuva de calorosos e demorados aplausos, e saiu da Riviera Francesa com o prêmio de melhor atriz para Rooney Mara. Começava ali sua consagração como um dos melhores filmes da temporada.
Unanimemente elogiado como um drama romântico elegante e intenso, "Carol" foi colecionando prêmios e indicações por toda a sua carreira internacional, até culminar na agridoce lista dos candidatos ao Oscar: tido como certo na disputa, acabou ficando de fora dos concorrentes à melhor filme e diretor - mesmo que Haynes já tivesse, então, prêmios dos críticos de Nova York, Boston, Toronto e da National Society of Film Critics. A esnobada da Academia - que apesar disso lembrou do filme em outras categorias importantes, como atriz, atriz coadjuvante e roteiro adaptado - decepcionou os fãs, mas não diminui a importância do filme. Um dos mais sensíveis e maduros retratos do amor entre mulheres mostrados nas telas, "Carol" é também uma história sobre tolerância, amadurecimento e a importância que as escolhas tem na vida de qualquer pessoa. Emoldurado por um visual arrebatador, uma trilha sonora impecável e um elenco fascinante, é também uma bela e dolorosa história de amor e desejo, contada através da lente da sofisticação e da sutileza.
Interpretada por uma Cate Blanchett cada vez mais etérea e deslumbrante, Carol é uma mulher da alta sociedade nova-iorquina dos anos 50, presa por convenções sociais a um casamento sem amor e a um relacionamento quase abusivo com o agressivo Harge Aird (Kyle Chandler, em atuação expressiva e forte). Para não perder a guarda da filha pequena, Carol mantém discrição de seus romances extraconjugais com outras mulheres, mas é lógico que isso não escapa da atenção do marido, que finge desconhecer esse lado de sua personalidade. As coisas começam a sair do controle, porém, quando Carol conhece e se sente imediatamente atraída por Therese Belivet (Rooney Mara, indicada ao Oscar de coadjuvante mesmo sendo tão protagonista quanto Blanchett). Tímida e inexperiente, Therese sonha em seguir uma carreira de fotógrafa e conhece a delicada socialite quando está em um emprego temporário de Natal. Não demora para que o charme e a poder de sedução de Carol acabe por conquistar a jovem, que se entrega, então, em um romance até então inédito em sua vida. O idílio entre as duas, porém, é posto à prova quando Harge resolve lançar mão de seu maior trunfo para separá-las e manter a esposa a seu lado. Confrontada com a verdade sobre si mesma em vias de ser exposta, a Carol resta contar com o apoio da melhor amiga, Abby (Sarah Paulson), e decidir qual o melhor caminho para sua vida: o amor ou a filha.
Fotografado com precisão por Edward Lachman - que usa e abusa de superfícies envidraçadas como metáfora de tudo que separa as protagonistas - e com uma reconstituição de época deslumbrante (o figurino de Sandy Powell também foi lembrado pelo Oscar), "Carol" é um filme cuja elegância é indiscutível. A bela trilha sonora de Carter Burwell pontua com determinação o tom imposto pela direção romântica de Haynes, reforçando com sutileza o turbilhão de sentimentos envolvidos na trama. Cuidadoso com todos os detalhes, o cineasta faz uso de pequenas ações para sublinhar as emoções de suas personagens - Carol fuma apenas em situações extremas, nunca quando está feliz ou realizada, por exemplo - e constrói, delicadamente, uma história onde cada olhar, cada gesto, cada entonação de voz é essencial para a melhor assimilação de tudo que é mostrado, como um trabalho de ourives que dá a cada pedaço da joia sua devida importância para a beleza do conjunto. Orquestrando até mesmo as cenas de sexo com extremo bom-gosto, o diretor conta também com a ajuda imprescindível de um elenco em dias muito inspirados.
Injustamente esquecido pelas cerimônias de premiação, Kyle Chandler entrega um desempenho exemplar como o terceiro vértice do triângulo amoroso central, o marido traído que transforma em obsessão sua determinação em destruir o romance extraconjugal da esposa, mesmo que usando de subterfúgios eticamente dúbios. Rooney Mara, justificando seu prêmio em Cannes e sua indicação ao Oscar, constrói uma Therese cuja fragilidade física vai se transformando, aos poucos, em uma coragem de aço, e Cate Blanchett desfila sua classe pela tela com uma personagem que lhe dá a chance de explorar todas as nuances de seu imenso talento: sem apelar para cenas lacrimosas ou piegas, ela oferece uma atuação devastadora, centrada unicamente no uso exemplar da voz, do corpo e do olhar. Não é à toa que o filme tem o nome de sua personagem: Blanchett é uma força da natureza que transforma o ato de acompanhar uma história de amor simples e corriqueira em uma experiência recompensadora. "Carol" não é apenas uma love story homossexual: é um conto sobre a força do amor e da paixão sobre o preconceito e a intolerância. Belíssimo!
sábado
BROOKLYN
BROOKLYN (Brooklyn, 2015, BBC Films/Wildgaze Films, 117min) Direção: John Crowley. Roteiro: Nick Hornby, romance de Colm Tóibín. Fotografia: Yves Bélanger. Montagem: Jake Roberts. Música: Michael Brook. Figurino: Odile Dicks-Mireaux. Direção de arte/cenários: François Séguin/Jenny Oman, Louise Tremblay. Produção executiva: Hussain Amarshi, Rory Gilmartin, Zygi Kamasa, Christine Langan, Alan Moloney, Beth Pattinson, Thorsten Schumacher. Produção: Finola Dwyer, Amanda Posey. Elenco: Saoirse Ronan, Julie Walters, Jim Broadbent, Dohmnall Gleeson, Emory Cohen. Estreia: 26/01/25 (Festival de Sundance)
3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Saoirse Ronan), Roteiro Adaptado
Delicadeza. Simplicidade. Pureza. Com esses três elementos em mão - mais o belo roteiro do escritor Nick Hornby, adaptado do romance de Colm Tóibín - o cineasta John Crowley conseguiu em seu quarto longa-metragem o que muitos diretores mais experientes jamais alcançaram: uma indicação ao Oscar de melhor filme. Desde sua estreia e ovação no Festival de Sundance, em janeiro de 2015, o singelo "Brooklyn" passou a colecionar prêmios da crítica e de festivais, cativados por sua extrema facilidade em transmitir uma imensa gama de sentimentos sem apelar para o dramalhão. Ao contar uma história de autodescoberta e amadurecimento, o filme, estrelado pela ótima Saoirse Ronan - a adolescente inconsequente de "Desejo e reparação" (2007) - é um oásis de inteligência e sutileza em uma época na qual orçamentos gigantescos e desnecessárias continuações mandam e desmandam nas bilheterias. Não por acaso, disputou a estatueta principal com "Mad Max: estrada da fúria", de George Miller e "Perdido em Marte", de Ridley Scott - dois sucessos comerciais que, apesar das inúmeras qualidades, passam longe de qualquer tipo de delicadeza ou despretensão.
A protagonista do filme - verossímil, real, falível e por isso mesmo apaixonante - é Eilis, uma jovem irlandesa que aproveita a chance de viajar para a Nova York pós-guerra (o ano em que a ação começa é 1952) para tentar uma vida melhor, mais próspera e promissora em termos profissionais. Amparada pela ajuda do Padre Flood (Jim Broadbent) e hospedada na pensão da atenciosa Sra. Kehoe (Julie Walters), ela começa a trabalhar em uma loja de departamentos, enquanto estuda para uma carreira como escriturária. Sua vida pacata e repleta de saudades de casa começa a mudar quando ela conhece Tony (Emory Cohen), um descendente de italianos que trabalha como encanador e que se apaixona perdidamente por ela. O romance faz com que Eilis finalmente comece a sentir-se em casa em um país estranho, mas um acontecimento inesperado a leva de volta para a Irlanda, onde ela conhece outro rapaz, Jim (Dohmnall Gleeson), o que a faz questionar seus sentimentos e suas ambições.
Contando sua história sem atropelos e sem grandes reviravoltas, "Brooklyn" conquista o espectador aos poucos, conforme vai apresentando todas as suas qualidades, com um ritmo próprio e suave. Coerente com a proposta do diretor em apostar no minimalismo emocional e visual, a reconstituição de época é detalhista sem jamais chamar a atenção para si em detrimento da trama ou dos personagens - o figurino é sensacional - e a fotografia de Yves Bélanger explora com sensibilidade a beleza dos olhos de sua atriz central, expressivos a ponto de revelarem sozinhos boa parte do turbilhão de sentimentos que a assolam. Para isso é essencial o talento superlativo de Saoirse Ronan, que consegue destacar-se mesmo sem apoiar-se em cenas grandiloquentes ou lacrimosas: quando Eilis sofre, sua angústia é compreensível e verdadeira; quando está feliz, seu brilho é contagiante e sincero. E quando toma atitudes talvez duvidosas, é impossível não perdoá-la e torcer para sua redenção. Com desenvoltura de veterana, Ronan fez por merecer sua indicação ao Oscar: ela consegue fugir de todas as armadilhas do roteiro com extrema segurança, e conquista a empatia do público justamente por assumir para si a responsabilidade de tornar inesquecível uma trama que, a despeito de seu desenvolvimento poético e fluido, não apresenta nenhuma novidade. E talvez seja justamente essa a chave para seu sucesso.
Tomando poucas liberdades em relação ao romance de Tóibín, o roteiro de Nick Hornby - que perdeu o Oscar para o chato "A grande aposta" - mantém seu tom lírico e nostálgico, calcado mais nos personagens do que nas situações dramáticas expostas durante a narrativa. Inteligente e com um sutil senso de humor, o desenvolvimento da ação se concentra em Eilis e naqueles que a rodeiam, desde as colegas de pensão - que para surpresa do espectador NÃO se tornam inimigas da protagonista como acontece normalmente em filmes do gênero - até sua família, cerne de suas preocupações e saudades. O triângulo amoroso formado no ato final do filme também soa orgânico, especialmente devido à química entre Ronan e seus dois colegas de cena, principalmente o encantador Emory Cohen - revelado no seriado "Smash" - na pele de um rapaz pouco instruído que ganha o coração não apenas da personagem principal, mas também da plateia. O romance pueril, ingênuo e sincero dos personagens contrasta com a incipiente relação da garota com Jim, centrado em um futuro mais prático e realista - uma mudança de perspectiva facilmente constatável na palheta de cores utilizada pela fotografia de Bélanger e pelos cenários e figurinos, que vão se tornando mais coloridos conforme a percepção de mundo de Eilis vai mudando. Esse cuidado a pequenos detalhes - quase invisíveis em um primeiro olhar - é que impressiona e seduz em "Brooklyn", um pequeno grande filme capaz de deixar qualquer um com um enorme sorriso estampado no rosto.
3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Saoirse Ronan), Roteiro Adaptado
Delicadeza. Simplicidade. Pureza. Com esses três elementos em mão - mais o belo roteiro do escritor Nick Hornby, adaptado do romance de Colm Tóibín - o cineasta John Crowley conseguiu em seu quarto longa-metragem o que muitos diretores mais experientes jamais alcançaram: uma indicação ao Oscar de melhor filme. Desde sua estreia e ovação no Festival de Sundance, em janeiro de 2015, o singelo "Brooklyn" passou a colecionar prêmios da crítica e de festivais, cativados por sua extrema facilidade em transmitir uma imensa gama de sentimentos sem apelar para o dramalhão. Ao contar uma história de autodescoberta e amadurecimento, o filme, estrelado pela ótima Saoirse Ronan - a adolescente inconsequente de "Desejo e reparação" (2007) - é um oásis de inteligência e sutileza em uma época na qual orçamentos gigantescos e desnecessárias continuações mandam e desmandam nas bilheterias. Não por acaso, disputou a estatueta principal com "Mad Max: estrada da fúria", de George Miller e "Perdido em Marte", de Ridley Scott - dois sucessos comerciais que, apesar das inúmeras qualidades, passam longe de qualquer tipo de delicadeza ou despretensão.
A protagonista do filme - verossímil, real, falível e por isso mesmo apaixonante - é Eilis, uma jovem irlandesa que aproveita a chance de viajar para a Nova York pós-guerra (o ano em que a ação começa é 1952) para tentar uma vida melhor, mais próspera e promissora em termos profissionais. Amparada pela ajuda do Padre Flood (Jim Broadbent) e hospedada na pensão da atenciosa Sra. Kehoe (Julie Walters), ela começa a trabalhar em uma loja de departamentos, enquanto estuda para uma carreira como escriturária. Sua vida pacata e repleta de saudades de casa começa a mudar quando ela conhece Tony (Emory Cohen), um descendente de italianos que trabalha como encanador e que se apaixona perdidamente por ela. O romance faz com que Eilis finalmente comece a sentir-se em casa em um país estranho, mas um acontecimento inesperado a leva de volta para a Irlanda, onde ela conhece outro rapaz, Jim (Dohmnall Gleeson), o que a faz questionar seus sentimentos e suas ambições.
Contando sua história sem atropelos e sem grandes reviravoltas, "Brooklyn" conquista o espectador aos poucos, conforme vai apresentando todas as suas qualidades, com um ritmo próprio e suave. Coerente com a proposta do diretor em apostar no minimalismo emocional e visual, a reconstituição de época é detalhista sem jamais chamar a atenção para si em detrimento da trama ou dos personagens - o figurino é sensacional - e a fotografia de Yves Bélanger explora com sensibilidade a beleza dos olhos de sua atriz central, expressivos a ponto de revelarem sozinhos boa parte do turbilhão de sentimentos que a assolam. Para isso é essencial o talento superlativo de Saoirse Ronan, que consegue destacar-se mesmo sem apoiar-se em cenas grandiloquentes ou lacrimosas: quando Eilis sofre, sua angústia é compreensível e verdadeira; quando está feliz, seu brilho é contagiante e sincero. E quando toma atitudes talvez duvidosas, é impossível não perdoá-la e torcer para sua redenção. Com desenvoltura de veterana, Ronan fez por merecer sua indicação ao Oscar: ela consegue fugir de todas as armadilhas do roteiro com extrema segurança, e conquista a empatia do público justamente por assumir para si a responsabilidade de tornar inesquecível uma trama que, a despeito de seu desenvolvimento poético e fluido, não apresenta nenhuma novidade. E talvez seja justamente essa a chave para seu sucesso.
