domingo

PODERIA ME PERDOAR?


PODERIA ME PERDOAR? (Can you ever forgive me?, 2018, Fox Searchlight Pictures, 106min) Direção: Marielle Heller. Roteiro: Nicole Holofcener, Jeff Whitty, livro de Lee Israel. Fotografia: Brandon Trost. Montagem: Anne McCabe. Música: Nate Heller. Figurino: Arjun Bhasin. Direção de arte/cenários: Stephen Carter/Sarah E. McMillan. Produção executiva: Bob Balaban, Pamela Hirsch, Jawal Nga. Produção: Anne Carey, Amy Nauiokas, David Yarnell. Elenco: Melissa McCarthy, Richard E. Grant, Dolly Wells, Ben Falcone. Estreia: 01/9/2018 (Festival de Telluride)

3 indicações ao Oscar: Atriz (Melissa McCarthy), Ator Coadjuvante (Richard E. Grant), Roteiro Adaptado

Não foram apenas a transformação física e a coragem de abandonar a zona de conforto que fizeram com que Melissa McCarthy fosse indicada ao Oscar de melhor atriz, em 2019: ainda que a Academia tenha uma forte tendência em valorizar tais características no momento de escolher seus preferidos de cada temporada, seria um erro creditar o sucesso de sua interpretação apenas a questões externas. Em um desempenho sutil, melancólico e inteligente, McCarthy conseguiu, em "Poderia me perdoar?", fazer esquecer seu passado em comédias bobas (e frequentemente medíocres) - e entrou pela porta da frente no rol das atrizes de grande prestígio. Tudo bem que "Missão madrinha de casamento" (2011) já tinha lhe dado um certo aval, com uma indicação à estatueta de atriz coadjuvante, mas nada se compara à força de sua atuação no filme de Marielle Heller. Aplaudida com unanimidade pela crítica, McCarthy, não era, porém, a primeira escolha para o papel principal - e só entrou no elenco quando a atriz originalmente escalada abandonou o barco pelas famosas "diferenças criativas".

Quando "Poderia me perdoar?" ainda era apenas um projeto em desenvolvimento, a personagem principal, Lee Israel, estava nas mãos de Julianne Moore, uma atriz respeitada e querida, tanto pela crítica quanto pelo público. Antes mesmo do começo das filmagens, no entanto, Moore saiu de cena, deixando vaga a protagonização do filme - uma produção pequena da Fox Searchlight, com um orçamento apertado de estimados dez milhões de dólares. Casado com Melissa e confiando no talento da esposa, o ator Ben Falcone, escalado para um papel menor, sugeriu seu nome à diretora Marielle Heller - e tudo pareceu se encaixar perfeitamente. Distante do ar de gordinha simpática que lhe deu fama, McCarthy mergulhou de corpo e alma em uma personagem de uma densidade dramática das mais desafiadoras. Foram 28 dias de filmagem - e quando o filme finalmente estreou, na edição de 2018 do Festival de Telluride, ficou claro para todos que a substituição tinha valido a pena: por mais que Moore seja uma atriz estupenda, é difícil imaginar outra intérprete para Lee Israel do que a simpática coadjuvante da telessérie "Gilmore Girls".

 

E se McCarthy chamou a atenção pela guinada radical em sua carreira, seu principal colega de cena, Richard E. Grant, tampouco ficou para trás. Coroando uma carreira de grandes (e muitas vezes subestimadas) atuações, Grant tornou-se figurinha fácil entre os nomes mais elogiados da temporada: indicado ao Oscar, ao Golden Globe e ao SAG Award de melhor ator coadjuvante, o veterano fez uma limpa junto a associações de críticos do país inteiro, graças a um trabalho impecável que só chegou até ele depois que Sam Rockwell e Chris O'Dowd saíram da lista de possibilidades. Como o excêntrico e pouco discreto Jack Roch, que se torna amigo e cúmplice de Israel, ele é o contraponto quase cômico a uma trama que, sob o comando de alguém menos sensível que Marielle Heller poderia descambar para um drama pesado e deprimente. Em sua segunda experiência como diretora de cinema - seu primeiro filme foi o elogiado "O diário de uma adolescente", de 2015 -, Heller, também atriz, construiu uma narrativa consistente, equilibrada entre um sutil senso de humor e uma tristeza quase palpável, sublinhada pela trilha sonora discreta e pela edição de ritmo próprio. O roteiro, também indicado ao Oscar, oferece a seus atores momentos de brilho sem apelar para discursos piegas e mesmo quando a emoção chega, é com uma elegância ímpar e adulta, com uma maturidade que destaca o filme dentre seus congêneres.

