SNOWDEN: HERÓI OU TRAIDOR (Snowden, 2016, Endgame Entertainment/Vendian Entertainment/KrautPack Entertainment, 134min) Direção: Oliver Stone. Roteiro: Oliver Stone, Kieran Fitzgerald, livro de Anatoly Kucherena e Luke Harding. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Montagem: Alex Marquez, Lee Percy. Música: Craig Armstrong. Figurino: Bina Daigegler. Direção de arte/cenários: Mark Tildesley/Véronique Melery. Produção executiva: Max Averlaiz, Michael Bassick, Olivier Cottet-Puinel, Douglas Hansen, José Ibañez, Peter Lawson, Romain Le Grand, Bahman Naraghi, Tom Ortenberg, Jérôme Seydoux, James Stern, Christopher Woodrow. Produção: Moritz Borman, Eric Kopeloff, Philip Schulz-Deyle, Fernando Sulichin. Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Melissa Leo, Zachary Quinto, Shailene Woodley, Nicolas Cage, Rhys Ifans, Tom Wilkinson, Joely Richardson, Logan Marshall-Green, Timothy Olyphant, Ben Chaplin, Scott Eastwood. Estreia: 21/7/16
Se existe um cineasta certo para contar a história de Edward Snowden nas telas de cinema, esse cineasta é Oliver Stone. Politicamente ativo e pouco dado a sutilezas, Stone ganhou dois Oscar de direção por cutucar o governo americano a respeito da guerra do Vietnã (por "Platoon", de 1986, e "Nascido em 4 de julho", de 1989) e nunca mediu palavras - ou imagens - para deixar bem claras suas posições liberais e democratas. Há muito tempo sem um grande sucesso de bilheteria - seu último trabalho a fazer barulho comercialmente foi "JFK", em 1991 - e massacrado impiedosamente pela crítica por seus trabalhos mais recentes, como "As Torres Gêmeas" (2006) e "Selvagens" (2012), Stone encontrou na trajetória arriscada e corajosa do jovem informante a matéria-prima para uma produção não apenas contundente e atual, mas extremamente necessária. Como era de se esperar, o filme fracassou comercialmente - nos EUA rendeu pouco mais da metade de seu orçamento, estimado em 40 milhões de dólares - e dividiu a crítica, mas é inegável que é o melhor Stone desde "Assassinos por natureza" (94), o que é ainda mais admirável quando se percebe que é também um dos filmes de narrativa mais acessível da carreira do diretor.
Dispensando os cacoetes visuais e artifícios narrativos que vem marcando sua carreira desde a década de 90, Oliver Stone faz de "Snowden: herói ou traidor" uma obra linear e quase convencional, que aposta muito mais no roteiro quase didático do que no visual exuberante - é a primeira vez que o cineasta se utiliza de câmeras digitais sem que seja em um documentário. Apesar da edição continuar sendo um dos destaques (aqui a cargo de Alex Marquez e Lee Percy), Stone abre mão de suas manias de despejar diante da audiência imagens em ritmo alucinante e quase esquizofrênico: a história é, sim, contada em duas linhas de tempo distintas, mas sem que uma atropele a outra e sem que o público perca o fio da meada diante do excesso de informações. O roteiro, baseado no livro "Time of the Octopus" do advogado russo Anatoly Kucherena - tratado como ficção mas amplamente baseado em entrevistas com Snowden -, é a força motriz do filme, a base sobre a qual o diretor constrói uma severa crítica ao modo como os governos Bush e Obama lidaram com espionagem em grande escala e nas graves consequências de tais atos. Com imagens reais de governos atingidos pelo escândalo - incluindo o Brasil - e sem medo de apontar dedos, "Snowden" é surpreendentemente sóbrio e honesto. Stone parece dizer, com sua direção discreta, que a história (forte, assustadora, chocante) é maior do que qualquer tentativa de manipulação artística.
O filme começa em junho de 2013, quando o jovem Edward Snowden (Joseph Gordon-Levitt) se encontra com o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a documentarista Laura Poitras (Melissa Leo) em um hotel de Hong Kong - Greenwald mais tarde seria um dos mais ferrenhos opositores ao golpe parlamentar que destitui a presidente Dilma Roussef, e Proitas ganharia o Oscar de documentário por "Cidadãoquatro" (2014), justamente sobre o escândalo denunciado por Snowden. O encontro entre os três tem uma razão muito simples, ainda que potencialmente explosiva: o rapaz, ex-funcionário da CIA e da NSA, tem documentos que comprovam sem espaço para quaisquer dúvidas, de que o governo norte-americano, em nome da defesa nacional, tem acesso irrestrito a informações pessoais e confidenciais de todo o planeta - e que as utiliza sem nenhum critério ético ou moral. A partir daí, o roteiro intercala as reuniões do grupo (que contam ainda com o repórter do jornal "The Guardian", Ewen MacAskill (Tom Wilkinson)) com a trajetória do rapaz dentro das agências de segurança do país. Com inteligência acima da média e digno da confiança de seus colegas e superiores, Snowden aos poucos vai tomando conhecimento do absurdo que é a rede de espionagem que ele mesmo criou (com objetivos outros, menos invasivos). Ao lado da namorada, Lindsay (Shailene Woodley), ele entra em uma severa crise de consciência até que resolve expor toda a verdade ao mundo.
Um thriller político da mais alta qualidade - que consegue equilibrar com maestria tanto o suspense quanto a crítica ao governo -, "Snowden" comprova que Oliver Stone é, apesar de alguns exageros de sua carreira, um dos cineastas mais instigantes de Hollywood. Destemido e feroz em suas declarações cinematográficas, é também um contador de histórias nato, convincente e quase diabólico em suas tentativas de vender seu peixe. Além do mais, é um excelente diretor de atores: se todo o elenco de "Snowden" é homogeneamente competente (incluindo uma pequena participação de Nicolas Cage), a composição de Joseph Gordon-Levitt é impressionante. Mesmo sem ter semelhanças físicas com o protagonista, quando está em cena o jovem ator simplesmente se transforma no personagem: a voz, o gestual e a forma de falar engolem Levitt e fazem surgir um Edward Snowden irretocável, capaz de confundir aos desavisados - tal similaridade física fica evidente na última cena, em que o verdadeiro Snowden faz uma aparição rápida e marcante. Injustamente esquecido pelo Oscar - que desde "Nixon", de 1995, nunca mais indicou filmes de Stone em nenhuma categoria - e por outras cerimônias de premiação (apenas o Satellite Awards lhe deu uma indicação), Gordon-Levitt comprova ser um dos mais talentosos e versáteis atores de sua geração, capaz de encarar desafios sem medo e sem se repetir. Se "Snowden: herói ou traidor" é tão bom, pode-se dizer que é devido à união perfeita entre diretor, tema, roteiro e ator principal. Um dos grandes filmes de 2016.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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ROCK'N'ROLLA: A GRANDE ROUBADA
ROCK'N'ROLLA: A GRANDE ROUBADA (RocknRolla, 2008, Warner Bros/Dark Castle Entertainment, 114min) Direção e roteiro: Guy Ritchie. Fotografia: David Higgs. Montagem: James Herbert. Música: Steve Isles. Figurino: Suzie Harman. Direção de arte/cenários: Richard Bridgland/Debbie Moles. Produção executiva: Navid McIlhargey, Steve Richards. Produção: Steve Clark-Hall, Susan Downey, Guy Ritchie, Joel Silver. Elenco: Gerard Butler, Tom Wilkinson, Thandie Newton, Idris Elba, Tom Hardy, Mark Strong, Karel Roden, Tobby Kebbell, Ludacris, Jimi Mistry. Estreia: 04/9/98 (Festival de Toronto)
Um grupo de marginais pés-de-chinelo. Um mafioso que manda e desmanda no mercado imobiliário de Londres. Um roqueiro viciado em drogas que odeia o padrasto. Uma contadora sexy disposta a qualquer coisa para subir na vida. Um empresário russo com planos de construir um estádio na capital inglesa. Um capanga leal e dedicado. E uma dupla de empresários musicais tentando evitar o fechamento de suas casas noturnas. Com esses personagens falastrões, excêntricos e propensos a equilibrar o cérebro e as armas, o cineasta Guy Ritchie voltou às graças da crítica, depois do fracasso sucessivo de "Destino insólito", de 2002 (estrelado pela então esposa Madonna) e "Revólver", de 2005, que tentou arrancar uma atuação decente de Jason Statham. "Rock'n'Rolla: A grande roubada" não apenas lhe devolveu o prestígio perdido como lhe deu cacife suficiente para comandar uma nova versão de "Sherlock Holmes" (2009), com um orçamento milionário e grandes astros - Robert Downey Jr. e Jude Law - no elenco. Voltando a explorar o submundo criminoso londrino que lhe deu fama em seu filme de estreia, "Jogos, trapaças e dois canos fumegantes" (99), Ritchie atinge um equilíbrio admirável entre diversos gêneros (ação, policial, comédia) e confirma um estilo marcante de fazer cinema, influenciado pelo tom quase histérico de Quentin Tarantino mas dono de identidade própria.