Tomando poucas liberdades em relação ao romance de Tóibín, o roteiro de Nick Hornby - que perdeu o Oscar para o chato "A grande aposta" - mantém seu tom lírico e nostálgico, calcado mais nos personagens do que nas situações dramáticas expostas durante a narrativa. Inteligente e com um sutil senso de humor, o desenvolvimento da ação se concentra em Eilis e naqueles que a rodeiam, desde as colegas de pensão - que para surpresa do espectador NÃO se tornam inimigas da protagonista como acontece normalmente em filmes do gênero - até sua família, cerne de suas preocupações e saudades. O triângulo amoroso formado no ato final do filme também soa orgânico, especialmente devido à química entre Ronan e seus dois colegas de cena, principalmente o encantador Emory Cohen - revelado no seriado "Smash" - na pele de um rapaz pouco instruído que ganha o coração não apenas da personagem principal, mas também da plateia. O romance pueril, ingênuo e sincero dos personagens contrasta com a incipiente relação da garota com Jim, centrado em um futuro mais prático e realista - uma mudança de perspectiva facilmente constatável na palheta de cores utilizada pela fotografia de Bélanger e pelos cenários e figurinos, que vão se tornando mais coloridos conforme a percepção de mundo de Eilis vai mudando. Esse cuidado a pequenos detalhes - quase invisíveis em um primeiro olhar - é que impressiona e seduz em "Brooklyn", um pequeno grande filme capaz de deixar qualquer um com um enorme sorriso estampado no rosto.
sexta-feira
AVE, CÉSAR
AVE, CÉSAR! (Hail, Caesar!, 2016, Working Title Films, 106min) Direção e roteiro: Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Roderick Jaynes. Música: Carter Burwell. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Nancy Haigh. Produção executiva: Robert Graf. Produção: Tim Bevan, Ethan Coen, Joel Coen, Eric Fellner. Elenco: George Clooney, Josh Brolin, Channing Tatum, Ralph Fiennes, Scarlett Johansson, Alden Ehreinreich, Tilda Swinton, Frances McDormand, Jonah Hill, Alison Pill, David Krumholtz. Estreia: 01/02/16
Indicado ao Oscar de Direção de Arte/Cenários
Não é a primeira vez que os irmãos Coen brincam com os bastidores do cinema: em 1992 eles realizaram "Barton Fink: delírios de Hollywood", onde o dramaturgo interpretado por John Turturro (melhor ator no Festival de Cannes) se via diante de um inédito bloqueio criativo justamente quando é contratado para escrever o roteiro de um filme. Em "Ave, César", porém, eles vão ainda mais longe em seu retrato do mundo de ilusões construído pela capital do entretenimento - mais especificamente aquele erguido dentro do sistema dos grandes estúdios na década de 50. Sem deixar de lado seu humor cáustico e a preferência por personagens à margem do sistema (mesmo quando inserido nele), a dupla de cineastas faz uma das mais consistentes homenagens à indústria realizadas nos últimos anos, repleta de citações a astros e gêneros de um dos períodos mais ricos de Hollywood. Injustamente esquecido pelo Oscar e demais cerimônias de premiação da temporada (concorreu a uma única estatueta, por sua impecável direção de arte), "Ave, César" pode até ser considerado por muitos críticos como uma obra menor da dupla de diretores e roteiristas, mas jamais deixa de ser uma excelente opção para quem procura diversão inteligente.
Apesar de George Clooney ser o maior astro do elenco - e parceiro frequente dos cineastas, tendo trabalhado em "E aí, meu irmão, cadê você?" (2001), "O amor custa caro" (2003) e "Queime depois de ler" (2008) - o protagonista da história é interpretado por Josh Brolin, em mais uma atuação inspiradíssima. Ele interpreta Eddie Mannix, que vive de resolver crises nos bastidores de um grande estúdio da Hollywood dos anos 50, a Capitol Pictures. A trama se passa em um único dia, em que Mannix parece sobrecarregado de problemas alheios: o maior nome do estúdio, Baird Whitlock (George Clooney) - que está no final das filmagens de um milionário épico religioso - acaba de ser sequestrado por um grupo chamado "Nós somos o futuro" (na verdade, um grupo de roteiristas comunistas frustrados com o pagamento pífio que recebem por seu trabalho); a atriz DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) está grávida e precisa esconder a situação dos fãs e da imprensa (que também não podem saber de sua vasta coleção de ex-maridos); o jovem astros de westerns Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) está com dificuldades em fazer a transição para filmes dramáticos, para desespero do diretor Laurence Laurentz (Ralph Fiennes); e a dupla de irmãs colunistas de fofocas Thora e Thessaly Thacker (Tilda Swinton) ameaça por a boca no trombone e publicar uma história que em nada beneficia Whitlock. Sua única forma de escapar é aceitar a proposta de investir em uma companhia aérea que lhe oferece uma tentadora opção de vida.
Sem uma trama forte o bastante para sustentar seus 106 minutos, "Ave, César" (título do filme religioso estrelado por Baird Whitlock) constrói sua narrativa através da jornada de Mannix em busca da solução para os problemas que lhe são apresentados. Costura-se, assim, de forma orgânica e ágil, uma seleção de sequências fascinantes que vão formando um rico e empolgante panorama do cinema americano dos anos 50, com suas estrelas cintilantes e suas produções gigantescas. Nitidamente apaixonados por sua arte, os irmãos Coen conduzem o espectador por cenas que remetem diretamente aos espetáculos aquáticos de Esther Williams - através da personagem de Scarlett Johansson - e aos musicais de Gene Kelly - Channing Tatum mostra todo o seu dom de dançarino em uma bela sequência que em nada fica a dever aos clássicos do período. Até mesmo o épico produzido pelo estúdio fictício tem ecos de "Ben-hur"- e é hilariante a cena em que Mannix se reune com lideranças de várias religiões tentando encontrar um denominador comum que não ofenda a ninguém. Josh Brolin brilha com uma performance ao mesmo tempo irônica e desesperada, encontrando o tom exato de um personagem típico da dupla de diretores, que cutucam desde o poder dos estúdios sobre seus contratados até a histeria comunista que tomava conta do país no período. Contando ainda com participações especiais de Frances McDormand e Jonah Hill e uma reconstituição de época primorosa, "Ave, César" é uma comédia que substitui as gargalhadas pelo sorriso, mas é difícil não considerá-la uma das melhores produções do gênero na temporada.
Repleto de uma ironia deliciosa que se mistura com naturalidade à sincera homenagem à era de ouro de Hollywood, "Ave, César" conquista os fãs de cinema justamente por oferecer-lhes uma visão tanto romântica quanto satírica de suas entranhas. Enquanto o protagonista caminha pelos desvãos da indústria, o público acompanha, fascinado, os bastidores de um mundo à parte, construído por trás das câmeras e que move milhares de pessoas, muitas vezes anônimas. Ao virar sua câmera para o lado menos glamouroso do showbizz, o filme desmascara, com bom humor e sarcasmo, as aparências de um universo milimetricamente forjado para agradar um público ainda muito conservador, que rejeitava mães solteiras e galãs homossexuais mas consumia vorazmente qualquer fofoca a seu respeito. A força irresistível de tanto poder fica clara nas cenas finais, que parecem dizer que, apesar dos pesares, a arte sempre vale a pena. Uma comédia iluminada e sofisticada, "Ave, César" é um dos trabalhos mais fascinantes dos irmãos Coen. E, de quebra, um dos mais divertidos relatos sobre os bastidores do cinema.
Indicado ao Oscar de Direção de Arte/Cenários
Não é a primeira vez que os irmãos Coen brincam com os bastidores do cinema: em 1992 eles realizaram "Barton Fink: delírios de Hollywood", onde o dramaturgo interpretado por John Turturro (melhor ator no Festival de Cannes) se via diante de um inédito bloqueio criativo justamente quando é contratado para escrever o roteiro de um filme. Em "Ave, César", porém, eles vão ainda mais longe em seu retrato do mundo de ilusões construído pela capital do entretenimento - mais especificamente aquele erguido dentro do sistema dos grandes estúdios na década de 50. Sem deixar de lado seu humor cáustico e a preferência por personagens à margem do sistema (mesmo quando inserido nele), a dupla de cineastas faz uma das mais consistentes homenagens à indústria realizadas nos últimos anos, repleta de citações a astros e gêneros de um dos períodos mais ricos de Hollywood. Injustamente esquecido pelo Oscar e demais cerimônias de premiação da temporada (concorreu a uma única estatueta, por sua impecável direção de arte), "Ave, César" pode até ser considerado por muitos críticos como uma obra menor da dupla de diretores e roteiristas, mas jamais deixa de ser uma excelente opção para quem procura diversão inteligente.
Apesar de George Clooney ser o maior astro do elenco - e parceiro frequente dos cineastas, tendo trabalhado em "E aí, meu irmão, cadê você?" (2001), "O amor custa caro" (2003) e "Queime depois de ler" (2008) - o protagonista da história é interpretado por Josh Brolin, em mais uma atuação inspiradíssima. Ele interpreta Eddie Mannix, que vive de resolver crises nos bastidores de um grande estúdio da Hollywood dos anos 50, a Capitol Pictures. A trama se passa em um único dia, em que Mannix parece sobrecarregado de problemas alheios: o maior nome do estúdio, Baird Whitlock (George Clooney) - que está no final das filmagens de um milionário épico religioso - acaba de ser sequestrado por um grupo chamado "Nós somos o futuro" (na verdade, um grupo de roteiristas comunistas frustrados com o pagamento pífio que recebem por seu trabalho); a atriz DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) está grávida e precisa esconder a situação dos fãs e da imprensa (que também não podem saber de sua vasta coleção de ex-maridos); o jovem astros de westerns Hobie Doyle (Alden Ehrenreich) está com dificuldades em fazer a transição para filmes dramáticos, para desespero do diretor Laurence Laurentz (Ralph Fiennes); e a dupla de irmãs colunistas de fofocas Thora e Thessaly Thacker (Tilda Swinton) ameaça por a boca no trombone e publicar uma história que em nada beneficia Whitlock. Sua única forma de escapar é aceitar a proposta de investir em uma companhia aérea que lhe oferece uma tentadora opção de vida.
Sem uma trama forte o bastante para sustentar seus 106 minutos, "Ave, César" (título do filme religioso estrelado por Baird Whitlock) constrói sua narrativa através da jornada de Mannix em busca da solução para os problemas que lhe são apresentados. Costura-se, assim, de forma orgânica e ágil, uma seleção de sequências fascinantes que vão formando um rico e empolgante panorama do cinema americano dos anos 50, com suas estrelas cintilantes e suas produções gigantescas. Nitidamente apaixonados por sua arte, os irmãos Coen conduzem o espectador por cenas que remetem diretamente aos espetáculos aquáticos de Esther Williams - através da personagem de Scarlett Johansson - e aos musicais de Gene Kelly - Channing Tatum mostra todo o seu dom de dançarino em uma bela sequência que em nada fica a dever aos clássicos do período. Até mesmo o épico produzido pelo estúdio fictício tem ecos de "Ben-hur"- e é hilariante a cena em que Mannix se reune com lideranças de várias religiões tentando encontrar um denominador comum que não ofenda a ninguém. Josh Brolin brilha com uma performance ao mesmo tempo irônica e desesperada, encontrando o tom exato de um personagem típico da dupla de diretores, que cutucam desde o poder dos estúdios sobre seus contratados até a histeria comunista que tomava conta do país no período. Contando ainda com participações especiais de Frances McDormand e Jonah Hill e uma reconstituição de época primorosa, "Ave, César" é uma comédia que substitui as gargalhadas pelo sorriso, mas é difícil não considerá-la uma das melhores produções do gênero na temporada.