"Poderia me perdoar?" é, mais que um filme com uma história forte, um filme baseado em seus personagens. Lee Israel, a protagonista que McCarthy encarna com precisão, é uma biógrafa que, com a carreira em decadência (em boa parte devido à sua misantropia e pouca habilidade social), se vê diante de uma nova possibilidade de completar o orçamento e pagar suas dívidas acumuladas: a falsificação de cartas e documentos de escritores famosos. O que deveria ser uma alternativa efêmera, porém, se torna sua principal fonte de renda, e, aos poucos, ela deixa de lado a timidez e passa a sobreviver de sua fraude, contando, para isso, com a providencial ajuda de um novo amigo, Jack Roch (Richard E. Grant). O sucesso de sua empreitada, no entanto, é ameaçado quando peritos entram em cena dispostos a impedir novos crimes - e ela se torna alvo das investigações, assim como Jack e as pessoas envolvidas em suas negociações. No caminho entre o desespero inicial e a angústia do desfecho, Lee Israel é retratada como um ser humano falível e pouco simpático - e é um acerto da produção não tentar fazer da protagonista alguém adorável ou vítima das circunstâncias. Esse detalhe, crucial, faz do filme de Heller uma pérola a ser descoberta pelo grande público - um forte candidato à cult e dono de duas das mais potentes interpretações de sua época.

THE POST: A GUERRA SECRETA


THE POST: A GUERRA SECRETA (The Post, 2017, 20th Century Fox/Dreamworks Pictures/Reliance Entertainment, 116min) Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Liz Hannah, Josh Singer. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Sarah Broshar, Michael Kahn. Música: John Williams. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Rick Carter/Rena DeAngelo. Produção executiva: Tom Karnoswski, Josh Singer, Adam Somner, Tim White, Trevor White. Produção: Kristie Macosko Krieger, Amy Pascal, Steven Spielberg. Elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Sarah Paulson, Bob Odenkirk, Tracy Letts, Bradley Whitford, Bruce Greenwood, Matthew Rhys, Alison Brie, Carrie Coon, Jesse Plemons, Michael Stuhlbarg. Estreia: 14/12/2017

2 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Meryl Streep

Até "A lista de Schindler" (1993) sair da cerimônia do Oscar 1994 com sete estatuetas - incluindo melhor filme e direção -, havia uma certa resistência da Academia em relação à filmografia de Steven Spielberg, um dos mais bem-sucedidos cineastas da história de Hollywood. Problemas deixados de lado, o diretor voltou a ser premiado, em 1999, graças ao comando do impecável "O resgate do soldado Ryan" - que chegou perto de também levar o troféu principal e acabou perdendo para "Shakespeare apaixonado", em uma das decisões mais polêmicas do prêmio - e tornou-se, desde então, um eterno indicado em potencial. Cada filme seu, independente do sucesso junto ao público, tem boas chances de estar na seleta lista dos melhores de cada temporada. Às vezes com justiça - caso dos ótimos "Munique"" (2005) e "Ponte dos espiões" (2015). Em outras ocasiões como resultado de uma quase alucinação coletiva - como o soporífero "Lincoln" (2012), que deu o terceiro Oscar de melhor ator a Daniel Day-Lewis. "The Post: A Guerra Secreta", lançado no final de 2017 com pretensões de seduzir a Academia, fica no meio do caminho: não chega nem perto de ser um dos destaques da sua celebrada filmografia, mas tampouco é tão difícil como seus trabalhos mais lentos.