Como é normal em sua filmografia, a trama de "Rock'n'Rolla" é complexa e com uma profusão de personagens que exige da plateia atenção absoluta: o centro do enredo é Lenny Cole (Tom Wilkinson), que fez fortuna intermediando negociações, muitas vezes de forma ilegal. Protetor de um grupo de bandidos intitulado Quadrilha Selvagem - liderada pelo carismático One Two (Gérard Butler) - e padrasto do roqueiro Johnny Quid (Toby Kebbell), Cole resolve ajudar o russo Uri Omovich (Karel Roden) a construir um estádio de futebol, utilizando, para isso, a influência de um vereador (Jimi Mistry) também chegado a uma propina. A partir daí, dois fatos independentes acabam por unir todos os personagens: o desaparecimento de um valioso quadro - emprestado por Uri à Cole e furtado por seu enteado - e o roubo dos sete milhões de euros destinados ao pagamento da construção do estádio. O roubo do dinheiro é responsabilidade de One Two e seus dois colegas mais fiéis - Mumbles (Idris Elba) e Bob (Tom Hardy) - e tem a cumplicidade da ambiciosa Stella (Thandie Newton), contadora e amante de Uri que acaba se deixando seduzir por One Two. Em volta de todas essas questões, existe também a dúvida dos integrantes da Quadrilha Selvagem a respeito de um informante que vem jogando seus integrantes na cadeia.
Recheando seu roteiro com diálogos espirituosos e situações surreais, Guy Ritchie oferece a seu público um desfile de sequências primorosas, editadas com inteligência e dotadas de um senso de humor admirável. A química entre Gérard Butler e Thandie Newton é explosiva, e a cena em que eles combinam seu segundo golpe em Uri é uma pérola de criatividade e tensão sexual. Tom Wilkinson mais uma vez demonstra porque é escolha certeira quando se trata de interpretar personagens arrogantes, e Tom Hardy rouba a cena na pele de um gângster homossexual apaixonado pelo melhor amigo e disposto a seduzir um advogado para descobrir quem lhe mandou para a cadeia - seu desempenho é tão incrível que foi a partir dele que Hardy cavou seu caminho em direção à glória do cinemão, sendo dirigido por Christopher Nolan em "A origem" (2010) e "Batman: O Cavaleiro das Trevas ressurge" (12). Dono de um humor singular, Ritchie não hesita em colocar na boca de seus personagens falas quase constrangedoras, mas que soam verossímeis e imprescindíveis ao desenvolvimento da complexa trama, que corre diante dos olhos do espectador com um ritmo alucinante e com um visual caprichado, que mostra sua evolução como cineasta. Brincando com os clichês do gênero ao mesmo tempo em que os reverencia, ele consegue resultado superior a outro de seus bem-sucedidos produtos, "Snatch: porcos e diamantes" (2001), estrelado por Brad Pitt e Benicio Del Toro.
"Rock'n'Rolla" é entretenimento de primeira, mas é bom que se avise que talvez sua trama exale testosterona demais para que seja apreciado pelo público feminino com o mesmo ardor do masculino. As piadas a um passo do preconceito, a grosseria incurável dos personagens e o excesso de palavrões podem afastar aos mais sensíveis, mas no fundo o filme de Guy Ritchie é uma grande brincadeira com os elementos do cinema policial - em especial dos anos 70. Extremamente à vontade como galã bagaceiro, Gérard Butler está em um de seus melhores desempenhos e sublinha com ironia e deboche todas as nuances da trama - que apesar da promessa da última cena, ainda não rendeu uma continuação. Infelizmente.
Um grupo de marginais pés-de-chinelo. Um mafioso que manda e desmanda no mercado imobiliário de Londres. Um roqueiro viciado em drogas que odeia o padrasto. Uma contadora sexy disposta a qualquer coisa para subir na vida. Um empresário russo com planos de construir um estádio na capital inglesa. Um capanga leal e dedicado. E uma dupla de empresários musicais tentando evitar o fechamento de suas casas noturnas. Com esses personagens falastrões, excêntricos e propensos a equilibrar o cérebro e as armas, o cineasta Guy Ritchie voltou às graças da crítica, depois do fracasso sucessivo de "Destino insólito", de 2002 (estrelado pela então esposa Madonna) e "Revólver", de 2005, que tentou arrancar uma atuação decente de Jason Statham. "Rock'n'Rolla: A grande roubada" não apenas lhe devolveu o prestígio perdido como lhe deu cacife suficiente para comandar uma nova versão de "Sherlock Holmes" (2009), com um orçamento milionário e grandes astros - Robert Downey Jr. e Jude Law - no elenco. Voltando a explorar o submundo criminoso londrino que lhe deu fama em seu filme de estreia, "Jogos, trapaças e dois canos fumegantes" (99), Ritchie atinge um equilíbrio admirável entre diversos gêneros (ação, policial, comédia) e confirma um estilo marcante de fazer cinema, influenciado pelo tom quase histérico de Quentin Tarantino mas dono de identidade própria.
Como é normal em sua filmografia, a trama de "Rock'n'Rolla" é complexa e com uma profusão de personagens que exige da plateia atenção absoluta: o centro do enredo é Lenny Cole (Tom Wilkinson), que fez fortuna intermediando negociações, muitas vezes de forma ilegal. Protetor de um grupo de bandidos intitulado Quadrilha Selvagem - liderada pelo carismático One Two (Gérard Butler) - e padrasto do roqueiro Johnny Quid (Toby Kebbell), Cole resolve ajudar o russo Uri Omovich (Karel Roden) a construir um estádio de futebol, utilizando, para isso, a influência de um vereador (Jimi Mistry) também chegado a uma propina. A partir daí, dois fatos independentes acabam por unir todos os personagens: o desaparecimento de um valioso quadro - emprestado por Uri à Cole e furtado por seu enteado - e o roubo dos sete milhões de euros destinados ao pagamento da construção do estádio. O roubo do dinheiro é responsabilidade de One Two e seus dois colegas mais fiéis - Mumbles (Idris Elba) e Bob (Tom Hardy) - e tem a cumplicidade da ambiciosa Stella (Thandie Newton), contadora e amante de Uri que acaba se deixando seduzir por One Two. Em volta de todas essas questões, existe também a dúvida dos integrantes da Quadrilha Selvagem a respeito de um informante que vem jogando seus integrantes na cadeia.
Recheando seu roteiro com diálogos espirituosos e situações surreais, Guy Ritchie oferece a seu público um desfile de sequências primorosas, editadas com inteligência e dotadas de um senso de humor admirável. A química entre Gérard Butler e Thandie Newton é explosiva, e a cena em que eles combinam seu segundo golpe em Uri é uma pérola de criatividade e tensão sexual. Tom Wilkinson mais uma vez demonstra porque é escolha certeira quando se trata de interpretar personagens arrogantes, e Tom Hardy rouba a cena na pele de um gângster homossexual apaixonado pelo melhor amigo e disposto a seduzir um advogado para descobrir quem lhe mandou para a cadeia - seu desempenho é tão incrível que foi a partir dele que Hardy cavou seu caminho em direção à glória do cinemão, sendo dirigido por Christopher Nolan em "A origem" (2010) e "Batman: O Cavaleiro das Trevas ressurge" (12). Dono de um humor singular, Ritchie não hesita em colocar na boca de seus personagens falas quase constrangedoras, mas que soam verossímeis e imprescindíveis ao desenvolvimento da complexa trama, que corre diante dos olhos do espectador com um ritmo alucinante e com um visual caprichado, que mostra sua evolução como cineasta. Brincando com os clichês do gênero ao mesmo tempo em que os reverencia, ele consegue resultado superior a outro de seus bem-sucedidos produtos, "Snatch: porcos e diamantes" (2001), estrelado por Brad Pitt e Benicio Del Toro.