Repleto de uma ironia deliciosa que se mistura com naturalidade à sincera homenagem à era de ouro de Hollywood, "Ave, César" conquista os fãs de cinema justamente por oferecer-lhes uma visão tanto romântica quanto satírica de suas entranhas. Enquanto o protagonista caminha pelos desvãos da indústria, o público acompanha, fascinado, os bastidores de um mundo à parte, construído por trás das câmeras e que move milhares de pessoas, muitas vezes anônimas. Ao virar sua câmera para o lado menos glamouroso do showbizz, o filme desmascara, com bom humor e sarcasmo, as aparências de um universo milimetricamente forjado para agradar um público ainda muito conservador, que rejeitava mães solteiras e galãs homossexuais mas consumia vorazmente qualquer fofoca a seu respeito. A força irresistível de tanto poder fica clara nas cenas finais, que parecem dizer que, apesar dos pesares, a arte sempre vale a pena. Uma comédia iluminada e sofisticada, "Ave, César" é um dos trabalhos mais fascinantes dos irmãos Coen. E, de quebra, um dos mais divertidos relatos sobre os bastidores do cinema.
quinta-feira
FEBRE DE JUVENTUDE
FEBRE DE JUVENTUDE (I wanna hold your hand, 1978, Universal Pictures, 104min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Robert Zemeckis, Bob Gale. Fotografia: Donald M. Morgan. Montagem: Frank Moriss. Figurino: Roseanna Norton. Direção de arte/cenários: Peter Jamison/John Dwyer. Produção executiva: Steven Spielberg. Produção: Tamara Asseyev, Alex Rose. Elenco: Nancy Allen, Susan Kendall Newman, Theresa Saldana, Bobby DiCicco, Marc McClure, Wendie Jo Sperber, Eddie Deezen, Will Jordan. Estreia: 21/4/78
Hoje em dia é impossível acreditar que um dia um estúdio de Hollywood pudesse pensar duas vezes diante de um projeto que reuniria os Beatles, Robert Zemeckis e Steven Spielberg. Mas em 1978 as coisas eram bem diferentes: se a banda inglesa ainda era a maior do planeta mesmo tendo se separado há quase uma década e Spielberg já estava a caminho de tornar-se o cineasta mais bem-sucedido da história - já tinha no currículo "Tubarão" (75) e "Contatos imediatos de terceiro grau" (77) - o mesmo não poderia ser dito a respeito de Zemeckis, ainda inexperiente em comandar um longa-metragem para cinema. Escolhido pelo próprio Spielberg para dirigir a comédia "Febre de juventude", apesar da relutância da Universal, o cineasta que mais tarde encheria os cofres do estúdio com a trilogia "De volta para o futuro", o misto de animação e comédia "Uma cilada para Roger Rabbit" (88) e o multi-oscarizado "Forrest Gump: o contador de histórias" (95) só foi efetivamente contratado depois da promessa formal de que seu padrinho artístico assumiria as rédeas caso as filmagens estivessem sendo um desastre. Precaução desnecessária: não apenas "Febre de juventude" apontou no jovem cineasta um senso invejável de ritmo como tornou-se, com o passar do tempo, em um filme cult, um clássico das sessões da tarde, capaz de estampar um sorriso no rosto do espectador sem fazer muita força para isso.
É difícil não simpatizar de cara com "Febre de juventude", tanto por sua trama ingênua e repleta de nostalgia quanto por seu elenco, formado por jovens atores desconhecidos que encarnam seus personagens com uma garra contagiante. A história se passa em fevereiro de 1964, mais precisamente nos dias em que os Beatles chegaram pela primeira vez aos EUA, para uma apresentação no programa de Ed Sullivan, em horário nobre na televisão. Sua presença em solo americano acende ainda mais a beatlemania já instaurada entre os adolescentes e jovens e o roteiro esperto de Zemeckis e Bob Gale - posteriormente indicado ao Oscar por "De volta para o futuro" - se concentra em um grupo específico de amigas, moradoras de Nova Jersey, que, por motivos diversos, resolvem fazer a travessia à Nova York para testemunhar esse momento histórico na cultura pop. Pam (Nancy Allen) reluta em acompanhar as amigas porque está às vésperas de casar-se, mas decide que nada melhor do que uma pequena aventura para marcar sua despedida de solteira. Grace (Theresa Saldana) quer dar um passo à frente em sua vocação como fotógrafa e conseguir uma imagem exclusiva do grupo para vender a alguma revista. Rosie (Wendie Jo Sperber) é apaixonada por Paul McCartney e sonha em conhecer seu ídolo. E Janis (Susan Kendall Newman, filha do ator Paul Newman) é uma jovem politicamente ativa que acredita que o rock está eclipsando a verdadeira música de protesto de gente como Joan Baez e Bob Dylan. Juntam-se a elas o tímido Larry (Marc McClure) - cujo pai tem um carro que pode ajudá-las na viagem - e o encrenqueiro Tony Smerko (Bobby Di Cicco), que une-se à Janis em sua cruzada contra a banda inglesa.
Sem confundir-se com os inúmeros focos narrativos que acompanham suas personagens, o roteiro de "Febre de juventude" é o divertido retrato de uma época que ainda mantinha resquícios de ingenuidade, apesar do trauma da morte de JFK, ocorrida poucos meses antes dos acontecimentos mostrados no filme. Embalado na trilha sonora recheada com os maiores sucessos dos Beatles, a produção de Zemeckis convida o espectador a uma divertida e nostálgica viagem no tempo, revelando em sequências hilariantes a verdadeira obsessão das fãs pela banda. Não faltam gritos histéricos, desmaios e uma sucessão de pequenas anedotas para emoldurar as desventuras das protagonistas, que aproveitam os dois dias para realizarem uma espécie de jornada rumo à vida adulta: nenhuma delas passa incólume pela experiência, seja em termos pessoais ou emocionais. Pam passa a questionar sua decisão de casar; Grace substitui a ambição profissional à toda prova pela lealdade; Janis aceita abdicar do radicalismo e respeitar as diferenças; e Rosie descobre o amor inesperadamente. Mesmo que muitas vezes não fuja dos estereótipos - talvez pela opção em concentrar-se na ação mais do que no aprofundamento das personagens - "Febre de juventude" apresenta seus personagens com respeito e carinho, transformando em comédia seus percalços sem apelar para o caminho fácil da ridicularização. A sensibilidade imposta por Zemeckis equilibra com perfeição o humor quase infantil de alguns momentos, oferecendo ao resultado final uma interessante camada extra de inteligência que o diferencia de outras produções do gênero.
Realizado com um orçamento mínimo e sem maiores pretensões, "Febre de juventude" não foi um sucesso de bilheteria, mas deixou claro para a Universal o talento de Robert Zemeckis como contador de histórias e de Steven Spielberg como produtor executivo - uma função que o diretor de "Caçadores da Arca Perdida" (81) iria desempenhar religiosamente a partir de então. Leve, engraçado e valorizado pela trilha sonora arrebatadora a cargo do quarteto de Liverpool, é um passatempo divertido e nostálgico, sem contraindicações e dotado de um humor ingênuo e cativante. Pode não despertar gargalhadas histéricas o tempo todo, mas é uma comédia muito acima da média que, assim como "Loucuras de verão" (73), de George Lucas, remete a um passado então recente com extremo carinho e saudade. Um belo programa.
Hoje em dia é impossível acreditar que um dia um estúdio de Hollywood pudesse pensar duas vezes diante de um projeto que reuniria os Beatles, Robert Zemeckis e Steven Spielberg. Mas em 1978 as coisas eram bem diferentes: se a banda inglesa ainda era a maior do planeta mesmo tendo se separado há quase uma década e Spielberg já estava a caminho de tornar-se o cineasta mais bem-sucedido da história - já tinha no currículo "Tubarão" (75) e "Contatos imediatos de terceiro grau" (77) - o mesmo não poderia ser dito a respeito de Zemeckis, ainda inexperiente em comandar um longa-metragem para cinema. Escolhido pelo próprio Spielberg para dirigir a comédia "Febre de juventude", apesar da relutância da Universal, o cineasta que mais tarde encheria os cofres do estúdio com a trilogia "De volta para o futuro", o misto de animação e comédia "Uma cilada para Roger Rabbit" (88) e o multi-oscarizado "Forrest Gump: o contador de histórias" (95) só foi efetivamente contratado depois da promessa formal de que seu padrinho artístico assumiria as rédeas caso as filmagens estivessem sendo um desastre. Precaução desnecessária: não apenas "Febre de juventude" apontou no jovem cineasta um senso invejável de ritmo como tornou-se, com o passar do tempo, em um filme cult, um clássico das sessões da tarde, capaz de estampar um sorriso no rosto do espectador sem fazer muita força para isso.
É difícil não simpatizar de cara com "Febre de juventude", tanto por sua trama ingênua e repleta de nostalgia quanto por seu elenco, formado por jovens atores desconhecidos que encarnam seus personagens com uma garra contagiante. A história se passa em fevereiro de 1964, mais precisamente nos dias em que os Beatles chegaram pela primeira vez aos EUA, para uma apresentação no programa de Ed Sullivan, em horário nobre na televisão. Sua presença em solo americano acende ainda mais a beatlemania já instaurada entre os adolescentes e jovens e o roteiro esperto de Zemeckis e Bob Gale - posteriormente indicado ao Oscar por "De volta para o futuro" - se concentra em um grupo específico de amigas, moradoras de Nova Jersey, que, por motivos diversos, resolvem fazer a travessia à Nova York para testemunhar esse momento histórico na cultura pop. Pam (Nancy Allen) reluta em acompanhar as amigas porque está às vésperas de casar-se, mas decide que nada melhor do que uma pequena aventura para marcar sua despedida de solteira. Grace (Theresa Saldana) quer dar um passo à frente em sua vocação como fotógrafa e conseguir uma imagem exclusiva do grupo para vender a alguma revista. Rosie (Wendie Jo Sperber) é apaixonada por Paul McCartney e sonha em conhecer seu ídolo. E Janis (Susan Kendall Newman, filha do ator Paul Newman) é uma jovem politicamente ativa que acredita que o rock está eclipsando a verdadeira música de protesto de gente como Joan Baez e Bob Dylan. Juntam-se a elas o tímido Larry (Marc McClure) - cujo pai tem um carro que pode ajudá-las na viagem - e o encrenqueiro Tony Smerko (Bobby Di Cicco), que une-se à Janis em sua cruzada contra a banda inglesa.
Sem confundir-se com os inúmeros focos narrativos que acompanham suas personagens, o roteiro de "Febre de juventude" é o divertido retrato de uma época que ainda mantinha resquícios de ingenuidade, apesar do trauma da morte de JFK, ocorrida poucos meses antes dos acontecimentos mostrados no filme. Embalado na trilha sonora recheada com os maiores sucessos dos Beatles, a produção de Zemeckis convida o espectador a uma divertida e nostálgica viagem no tempo, revelando em sequências hilariantes a verdadeira obsessão das fãs pela banda. Não faltam gritos histéricos, desmaios e uma sucessão de pequenas anedotas para emoldurar as desventuras das protagonistas, que aproveitam os dois dias para realizarem uma espécie de jornada rumo à vida adulta: nenhuma delas passa incólume pela experiência, seja em termos pessoais ou emocionais. Pam passa a questionar sua decisão de casar; Grace substitui a ambição profissional à toda prova pela lealdade; Janis aceita abdicar do radicalismo e respeitar as diferenças; e Rosie descobre o amor inesperadamente. Mesmo que muitas vezes não fuja dos estereótipos - talvez pela opção em concentrar-se na ação mais do que no aprofundamento das personagens - "Febre de juventude" apresenta seus personagens com respeito e carinho, transformando em comédia seus percalços sem apelar para o caminho fácil da ridicularização. A sensibilidade imposta por Zemeckis equilibra com perfeição o humor quase infantil de alguns momentos, oferecendo ao resultado final uma interessante camada extra de inteligência que o diferencia de outras produções do gênero.
Realizado com um orçamento mínimo e sem maiores pretensões, "Febre de juventude" não foi um sucesso de bilheteria, mas deixou claro para a Universal o talento de Robert Zemeckis como contador de histórias e de Steven Spielberg como produtor executivo - uma função que o diretor de "Caçadores da Arca Perdida" (81) iria desempenhar religiosamente a partir de então. Leve, engraçado e valorizado pela trilha sonora arrebatadora a cargo do quarteto de Liverpool, é um passatempo divertido e nostálgico, sem contraindicações e dotado de um humor ingênuo e cativante. Pode não despertar gargalhadas histéricas o tempo todo, mas é uma comédia muito acima da média que, assim como "Loucuras de verão" (73), de George Lucas, remete a um passado então recente com extremo carinho e saudade. Um belo programa.
quarta-feira
CIDADÃO X
CIDADÃO X (Citizen X, 1995, HBO Pictures, 105min) Direção: Chris Gerolmo. Roteiro: Chris Gerolmo, livro de Robert Cullen. Fotografia: Robert Fraisse. Montagem: William Goldenberg. Música: Randy Edelman. Figurino: Maria Hruby. Direção de arte/cenários: Jószef Romvári/Lóránt Jávor. Produção executiva: Laura Bickford, Matthew Chapman, David R. Ginsburg. Produção: Timothy Marx. Elenco: Stephen Rea, Donald Sutherland, Max Von Sydow, Jeffrey DeMunn, Imelda Staunton, Joss Ackland. Estreia: 25/02/95
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator Coadjuvante em Filmes, Séries ou Minisséries (Donald Sutherland)
O mais famoso e cruel assassino serial da história da Rússia, Andrei Chikatilo, acumulou mais de 50 mortes no período compreendido entre 1978 e 1992. Suas vítimas eram predominantemente menores de idade, meninos e meninas que violentava, assassinava e mutilava enquanto era incansavelmente caçado pela polícia, incapaz de acreditar que seu país pudesse ser o cenário de tamanhas atrocidades. Finalmente preso e condenado, Chikatilo virou manchete pelo mundo todo, e não demorou para que sua história se mostrasse material ideal para uma adaptação para o cinema. Para surpresa de muitos, porém, quem passou à frente dos grandes estúdios de Hollywood foi a televisão: produzido pela HBO - anos antes de tornar-se uma marca famosa pela qualidade de seus produtos - o telefilme "Cidadão X" estreou nos EUA exatamente um ano depois do desfecho da aterrorizante trajetória do monstro russo, e, com um elenco de grandes atores e a ousadia de não aliviar a violência da trama, acabou por mostrar-se uma bela opção de entretenimento para os fãs do gênero.
Fazendo algumas modificações na história original - principalmente em relação à dinâmica entre o principal investigador do caso e seus superiores - o roteiro de "Cidadão X" começa com a descoberta do corpo de uma adolescente em uma floresta. Insatisfeito com a forma com que sua equipe lidou com o caso, o dedicado Viktor Bukarov (Stephen Rea) pede que façam uma busca mais rigorosa no local do crime, à procura de mais indícios. Para sua surpresa, outros sete corpos são localizados enterrados nas proximidades, o que logo lhe deixa claro de que são todas vítimas de um mesmo assassino. Disposto a investigar a fundo o caso, ele conta com o apoio do Coronel Mikhail Fetisov (Donald Sutherland), que, sabendo como lidar com os meandros da política comunista e suas idiossincrasias, lhe oferece toda a ajuda possível, inclusive um encontro com um experiente psiquiatra, Alexandr Bukhanovsky (Max Von Sydow), que traça o perfil psicológico do criminoso a ser caçado, a quem passam a chamar de Cidadão X. Anos e anos se passarão, no entanto, antes que Viktor finalmente consiga por as mãos no monstruoso homicida, que se esconde sob a personalidade de um respeitável homem comum, funcionário de uma fábrica e discreto pai de família.