Baseado em uma história real - e realizado com um impressionante grau de realismo -, "The Post" é um caso raro dentro da indústria: entre o começo de suas filmagens, em maio de 2017, e seu lançamento limitado, em dezembro do mesmo ano, passaram-se apenas sete meses. A pressa de Spielberg era justificada pelo clima político dos EUA, assolado (como em outros países) por ondas criminosas de fake news. Como forma de demonstrar um posicionamento a favor de imprensa livre e séria, o cineasta foi buscar no roteiro de Liz Hannah (coescrito por Josh Singer, que já havia lidado com o tema em "O quinto poder", de 2013, e "Spotlight: segredos revelados", que lhe rendeu um Oscar em 2015) o material ideal. Escrito com base em livros de memórias de seus dois protagonistas - e um terceiro, escrito por uma fonte crucial para a ação -, "The Post" é um thriller político com ecos nítidos de "Todos os homens do presidente" (1976) e, como tal, se esforça em ser o mais fiel possível na reconstituição dos fatos que levaram a um dos mais sérios dilemas éticos do jornalismo norte-americano do século XX. Por coincidência (ou não), no olho do furacão estava o mesmo Washington Post que, poucos anos depois, seria o responsável pelas reportagens que levaram à renúncia do então presidente Richard Nixon. Ao contrário do filme dirigido por Alan J. Pakula, no entanto, "The Post" centra seu foco menos nos repórteres e mais nos editores - mais nas dúvidas a respeito da publicação do que na busca pelas informações.


 Coadjuvante em "Todos os homens do presidente" - tanto que seu intérprete no filme, Jason Robards, levou o Oscar da categoria -, o editor-chefe Ben Bradlee assume, em "The Post", a co-protagonização, ao lado da diretora do jornal, Kay Adams, interpretada por Meryl Streep. Na pele de Tom Hanks (em sua quinta colaboração com Steven Spielberg), Bradlee é o que mais se aproxima de herói, no filme: ético, responsável, pai de família respeitável e bom amigo, ele é, também, a voz da consciência que permeia a narrativa, que inclui, de forma oportuna e inteligente, uma discussão muito bem-vinda sobre machismo. Ao herdar a direção do jornal depois do suicídio do marido, Kay precisa passar por cima de todo o preconceito em relação a seu gênero - o que inclui embates com financiadores e banqueiros pouco confiantes em seus talentos como administradora. "The Post" é, então, um filme com duas frentes dramáticas que se encontram na segunda (e superior) metade: se publicar os documentos secretos que confirmam um sistemático encobertamento do governo dos EUA em relação à guerra do Vietnã - um processo que envolveu vários presidentes -, o jornal pode sofrer consequências jurídicas que podem levá-lo à falência, mas sua posição em relação à liberdade de imprensa fatalmente será comprometida junto aos leitores. Essa questão - cada vez mais pertinente e atual - é o cerne do filme de Spielberg, mas demora a estabelecer-se, e essa morosidade quase estraga o resultado final.

Apesar da premissa ser eletrizante e apontar para um desenvolvimento ágil como se espera de um thriller, "The Post: a guerra secreta" sofre de um sério problema de ritmo em sua primeira metade. Não que sem sua segunda parte o filme abandone suas longas sequências de reuniões de escritório e bastidores burocráticos do jornalismo, mas é perceptível que a coisa só engrena de verdade quando o Washington Post assume as rédeas da narrativa, tomando para si a responsabilidade de desafiar o governo Nixon. Não é tão empolgante quanto seu irmão mais velho - novamente é preciso relembrar "Todos os homens do presidente" - e nem tão ágil quanto "Spotlight" (no qual o ator John Slattery interpreta o filho de Ben Bradlee, personagem de Hanks), mas consegue, de certa forma, explicar os motivos pelos quais encantou parte da crítica. Eleito o melhor filme de 2017 pelo National Board of Review e indicado a dois Oscar - incluindo a 21ª indicação de Streep, um recorde absoluto -, "The Post" pode não ser um dos melhores trabalhos de Spielberg, mas, como sempre, sua excelência técnica (fotografia, música, edição, elenco) o destaca positivamente dentre os filmes de sua geração. É uma bela homenagem à força feminina e à liberdade de imprensa - e seus defeitos de ritmo podem ser perdoados diante de tal importância histórica.

segunda-feira

O INCRÍVEL HULK


O INCRÍVEL HULK (The Incredible Hulk, 2008, Universal Pictures/Marvel Enterprises, 112min) Direção: Louis Leterrier. Roteiro: Zak Penn, personagens criados por Stan Lee, Jack Kirby. Fotografia: Peter Menzies Jr.. Montagem: Rick Shaine, Vincent Tabaillon, John Wright. Música: Craig Armstrong. Figurino: Denise Cronenberg. Direção de arte/cenários: Kirk M. Petrucelli/Monica Delfino, Carolyn "Cal" Loucks, Monica Rochlin. Produção executiva: Stan Lee, David Maisel, Jim Van Wyck. Produção: Avi Arad, Kevin Feige, Gale Anne Hurd. Elenco: Edward Norton, Liv Tyler, William Hurt, Tim Roth, Tim Blake Nelson, Ty Burrell. Estreia: 08/6/08