"Rock'n'Rolla" é entretenimento de primeira, mas é bom que se avise que talvez sua trama exale testosterona demais para que seja apreciado pelo público feminino com o mesmo ardor do masculino. As piadas a um passo do preconceito, a grosseria incurável dos personagens e o excesso de palavrões podem afastar aos mais sensíveis, mas no fundo o filme de Guy Ritchie é uma grande brincadeira com os elementos do cinema policial - em especial dos anos 70. Extremamente à vontade como galã bagaceiro, Gérard Butler está em um de seus melhores desempenhos e sublinha com ironia e deboche todas as nuances da trama - que apesar da promessa da última cena, ainda não rendeu uma continuação. Infelizmente.
SELMA: UMA LUTA PELA IGUALDADE
SELMA: UMA LUTA PELA IGUALDADE (Selma, 2014, Cloud Eight Films, 128min) Direção: Ava DuVernay. Roteiro: Paul Webb. Fotografia: Bradford Young. Montagem: Spencer Averick. Jason Moran. Figurino: Ruth E. Carter. Direção de arte/cenários: Mark Friedberg/Elizabeth Keenan. Produção executiva: Nik Bower, Ava DuVernay, Paul Garnes, Cameron McCracken, Diarmuid McKeown, Nan Morales, Brad Pitt. Produção: Christian Colson, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Oprah Winfrey. Elenco: David Oyelowo, Tim Roth, Oprah Winfrey, Carmen Ejogo, Tom Wilkinson, Giovanni Ribisi, Common, Dylan Baker, Cuba Gooding Jr., Alessandro Nivola. Estreia: 11/11/14
2 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Canção Original ("Glory")
Vencedor do Oscar de Melhor Canção ("Glory")
Vencedor do Golden Globe de Melhor Canção Original ("Glory")
Em 2015, um ano marcado por omissões escandalosas, indicações discutíveis e surpresas um tanto desagradáveis na lista de indicados ao Oscar - pensando bem, em qual ano isso não acontece? - talvez a questão mais debatida dentre os fãs de cinema e os ditos "especialistas de plantão" disse respeito à esnobada quase geral dada ao filme "Selma: uma luta pela igualdade", que muitos julgavam merecedor de figurar entre os destaques da cerimônia. Mesmo indicada na categoria principal, a produção dirigida por Ava DuVernay não conseguiu conquistar os votos dos eleitores da Academia em outros páreos importantes, como direção (Ava seria a primeira mulher afro-americana a concorrer ao Oscar) e ator (David Oyelowo), o que acarretou uma interminável discussão sobre a falta de miscigenação racial na festa mais importante do cinema - uma polêmica que estendeu-se até o ano seguinte, quando a situação repetiu-se com ainda mais força. Enquanto alguns creditavam a omissão à Paramount por não ter enviado cópias do filme aos eleitores a tempo da votação, outros não hesitavam em dizer que tudo não passava de racismo puro e simples por parte da Academia e de Hollywood em si. O que ninguém cogitou pensar é na possibilidade de o filme - apesar de suas inúmeras qualidades e importância histórica e social - não ser tão forte quanto os acontecimentos que retrata.
É lógico que "Selma" é infinitamente superior a aberrações demagógicas como "Sniper americano" e ao filme-fórmula "A teoria de tudo" - ambos sintomaticamente indicados na principal categoria mas também deixados de fora na briga por diretor - mas é muito provável que os fãs mais radicais do filme não percebam que, por trás de todas as emocionantes e chocantes cenas que mostram os confrontos raciais que sacudiram os EUA nos anos 60, por trás da performance discreta e convincente de David Oyelowo como Martin Luther King e por trás da força emocional da história contada, não existe um roteiro consistente a ponto de esconder o ritmo claudicante, os tempos mortos e, pior ainda, a edição pouco criativa. A cada sequência empolgante, que leva o espectador para dentro da história, como se fosse participante ativo do movimento social que está transformando um país - e por consequência, o mundo todo - existem várias outras sonolentas, que o afastam emocionalmente. Toda vez que Martin Luther King vai ao encontro do Presidente Lyndon Johnson (Tom Wilkinson) ou este debate a situação com o governador do Alabama, George Wallace (Tim Roth), o filme perde o pique. São momentos importantes para a ação, claro, mas que contrastam radicalmente com outros de grande intensidade dramática e que comprometem o ritmo do filme como um todo.
Quando DuVernay mostra ao espectador a violência a que os negros - e até mesmo os brancos que compravam sua briga - eram submetidos simplesmente porque lutavam pelo direito básico ao voto, seu filme cresce, se agiganta, emociona às lágrimas. Quando se dedica a mostrar a forma idealista de Luther King lutar contra o preconceito, sua obra se ilumina e inspira. Quando dá espaço a seus atores - em especial Oyelowo, Tim Roth e sua produtora Oprah Winfrey em pequena participação - brilharem, seu trabalho conquista. Mas ao final da sessão, quando a sensação de injustiça e revolta passam, não sobra muito mais. Falta a "Selma" aquele algo mais que faz de um bom filme um filme inesquecível. É forte, é intenso e é imprescindível historicamente. Mas não faz jus a toda a polêmica que criou em torno de suas duas únicas indicações ao Oscar - e nem o fato de Brad Pitt estar entre os produtores executivos ajudou muito na campanha a seu favor (Pitt era também produtor executivo de "12 anos de escravidão", vencedor do Oscar principal do ano anterior, o que de certa forma anula a acusação de racismo generalizado por parte da Academia).
E seria injusto falar a respeito de "Selma" - cidade americana que foi sede de uma passeata de grande importância na luta pelos direitos civis dos negros - sem citar aquela que é, sem dúvida, uma de suas maiores qualidades (além da atuação de David Oyelowo, que interpretou, também com consistência e garra, o filho de Forest Whitaker no igualmente engajado "O mordomo da Casa Branca"). Vencedora do Oscar e do Golden Globe de Melhor Canção Original, a bela "Glory" levantou a plateia na cerimônia de entrega dos prêmios da Academia com uma performance energética e poderosa de Common e John Legend - e lembrou da força da emoção que em muitos momentos falta ao filme de DuVernay. Com um roteiro um pouco mais profundo e menos ambicioso em abraçar o mundo com as pernas, seria um filme genial. Como está, é um filme inspirador, mas muito aquém de extraordinário.
2 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Canção Original ("Glory")
Vencedor do Oscar de Melhor Canção ("Glory")
Vencedor do Golden Globe de Melhor Canção Original ("Glory")
Em 2015, um ano marcado por omissões escandalosas, indicações discutíveis e surpresas um tanto desagradáveis na lista de indicados ao Oscar - pensando bem, em qual ano isso não acontece? - talvez a questão mais debatida dentre os fãs de cinema e os ditos "especialistas de plantão" disse respeito à esnobada quase geral dada ao filme "Selma: uma luta pela igualdade", que muitos julgavam merecedor de figurar entre os destaques da cerimônia. Mesmo indicada na categoria principal, a produção dirigida por Ava DuVernay não conseguiu conquistar os votos dos eleitores da Academia em outros páreos importantes, como direção (Ava seria a primeira mulher afro-americana a concorrer ao Oscar) e ator (David Oyelowo), o que acarretou uma interminável discussão sobre a falta de miscigenação racial na festa mais importante do cinema - uma polêmica que estendeu-se até o ano seguinte, quando a situação repetiu-se com ainda mais força. Enquanto alguns creditavam a omissão à Paramount por não ter enviado cópias do filme aos eleitores a tempo da votação, outros não hesitavam em dizer que tudo não passava de racismo puro e simples por parte da Academia e de Hollywood em si. O que ninguém cogitou pensar é na possibilidade de o filme - apesar de suas inúmeras qualidades e importância histórica e social - não ser tão forte quanto os acontecimentos que retrata.
É lógico que "Selma" é infinitamente superior a aberrações demagógicas como "Sniper americano" e ao filme-fórmula "A teoria de tudo" - ambos sintomaticamente indicados na principal categoria mas também deixados de fora na briga por diretor - mas é muito provável que os fãs mais radicais do filme não percebam que, por trás de todas as emocionantes e chocantes cenas que mostram os confrontos raciais que sacudiram os EUA nos anos 60, por trás da performance discreta e convincente de David Oyelowo como Martin Luther King e por trás da força emocional da história contada, não existe um roteiro consistente a ponto de esconder o ritmo claudicante, os tempos mortos e, pior ainda, a edição pouco criativa. A cada sequência empolgante, que leva o espectador para dentro da história, como se fosse participante ativo do movimento social que está transformando um país - e por consequência, o mundo todo - existem várias outras sonolentas, que o afastam emocionalmente. Toda vez que Martin Luther King vai ao encontro do Presidente Lyndon Johnson (Tom Wilkinson) ou este debate a situação com o governador do Alabama, George Wallace (Tim Roth), o filme perde o pique. São momentos importantes para a ação, claro, mas que contrastam radicalmente com outros de grande intensidade dramática e que comprometem o ritmo do filme como um todo.