Ao optar por revelar a identidade do assassino logo no começo do filme - em impressionante atuação de Jeffrey DeMunn - e focar na quase obsessiva investigação de Viktor e seus problemas com as autoridades policiais russas, "Cidadão X" corria o risco de ver seu suspense diluído e, portanto, o interesse diminuído por parte da plateia. Porém, com um roteiro inteligente e uma edição sóbria - que sublinha os momentos de tensão sem que pareçam óbvios ou excessivamente sanguinolentos - a trama é conduzida sem sobressaltos, se equilibrando entre o enredo policial e uma (nem tão) sutil crítica à burocracia da Rússia comunista pré-Perestroika. Stephen Rea mais uma vez brinda o espectador com uma interpretação minimalista, sem maiores arroubos de genialidade, mas consistente o bastante para servir como os olhos da plateia diante da série de horrores que testemunha. Donald Sutherland ganhou um Golden Globe por seu desempenho como o chefe de Rea, mas é Max Von Sydow que praticamente rouba a cena, mesmo aparecendo em poucas mas cruciais sequências: seu embate com o cruel Chikatilo, já no terço final do filme, é de arrepiar, assim como todas as cenas em que o vilão se prepara para dar o bote em suas presas. Mesmo sem inovar na estética ou na narrativa, Chris Gerolmo consegue manter a tensão até o minuto final, que mostra o destino do serial killer com extrema elegância e sutileza.
Apesar da linguagem televisiva - e de conseguir driblar suas limitações com criatividade e bom senso - "Cidadão X" é, antes de tudo, uma excelente história, contada de forma correta e sóbria, com um elenco acima de qualquer crítica. Pode incomodar àqueles que procuram uma obra-prima do gênero, mas aqueles que o encararem como o que ele realmente é - um telefilme acima da média, realizado com extremo cuidado e talento - podem se surpreender e ver que a HBO já estava, na metade dos anos 90, a caminho de sua excelência técnica e criativa. Uma bela opção para quem gosta do gênero.
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator Coadjuvante em Filmes, Séries ou Minisséries (Donald Sutherland)
O mais famoso e cruel assassino serial da história da Rússia, Andrei Chikatilo, acumulou mais de 50 mortes no período compreendido entre 1978 e 1992. Suas vítimas eram predominantemente menores de idade, meninos e meninas que violentava, assassinava e mutilava enquanto era incansavelmente caçado pela polícia, incapaz de acreditar que seu país pudesse ser o cenário de tamanhas atrocidades. Finalmente preso e condenado, Chikatilo virou manchete pelo mundo todo, e não demorou para que sua história se mostrasse material ideal para uma adaptação para o cinema. Para surpresa de muitos, porém, quem passou à frente dos grandes estúdios de Hollywood foi a televisão: produzido pela HBO - anos antes de tornar-se uma marca famosa pela qualidade de seus produtos - o telefilme "Cidadão X" estreou nos EUA exatamente um ano depois do desfecho da aterrorizante trajetória do monstro russo, e, com um elenco de grandes atores e a ousadia de não aliviar a violência da trama, acabou por mostrar-se uma bela opção de entretenimento para os fãs do gênero.
Fazendo algumas modificações na história original - principalmente em relação à dinâmica entre o principal investigador do caso e seus superiores - o roteiro de "Cidadão X" começa com a descoberta do corpo de uma adolescente em uma floresta. Insatisfeito com a forma com que sua equipe lidou com o caso, o dedicado Viktor Bukarov (Stephen Rea) pede que façam uma busca mais rigorosa no local do crime, à procura de mais indícios. Para sua surpresa, outros sete corpos são localizados enterrados nas proximidades, o que logo lhe deixa claro de que são todas vítimas de um mesmo assassino. Disposto a investigar a fundo o caso, ele conta com o apoio do Coronel Mikhail Fetisov (Donald Sutherland), que, sabendo como lidar com os meandros da política comunista e suas idiossincrasias, lhe oferece toda a ajuda possível, inclusive um encontro com um experiente psiquiatra, Alexandr Bukhanovsky (Max Von Sydow), que traça o perfil psicológico do criminoso a ser caçado, a quem passam a chamar de Cidadão X. Anos e anos se passarão, no entanto, antes que Viktor finalmente consiga por as mãos no monstruoso homicida, que se esconde sob a personalidade de um respeitável homem comum, funcionário de uma fábrica e discreto pai de família.
Ao optar por revelar a identidade do assassino logo no começo do filme - em impressionante atuação de Jeffrey DeMunn - e focar na quase obsessiva investigação de Viktor e seus problemas com as autoridades policiais russas, "Cidadão X" corria o risco de ver seu suspense diluído e, portanto, o interesse diminuído por parte da plateia. Porém, com um roteiro inteligente e uma edição sóbria - que sublinha os momentos de tensão sem que pareçam óbvios ou excessivamente sanguinolentos - a trama é conduzida sem sobressaltos, se equilibrando entre o enredo policial e uma (nem tão) sutil crítica à burocracia da Rússia comunista pré-Perestroika. Stephen Rea mais uma vez brinda o espectador com uma interpretação minimalista, sem maiores arroubos de genialidade, mas consistente o bastante para servir como os olhos da plateia diante da série de horrores que testemunha. Donald Sutherland ganhou um Golden Globe por seu desempenho como o chefe de Rea, mas é Max Von Sydow que praticamente rouba a cena, mesmo aparecendo em poucas mas cruciais sequências: seu embate com o cruel Chikatilo, já no terço final do filme, é de arrepiar, assim como todas as cenas em que o vilão se prepara para dar o bote em suas presas. Mesmo sem inovar na estética ou na narrativa, Chris Gerolmo consegue manter a tensão até o minuto final, que mostra o destino do serial killer com extrema elegância e sutileza.
Apesar da linguagem televisiva - e de conseguir driblar suas limitações com criatividade e bom senso - "Cidadão X" é, antes de tudo, uma excelente história, contada de forma correta e sóbria, com um elenco acima de qualquer crítica. Pode incomodar àqueles que procuram uma obra-prima do gênero, mas aqueles que o encararem como o que ele realmente é - um telefilme acima da média, realizado com extremo cuidado e talento - podem se surpreender e ver que a HBO já estava, na metade dos anos 90, a caminho de sua excelência técnica e criativa. Uma bela opção para quem gosta do gênero.
segunda-feira
ALEXANDRIA
ALEXANDRIA (Agora, 2009, Mod Producciones/Himenóptero, 127min) Direção: Alejandro Amenábar. Roteiro: Alejandro Amenábar, Mateo Gil. Fotografia: Xavi Giménez. Montagem: Nacho Ruiz Capillas. Música: Dario Marianelli. Figurino: Gabriella Pescucci. Direção de arte/cenários: Guy Hendrix Dyas/Larry Dias. Produção executiva: Simón de Santiago, Jaime Ortiz de Artiñano. Produção: Álvaro Augustin, Fernando Bovaira. Elenco: Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac, Ashraf Barhom, Michael Lonsdale, Rupert Evans. Estreia: 17/5/09 (Festival de Cannes)
Houve uma demora de cinco anos entre o lançamento de "Mar adentro" - Oscar de melhor filme estrangeiro em 2005 - e "Alexandria", realização seguinte do cineasta chileno Alejandro Amenábar. Nada de novo: entre "Os outros" (2001), seu primeiro grande sucesso internacional, e "Mar adentro", que lhe deu reconhecimento e prestígio entre a crítica, o intervalo já havia sido de consideráveis três anos - uma eternidade dentro da veloz indústria hollywoodiana, mas um período de tempo relativamente aceitável quando se trata de diretores detalhistas e dedicados a projetos menos óbvios. É o caso de "Alexandria", que custou bastante caro (cerca de 70 milhões de dólares) para uma produção sem grandes efeitos visuais ou garantia de retorno (leia-se chamarizes de bilheterias, como grandes astros ou personagens facilmente identificáveis, como super-heróis ou personalidades conhecidas da plateia) e acabou pagando um preço alto por sua ousadia. Praticamente ignorado pela crítica e um fiasco comercial, a história da filósofa e astrônoma grega Hipátia não encontrou seu público e terminou sua carreira nos cinemas com uma renda pouco superior a 700 mil dólares de arrecadação. Tal desastre não apenas arranhou seriamente a reputação de Amenábar - que só retornou aos longas com o péssimo "Regressão" (2015) - mas privou a plateia de conhecer um filme que, se não é tão bom quanto os trabalhos anteriores do cineasta, ao menos tem uma inteligência muito acima da média - e uma relevância histórica extremamente importância em uma época de tanta intolerância religiosa como a atual.
Como o próprio título nacional sugere, o filme se passa em Alexandria, cidade egípcia famosa por seu farol e por sua biblioteca, considerada a maior do mundo. É lá, no ano de 391 que a trama, criada por Amenábar e Mateo Gil, tem início: Hipátia (Rachel Weisz, esforçada) é uma brilhante filósofa que leciona na célebre biblioteca local, ensinando a seus discípulos as ainda rudimentares noções de astronomia, além de matemática e filosofia. Bonita e inteligente, ela se dedica incansavelmente ao estudos dos movimentos dos corpos celestes, enquanto rejeita delicadamente as investidas de Orestes (Oscar Isaac em começo de carreira), um de seus alunos, e de Davus (Max Minghella), seu escravo pessoal. Em um período conturbado pelos conflitos entre cristãos, judeus e pagãos, ela precisa também manter-se no fio da navalha: racional, ela não sente-se à vontade em nenhuma religião, mas sabe que isso é potencialmente perigoso para sua integridade física. Quando os cristãos tomam o poder, graças à liderança de Cirilo (Sammy Samir) e Ammonius (Ashraf Barhom), ela não consegue impedir a destruição da biblioteca nem tampouco a violência que explode nas ruas da cidade. Vinte anos mais tarde, as coisas ainda estão delicadas: seu ex-aluno, Orestes, é o prefeito, mas não concorda com as atitudes radicais dos cristãos - que querem impor suas leis e perseguir quem lhes é contrário - e, com a ajuda de um antigo colega, Synesius (Rupert Evans), tornado bispo, tenta convencê-la a converter-se ao cristianismo como forma de manter suas aulas. Hipátia se recusa e entra em rota de colisão com o poder.
Ainda que encontre em Hipátia uma protagonista interessante e que serve como fio condutor de uma trama que tenta retratar a histórica rivalidade entre judeus e cristãos, o roteiro de "Alexandria" esbarra em uma comprometedora ausência de foco narrativo que enfraquece suas redentoras qualidades. Ao abraçar simultaneamente a trajetória da filósofa e os acontecimentos trágicos e violentos à sua volta, relacionados com a intolerância, Amenábar acaba por optar pela superficialidade em ambos os terrenos. A rica história de Hipátia muitas vezes fica em segundo plano - e frequentemente suas cenas são resumidas a longas explanações sobre seus estudos de Astronomia e suas questões relativas ao Universo: essa falta de aprofundamento em sua personalidade acaba por mostrar-se crucial, impedindo uma aproximação maior do público até mesmo quando o filme força um triângulo amoroso um tanto improvável entre ela, Davus e Orestes. Tal artifício, ao invés de envolver a plateia, acaba por diluir o impacto de algumas de suas melhores sequências - aquelas que mostram, de maneira sutil e elegante (mas sempre contundentes) os perigos que cercam o fanatismo e a falta de empatia entre as religiões. Essa indecisão narrativa, somada a um ritmo claudicante, enfraquece o conjunto, restando ao espectador apenas a opção de avaliar o filme por suas partes.
Se o roteiro falha em aprofundar seus temas e se distancia tanto do épico religioso quanto do romance, cabe ao elenco escolhido por Amenábar dar conta dessas inconsistências. E nesse quesito o cineasta não pode reclamar. Bom diretor de atores, o chileno tem em Rachel Weisz seu principal apoio: em um papel escrito especificamente para ela, a atriz premiada com o Oscar por "O jardineiro fiel" (2005) pode não estar em seu melhor desempenho, mas tem força dramática o suficiente para segurar uma personagem de cuja vida pessoal pouco se sabe e transformá-la em alguém de carne e osso, verossímil mesmo quando a trama escorrega para a tragédia. Oscar Isaac, ainda antes de conhecer o gostinho da fama, faz o que pode com seu Orestes, que começa como um potencial vilão e se transforma em um dos grandes apoiadores da protagonista - a cena em que desafia Cirilo e se recusa a ajoelhar-se diante da Bíblia é intensa e emocionante. Mas o maior destaque do elenco é o jovem Max Minghella, filho do diretor Anthony Minghella, vencedor do Oscar por "O paciente inglês" (96): com o ingrato papel do escravo cristão Davus, que assume importância crucial conforme a história vai avançando, Max demonstra maturidade e sensibilidade, assumindo todas as nuances de seu personagem com coragem e determinação de veterano - até mesmo sua transformação física é crível e realista. O cuidado de Amenábar em extrair o melhor de seus atores é seu maior trunfo: "Alexandria" fica marcado na mente do público justamente por causa deles, que dão vida a um argumento muitas vezes frágil e ambicioso demais. Ainda assim, é um filme injustiçado, que merece uma segunda chance.