Em 2003 os fãs de quadrinhos foram surpreendidos com "Hulk", um olhar bastante peculiar sobre um dos personagens mais queridos e populares da Marvel: sob a direção do premiado Ang Lee (acostumado a assinar produções mais artísticas, como "Razão e sensibilidade", de 1995, e "O tigre e o dragão", de 2000, pelo qual levou seu primeiro Oscar), o super-herói verde tornou-se protagonista de um filme de ação com tendências existencialistas e, apesar da bilheteria mundial acima de 245 milhões de dólares, não chegou a entusiasmar o público e dividiu a crítica. As chances de uma sequência no mesmo tom cerebral, escrita por James Schamus - colaborador habitual de Lee - acabaram sendo abandonadas em 2005, no entanto, quando a Universal Pictures devolveu os direitos do personagem à Marvel. Já dedicada a criar seu Universo Cinematográfico, a Marvel aproveitou a oportunidade para dar uma nova chance ao cientista Bruce Banner e seu monstruoso alterego - com um viés mais próximo de suas pretensões comerciais e possibilidades mais concretas de fazer dele parte de um projeto maior. Para isso, não apenas Ang Lee foi dispensado da função de diretor - em uma estratégia corajosa, o estúdio aproveitou a recusa de Eric Bana em retornar ao papel-título para, ao invés de recomeçar do zero, fazer de "O incrível Hulk" uma mistura entre um reboot e uma continuação. Pode não ter repetido o êxito de "Homem de ferro" (2008) - primeiro filme do ambicioso plano da Marvel e sucesso imenso de bilheteria -, mas marcou presença de forma nada desprezível.

A saída de Bana do projeto abriu a porta para perspectivas interessantes - e nomes como Matthew McConaughey, David Duchovny (da série "Arquivo X") e Dominic Purcell (astro de "Prision break") foram cogitados para assumir a liderança do elenco. Em uma espécie de clarividência, o novo diretor, o cineasta francês Louis Leterrier, chegou a propor, sem sucesso, o nome de Mark Ruffalo para o papel principal, mas foi voto vencido junto aos executivos da Marvel: poucos anos depois Ruffalo tornou-se o mais celebrado intérprete do personagem mesmo sem ter um filme-solo. A recusa da Marvel em aceitar Ruffalo em "O incrível Hulk" tinha uma razão, no entanto, e bem forte: sua preferência por Edward Norton, fã dos quadrinhos e um ator de prestígio o suficiente para garantir a boa vontade da crítica e de parte do público avesso a filmes-evento. Apesar de conhecido por seu gênio forte - e por sua interferência nas decisões criativas dos filmes dos quais participava -, Norton já tinha duas indicações ao Oscar no currículo e não era um ator que se prestava facilmente a produções comerciais: sua presença seria um belo chamariz e deixaria bastante claro a todos a intenção da Marvel em ser levada muito a sério.

 

Como era de se esperar, Norton não apenas fez sua parte como ator - reescreveu várias cenas do roteiro de Zak Penn e dirigiu algumas sequências para ajudar a manter o cronograma de filmagens. Com locações no Rio de Janeiro e Toronto fazendo o papel de Manahattan (por questões de concessões comerciais oferecidas pelo prefeito local, David Miller, fã do personagem), "O incrível Hulk" sofreu várias alterações em relação a seu primeiro filme. Não apenas no visual escolhido pelo novo diretor (um verde mais escuro e um tamanho fixo para a criatura, por exemplo), mas também em sua tentativa de fazer dele um herói trágico sem abandonar seu propósito de entreter a plateia, ávida pelos melhores efeitos visuais que um orçamento de 150 milhões de dólares podem comprar. Para isso, a trama não perde tempo em estabelecer as origens do personagem - e conta com um vilão bastante interessante, interpretado pelo sempre ótimo (e frequentemente subestimado) Tim Roth. Da mesma forma, a relação entre Banner e Betty Ross (Liv Tyler substituindo Jennifer Connelly com competência e elegância) não precisa ser estabelecida desde o princípio - seu reencontro se dá em uma cena que resume perfeitamente o equilíbrio entre drama e ação que faltou ao primeiro filme. E é claro que ter William Hurt na pele do general Ross não atrapalha em nada: fã de Hulk, assim como seu filho e Edward Norton, Hurt é mais um elemento a emprestar prestígio à produção.