Quando DuVernay mostra ao espectador a violência a que os negros - e até mesmo os brancos que compravam sua briga - eram submetidos simplesmente porque lutavam pelo direito básico ao voto, seu filme cresce, se agiganta, emociona às lágrimas. Quando se dedica a mostrar a forma idealista de Luther King lutar contra o preconceito, sua obra se ilumina e inspira. Quando dá espaço a seus atores - em especial Oyelowo, Tim Roth e sua produtora Oprah Winfrey em pequena participação - brilharem, seu trabalho conquista. Mas ao final da sessão, quando a sensação de injustiça e revolta passam, não sobra muito mais. Falta a "Selma" aquele algo mais que faz de um bom filme um filme inesquecível. É forte, é intenso e é imprescindível historicamente. Mas não faz jus a toda a polêmica que criou em torno de suas duas únicas indicações ao Oscar - e nem o fato de Brad Pitt estar entre os produtores executivos ajudou muito na campanha a seu favor (Pitt era também produtor executivo de "12 anos de escravidão", vencedor do Oscar principal do ano anterior, o que de certa forma anula a acusação de racismo generalizado por parte da Academia).
E seria injusto falar a respeito de "Selma" - cidade americana que foi sede de uma passeata de grande importância na luta pelos direitos civis dos negros - sem citar aquela que é, sem dúvida, uma de suas maiores qualidades (além da atuação de David Oyelowo, que interpretou, também com consistência e garra, o filho de Forest Whitaker no igualmente engajado "O mordomo da Casa Branca"). Vencedora do Oscar e do Golden Globe de Melhor Canção Original, a bela "Glory" levantou a plateia na cerimônia de entrega dos prêmios da Academia com uma performance energética e poderosa de Common e John Legend - e lembrou da força da emoção que em muitos momentos falta ao filme de DuVernay. Com um roteiro um pouco mais profundo e menos ambicioso em abraçar o mundo com as pernas, seria um filme genial. Como está, é um filme inspirador, mas muito aquém de extraordinário.
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O GRANDE HOTEL BUDAPESTE
O GRANDE HOTEL BUDAPESTE (The Grand Budapest Hotel, 2014, Fox Searchlight Pictures/Indian Paintbrush, 99min) Direção: Wes Anderson. Roteiro: Wes Anderson, estória de Wes Anderson, Hugo Guinness, inspirado em escritos de Stefan Zweig. Fotografia: Robert D. Yeoman. Montagem: Barney Pilling. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Milena Canonero. Direção de arte/cenários: Adam Stockhausen/Anna Pinnock. Produção executiva: Molly Cooper, Christoph Fisser, Henning Molfenter, Charlie Woebcken. Produção: Wes Anderson, Jeremy Dawson, Steven Rales, Scott Rudin. Elenco: Ralph Fiennes, F. Murray Abraham, Jude Law, Willem Dafoe, Adrien Brody, Jeff Goldblum, Saoirse Ronan, Mathieu Amalric, Harvey Keitel, Bill Murray, Edward Norton, Jason Schwartzman, Léa Seydoux, Tilda Swinton, Tom Wilkinson, Owen Wilson, Tony Revolori, Fisher Stevens, Bob Balaban. Estreia: 06/02/14 (Festival de Berlim)
9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Wes Anderson), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Maquiagem
Vencedor de 4 Oscar: Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Maquiagem
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme (Comédia/Musical)
Dentre os filmes pouco convencionais selecionados pela Academia de Hollywood para concorrer ao principal Oscar de 2015 - "Birdman" e "Boyhood", por exemplo - nenhum é tão radicalmente a cara de seu autor quanto "O Grande Hotel Budapeste", escrito, dirigido e produzido por Wes Anderson, um dos cineastas menos afeitos a concessões comerciais que o cinema norte-americano gerou nos últimos quinze anos, desde que lançou o elogiado - e ignorado pelo público - "Três é demais", em 1998. Dono de um estilo facilmente reconhecível que equilibra com rara inteligência personagens excêntricos, histórias inusitadas e um visual milimetricamente planejado, Anderson faz parte de um time de poucos realizadores que tem uma marca própria dentro do cinema, como Tim Burton, Woody Allen e Pedro Almodovar. No entanto, ainda faltava a ele uma espécie de reconhecimento oficial por parte da indústria, que lhe desse o passaporte definitivo para a elite dos cineastas. Com as surpreendentes nove indicações conquistadas por seu novo filme (e a vitória em quatro categorias) tal passaporte já está carimbado. Só o fato de ter lutado de igual pra igual com produções bem menos criativas (e por conseguinte mais facilmente digeríveis pelos tradicionais e vestutos eleitores da Academia), "O Grande Hotel Budapeste" já pode ser considerado um campeão.
A trama - contada através de uma história dentro de uma história, em uma opção narrativa arriscada mas extremamente bem-sucedida - é aparentemente simples, mas repleta de bifurcações inusitadas e personagens surreais: quem começa a contá-la é um escritor consagrado (vivido por Tom Wilkinson na maturidade e Jude Law na juventude), que transmite ao público a história do misterioso Mr. Moustafa (F. Murray Abraham), dono do decadente Hotel Budapeste, localizado em um país fictício da Europa que teve seu auge no período entre-guerras. Solitário e discreto, Moustafa relembra, através de flashbacks, as reviravoltas que fizeram com que a imensa propriedade fosse parar em seu nome. Tais reviravoltas tem início quando ele, ainda jovem (e interpretado por Tony Revolori) consegue emprego como empregado do hotel, sob o comando do rígido e dedicado Gustave H. (Ralph Fiennes), que, além de ser o melhor concierge da região, não hesita em agradar as hóspedes de mais idade com noites regadas a champagne e sexo. Quando uma dessas visitantes frequentes, a milionária Céline Villeneuve Desgoffe und Taxis (Tilda Swinton irreconhecível sob pesada maquiagem vencedora do Oscar), morre aos 84 anos em sua mansão, ele resolve prestar suas últimas homenagens, atendendo a seu funeral. Para sua surpresa, porém, ele fica sabendo - junto com a ambiciosa família da falecida - que herdou um quadro de valor milionário, o que acaba lhe colocando em sérios apuros com a polícia: recusando-se a aceitar que a mãe tenha deixado tão valioso bem para um mero serviçal, o psicótico Dimitri (Adrien Brody) o acusa de assassinato e parte em sua captura, ao lado de seu violento capanga Jopling (Willem Dafoe). Quando eclode a II Guerra, cabe a Gustave provar sua inocência - contando, para isso, com o apoio de um clube secreto de concierges espalhados pelo mundo.
Dotado de um humor sofisticado que provoca mais sorrisos do que gargalhadas e de uma trama tão cheia de informações visuais que uma segunda sessão é mandatória, "O Grande Hotel Budapeste" é, tranquilamente, o melhor filme de Wes Anderson, refinando as características narrativas de "Os excêntricos Tenenbauns" e estilísticas de "Moonrise kingdom" e unindo-as em um espetáculo de qualidade estética ímpar. Único dos candidatos ao Oscar de fotografia a ser filmado em película - um feito digno de nota, especialmente quando se percebe a qualidade irretocável do meticuloso trabalho de Robert Yeoman - a obra de Anderson também é um triunfo de desenho de produção (também premiada pela Academia), tão impressionante com seus cenários grandiosos quanto a segurança do cineasta em equilibrar narrativas múltiplas sem perder o fio da meada ou confundir o espectador. Contando com um elenco acima de qualquer crítica - com destaque para Ralph Fiennes em raro registro cômico e Edward Norton em sua segunda parceria com o diretor, além da revelação Tony Revolori - o filme ainda se beneficia da inspirada trilha sonora (mais uma) de Alexandre Desplat, que comenta a ação como se fosse um personagem a mais e deu a ele uma merecida estatueta dourada. Ela é mais uma peça essencial em um dos mais empolgantes produtos cinematográficos dos últimos anos, um filme capaz de encantar qualquer fã da sétima arte e a prova cabal do talento de seu criador, até então escondido em pérolas de cinemateca - vulgo filmes amados por uma parcela de espectadores que não tem medo do diferente.