Houve uma demora de cinco anos entre o lançamento de "Mar adentro" - Oscar de melhor filme estrangeiro em 2005 - e "Alexandria", realização seguinte do cineasta chileno Alejandro Amenábar. Nada de novo: entre "Os outros" (2001), seu primeiro grande sucesso internacional, e "Mar adentro", que lhe deu reconhecimento e prestígio entre a crítica, o intervalo já havia sido de consideráveis três anos - uma eternidade dentro da veloz indústria hollywoodiana, mas um período de tempo relativamente aceitável quando se trata de diretores detalhistas e dedicados a projetos menos óbvios. É o caso de "Alexandria", que custou bastante caro (cerca de 70 milhões de dólares) para uma produção sem grandes efeitos visuais ou garantia de retorno (leia-se chamarizes de bilheterias, como grandes astros ou personagens facilmente identificáveis, como super-heróis ou personalidades conhecidas da plateia) e acabou pagando um preço alto por sua ousadia. Praticamente ignorado pela crítica e um fiasco comercial, a história da filósofa e astrônoma grega Hipátia não encontrou seu público e terminou sua carreira nos cinemas com uma renda pouco superior a 700 mil dólares de arrecadação. Tal desastre não apenas arranhou seriamente a reputação de Amenábar - que só retornou aos longas com o péssimo "Regressão" (2015) - mas privou a plateia de conhecer um filme que, se não é tão bom quanto os trabalhos anteriores do cineasta, ao menos tem uma inteligência muito acima da média - e uma relevância histórica extremamente importância em uma época de tanta intolerância religiosa como a atual.
Como o próprio título nacional sugere, o filme se passa em Alexandria, cidade egípcia famosa por seu farol e por sua biblioteca, considerada a maior do mundo. É lá, no ano de 391 que a trama, criada por Amenábar e Mateo Gil, tem início: Hipátia (Rachel Weisz, esforçada) é uma brilhante filósofa que leciona na célebre biblioteca local, ensinando a seus discípulos as ainda rudimentares noções de astronomia, além de matemática e filosofia. Bonita e inteligente, ela se dedica incansavelmente ao estudos dos movimentos dos corpos celestes, enquanto rejeita delicadamente as investidas de Orestes (Oscar Isaac em começo de carreira), um de seus alunos, e de Davus (Max Minghella), seu escravo pessoal. Em um período conturbado pelos conflitos entre cristãos, judeus e pagãos, ela precisa também manter-se no fio da navalha: racional, ela não sente-se à vontade em nenhuma religião, mas sabe que isso é potencialmente perigoso para sua integridade física. Quando os cristãos tomam o poder, graças à liderança de Cirilo (Sammy Samir) e Ammonius (Ashraf Barhom), ela não consegue impedir a destruição da biblioteca nem tampouco a violência que explode nas ruas da cidade. Vinte anos mais tarde, as coisas ainda estão delicadas: seu ex-aluno, Orestes, é o prefeito, mas não concorda com as atitudes radicais dos cristãos - que querem impor suas leis e perseguir quem lhes é contrário - e, com a ajuda de um antigo colega, Synesius (Rupert Evans), tornado bispo, tenta convencê-la a converter-se ao cristianismo como forma de manter suas aulas. Hipátia se recusa e entra em rota de colisão com o poder.
Ainda que encontre em Hipátia uma protagonista interessante e que serve como fio condutor de uma trama que tenta retratar a histórica rivalidade entre judeus e cristãos, o roteiro de "Alexandria" esbarra em uma comprometedora ausência de foco narrativo que enfraquece suas redentoras qualidades. Ao abraçar simultaneamente a trajetória da filósofa e os acontecimentos trágicos e violentos à sua volta, relacionados com a intolerância, Amenábar acaba por optar pela superficialidade em ambos os terrenos. A rica história de Hipátia muitas vezes fica em segundo plano - e frequentemente suas cenas são resumidas a longas explanações sobre seus estudos de Astronomia e suas questões relativas ao Universo: essa falta de aprofundamento em sua personalidade acaba por mostrar-se crucial, impedindo uma aproximação maior do público até mesmo quando o filme força um triângulo amoroso um tanto improvável entre ela, Davus e Orestes. Tal artifício, ao invés de envolver a plateia, acaba por diluir o impacto de algumas de suas melhores sequências - aquelas que mostram, de maneira sutil e elegante (mas sempre contundentes) os perigos que cercam o fanatismo e a falta de empatia entre as religiões. Essa indecisão narrativa, somada a um ritmo claudicante, enfraquece o conjunto, restando ao espectador apenas a opção de avaliar o filme por suas partes.
Se o roteiro falha em aprofundar seus temas e se distancia tanto do épico religioso quanto do romance, cabe ao elenco escolhido por Amenábar dar conta dessas inconsistências. E nesse quesito o cineasta não pode reclamar. Bom diretor de atores, o chileno tem em Rachel Weisz seu principal apoio: em um papel escrito especificamente para ela, a atriz premiada com o Oscar por "O jardineiro fiel" (2005) pode não estar em seu melhor desempenho, mas tem força dramática o suficiente para segurar uma personagem de cuja vida pessoal pouco se sabe e transformá-la em alguém de carne e osso, verossímil mesmo quando a trama escorrega para a tragédia. Oscar Isaac, ainda antes de conhecer o gostinho da fama, faz o que pode com seu Orestes, que começa como um potencial vilão e se transforma em um dos grandes apoiadores da protagonista - a cena em que desafia Cirilo e se recusa a ajoelhar-se diante da Bíblia é intensa e emocionante. Mas o maior destaque do elenco é o jovem Max Minghella, filho do diretor Anthony Minghella, vencedor do Oscar por "O paciente inglês" (96): com o ingrato papel do escravo cristão Davus, que assume importância crucial conforme a história vai avançando, Max demonstra maturidade e sensibilidade, assumindo todas as nuances de seu personagem com coragem e determinação de veterano - até mesmo sua transformação física é crível e realista. O cuidado de Amenábar em extrair o melhor de seus atores é seu maior trunfo: "Alexandria" fica marcado na mente do público justamente por causa deles, que dão vida a um argumento muitas vezes frágil e ambicioso demais. Ainda assim, é um filme injustiçado, que merece uma segunda chance.
domingo
OS OITO ODIADOS
OS OITO ODIADOS (The hateful eight, 2015, Double Feature Films, 187min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Fred Raskin. Música: Ennio Morricone. Figurino: Courtney Hoffman. Direção de arte/cenários: Yohei Taneda/Rosemary Brandenburg. Produção executiva: Georgia Kacandes, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Richard N. Gladstein, Shannon McIntosh, Stacey Sher. Elenco: Kurt Russell, Samuel L. Jackson, Jennifer Jason Leigh, Walter Goggins, Bruce Dern, Michael Madsen, Tim Roth, Demián Bichir, James Parks, Channing Tatum. Estreia: 07/12/15
3 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Jennifer Jason Leigh), Fotografia, Trilha Sonora Original
Vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora Original
Vencedor do Golden Globe de Melhor Trilha Sonora Original
Já nem é mais novidade: a cada filme novo de Quentin Tarantino que chega às
telas o mundo se divide entre aqueles que o incensam como um dos mais
originais e inventivos cineastas norte-americanos já existentes e
aqueles que questionam seu talento e criatividade, lançando mãos de
críticas que - vá lá - até fazem certo sentido sob determinados pontos
de vista. Porém, a verdade é que, independente do fato de gravitar
sempre em um universo todo particular (aparentemente localizado em algum
lugar entre os anos 70 e 80 e povoado de filmes de baixo orçamento e
roteiros pra lá de bizarros), Tarantino é um dos poucos diretores em
atividade no cinema americano ainda capazes de suscitar tanta discussão e
despertar tanto interesse da mídia, do público e da crítica. E não
poderia ser diferente em relação a "Os oito odiados", seu oitavo longa,
que correu o sério risco de jamais ver a luz dos projetores quando teve
seu roteiro vazado antes mesmo da fase de pré-produção. Furioso com o
imprevisto - e coberto de razão - Tarantino quase desistiu do projeto
mas, convencido pelo amigo Samuel L. Jackson (apaixonado pela história e
pelos personagens), voltou atrás na decisão. Sorte dos fãs inveterados
(que encontrarão no filme, em versão exagerada, tudo que o diretor
sempre ofereceu em seus trabalhos anteriores) e azar dos detratores
(que, se arriscarem uma sessão, podem correr o risco de uma overdose de
longos diálogos, sangue aos borbotões e maneirismos técnicos que a
tantos agrada e a tantos outros repele).
Revisitando um gênero caro à sua memória afetiva, o western (que já havia homenageado com propriedade no ótimo "Django livre"), Tarantino acrescenta a "Os oito odiados" um clima de mistério à Agatha Christie e um tom teatral que enfatiza como nunca sua facilidade absurda de criar diálogos inspiradíssimos e personagens antológicos em situações extremas. Situando sua trama em um período imediatamente posterior à Guerra de Secessão, o diretor joga o público direto no gélido frio do Wyoming, onde a diligência do caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell em um grande momento da carreira) encontra um concorrente, o famoso Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson mostrando porque é um dos maiores atores americanos de sua geração, especialmente quando dirigido por Tarantino). Warren pede que Ruth lhe dê uma carona (e aos cadáveres que ele pretende trocar por uma gorda quantia de dólares) até a cidade de Red Rock e não demora para juntar-se a ele e à sua prisioneira, Daisy Domergue (a sensacional Jennifer Jason Leigh) na difícil viagem rumo a seu destino. Domergue é uma assassina procurada que Ruth tem a intenção de entregar ao carrasco de Red Rock e todos eles se surpreendem quando, ainda no caminho em direção à cidade, eles dão de cara com Chris Mannix (Walton Goggins), que alega ser o novo xerife do local e que também pede ajuda para chegar até lá.
No meio do caminho, devido a uma nevasca, a diligência se vê obrigada a fazer uma parada inesperada na estalagem de Minnie Mink (Dana Gourrier), uma conhecida de Warren que, em viagem para visitar a mãe, deixou o local aos cuidados do mexicano Bob (Demian Bichir). Juntando-se aos demais hóspedes também presos na hospedaria - o carrasco Oswaldo Mobray (Tim Roth), o lacônico Joe Gage (Michael Madsen) e o veterano General Sandy Smithers (Bruce Dern) - os novos visitantes não demoram a perceber um clima de tensão e desconfiança no ar. O que ninguém sabe, porém, é que os comparsas de Daisy não tem a menor intenção de permitir que ela seja entregue e enforcada, e que tem um plano elaborado para resgatá-la antes de sua chegada a Red Rock. Caberá então ao perspicaz Major Warren descobrir quem do grupo reunido na hospedaria está ao lado da temida e debochada assassina.
"Os oito odiados" é Tarantino do primeiro frame - os créditos com o mesmo design dos letreiros já trai suas origens - ao último minuto - que chega somente depois de quase três horas de duração. Muitos reclamam da demora em começar a ação propriamente dita (tiros, sangue, violência), mas é difícil sentir-se incomodado ao ver em cena atores tão fantásticos - Samuel L. Jackson, Michael Madsen, Tim Roth, Bruce Dern e Jennifer Jason Leigh (os três primeiros repetindo a parceria com o diretor e Jennifer merecidamente indicada ao Oscar de coadjuvante) - desfilando seu talento pela tela. Com o auxílio luxuoso da bela fotografia de Robert Richardson (também indicada ao Oscar) e da sensacional trilha sonora do veterano Ennio Morricone (vencedor de sua primeira estatueta por seu trabalho), o filme realmente aparenta ter um problema de ritmo - só depois de uma hora e meia é que as coisas realmente começam a acontecer - mas basta olhar com atenção para perceber que nada é por acaso, nenhum diálogo é supérfluo e a longa duração serve para mergulhar o espectador na tensão indispensável ao clímax sanguinolento, de dar inveja à carnificina de "Cães de aluguel", filme de estreia de Tarantino e que o colocou, de primeira, no coração dos cinéfilos e da crítica.
Com uma violência estilizada que enfatiza seu humor nigérrimo - Jennifer Jason Leigh passa o filme inteiro sendo espancada, para horror das feministas - e o tom politicamente incorreto que sempre caracterizou a obra do diretor, "Os oito odiados" é a cara de seu criador. Seus diálogos são longos e expressivos. Sua violência é um misto de crueza e humor negro. Seu linguajar é cortante e realista, Não é uma obra-prima como "Pulp fiction, tempo de violência" ou "Bastardos inglórios", mas é mais uma declaração incontestável de um estilo cinematográfico que já está indelevelmente marcado na cultura popular norte-americana e mundial há pelo menos duas décadas, quer se goste ou não. Falem bem ou falem mal, é impossível ficar indiferente a um filme de Quentin Tarantino. E de quantos artistas se pode dizer o mesmo hoje em dia?
3 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Jennifer Jason Leigh), Fotografia, Trilha Sonora Original
Vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora Original
Vencedor do Golden Globe de Melhor Trilha Sonora Original
Revisitando um gênero caro à sua memória afetiva, o western (que já havia homenageado com propriedade no ótimo "Django livre"), Tarantino acrescenta a "Os oito odiados" um clima de mistério à Agatha Christie e um tom teatral que enfatiza como nunca sua facilidade absurda de criar diálogos inspiradíssimos e personagens antológicos em situações extremas. Situando sua trama em um período imediatamente posterior à Guerra de Secessão, o diretor joga o público direto no gélido frio do Wyoming, onde a diligência do caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell em um grande momento da carreira) encontra um concorrente, o famoso Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson mostrando porque é um dos maiores atores americanos de sua geração, especialmente quando dirigido por Tarantino). Warren pede que Ruth lhe dê uma carona (e aos cadáveres que ele pretende trocar por uma gorda quantia de dólares) até a cidade de Red Rock e não demora para juntar-se a ele e à sua prisioneira, Daisy Domergue (a sensacional Jennifer Jason Leigh) na difícil viagem rumo a seu destino. Domergue é uma assassina procurada que Ruth tem a intenção de entregar ao carrasco de Red Rock e todos eles se surpreendem quando, ainda no caminho em direção à cidade, eles dão de cara com Chris Mannix (Walton Goggins), que alega ser o novo xerife do local e que também pede ajuda para chegar até lá.