"O incrível Hulk" começa nas favelas do Rio de Janeiro, onde Bruce Banner está escondido depois dos catastróficos eventos do primeiro capítulo. Buscando incessantemente uma cura para sua condição, o cientista ainda precisa lidar com o fato de que forças militares lideradas pelo General Ross estão à sua procura, já que não pretendem abandonar o resultado de anos em estudos para a criação de um super soldado. Quando Banner retorna aos EUA, conta com o apoio da namorada, Betty (que, por caprichos do destino e dos roteiristas, é filha do general), para aproximar-se de um antídoto - uma questão que o colocará em rota de colisão com um monstro de poderes similares, criado justamente para enfrentá-lo e impedir sua deserção. O embate ente os dois é o centro do filme de Leterrier - que herdou a direção do filme depois que o comando de "Homem de ferro" foi parar nas mãos de Jon Favreau - e é bastante superior, em termos técnicos e emotivos, ao trabalho de Ang Lee, além de, é claro, deixar um espaço em aberto para as inevitáveis continuações ao lado de seus colegas vingadores. "O incrível Hulk" pode não ser um filme perfeito - mas funciona às mil maravilhas como entretenimento de qualidade.

domingo

O OUTRO LADO DA NOBREZA


O OUTRO LADO DA NOBREZA (Restoration, 1995, Miramax Films, 117min) Direção: Michael Hoffman. Roteiro: Rupert Walters, romance de Rose Tremain. Fotografia: Oliver Stapleton. Montagem: Garth Craven. Música: James Newton Howard. Figurino: James Acheson. Direção de arte/cenários: Eugenio Zanetti. Produção executiva: Kip Hagopian. Produção: Sarah Black, Cary Brokaw, Andy Paterson. Elenco: Robert Downey Jr., Sam Neill, Meg Ryan, David Thewlis, Ian McKellen, Polly Walker, Hugh Grant. Estreia: 29/12/95

Vencedor de 2 Oscar: Figurino, Direção de Arte/Cenários

De todas as performances cinematográficas de Robert Downey Jr. - de Charles Chaplin ao Homem de Ferro, passando por comédias românticas, filmes de ação e a sensacional performance cômica indicada ao Oscar de coadjuvante em "Trovão tropical" (2008) - nenhuma é mais exuberante que Robert Merivel, o protagonista de "O outro lado da nobreza". Lançada em 1995, um dos anos mais produtivos da carreira do ator, e praticamente esquecido entre sua filmografia, a adaptação do romance de Rose Tremain chegou a ganhar dois Oscar (figurino e direção de arte) e contava com um elenco de nomes conhecidos do grande público - Hugh Grant, Meg Ryan, Sam Neill. Porém, com uma direção burocrática de Michael Hoffman e um roteiro que não consegue escapar da superficialidade, passou quase em branco pelo público e tampouco entusiasmou a crítica. E em comparação com seus trabalhos mais aplaudidos, o desempenho de Downey Jr. parece um tanto perdido, tentando encontrar o foco em um filme que tenta abraçar vários temas sem aprofundar-se a contento em nenhum deles.

Michael Hoffman não é um cineasta dos mais geniais, sempre apresentando produções no máximo simpáticas - como se pode afirmar depois de filmes como "Segredos de uma novela" (1991), "Um dia especial" (1996) e sua adaptação de "Sonho de uma noite de verão" (1999). Em "O outro lado da nobreza" não é diferente. Apesar do capricho na ambientação e da nítida ambição de criar uma obra relevante, Hoffman não consegue imprimir o tom de seriedade necessário para dar à trama, que retrata um dos períodos mais nefastos da História como forma de purgação e amadurecimento para o protagonista. O arco dramático soa bastante artificial e apressado, a despeito de atravessar anos e precipitar acontecimentos catalisadores que, da forma como apresentados, jamais transmitem o grau de importância que terão no desfecho da história. O roteiro de Rupert Walters tenta, em pouco menos de duas horas, estabelecer relações cruciais - mas esbarra em uma pressa que prejudica o envolvimento do espectador. Some-se a isso a personalidade hesitante de Robert Merivel - um bon vivant irresponsável que parece nunca estar completamente dedicado aos acontecimentos a seu redor - e o filme falha em sua principal pretensão: emocionar. 