Ousado, criativo, original, inteligente. Faltam adjetivos para explicar porque "O Grande Hotel Budapeste" merece ser visto, revisto, trevisto e aplaudido todas as vezes. É um dos mais excitantes e inovadores produtos a sair de um lugar cada vez menos disposto a riscos como Hollywood. E além de tudo é uma comédia muito engraçada e excêntrica, que não precisa de um humor pastelão para arrancar risos. Precisa de mais motivos para ser genial?
9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Wes Anderson), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Maquiagem
Vencedor de 4 Oscar: Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Maquiagem
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme (Comédia/Musical)
Dentre os filmes pouco convencionais selecionados pela Academia de Hollywood para concorrer ao principal Oscar de 2015 - "Birdman" e "Boyhood", por exemplo - nenhum é tão radicalmente a cara de seu autor quanto "O Grande Hotel Budapeste", escrito, dirigido e produzido por Wes Anderson, um dos cineastas menos afeitos a concessões comerciais que o cinema norte-americano gerou nos últimos quinze anos, desde que lançou o elogiado - e ignorado pelo público - "Três é demais", em 1998. Dono de um estilo facilmente reconhecível que equilibra com rara inteligência personagens excêntricos, histórias inusitadas e um visual milimetricamente planejado, Anderson faz parte de um time de poucos realizadores que tem uma marca própria dentro do cinema, como Tim Burton, Woody Allen e Pedro Almodovar. No entanto, ainda faltava a ele uma espécie de reconhecimento oficial por parte da indústria, que lhe desse o passaporte definitivo para a elite dos cineastas. Com as surpreendentes nove indicações conquistadas por seu novo filme (e a vitória em quatro categorias) tal passaporte já está carimbado. Só o fato de ter lutado de igual pra igual com produções bem menos criativas (e por conseguinte mais facilmente digeríveis pelos tradicionais e vestutos eleitores da Academia), "O Grande Hotel Budapeste" já pode ser considerado um campeão.
A trama - contada através de uma história dentro de uma história, em uma opção narrativa arriscada mas extremamente bem-sucedida - é aparentemente simples, mas repleta de bifurcações inusitadas e personagens surreais: quem começa a contá-la é um escritor consagrado (vivido por Tom Wilkinson na maturidade e Jude Law na juventude), que transmite ao público a história do misterioso Mr. Moustafa (F. Murray Abraham), dono do decadente Hotel Budapeste, localizado em um país fictício da Europa que teve seu auge no período entre-guerras. Solitário e discreto, Moustafa relembra, através de flashbacks, as reviravoltas que fizeram com que a imensa propriedade fosse parar em seu nome. Tais reviravoltas tem início quando ele, ainda jovem (e interpretado por Tony Revolori) consegue emprego como empregado do hotel, sob o comando do rígido e dedicado Gustave H. (Ralph Fiennes), que, além de ser o melhor concierge da região, não hesita em agradar as hóspedes de mais idade com noites regadas a champagne e sexo. Quando uma dessas visitantes frequentes, a milionária Céline Villeneuve Desgoffe und Taxis (Tilda Swinton irreconhecível sob pesada maquiagem vencedora do Oscar), morre aos 84 anos em sua mansão, ele resolve prestar suas últimas homenagens, atendendo a seu funeral. Para sua surpresa, porém, ele fica sabendo - junto com a ambiciosa família da falecida - que herdou um quadro de valor milionário, o que acaba lhe colocando em sérios apuros com a polícia: recusando-se a aceitar que a mãe tenha deixado tão valioso bem para um mero serviçal, o psicótico Dimitri (Adrien Brody) o acusa de assassinato e parte em sua captura, ao lado de seu violento capanga Jopling (Willem Dafoe). Quando eclode a II Guerra, cabe a Gustave provar sua inocência - contando, para isso, com o apoio de um clube secreto de concierges espalhados pelo mundo.
Dotado de um humor sofisticado que provoca mais sorrisos do que gargalhadas e de uma trama tão cheia de informações visuais que uma segunda sessão é mandatória, "O Grande Hotel Budapeste" é, tranquilamente, o melhor filme de Wes Anderson, refinando as características narrativas de "Os excêntricos Tenenbauns" e estilísticas de "Moonrise kingdom" e unindo-as em um espetáculo de qualidade estética ímpar. Único dos candidatos ao Oscar de fotografia a ser filmado em película - um feito digno de nota, especialmente quando se percebe a qualidade irretocável do meticuloso trabalho de Robert Yeoman - a obra de Anderson também é um triunfo de desenho de produção (também premiada pela Academia), tão impressionante com seus cenários grandiosos quanto a segurança do cineasta em equilibrar narrativas múltiplas sem perder o fio da meada ou confundir o espectador. Contando com um elenco acima de qualquer crítica - com destaque para Ralph Fiennes em raro registro cômico e Edward Norton em sua segunda parceria com o diretor, além da revelação Tony Revolori - o filme ainda se beneficia da inspirada trilha sonora (mais uma) de Alexandre Desplat, que comenta a ação como se fosse um personagem a mais e deu a ele uma merecida estatueta dourada. Ela é mais uma peça essencial em um dos mais empolgantes produtos cinematográficos dos últimos anos, um filme capaz de encantar qualquer fã da sétima arte e a prova cabal do talento de seu criador, até então escondido em pérolas de cinemateca - vulgo filmes amados por uma parcela de espectadores que não tem medo do diferente.
Ousado, criativo, original, inteligente. Faltam adjetivos para explicar porque "O Grande Hotel Budapeste" merece ser visto, revisto, trevisto e aplaudido todas as vezes. É um dos mais excitantes e inovadores produtos a sair de um lugar cada vez menos disposto a riscos como Hollywood. E além de tudo é uma comédia muito engraçada e excêntrica, que não precisa de um humor pastelão para arrancar risos. Precisa de mais motivos para ser genial?
O EXÓTICO HOTEL MARIGOLD
O EXÓTICO HOTEL MARIGOLD (The Best Exotic Marigold Hotel, 2011, Blueprint Pictures, 124min) Direção: John Madden. Roteiro: Oli Parker, romance "These foolish things", de Deborah Moggach. Fotografia: Ben Davis. Montagem: Chris Gill. Música: Thomas Newman. Figurino: Louise Stjernsward. Direção de arte/cenários: Alan MacDonald/Tina Roberts. Produção executiva: Jonathan King, Jeff Skoll, Ricky Strauss. Produção: Graham Broadbent, Peter Czernin. Elenco: Judi Dench, Bill Nighy, Tom Wilkinson, Maggie Smith, Dev Patel, Penelope Wilton, Celia Imrie. Estreia: 30/11/11 (Festival de Torrento)
Certas coisas nem os experientes analistas de mercado de Hollywood conseguem explicar, mesmo com tabelas, cálculos e equações. Um exemplo? Como um filme feito fora de um grande estúdio, com um custo estimado em 10 milhões de dólares e estrelado por atores com uma média de idade de 60 anos pode alcançar mais de 130 milhões de arrecadação pelo mundo afora, a ponto de gerar uma continuação? Levando-se em consideração ainda que "O exótico Hotel Marigold" não é baseado em quadrinhos, não tem cenas de ação nem tampouco tem em seu elenco nomes como Sylvester Stallone ou Bruce Willis - que apesar da idade ainda insistem em produções anabolizadas, como a série "Os mercenários" - seu resultado nas bilheterias é ainda mais impressionante. Esse choque, porém, é dissipado assim que se assiste aos primeiros minutos do filme de John Madden, comandante do oscarizado "Shakespeare apaixonado": divertida, leve e nunca aquém de extremamente agradável, a adaptação do romance "These foolish things", de Deborah Moggach, é daquelas de deixar qualquer um com um sorriso no rosto. Cortesia, também, do dream team de atores ingleses escalado por Madden.