No meio do caminho, devido a uma nevasca, a diligência se vê obrigada a fazer uma parada inesperada na estalagem de Minnie Mink (Dana Gourrier), uma conhecida de Warren que, em viagem para visitar a mãe, deixou o local aos cuidados do mexicano Bob (Demian Bichir). Juntando-se aos demais hóspedes também presos na hospedaria - o carrasco Oswaldo Mobray (Tim Roth), o lacônico Joe Gage (Michael Madsen) e o veterano General Sandy Smithers (Bruce Dern) - os novos visitantes não demoram a perceber um clima de tensão e desconfiança no ar. O que ninguém sabe, porém, é que os comparsas de Daisy não tem a menor intenção de permitir que ela seja entregue e enforcada, e que tem um plano elaborado para resgatá-la antes de sua chegada a Red Rock. Caberá então ao perspicaz Major Warren descobrir quem do grupo reunido na hospedaria está ao lado da temida e debochada assassina.
"Os oito odiados" é Tarantino do primeiro frame - os créditos com o mesmo design dos letreiros já trai suas origens - ao último minuto - que chega somente depois de quase três horas de duração. Muitos reclamam da demora em começar a ação propriamente dita (tiros, sangue, violência), mas é difícil sentir-se incomodado ao ver em cena atores tão fantásticos - Samuel L. Jackson, Michael Madsen, Tim Roth, Bruce Dern e Jennifer Jason Leigh (os três primeiros repetindo a parceria com o diretor e Jennifer merecidamente indicada ao Oscar de coadjuvante) - desfilando seu talento pela tela. Com o auxílio luxuoso da bela fotografia de Robert Richardson (também indicada ao Oscar) e da sensacional trilha sonora do veterano Ennio Morricone (vencedor de sua primeira estatueta por seu trabalho), o filme realmente aparenta ter um problema de ritmo - só depois de uma hora e meia é que as coisas realmente começam a acontecer - mas basta olhar com atenção para perceber que nada é por acaso, nenhum diálogo é supérfluo e a longa duração serve para mergulhar o espectador na tensão indispensável ao clímax sanguinolento, de dar inveja à carnificina de "Cães de aluguel", filme de estreia de Tarantino e que o colocou, de primeira, no coração dos cinéfilos e da crítica.
Com uma violência estilizada que enfatiza seu humor nigérrimo - Jennifer Jason Leigh passa o filme inteiro sendo espancada, para horror das feministas - e o tom politicamente incorreto que sempre caracterizou a obra do diretor, "Os oito odiados" é a cara de seu criador. Seus diálogos são longos e expressivos. Sua violência é um misto de crueza e humor negro. Seu linguajar é cortante e realista, Não é uma obra-prima como "Pulp fiction, tempo de violência" ou "Bastardos inglórios", mas é mais uma declaração incontestável de um estilo cinematográfico que já está indelevelmente marcado na cultura popular norte-americana e mundial há pelo menos duas décadas, quer se goste ou não. Falem bem ou falem mal, é impossível ficar indiferente a um filme de Quentin Tarantino. E de quantos artistas se pode dizer o mesmo hoje em dia?
sábado
MUNDO CÃO
MUNDO CÃO (Mundo cão, 2016, Zencrane Filmes/Globo Filmes, 101min) Direção: Marcos Jorge. Roteiro: Marcos Jorge, Lusa Silvestre. Fotografia: Toca Seabra. Montagem: André Finotti. Figurino: Cássio Brasil. Direção de arte/cenários: Valdy Lopes. Produção executiva: Cláudia da Natividade, Rune Tavares, Rodrigo Sarti Werthein. Produção: Iafa Britz. Elenco: Lázaro Ramos, Babu Santana, Adriana Esteves, Milhem Cortaz, Thainá Duarte, Vini Carvalho, Paulinho Serra. Estreia: 17/3/16
Dividido entre o sucesso comercial de comédias populares - normalmente de qualidade abaixo da média - e filmes com temática policial, o cinema nacional volta e meia tenta dar alguns passos em direção a outros gêneros e enfoques, nem sempre com muito êxito. Um dos exemplos positivos dessa constante busca por novos ares é "Mundo cão", um suspense urbano que tira proveito dos altos índices de intolerância e violência das cidades grandes para mergulhar o público em um pesadelo realista e perturbador. Seguindo a mesma linha do sensacional "O lobo atrás da porta", de Fernando Coimbra, o cineasta Marcos Jorge - que tem no currículo o elogiado "Estômago" (2007) - constrói sua trama dentro de uma realidade plausível e facilmente reconhecível pela plateia, transformando a segurança do lar e da família em um ambiente de medo e angústia. Pode não atingir o mesmo nível de desconforto, mas surpreende pela brutalidade psicológica e pela coragem de eleger como protagonista um cidadão comum e desprovido de qualquer tipo de heroísmo. É a vida real transposta para a tela, ainda que envernizada pela força da ficção e da linguagem cinematográfica.
O cenário é a São Paulo de 2007, antes da extinção da lei que permitia o sacrifício de animais abandonados. O protagonista é Santana (Babu Santana), que trabalha no Departamento de Combate às Zoonoses, recolhendo cães perigosos pelas ruas da cidade ao lado do colega, Ramiro (Paulinho Serra). Bom marido, pai dedicado e homem religioso, Santana nem imagina que toda a sua estrutura doméstica pode vir abaixo quando é chamado à uma escola por conta de um animal raivoso que está assustando as crianças. Trabalhando conforme a lei, os dois colegas levam o cachorro para o Centro, onde esperam o prazo de três dias antes que profissionais especializados o sacrifiquem. Quando o dono do animal aparece é que a coisa complica: Nenê (Lázaro Ramos) é um ex-presidiário, agressivo e explosivo, cuja renda vem parcialmente de rinhas entre cães - e, inconsolável com a perda de um de seus maiores campeões, resolve vingar sua morte. Quem acaba sendo escolhido como alvo para tal retaliação é justamente Santana, que parte em defesa própria no meio de uma discussão e deflagra uma guerra interna com resultados imprevisíveis.
A batalha que se segue - com a vingança de Nenê e a posterior revanche de Santana - é digna dos mais empolgantes filmes de suspense americanos. O roteiro não para de levar o espectador a caminhos os mais diversos, nunca deixando antever os próximos passos de seus personagens. Como um reflexo da irracionalidade animal, suas atitudes partem sempre em direção a consequências mais e mais violentas e incontroláveis, que atingem a todos que os cercam. É assim que Santana, pacífico pai de família, abandona a civilidade quando o que considerava sua maior fortaleza - seu lar em um subúrbio tranquilo - é maculado pela intensidade do ódio. Ao perceber que nem sua mulher, Dilza (Adriana Esteves, ótima), nem seus dois filhos - a adolescente Isaura (Thainá Duarte) e o menino João (Vini Carvalho) - estão a salvo da impetuosidade cruel de Nenê, ele deixa de lado todo e qualquer resquício de humanidade para tornar-se alguém capaz de defender o que lhe resta de dignidade e paz. Esse paradoxo é o grande trunfo do filme de Marcos Jorge: a violência como forma de recuperar a paz.
Com uma direção seca e pontual, que destaca as atuações viscerais de Babu Santana e Lázaro Ramos - o primeiro a quilômetros de distância do Tim Maia que lhe revelou ao grande público e o segundo com um registro de vilão construído em detalhes - "Mundo cão" é um artigo raro dentro da produção de cinema brasileiro. Apostando em um gênero ainda pouco explorado mas repleto de possibilidades, Marcos Jorge oferece ao público uma história forte, sustentada por atores competentes e uma tensão constante, que vai sendo ampliada conforme se percebe todos os seus desdobramentos. Ainda que em algum momento perto do desfecho o ritmo caia um pouco - até como forma de preparar o clímax, irônico e cruel - a edição se equilibra entre a agilidade necessária a um filme com ambições comerciais e a suavidade de uma obra que procura dialogar com discussões mais sérias do que simplesmente jogar nas telas uma sucessão de tragédias. Se sai bem na maior parte do tempo, envolvendo a plateia em sua rede desde as primeiras cenas, e só não é ainda melhor por estender-se demais no terceiro ato. Um pecado menor em um filme que está bem acima da média da produção comercial brasileira.
Dividido entre o sucesso comercial de comédias populares - normalmente de qualidade abaixo da média - e filmes com temática policial, o cinema nacional volta e meia tenta dar alguns passos em direção a outros gêneros e enfoques, nem sempre com muito êxito. Um dos exemplos positivos dessa constante busca por novos ares é "Mundo cão", um suspense urbano que tira proveito dos altos índices de intolerância e violência das cidades grandes para mergulhar o público em um pesadelo realista e perturbador. Seguindo a mesma linha do sensacional "O lobo atrás da porta", de Fernando Coimbra, o cineasta Marcos Jorge - que tem no currículo o elogiado "Estômago" (2007) - constrói sua trama dentro de uma realidade plausível e facilmente reconhecível pela plateia, transformando a segurança do lar e da família em um ambiente de medo e angústia. Pode não atingir o mesmo nível de desconforto, mas surpreende pela brutalidade psicológica e pela coragem de eleger como protagonista um cidadão comum e desprovido de qualquer tipo de heroísmo. É a vida real transposta para a tela, ainda que envernizada pela força da ficção e da linguagem cinematográfica.
O cenário é a São Paulo de 2007, antes da extinção da lei que permitia o sacrifício de animais abandonados. O protagonista é Santana (Babu Santana), que trabalha no Departamento de Combate às Zoonoses, recolhendo cães perigosos pelas ruas da cidade ao lado do colega, Ramiro (Paulinho Serra). Bom marido, pai dedicado e homem religioso, Santana nem imagina que toda a sua estrutura doméstica pode vir abaixo quando é chamado à uma escola por conta de um animal raivoso que está assustando as crianças. Trabalhando conforme a lei, os dois colegas levam o cachorro para o Centro, onde esperam o prazo de três dias antes que profissionais especializados o sacrifiquem. Quando o dono do animal aparece é que a coisa complica: Nenê (Lázaro Ramos) é um ex-presidiário, agressivo e explosivo, cuja renda vem parcialmente de rinhas entre cães - e, inconsolável com a perda de um de seus maiores campeões, resolve vingar sua morte. Quem acaba sendo escolhido como alvo para tal retaliação é justamente Santana, que parte em defesa própria no meio de uma discussão e deflagra uma guerra interna com resultados imprevisíveis.
A batalha que se segue - com a vingança de Nenê e a posterior revanche de Santana - é digna dos mais empolgantes filmes de suspense americanos. O roteiro não para de levar o espectador a caminhos os mais diversos, nunca deixando antever os próximos passos de seus personagens. Como um reflexo da irracionalidade animal, suas atitudes partem sempre em direção a consequências mais e mais violentas e incontroláveis, que atingem a todos que os cercam. É assim que Santana, pacífico pai de família, abandona a civilidade quando o que considerava sua maior fortaleza - seu lar em um subúrbio tranquilo - é maculado pela intensidade do ódio. Ao perceber que nem sua mulher, Dilza (Adriana Esteves, ótima), nem seus dois filhos - a adolescente Isaura (Thainá Duarte) e o menino João (Vini Carvalho) - estão a salvo da impetuosidade cruel de Nenê, ele deixa de lado todo e qualquer resquício de humanidade para tornar-se alguém capaz de defender o que lhe resta de dignidade e paz. Esse paradoxo é o grande trunfo do filme de Marcos Jorge: a violência como forma de recuperar a paz.
Com uma direção seca e pontual, que destaca as atuações viscerais de Babu Santana e Lázaro Ramos - o primeiro a quilômetros de distância do Tim Maia que lhe revelou ao grande público e o segundo com um registro de vilão construído em detalhes - "Mundo cão" é um artigo raro dentro da produção de cinema brasileiro. Apostando em um gênero ainda pouco explorado mas repleto de possibilidades, Marcos Jorge oferece ao público uma história forte, sustentada por atores competentes e uma tensão constante, que vai sendo ampliada conforme se percebe todos os seus desdobramentos. Ainda que em algum momento perto do desfecho o ritmo caia um pouco - até como forma de preparar o clímax, irônico e cruel - a edição se equilibra entre a agilidade necessária a um filme com ambições comerciais e a suavidade de uma obra que procura dialogar com discussões mais sérias do que simplesmente jogar nas telas uma sucessão de tragédias. Se sai bem na maior parte do tempo, envolvendo a plateia em sua rede desde as primeiras cenas, e só não é ainda melhor por estender-se demais no terceiro ato. Um pecado menor em um filme que está bem acima da média da produção comercial brasileira.
sexta-feira
A VISITA
A VISITA (The visit, 2015, Blinding Edge Pictures/Blumhouse Produtions, 94min) Direção e roteiro: M. Night Shyamalan. Fotografia: Maryse Alberti. Montagem: Luke Ciarrocchi. Figurino: Amy Westcott. Direção de arte/cenários: Naaman Marshall/Dennis Madigan, Christine Wick. Produção executiva: Ashwin Rajan, Steven Schneider. Produção: Marc Bienstock, Jason Blum, M. Night Shyamalan. Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbuld, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn. Estreia: 30/8/15 (Dublin)
Nada como um reboot na própria carreira para recuperar o prestígio perdido. Que o diga M. Night Shyamalan, que depois de tornar-se diretor de um dos maiores sucessos da história do cinema, "O sexto sentido" (99) - e de ter sido indicado ao Oscar por ele - entrou em uma curva descendente das mais violentas de que se tem notícia em Hollywood, culminando em produções massacradas impiedosamente por crítica e público, como "O último mestre do ar" (2010) e "Depois da Terra" (2013). Sabendo que a única forma de retomar as rédeas da carreira seria voltando a assumir o controle artístico total de sua obra, Shyamalan respirou fundo, bancou sozinho o orçamento de meros cinco milhões de dólares e, com liberdade irrestrita, voltou às boas graças com a imprensa e a plateia. "A visita" pode não chegar aos pés de seu filme mais famoso - tanto em qualidade quanto em bilheteria - mas prova, sem sombra de dúvida, que seu talento em provocar tensão e arrepios ainda se mantém intacto, assim como sua incrível capacidade de arrancar performances memoráveis de seus atores juvenis.