 

A trama começa quando, em 1663, o estudante de Medicina Robert Merivel é chamado à corte do Rei Charles II (Sam Neill) para tratar de um de seus cachorrinhos preferidos. O jovem aspirante a médico salva a vida do animalzinho e cai nas graças do monarca, tornando-se parte de sua corte e deslumbrando-se com as vantagens de sua nova posição. As coisas começam a mudar quando o rei ordena que Merivel se case com a sensual Celia (Polly Walker), sua amante, para agradar outra de suas conquistas amorosas. As advertências de Charles para que o médico não se apaixone por sua esposa de mentirinha caem no vácuo, e, descoberto em seus sentimentos, Merivel se vê diante da vida que abandonara e, sem saber saber que rumo tomar, ele retoma a amizade com Pearce (David Thewliss) - um colega de faculdade que sempre pautou sua vida pela ética profissional. Nesse momento, a Peste Negra começa a espalhar-se pela Europa - e Merivel volta a ter seu caminho cruzado com o Rei e Celia depois de ter experimentado uma nova paixão com Katharine (Meg Ryan), uma jovem tratada como mentalmente insana e que lhe fez redescobrir as coisas boas da vida.

A trajetória de Merivel é plenamente compreensível, e seu amadurecimento é, apesar dos problemas de roteiro e direção, soam verossímeis. O problema é que "O outro lado da nobreza" parece tão deslumbrado por sua impecável reconstituição de época que esquece de dar atenção a elementos cruciais em uma narrativa. Atores como Hugh Grant e Ian McKellen são deixados de lado com personagens mal desenvolvidos, e a química inexistente entre Robert Downey Jr. e Meg Ryan também não ajuda a deixar as coisas menos complicadas. O filme de Michael Hoffman não é um filme ruim, mas tampouco é memorável a ponto de fazer diferença nas carreiras dos envolvidos. Pode agradar aos menos exigentes - mas dificilmente se tornará um favorito.

sexta-feira

PAPILLON (1973)


PAPILLON (Papillon, 1973, Allied Artists/Columbia Pictures, 151min) Direção: Franklin J. Schaffner. Roteiro: Dalton Trumbo, Lorenzo Semple Jr., livro de Henri Charrière. Fotografia: Fred Koenekamp. Montagem: Robert Swink. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Anthony Powell. Direção de arte/cenários: Anthony Masters. Produção executiva: Ted Richmond. Produção: Franklin J. Schaffner. Elenco: Steve McQueen, Dustin Hoffman, Victor Jory, Don Gordon, Anthony Zerbe. Estreia: 16/12/73

Indicado ao Oscar de Trilha Sonora Original

Era a receita para um grande sucesso. Um best-seller internacional de não-ficção. Um cineasta recém saído da consagração de uma chuva de Oscar. Um dos maiores e mais populares astros de Hollywood. E um ator em ascensão. Tudo estava a favor de "Papillon", adaptação do livro escrito por Henri Charrière que contava (com fartas licenças poéticas) seu período na famigerada Ilha do Diabo - uma das prisões mais seguras do mundo, localizada na Guiana Francesa. Depois de passar pelas mãos de Richard Brooks (que sonhava em ter Alain Delon e Jean-Paul Belmondo nos papéis centrais) e Roman Polanski (cujo projeto ruiu quando Warren Beatty recusou fazer parte do elenco), a produção finalmente chegou a Franklin J. Schaffner, que, do alto de seus Oscar de melhor filme e diretor por "Patton: rebelde ou herói?" (1970), pareceu a escolha mais acertada para transformar em imagens um roteiro que explorava tanto a relação de confiança e amizade os entre protagonistas quanto momentos da mais pura adrenalina. O resultado foi mais que positivo: elogios entusiasmados da crítica e sucesso de bilheteria. Porém, nem tudo foram flores durante as filmagens - e a esperança de colecionar mais algumas estatuetas morreu por motivos bem pouco relacionados à qualidade final da produção.