O tal Exótico Hotel Marigold do título é uma quase espelunca localizada na Índia onde vai parar meia-dúzia de ingleses da terceira idade, atraídos pela propaganda enganosa de seu site, que promete luxo e conforto para idosos de todo o mundo. Na verdade, o hotel é gerenciado pelo jovem, ambicioso e desajeitado Sonny Kapoor (Dev Patel, de "Quem quer ser um milionário?"), que tem esperanças de realmente transformar as ruínas do prédio de propriedade de sua família em um estabelecimento respeitável, como forma de conquistar a admiração de sua rígida mãe e a aceitação dos familiares da mulher que ama, a bela Sunaina (Tena Desae). O estado quase calamitoso do hotel, porém, não impede que seus novos hóspedes aproveitem todas as possibilidades da nova rotina, especialmente porque todos tem seus motivos particulares para estarem ali. Evelyn Greensdale (Judi Dench) acaba de ficar viúva e sem economias, e viaja com a intenção de respirar novos ares .sem precisar gastar muito. O juiz de Direito Graham Dashwood (Tom Wilkinson) precisa reencontrar um amor do passado, com quem perdeu contato há quarenta anos. O casal Douglas e Jean Ainslie (Bill Nighy e Penelope Wilton) está em crise, sentindo-se no fim da vida e recusando-se a recolher-se a um conjunto habitacional para pessoas de sua idade. A preconceituosa Muriel Donnelly (Maggie Smith), ex-governanta, precisa fazer uma cirurgia no quadril, bem mais acessível na Índia. E Norman Cousins (Ronald Pickup) e Madge Hardcastle (Celia Imrie) buscam novas experiências amorosas: ele puramente sexuais, ela atrás de um casamento milionário.
Dividindo seu tempo de forma justa e imparcial com todos os fascinantes personagens criados por Moggach, o roteiro de Oli Parker consegue equilibrar com maestria momentos de puro humor inglês - em especial quando entra em cena a brilhante Maggie Smith e sua ranzinza Sra. Donnelly - e cenas de grande sensibilidade, como todas aquelas que envolvem a resolução da história de amor de Dashwood e o nascente romance entre Evelyn e Douglas - que vê nela o extremo oposto de sua egoísta e desagradável esposa. Mesmo quando o filme desvia seu foco dos novos moradores do hotel e se concentra na difícil relação de Sonny com sua mãe o ritmo não chega a ser comprometido. É uma surpresa perceber, aliás, como o roteiro consegue dar conta de tantos personagens - desenvolvendo de forma satisfatória suas complexidades e idiossincrasias - sem tornar-se superficial e sem estender-se desnecessariamente além das palatáveis duas horas de duração. Mérito também, é claro, da edição ágil mas jamais apressada e da direção fluida de Madden, que evita com sucesso ser maior do que seus atores ou de sua história. Sua discrição, ao contrário de demonstrar falta de personalidade, apenas o confirma como um cineasta afeito mais aos atores do que a pirotecnias ou estripulias visuais - vale lembrar que em seu currículo constam também os potentes mas pouco vistos "A prova" (06) e "No limite da mentira" (2010).
Tocando de leve em temas espinhosos como preconceito racial, abandono na terceira idade e homossexualidade - sempre com respeito, delicadeza e certa dose de bom humor - "O exótico Hotel Marigold" certamente conquistou seu enorme público por sua estrutura despretensiosa, sustentada por um bom roteiro, bom elenco e direção competente. Em tempos onde cada filme tenta ser maior e mais barulhento do que o outro, é um oásis de pureza e ar puro. Mereceu todo o sucesso que fez.
Certas coisas nem os experientes analistas de mercado de Hollywood conseguem explicar, mesmo com tabelas, cálculos e equações. Um exemplo? Como um filme feito fora de um grande estúdio, com um custo estimado em 10 milhões de dólares e estrelado por atores com uma média de idade de 60 anos pode alcançar mais de 130 milhões de arrecadação pelo mundo afora, a ponto de gerar uma continuação? Levando-se em consideração ainda que "O exótico Hotel Marigold" não é baseado em quadrinhos, não tem cenas de ação nem tampouco tem em seu elenco nomes como Sylvester Stallone ou Bruce Willis - que apesar da idade ainda insistem em produções anabolizadas, como a série "Os mercenários" - seu resultado nas bilheterias é ainda mais impressionante. Esse choque, porém, é dissipado assim que se assiste aos primeiros minutos do filme de John Madden, comandante do oscarizado "Shakespeare apaixonado": divertida, leve e nunca aquém de extremamente agradável, a adaptação do romance "These foolish things", de Deborah Moggach, é daquelas de deixar qualquer um com um sorriso no rosto. Cortesia, também, do dream team de atores ingleses escalado por Madden.
O tal Exótico Hotel Marigold do título é uma quase espelunca localizada na Índia onde vai parar meia-dúzia de ingleses da terceira idade, atraídos pela propaganda enganosa de seu site, que promete luxo e conforto para idosos de todo o mundo. Na verdade, o hotel é gerenciado pelo jovem, ambicioso e desajeitado Sonny Kapoor (Dev Patel, de "Quem quer ser um milionário?"), que tem esperanças de realmente transformar as ruínas do prédio de propriedade de sua família em um estabelecimento respeitável, como forma de conquistar a admiração de sua rígida mãe e a aceitação dos familiares da mulher que ama, a bela Sunaina (Tena Desae). O estado quase calamitoso do hotel, porém, não impede que seus novos hóspedes aproveitem todas as possibilidades da nova rotina, especialmente porque todos tem seus motivos particulares para estarem ali. Evelyn Greensdale (Judi Dench) acaba de ficar viúva e sem economias, e viaja com a intenção de respirar novos ares .sem precisar gastar muito. O juiz de Direito Graham Dashwood (Tom Wilkinson) precisa reencontrar um amor do passado, com quem perdeu contato há quarenta anos. O casal Douglas e Jean Ainslie (Bill Nighy e Penelope Wilton) está em crise, sentindo-se no fim da vida e recusando-se a recolher-se a um conjunto habitacional para pessoas de sua idade. A preconceituosa Muriel Donnelly (Maggie Smith), ex-governanta, precisa fazer uma cirurgia no quadril, bem mais acessível na Índia. E Norman Cousins (Ronald Pickup) e Madge Hardcastle (Celia Imrie) buscam novas experiências amorosas: ele puramente sexuais, ela atrás de um casamento milionário.
Dividindo seu tempo de forma justa e imparcial com todos os fascinantes personagens criados por Moggach, o roteiro de Oli Parker consegue equilibrar com maestria momentos de puro humor inglês - em especial quando entra em cena a brilhante Maggie Smith e sua ranzinza Sra. Donnelly - e cenas de grande sensibilidade, como todas aquelas que envolvem a resolução da história de amor de Dashwood e o nascente romance entre Evelyn e Douglas - que vê nela o extremo oposto de sua egoísta e desagradável esposa. Mesmo quando o filme desvia seu foco dos novos moradores do hotel e se concentra na difícil relação de Sonny com sua mãe o ritmo não chega a ser comprometido. É uma surpresa perceber, aliás, como o roteiro consegue dar conta de tantos personagens - desenvolvendo de forma satisfatória suas complexidades e idiossincrasias - sem tornar-se superficial e sem estender-se desnecessariamente além das palatáveis duas horas de duração. Mérito também, é claro, da edição ágil mas jamais apressada e da direção fluida de Madden, que evita com sucesso ser maior do que seus atores ou de sua história. Sua discrição, ao contrário de demonstrar falta de personalidade, apenas o confirma como um cineasta afeito mais aos atores do que a pirotecnias ou estripulias visuais - vale lembrar que em seu currículo constam também os potentes mas pouco vistos "A prova" (06) e "No limite da mentira" (2010).