Se em "O sexto sentido" o diretor revelou Haley Joel Osment, que chegou a ser indicado ao Oscar de coadjuvante para depois desaparecer do radar de Hollywood como mais uma criança-prodígio que não soube superar a adolescência, em "A visita" ele multiplica a equação por dois, ainda que sem a mesma potência. A ótima Olivia DeJonge e o carismático Ed Oxenbuld vivem os irmãos Becca e Tyler, os protagonistas de uma trama bizarra e assustadora justamente por estar seriamente calcada na verossimilhança, assim como os demais filmes de Shyamalan, capaz de transformar um filme de super-herói em um drama psicológico dos mais atraentes, como fez em "Corpo fechado" (2000). Becca e Tyler são dois pré-adolescentes criados pela mãe (Kathryn Hahn), depois que seu pai os abandonou por outra mulher. Ainda não totalmente recuperados da perda, eles recebem o convite dos avós maternos para que passem uma semana em sua fazenda enquanto sua mãe viaja com o novo namorado. O convite não seria nada demais se não fosse por um detalhe importantíssimo: eles não conhecem os avós, que cortaram relações com a filha por não concordarem com seu namoro, anos antes. A tentativa de reaproximação é vista com bons olhos por Becca - que resolve filmar tudo para transformar em um documentário - e o encontro finalmente acontece. Mas então coisas estranhas começam a acontecer.
A princípio carinhosos e atenciosos, os avós (Deanna Dunagan e Peter MacRobbie) passam a demonstrar um comportamento no mínimo assustador depois que a noite cai e os netos são obrigados a permanecerem em seu quarto: ela anda nua pela casa, arranha paredes e solta ruídos apavorantes. Ele mantém algo escondido em um quarto de ferramentas. E aos poucos outras atitudes disparam o sinal de alerta em Tyler, muito mais disposto a acreditar que há algo sinistro acontecendo. Ele resolve, então, deixar uma câmera escondida na sala de estar - e a partir daí, outras revelações irão transformar uma inocente semana em família em um pesadelo de que só a mente criativa de M. Night Shyamalan é capaz, com direito a sustos, momentos de pura tensão e respiros de um humor quase inocente, que impede a trama de descambar para o terror explícito. Conduzido com mão firme pelo diretor, que abdica de trilha sonora original e aposta no já quase clichê found footage (câmera na mão, como um documentário), "A visita" acaba por conquistar o público exatamente por não ter ambições de revolucionar o gênero, e sim de enfatizar suas maiores qualidades e inclusive abraçar seus lugares-comuns. Seu ritmo é cadenciado, sem pressa de revelar antecipadamente todos os seus trunfos, e seu elenco de atores desconhecidos do grande público só deixa tudo ainda mais desconfortável.
Mesmo longe da genialidade de seus melhores trabalhos, "A visita" é um poderoso lembrete de M. Night Shyamalan à indústria que o elevou às alturas e depois praticamente o abandonou à própria sorte - em parte também por uma dose de presunção que o levou a cometer erros frequentes de avaliação sobre sua arte. Com orçamento enxuto, elenco sem astros e uma história envolvente, o cineasta mais celebrado do início dos anos 2000 recuperou parte do sucesso perdido. Que seja apenas o começo de uma nova e empolgante fase, em que o talento se sobreponha à ambição.
Nada como um reboot na própria carreira para recuperar o prestígio perdido. Que o diga M. Night Shyamalan, que depois de tornar-se diretor de um dos maiores sucessos da história do cinema, "O sexto sentido" (99) - e de ter sido indicado ao Oscar por ele - entrou em uma curva descendente das mais violentas de que se tem notícia em Hollywood, culminando em produções massacradas impiedosamente por crítica e público, como "O último mestre do ar" (2010) e "Depois da Terra" (2013). Sabendo que a única forma de retomar as rédeas da carreira seria voltando a assumir o controle artístico total de sua obra, Shyamalan respirou fundo, bancou sozinho o orçamento de meros cinco milhões de dólares e, com liberdade irrestrita, voltou às boas graças com a imprensa e a plateia. "A visita" pode não chegar aos pés de seu filme mais famoso - tanto em qualidade quanto em bilheteria - mas prova, sem sombra de dúvida, que seu talento em provocar tensão e arrepios ainda se mantém intacto, assim como sua incrível capacidade de arrancar performances memoráveis de seus atores juvenis.
Se em "O sexto sentido" o diretor revelou Haley Joel Osment, que chegou a ser indicado ao Oscar de coadjuvante para depois desaparecer do radar de Hollywood como mais uma criança-prodígio que não soube superar a adolescência, em "A visita" ele multiplica a equação por dois, ainda que sem a mesma potência. A ótima Olivia DeJonge e o carismático Ed Oxenbuld vivem os irmãos Becca e Tyler, os protagonistas de uma trama bizarra e assustadora justamente por estar seriamente calcada na verossimilhança, assim como os demais filmes de Shyamalan, capaz de transformar um filme de super-herói em um drama psicológico dos mais atraentes, como fez em "Corpo fechado" (2000). Becca e Tyler são dois pré-adolescentes criados pela mãe (Kathryn Hahn), depois que seu pai os abandonou por outra mulher. Ainda não totalmente recuperados da perda, eles recebem o convite dos avós maternos para que passem uma semana em sua fazenda enquanto sua mãe viaja com o novo namorado. O convite não seria nada demais se não fosse por um detalhe importantíssimo: eles não conhecem os avós, que cortaram relações com a filha por não concordarem com seu namoro, anos antes. A tentativa de reaproximação é vista com bons olhos por Becca - que resolve filmar tudo para transformar em um documentário - e o encontro finalmente acontece. Mas então coisas estranhas começam a acontecer.
A princípio carinhosos e atenciosos, os avós (Deanna Dunagan e Peter MacRobbie) passam a demonstrar um comportamento no mínimo assustador depois que a noite cai e os netos são obrigados a permanecerem em seu quarto: ela anda nua pela casa, arranha paredes e solta ruídos apavorantes. Ele mantém algo escondido em um quarto de ferramentas. E aos poucos outras atitudes disparam o sinal de alerta em Tyler, muito mais disposto a acreditar que há algo sinistro acontecendo. Ele resolve, então, deixar uma câmera escondida na sala de estar - e a partir daí, outras revelações irão transformar uma inocente semana em família em um pesadelo de que só a mente criativa de M. Night Shyamalan é capaz, com direito a sustos, momentos de pura tensão e respiros de um humor quase inocente, que impede a trama de descambar para o terror explícito. Conduzido com mão firme pelo diretor, que abdica de trilha sonora original e aposta no já quase clichê found footage (câmera na mão, como um documentário), "A visita" acaba por conquistar o público exatamente por não ter ambições de revolucionar o gênero, e sim de enfatizar suas maiores qualidades e inclusive abraçar seus lugares-comuns. Seu ritmo é cadenciado, sem pressa de revelar antecipadamente todos os seus trunfos, e seu elenco de atores desconhecidos do grande público só deixa tudo ainda mais desconfortável.
Mesmo longe da genialidade de seus melhores trabalhos, "A visita" é um poderoso lembrete de M. Night Shyamalan à indústria que o elevou às alturas e depois praticamente o abandonou à própria sorte - em parte também por uma dose de presunção que o levou a cometer erros frequentes de avaliação sobre sua arte. Com orçamento enxuto, elenco sem astros e uma história envolvente, o cineasta mais celebrado do início dos anos 2000 recuperou parte do sucesso perdido. Que seja apenas o começo de uma nova e empolgante fase, em que o talento se sobreponha à ambição.
quinta-feira
O ÚLTIMO JANTAR
O ÚLTIMO JANTAR (The last supper, 1995, Columbia Pictures, 92min) Direção: Stacy Title. Roteiro: Dan Rosen. Fotografia: Paul Cameron. Montagem: Luis Colina. Música: Mark Mothersbaugh. Figurino: Leesa Evans. Direção de arte/cenários: Linda Burton/Dea Jensen. Produção executiva: David Cooper. Produção: Matt Cooper, Larry Weinberg. Elenco: Cameron Diaz, Ron Eldard, Annabeth Gish, Jonathan Penner, Courtney B. Vance, Bill Paxton, Ron Perlman, Nora Dunn, Charles Durning, Jason Alexander. Estreia: 08/9/95 (Festival de Toronto)
Poucos gêneros são tão subestimados no cinema quanto a comédia de humor negro: frequentemente incompreendidas pela plateia (mesmo quando incensadas pela crítica), elas acabam sendo relegadas a segundo plano, como um meio-termo entre o pastelão que lota os cinemas e as comédias mais sofisticadas que costumam ganhar um ou outro prêmio da Academia. É justamente nesse nicho de mercado que se situa "O último jantar", pequena pérola lançada no Festival de Toronto de 1995, passou praticamente em branco pelas telas e ainda não teve a sorte de ser descoberta pelo grande público. Em tempos sombrios como o que vivemos, não deixa de ser confortante perceber que ainda existe gente capaz de pensar com clareza e sobriedade sobre os perigos do radicalismo social e político. Tratando o assunto com leveza e imparcialidade, o roteiro de Dan Rosen leva o espectador a questionar as próprias certezas - e de quebra, dá seu tiro de misericórdia com um toque de ironia espetacular, que abala qualquer alicerce politicamente correto.
Dirigido por Stacy Title - que depois deu seguimento à carreira com filmes de terror - "O último jantar" é uma comédia de sutilezas, que aposta basicamente em uma única situação para levar seu humor até as últimas consequências. Quem comanda a trama é um grupo de estudantes universitários de tendências políticas liberais e que dividem uma casa em uma pequena cidade do estado de Iowa que está com os nervos à flor da pele graças ao desaparecimento de uma criança. Inteligentes, articulados e bem informados, os cinco amigos tem o costume de receber para jantar, todos os domingos, pessoas com quem possam discutir assuntos polêmicos e relevantes - e assim manter o pensamento crítico e a mente aberta. Em uma noite particularmente chuvosa, porém, a rotina é quebrada involuntariamente quando o convidado é o desconhecido Zach (Bill Paxton), que deu carona a um deles, Pete (Ron Eldard), em seu caminhão. Durante a refeição, Zach não apenas se mostra totalmente contrário a tudo que eles pensam como também se torna agressivo e violento, o que resulta em um trágico assassinato. A princípio apavorados com a situação, aos poucos os amigos resolvem enterrar o corpo no quintal e esquecer o assunto. Tudo estaria relativamente em paz se o acontecimento não lhes desse uma bizarra ideia: e se, ao invés de apenas conversar com aqueles que tem pensamentos contrários aos seus eles os envenenassem?
A partir daí, o filme de Title vira uma sinistra brincadeira, onde os protagonistas escolhem suas prováveis vítimas entre as criaturas mais conservadoras e desprezíveis da região para tentar, sempre em vão, demovê-las de suas ideias pequenas e salvá-las de uma morte que elas nem sabem que está à espreita. Um padre (Charles Durning) que culpa os homossexuais pela AIDS, um machista radical (Mark Harmon) que prega a supremacia masculina e um feroz ativista contra o meio-ambiente (Jason Alexander) são alguns dos desavisados que caem nas mãos dos cada vez mais justiceiros companheiros de cruzada, que, subitamente, passam a entrar em conflito interno. Considerando que estão indo longe demais, Jude (Cameron Diaz, antes de ser catapultada para a fama) tenta fazer os amigos pararem com as execuções, mas encontra resistência principalmente em Luke (Courtney B, Vance), que considera seus atos como pura justiça. A situação só piora de vez quando, devido ao atraso de seu voo, uma celebridade controversa e extremamente perigosa (Ron Perlman) senta-se à mesa do grupo - e subverte completamente o roteiro da noite.
Ao elaborar um filme que, além de divertir, desperta questionamentos de extrema importância - afinal, o que diferencia os fascistas dos ditos "liberais"? - "O último jantar" dá um passo à frente em comparação com as comédias normalmente acéfalas que normalmente chegam ao mercado. Mesmo que não se aprofunde nos debates que provoque (o que não é sua intenção, diga-se de passagem), o roteiro faz o próprio espectador por em xeque suas convicções e certezas absolutas. Com um humor certeiro e nunca apelativo, o filme encontra na direção eficiente e simples de Stacy Title a comandante ideal - a cineasta jamais tenta sobrepujar sua história com malabarismos desnecessários de câmera ou artifícios de edição. Sua condução da trama é simples e clássica, contrastando inteligentemente com os tons surreais do roteiro. Com um elenco coeso - o resto do grupo de protagonistas é formado pelo casal Paulie (Annabeth Gish) e Marc (Jonathan Penner) - e um tema contundente, "O último jantar" deveria ser obrigatório.