Os problemas começaram quando os produtores descobriram que, apesar da contratação de Dustin Hoffman pelo salário de 1,25 milhão de dólares, seu personagem no livro de Charrière era muito menor do que eles esperavam (uma questão que poderia ter sido evitada com uma leitura prévia do material original). A solução foi fazer com que o roteiro, escrito pelo premiado Dalton Trumbo e Loreno Semple Jr., expandisse sua importância no filme para acomodar o novo status de estrela do ator. E então, não bastassem os episódios de furtos nos sets construído na Jamaica (prejuízos que custaram cerca de trinta mil dólares à produção), uma crise de egos instalou-se nos bastidores quando chegou aos ouvidos de Hoffman (já então um ator considerado "difícil") a informação de que, apesar do mesmo destaque nos créditos que seu colega de cena Steve McQueen, seu salário era consideravelmente menor (a McQueen, já estabelecido como um dos grandes nomes de Hollywood, foram pagos 2 milhões de dólares). Tal revelação não ajudou em nada a relação entre os dois atores, que, a partir daí, tornou-se unicamente profissional, sem direito sequer a qualquer tipo de confraternização fora das câmeras. Nem mesmo a presença de Henri Charrière em pessoa nas filmagens ajudou a melhorar o clima, prejudicado pelo fato de que Schaffner e Trumbo ainda não estavam com o roteiro completo no início dos trabalhos: em encontros diários, os dois trabalhavam no que seria feito durante o dia de trabalho - o que resultou no fato de "Papillon" ter sido filmado quase todo em ordem cronológica, uma ajuda e tanto para o desempenho de seus atores.

 

E se Hoffman brilhou como o estelionatário Louis Dega, responsável por financiar as tentativas de fuga de seu companheiro Papillon, foi Steve McQueen quem recebeu os maiores elogios da crítica - principalmente por sua entrega ao papel a ponto de dispensar dublês em sequências perigosas. Porém, sua atuação, louvada unanimemente, não foi o suficiente para lhe garantir uma esperada indicação ao Oscar: apesar de concorrer ao Golden Globe de melhor ator dramático, McQueen se viu esnobado pela Academia e não demorou para que fofocas a respeito de sua vida pessoal servissem como explicação para a situação. Mulherengo contumaz, o ator não era bem visto pelos maridos da indústria, temerosos que seu charme viril pudesse causar o estrago que havia feito no casamento do produtor Robert Evans, um dos mais poderosos de então: durante as filmagens de "Os implacáveis" (1972), sua mulher, a atriz Ali McGraw, encantou-se pelo ator, seu colega de cena, e nem pensou duas vezes em pedir divórcio e abandonar os ambiciosos projetos do marido para viver sua história de amor. Certamente tal escândalo em um ambiente tão sexualmente hipócrita minou as chances de McQueen de ganhar uma estatueta, principalmente quando se percebe que "Papillon" foi seu último grande trabalho - ao menos o último a chamar a atenção do público e explorar seu carisma e talento em igual medida.

A despeito das questionáveis afirmações de Henri Charrière sobre seu período na prisão localizada na Guiana Francesa, a trama de "Papillon" empolga justamente pela presença de McQueen, um ator que se utilizava de um tom naturalista para aproximar-se do espectador mesmo em personagens de caráter duvidoso: mesmo que afirme ser inocente do homicídio que o condenou, o protagonista da história não oferece ao público maiores explicações sobre seu passado, deixando no ar toda e qualquer certeza a respeito de seu caráter. Ao roteiro tampouco interessa detalhes anteriores à sua condenação - o filme de Schaffner se dedica a equilibrar-se entre as tentativas de fuga de Papillon e suas consequências, muitas delas bastante violentas. O ritmo é um tanto problemático - uns vinte minutos a menos faria milagres pela narrativa - mas a química entre McQueen e Hoffman é admirável, especialmente quando se sabe da relação pouco amistosa entre ambos fora de cena. Com belas sequências de ação e bons momentos dramáticos, "Papillon" não chegou a ser visto por Carrière, morto de câncer no pulmão em julho de 1973, menos de seis meses antes da estreia, e nunca emplacou sua continuação, "Banco", nas telas. Mas tornou-se clássico o suficiente para merecer um remake em 2017, estrelado por Charlie Hunnam e Rami Malek. É um filme cult, ainda hoje capaz de envolver a plateia com seu misto de ação e homenagem à resistência humana.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...