Tocando de leve em temas espinhosos como preconceito racial, abandono na terceira idade e homossexualidade - sempre com respeito, delicadeza e certa dose de bom humor - "O exótico Hotel Marigold" certamente conquistou seu enorme público por sua estrutura despretensiosa, sustentada por um bom roteiro, bom elenco e direção competente. Em tempos onde cada filme tenta ser maior e mais barulhento do que o outro, é um oásis de pureza e ar puro. Mereceu todo o sucesso que fez.
sábado
A GRANDE MENTIRA
A GRANDE MENTIRA(The debt, 2010, Miramax, 113min ) Direção: John Madden. Roteiro: Matthew Vaughn, Jane Goldman, Peter Straughan, roteiro original de Assaf Bernstein, Ido Rosenblum. Fotografia: Ben Davis. Montagem: Alexander Berner. Música: Thomas Newman. Figurino: Natalie Ward. Direção de arte/cenários: Jim Clay/John Bush. Produção executiva: Tarquin Pack. Produção: Eitan Evan, Eduardo Rossoff, Kris Thykier, Matthew Vaughn. Elenco: Helen Mirren, Tom Wilkinson, Jessica Chastain, Sam Worthingtn, Ciáran Hinds, Marton Csokas, Jesper Christensen. Estreia: 04/9/10 (Festival de Deauville)
Em um primeiro e rápido olhar, o John Madden da comédia romântica "Shakespeare apaixonado" não tem rigorosamente nada do diretor do sombrio "A grande mentira", refilmagem de uma produção israelense de 1997. Porém, basta um pouquinho mais de atenção para perceber em ambos - assim como no inteligente "A prova", estrelado por Gwyneth Paltrow, Anthony Hopkins e Jake Gyllenhaal - o carinho e o cuidado que o cineasta dedica ao elenco de seus filmes. Tudo bem que contar com gente do calibre de Helen Mirren, Tom Wilkinson e Jessica Chastain ajuda muito, mas é sua sensibilidade e elegância que dão ao filme - um thriller político com toques dramáticos e românticos - a força que o mantém na memória do espectador um bom tempo após o final da projeção. Sem exagerar na violência ou carregar no sentimentalismo, Madden consegue equilibrar com sucesso todos os elementos do roteiro, tratando seu público com inteligência e respeito. Injustamente inédito nos cinemas brasileiros, onde foi lançado diretamente em DVD, "A grande mentira" é daquelas obras raras, que tratam de um tema político empolgante sem deixar de prestar atenção no lado humano da situação - e o faz com um elenco nunca menos que sensacional.
A trama começa em 1997, com o lançamento de um livro que conta a corajosa história real de três jovens agentes do Mossad que foram responsáveis pela prisão e morte de um criminoso de guerra conhecido como "Cirurgião de Birkenau ", trinta anos antes. Escrito pela filha da única mulher do grupo, a veterana Rachel Singer(Helen Mirren), o livro conta detalhes da missão que a transformou, junto com seu ex-marido, Stephan Gold (Tom Wilkinson), e com seu colega David Peretz (Ciarán Hinds), em heróis internacionais. O problema é que a versão oficial divulgada em 1966 não condiz com a verdade dos fatos e a situação torna-se insustentável quando David - que nunca recuperou-se totalmente das cicatrizes emocionais do caso - volta a procurar os antigos companheiros com a notícia de que eles estão a ponto de serem desmascarados. A doença de David e a impossibilidade física de Stephan (paraplégico depois de um atentado à bomba) obrigam Rachel a tomar para si a responsabilidade de resolver o problema - o que a leva a reviver os dias de tensão e paixão que vivenciou na segunda metade dos anos 60.
Em sua primeira missão como agente do Mossad, uma jovem e idealista Rachel (vivida pela sempre ótima Jessica Chastain) viaja para Berlim, para encontrar com seus dois colegas, o experiente Stephan (Marton Csokas) e o introvertido David (Sam Worthington, muito eficiente sem os efeitos visuais de "Avatar" e "Fúria de titãs"). Escalados para capturar um médico alemão responsável pela morte de milhares de judeus devido a suas experiências cruéis, os três não demoram a localizar sua presa, mas problemas de logística os obrigam a mantê-lo como refém no apartamento em que vivem, disfarçados como uma família normal. Não demora para que o médico, que assumiu o nome de Vogel (Jasper Christensen), descubra os pontos fracos de seus raptores e passe a utilizá-los a seu favor, o que leva a todos a um desfecho inesperado, violento e que não pode ser divulgado à mídia internacional.
Ainda que assuma de vez sua veia de thriller em seu ato final - quando Rachel assume a missão de encerrar de vez a história que começou trinta anos antes - "A grande mentira" caminha até então com elegância entre o suspense e o drama. Um de seus maiores méritos é inserir, dentro do contexto de tensão extrema do sequestro do criminoso nazista, um triângulo amoroso que, ao contrário de ser apenas uma distração romântica desnecessária, é ponto fundamental para o desenrolar da trama central. Inteligente em sua edição que vai e volta no tempo para mostrar atos e consequências e discreto em apelar para o sensacionalismo que normalmente vem acoplado a produções que versam sobre os horrores da II Guerra, é um filme que, a despeito da possível inverossimilhança de sua história, um trabalho envolvente e bem realizado, feito para quem gosta de filmes sérios sobre assuntos relevantes. Uma ótima - e ainda não descoberta - pedida.
Em um primeiro e rápido olhar, o John Madden da comédia romântica "Shakespeare apaixonado" não tem rigorosamente nada do diretor do sombrio "A grande mentira", refilmagem de uma produção israelense de 1997. Porém, basta um pouquinho mais de atenção para perceber em ambos - assim como no inteligente "A prova", estrelado por Gwyneth Paltrow, Anthony Hopkins e Jake Gyllenhaal - o carinho e o cuidado que o cineasta dedica ao elenco de seus filmes. Tudo bem que contar com gente do calibre de Helen Mirren, Tom Wilkinson e Jessica Chastain ajuda muito, mas é sua sensibilidade e elegância que dão ao filme - um thriller político com toques dramáticos e românticos - a força que o mantém na memória do espectador um bom tempo após o final da projeção. Sem exagerar na violência ou carregar no sentimentalismo, Madden consegue equilibrar com sucesso todos os elementos do roteiro, tratando seu público com inteligência e respeito. Injustamente inédito nos cinemas brasileiros, onde foi lançado diretamente em DVD, "A grande mentira" é daquelas obras raras, que tratam de um tema político empolgante sem deixar de prestar atenção no lado humano da situação - e o faz com um elenco nunca menos que sensacional.
A trama começa em 1997, com o lançamento de um livro que conta a corajosa história real de três jovens agentes do Mossad que foram responsáveis pela prisão e morte de um criminoso de guerra conhecido como "Cirurgião de Birkenau ", trinta anos antes. Escrito pela filha da única mulher do grupo, a veterana Rachel Singer(Helen Mirren), o livro conta detalhes da missão que a transformou, junto com seu ex-marido, Stephan Gold (Tom Wilkinson), e com seu colega David Peretz (Ciarán Hinds), em heróis internacionais. O problema é que a versão oficial divulgada em 1966 não condiz com a verdade dos fatos e a situação torna-se insustentável quando David - que nunca recuperou-se totalmente das cicatrizes emocionais do caso - volta a procurar os antigos companheiros com a notícia de que eles estão a ponto de serem desmascarados. A doença de David e a impossibilidade física de Stephan (paraplégico depois de um atentado à bomba) obrigam Rachel a tomar para si a responsabilidade de resolver o problema - o que a leva a reviver os dias de tensão e paixão que vivenciou na segunda metade dos anos 60.
Em sua primeira missão como agente do Mossad, uma jovem e idealista Rachel (vivida pela sempre ótima Jessica Chastain) viaja para Berlim, para encontrar com seus dois colegas, o experiente Stephan (Marton Csokas) e o introvertido David (Sam Worthington, muito eficiente sem os efeitos visuais de "Avatar" e "Fúria de titãs"). Escalados para capturar um médico alemão responsável pela morte de milhares de judeus devido a suas experiências cruéis, os três não demoram a localizar sua presa, mas problemas de logística os obrigam a mantê-lo como refém no apartamento em que vivem, disfarçados como uma família normal. Não demora para que o médico, que assumiu o nome de Vogel (Jasper Christensen), descubra os pontos fracos de seus raptores e passe a utilizá-los a seu favor, o que leva a todos a um desfecho inesperado, violento e que não pode ser divulgado à mídia internacional.
Ainda que assuma de vez sua veia de thriller em seu ato final - quando Rachel assume a missão de encerrar de vez a história que começou trinta anos antes - "A grande mentira" caminha até então com elegância entre o suspense e o drama. Um de seus maiores méritos é inserir, dentro do contexto de tensão extrema do sequestro do criminoso nazista, um triângulo amoroso que, ao contrário de ser apenas uma distração romântica desnecessária, é ponto fundamental para o desenrolar da trama central. Inteligente em sua edição que vai e volta no tempo para mostrar atos e consequências e discreto em apelar para o sensacionalismo que normalmente vem acoplado a produções que versam sobre os horrores da II Guerra, é um filme que, a despeito da possível inverossimilhança de sua história, um trabalho envolvente e bem realizado, feito para quem gosta de filmes sérios sobre assuntos relevantes. Uma ótima - e ainda não descoberta - pedida.