Poucos gêneros são tão subestimados no cinema quanto a comédia de humor negro: frequentemente incompreendidas pela plateia (mesmo quando incensadas pela crítica), elas acabam sendo relegadas a segundo plano, como um meio-termo entre o pastelão que lota os cinemas e as comédias mais sofisticadas que costumam ganhar um ou outro prêmio da Academia. É justamente nesse nicho de mercado que se situa "O último jantar", pequena pérola lançada no Festival de Toronto de 1995, passou praticamente em branco pelas telas e ainda não teve a sorte de ser descoberta pelo grande público. Em tempos sombrios como o que vivemos, não deixa de ser confortante perceber que ainda existe gente capaz de pensar com clareza e sobriedade sobre os perigos do radicalismo social e político. Tratando o assunto com leveza e imparcialidade, o roteiro de Dan Rosen leva o espectador a questionar as próprias certezas - e de quebra, dá seu tiro de misericórdia com um toque de ironia espetacular, que abala qualquer alicerce politicamente correto.
Dirigido por Stacy Title - que depois deu seguimento à carreira com filmes de terror - "O último jantar" é uma comédia de sutilezas, que aposta basicamente em uma única situação para levar seu humor até as últimas consequências. Quem comanda a trama é um grupo de estudantes universitários de tendências políticas liberais e que dividem uma casa em uma pequena cidade do estado de Iowa que está com os nervos à flor da pele graças ao desaparecimento de uma criança. Inteligentes, articulados e bem informados, os cinco amigos tem o costume de receber para jantar, todos os domingos, pessoas com quem possam discutir assuntos polêmicos e relevantes - e assim manter o pensamento crítico e a mente aberta. Em uma noite particularmente chuvosa, porém, a rotina é quebrada involuntariamente quando o convidado é o desconhecido Zach (Bill Paxton), que deu carona a um deles, Pete (Ron Eldard), em seu caminhão. Durante a refeição, Zach não apenas se mostra totalmente contrário a tudo que eles pensam como também se torna agressivo e violento, o que resulta em um trágico assassinato. A princípio apavorados com a situação, aos poucos os amigos resolvem enterrar o corpo no quintal e esquecer o assunto. Tudo estaria relativamente em paz se o acontecimento não lhes desse uma bizarra ideia: e se, ao invés de apenas conversar com aqueles que tem pensamentos contrários aos seus eles os envenenassem?
A partir daí, o filme de Title vira uma sinistra brincadeira, onde os protagonistas escolhem suas prováveis vítimas entre as criaturas mais conservadoras e desprezíveis da região para tentar, sempre em vão, demovê-las de suas ideias pequenas e salvá-las de uma morte que elas nem sabem que está à espreita. Um padre (Charles Durning) que culpa os homossexuais pela AIDS, um machista radical (Mark Harmon) que prega a supremacia masculina e um feroz ativista contra o meio-ambiente (Jason Alexander) são alguns dos desavisados que caem nas mãos dos cada vez mais justiceiros companheiros de cruzada, que, subitamente, passam a entrar em conflito interno. Considerando que estão indo longe demais, Jude (Cameron Diaz, antes de ser catapultada para a fama) tenta fazer os amigos pararem com as execuções, mas encontra resistência principalmente em Luke (Courtney B, Vance), que considera seus atos como pura justiça. A situação só piora de vez quando, devido ao atraso de seu voo, uma celebridade controversa e extremamente perigosa (Ron Perlman) senta-se à mesa do grupo - e subverte completamente o roteiro da noite.
Ao elaborar um filme que, além de divertir, desperta questionamentos de extrema importância - afinal, o que diferencia os fascistas dos ditos "liberais"? - "O último jantar" dá um passo à frente em comparação com as comédias normalmente acéfalas que normalmente chegam ao mercado. Mesmo que não se aprofunde nos debates que provoque (o que não é sua intenção, diga-se de passagem), o roteiro faz o próprio espectador por em xeque suas convicções e certezas absolutas. Com um humor certeiro e nunca apelativo, o filme encontra na direção eficiente e simples de Stacy Title a comandante ideal - a cineasta jamais tenta sobrepujar sua história com malabarismos desnecessários de câmera ou artifícios de edição. Sua condução da trama é simples e clássica, contrastando inteligentemente com os tons surreais do roteiro. Com um elenco coeso - o resto do grupo de protagonistas é formado pelo casal Paulie (Annabeth Gish) e Marc (Jonathan Penner) - e um tema contundente, "O último jantar" deveria ser obrigatório.
quarta-feira
TRIÂNGULO AMOROSO
TRIÂNGULO AMOROSO (3,2010, X-Filme Creative Pool, 119min) Direção e roteiro: Tom Tykwer. Fotografia: Frank Griebe. Montagem: Mathilde Bonnefoy. Música: Reinhold Heil, Johnny Klimek, Gabriel Isaac Mounsey, Tom Tykwer. Figurino: Polly Matthies. Direção de arte/cenários: Uli Hanish/Kai Koch. Produção executiva: Uwe Schott. Produção: Stefan Arndt, Barbara Buhl, Gebhard Henke, Jorn Klamroth. Elenco: Sophie Rois, Sebastian Schipper, David Striesow, Angela Winkler, Annedore Kleist. Estreia: 10/9/10 (Bienal de Veneza)
Bem antes de unir-se aos irmãos Wachowski no ambicioso "A viagem" (2012) e na cultuada telessérie "Sense8", o alemão Tom Tykwer já dava o que falar para os fãs de cinema europeu. Em 1999, lançou o ultrapop "Corra Lola, corra", que fez seu nome percorrer festivais e consagrar-se principalmente junto à plateia mais jovem. Depois de assinar também a adaptação do best-seller "Perfume: a história de um assassino" (2006) e o thriller político "Trama internacional" (2009), estrelado por Clive Owen e Naomi Watts - nenhum deles recebidos com o esperado estardalhaço - o cineasta resolveu polemizar um pouco e voltou à sua terra natal para realizar "Triângulo amoroso", uma história de amor nada convencional que lhe permitiu utilizar seu modo particular de fazer cinema sem a interferência de estúdios americanos. Um tanto ousado mas jamais vulgar ou imoral, seu filme retrata com inteligência e sofisticação a eterna busca pela realização amorosa e sexual sem nenhum ranço reducionista ou falsamente libertário: algo de que somente o cinema europeu é capaz.
A apresentadora de TV Hanna (Sophie Rois) e o engenheiro Simon (Sebastian Schipper) vivem juntos há cerca de vinte anos e levam uma vida confortável e pacífica. Justamente quando ele está com a mãe doente e descobre ter câncer em um dos testículos, ela conhece e sente-se irremediavelmente atraída por Adam (David Stresow), um médico mais jovem que não demora em dar sinais de que também está interessado nela. Os dois tornam-se amantes e algum tempo depois, Simon conhece o rapaz no vestiário do clube que ambos frequentam. Para sua surpresa - até então um heterossexual convicto - surge uma forte desejo entre eles, e um flerte inconsequente evolui para um caso mais sério. Sem que saibam disso, portanto, o casal mantém o mesmo amante, sem que isso atrapalhe seu relacionamento, maduro e estável. Quando eles finalmente decidem se casar, porém, uma gravidez inesperada os obriga a encarar uma realidade que eles preferiam manter escondida.
Com um elenco de atores que destoam radicalmente dos conceitos de beleza do cinema comercial e uma estrutura narrativa ágil e criativa - telas paralelas constantemente empurrando a trama, sem espaço para momentos de maior reflexão - "Triângulo amoroso" é um delicioso antídoto ao asséptico cinemão americano. Mesmo que suas cenas de sexo não mostrem mais do que o convencional, sua temática é tratada com maturidade e naturalidade, jamais buscando julgar seus personagens ou apontar certo ou errado. De forma sutil e inteligente, o roteiro, escrito pelo próprio diretor, vai apresentando seus personagens como gente de carne e osso, capazes de fraquezas quase imperdoáveis mas simpáticos o bastante para que sejam compreendidos pela plateia. Com uma espécie de lema "chumbo trocado não dói", Tykwer expõe com ironia as dificuldades dos cidadãos do novo milênio em impor seus desejos, diante da cerca do conservadorismo da sociedade. Até mesmo Hanna e Simon são vítimas de tais regras de comportamento, já que, mesmo aparentemente modernos e abertos a novas experiências, são incapazes de explicitá-las. Como um pivô involuntário, cabe a Adam tentar romper, mesmo que devagar, as barreiras que ele mesmo já derrubou em sua vida - ele tem um filho e tem uma relação bastante amistosa com a mãe da criança. É ele, com seu jeito mais leve de lidar com a vastidão de possibilidades da sexualidade, que irá ser o catalisador das mudanças na vida do casal - pelo menos aquelas que eles estiverem dispostos a aceitar. O final dessa confusão toda é surpreendente.
Com um visual elegante e características próprias de contar sua história, "Triângulo amoroso" insere-se em uma quase tradição do cinema europeu de retratar relacionamentos alternativos e/ou à frente do seu tempo. Assim como François Truffaut fez em "Jules e Jim: uma mulher para dois" (62), Tom Tykwer sacode a mesmice dos contos de fada oferecidos pelo cinema ao mostrar, sem meias palavras, uma forma nova de interrelação, de acordo mais com as necessidades pessoais do que com as normas impostas pela sociedade. Seu pulo do gato foi justamente incluir na equação a bissexualidade, um tema ainda pouco discutido a sério nas telonas. Seu filme pode não ser a última palavra no assunto, mas é uma necessária lufada de ar fresco na discussão. E além de tudo, é uma obra que acredita na força da imagem e da edição - elementos cruciais para o bom cinema, utilizados com maestria e inteligência. Um filme subestimado, que tem tudo para tornar-se cult com o passar do tempo.
Bem antes de unir-se aos irmãos Wachowski no ambicioso "A viagem" (2012) e na cultuada telessérie "Sense8", o alemão Tom Tykwer já dava o que falar para os fãs de cinema europeu. Em 1999, lançou o ultrapop "Corra Lola, corra", que fez seu nome percorrer festivais e consagrar-se principalmente junto à plateia mais jovem. Depois de assinar também a adaptação do best-seller "Perfume: a história de um assassino" (2006) e o thriller político "Trama internacional" (2009), estrelado por Clive Owen e Naomi Watts - nenhum deles recebidos com o esperado estardalhaço - o cineasta resolveu polemizar um pouco e voltou à sua terra natal para realizar "Triângulo amoroso", uma história de amor nada convencional que lhe permitiu utilizar seu modo particular de fazer cinema sem a interferência de estúdios americanos. Um tanto ousado mas jamais vulgar ou imoral, seu filme retrata com inteligência e sofisticação a eterna busca pela realização amorosa e sexual sem nenhum ranço reducionista ou falsamente libertário: algo de que somente o cinema europeu é capaz.
A apresentadora de TV Hanna (Sophie Rois) e o engenheiro Simon (Sebastian Schipper) vivem juntos há cerca de vinte anos e levam uma vida confortável e pacífica. Justamente quando ele está com a mãe doente e descobre ter câncer em um dos testículos, ela conhece e sente-se irremediavelmente atraída por Adam (David Stresow), um médico mais jovem que não demora em dar sinais de que também está interessado nela. Os dois tornam-se amantes e algum tempo depois, Simon conhece o rapaz no vestiário do clube que ambos frequentam. Para sua surpresa - até então um heterossexual convicto - surge uma forte desejo entre eles, e um flerte inconsequente evolui para um caso mais sério. Sem que saibam disso, portanto, o casal mantém o mesmo amante, sem que isso atrapalhe seu relacionamento, maduro e estável. Quando eles finalmente decidem se casar, porém, uma gravidez inesperada os obriga a encarar uma realidade que eles preferiam manter escondida.
Com um elenco de atores que destoam radicalmente dos conceitos de beleza do cinema comercial e uma estrutura narrativa ágil e criativa - telas paralelas constantemente empurrando a trama, sem espaço para momentos de maior reflexão - "Triângulo amoroso" é um delicioso antídoto ao asséptico cinemão americano. Mesmo que suas cenas de sexo não mostrem mais do que o convencional, sua temática é tratada com maturidade e naturalidade, jamais buscando julgar seus personagens ou apontar certo ou errado. De forma sutil e inteligente, o roteiro, escrito pelo próprio diretor, vai apresentando seus personagens como gente de carne e osso, capazes de fraquezas quase imperdoáveis mas simpáticos o bastante para que sejam compreendidos pela plateia. Com uma espécie de lema "chumbo trocado não dói", Tykwer expõe com ironia as dificuldades dos cidadãos do novo milênio em impor seus desejos, diante da cerca do conservadorismo da sociedade. Até mesmo Hanna e Simon são vítimas de tais regras de comportamento, já que, mesmo aparentemente modernos e abertos a novas experiências, são incapazes de explicitá-las. Como um pivô involuntário, cabe a Adam tentar romper, mesmo que devagar, as barreiras que ele mesmo já derrubou em sua vida - ele tem um filho e tem uma relação bastante amistosa com a mãe da criança. É ele, com seu jeito mais leve de lidar com a vastidão de possibilidades da sexualidade, que irá ser o catalisador das mudanças na vida do casal - pelo menos aquelas que eles estiverem dispostos a aceitar. O final dessa confusão toda é surpreendente.
Com um visual elegante e características próprias de contar sua história, "Triângulo amoroso" insere-se em uma quase tradição do cinema europeu de retratar relacionamentos alternativos e/ou à frente do seu tempo. Assim como François Truffaut fez em "Jules e Jim: uma mulher para dois" (62), Tom Tykwer sacode a mesmice dos contos de fada oferecidos pelo cinema ao mostrar, sem meias palavras, uma forma nova de interrelação, de acordo mais com as necessidades pessoais do que com as normas impostas pela sociedade. Seu pulo do gato foi justamente incluir na equação a bissexualidade, um tema ainda pouco discutido a sério nas telonas. Seu filme pode não ser a última palavra no assunto, mas é uma necessária lufada de ar fresco na discussão. E além de tudo, é uma obra que acredita na força da imagem e da edição - elementos cruciais para o bom cinema, utilizados com maestria e inteligência. Um filme subestimado, que tem tudo para tornar-se cult com o passar do tempo.
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