O ESCRITOR FANTASMA
O ESCRITOR FANTASMA (The ghost writer, 2010, R.P. Productions/France 2 Cinéma, 128min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski, Robert Harris, romance de Robert Harris. Fotografia: Pawel Edelman. Montagem: Hervé de Luze. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Dinah Collin. Direção de arte/cenários: Albrecht Konrad/Bernhard Henrich. Produção executiva: Henning Molfenter. Produção: Robert Benmussa, Roman Polanski, Alain Sarde. Elenco: Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Olivia Williams, Kim Catrall, Tom Wilkinson, Timothy Hutton, Jon Bernthal, James Belushi. Estreia: 12/02/10 (Festival de Berlim)
Não é qualquer diretor que consegue a façanha de comandar um thriller político sem cair nas armadilhas do gênero, criando uma trama anacrônica e/ou confusa demais para o espectador médio. Como todo mundo sabe, porém, Roman Polanski não é qualquer diretor. Vencedor do Oscar por "O pianista" e autor de obras consagradas pelo tempo, como "O bebê de Rosemary" e "Chinatown", o cineasta polonês demonstrou, na adaptação do romance "O escritor fantasma", que nem mesmo a idade avançada - 76 anos de idade durante as filmagens - ou a impossibilidade de pisar em território americano sob pena de prisão - resultado da condenação por ter feito sexo com uma menor de idade em 1978 - são empecilhos para quem tem talento. Concisa, elegante e extremamente eficiente, a transição do livro de Robert Harris para as telas é uma prova inconteste de sua energia e inquietude como cineasta: filmado na Alemanha e finalizado quando Polanski estava preso na Suíça, o filme acabou lhe rendendo o prêmio de melhor diretor no Festival de Berlim - a que ele não pode atender por causa da prisão domiciliar a que estava condenado à época - e tornou-se um de seus mais elogiados trabalhos pós-Oscar. Um sucesso merecido, principalmente pela feliz escolha de todos os elementos de produção.
Escrito pelo jornalista e colunista político Robert Harris - que nunca escondeu sua simpatia pelo primeiro-ministro Tony Blair até que o evento da Guerra do Iraque os separou ideologicamente - "O escritor fantasma" se utiliza de várias referências a Blair em seu enredo, mas procurar similaridades entre ele e o primeiro-ministro retratado na trama, Adam Lang é um exercício inútil: apesar de ser um tanto divertido buscar tais semelhanças, o espectador teria também que achar referências a outros líderes, como Bill e Hilary Clinton e o primeiro-ministro paquistanês Benazir Bhutto, todos citados de forma velada durante o desenrolar da história, em níveis mais ou menos óbvios, dependendo do conhecimento de história da plateia. Tais elementos, porém, são apenas detalhes que, se aumentam o interesse dos mais antenados, não atrapalham o divertimento daquele público que espera apenas uma boa história, contada com competência e seriedade. E isso, felizmente, "O escritor fantasma" faz com maestria, calcado principalmente na inspirada atuação de Ewan McGregor.
Ficando com o papel recusado por Hugh Grant e que quase foi de Nicolas Cage - Deus nos proteja! - McGregor está em um dos melhores momentos de sua carreira. Ele interpreta um escritor inglês que ganha a vida escrevendo biografias para celebridades que não tem o dom das letras - o que se chama, no mercado editorial, um "escritor fantasma". Pouco interessado em política, ele é contratado, por um bom salário, para escrever as memórias do primeiro-ministro britânico, Adam Lang (Pierce Brosnan, explorando seu carisma canastrão com propriedade), justamente quando ele está passando por uma crise relacionada ao terrorismo internacional e a questões de direitos humanos. No meio do furacão, o inocente autor (nunca nomeado) acaba por descobrir, por conta própria, que a morte de seu predecessor pode não ter sido acidental - e que sua própria vida pode estar correndo sério risco. Envolvido com a esposa de Lang, a fria Ruth (Olivia Williams, substituta de Tilda Swinton), ele resolve investigar uma pista que liga seu novo patrão à CIA.
Contando sua história sem pressa, dando a cada cena o peso correto para criar um clima de tensão e claustrofobia que é sua marca registrada, Polanski faz de "O escritor fantasma" um entretenimento adulto e sério, sem espaço para piadas desnecessárias ou sequências de ação inócuas. Centrando sua trama basicamente no personagem de McGregor - que entrega um misto de coragem e fragilidade na medida exata - e deixando apenas para os últimos minutos a reviravolta final (coerente e inteligente), o roteiro prende a atenção do espectador do início ao fim mesmo sem apelar para a violência gratuita ou para o clichê do heroísmo individual. É um filme seco, direto e pontual, perfeito para quem procura um entretenimento maduro e inteligente.
Não é qualquer diretor que consegue a façanha de comandar um thriller político sem cair nas armadilhas do gênero, criando uma trama anacrônica e/ou confusa demais para o espectador médio. Como todo mundo sabe, porém, Roman Polanski não é qualquer diretor. Vencedor do Oscar por "O pianista" e autor de obras consagradas pelo tempo, como "O bebê de Rosemary" e "Chinatown", o cineasta polonês demonstrou, na adaptação do romance "O escritor fantasma", que nem mesmo a idade avançada - 76 anos de idade durante as filmagens - ou a impossibilidade de pisar em território americano sob pena de prisão - resultado da condenação por ter feito sexo com uma menor de idade em 1978 - são empecilhos para quem tem talento. Concisa, elegante e extremamente eficiente, a transição do livro de Robert Harris para as telas é uma prova inconteste de sua energia e inquietude como cineasta: filmado na Alemanha e finalizado quando Polanski estava preso na Suíça, o filme acabou lhe rendendo o prêmio de melhor diretor no Festival de Berlim - a que ele não pode atender por causa da prisão domiciliar a que estava condenado à época - e tornou-se um de seus mais elogiados trabalhos pós-Oscar. Um sucesso merecido, principalmente pela feliz escolha de todos os elementos de produção.
Escrito pelo jornalista e colunista político Robert Harris - que nunca escondeu sua simpatia pelo primeiro-ministro Tony Blair até que o evento da Guerra do Iraque os separou ideologicamente - "O escritor fantasma" se utiliza de várias referências a Blair em seu enredo, mas procurar similaridades entre ele e o primeiro-ministro retratado na trama, Adam Lang é um exercício inútil: apesar de ser um tanto divertido buscar tais semelhanças, o espectador teria também que achar referências a outros líderes, como Bill e Hilary Clinton e o primeiro-ministro paquistanês Benazir Bhutto, todos citados de forma velada durante o desenrolar da história, em níveis mais ou menos óbvios, dependendo do conhecimento de história da plateia. Tais elementos, porém, são apenas detalhes que, se aumentam o interesse dos mais antenados, não atrapalham o divertimento daquele público que espera apenas uma boa história, contada com competência e seriedade. E isso, felizmente, "O escritor fantasma" faz com maestria, calcado principalmente na inspirada atuação de Ewan McGregor.
Ficando com o papel recusado por Hugh Grant e que quase foi de Nicolas Cage - Deus nos proteja! - McGregor está em um dos melhores momentos de sua carreira. Ele interpreta um escritor inglês que ganha a vida escrevendo biografias para celebridades que não tem o dom das letras - o que se chama, no mercado editorial, um "escritor fantasma". Pouco interessado em política, ele é contratado, por um bom salário, para escrever as memórias do primeiro-ministro britânico, Adam Lang (Pierce Brosnan, explorando seu carisma canastrão com propriedade), justamente quando ele está passando por uma crise relacionada ao terrorismo internacional e a questões de direitos humanos. No meio do furacão, o inocente autor (nunca nomeado) acaba por descobrir, por conta própria, que a morte de seu predecessor pode não ter sido acidental - e que sua própria vida pode estar correndo sério risco. Envolvido com a esposa de Lang, a fria Ruth (Olivia Williams, substituta de Tilda Swinton), ele resolve investigar uma pista que liga seu novo patrão à CIA.
Contando sua história sem pressa, dando a cada cena o peso correto para criar um clima de tensão e claustrofobia que é sua marca registrada, Polanski faz de "O escritor fantasma" um entretenimento adulto e sério, sem espaço para piadas desnecessárias ou sequências de ação inócuas. Centrando sua trama basicamente no personagem de McGregor - que entrega um misto de coragem e fragilidade na medida exata - e deixando apenas para os últimos minutos a reviravolta final (coerente e inteligente), o roteiro prende a atenção do espectador do início ao fim mesmo sem apelar para a violência gratuita ou para o clichê do heroísmo individual. É um filme seco, direto e pontual, perfeito para quem procura um entretenimento maduro e inteligente.
sexta-feira
DUPLICIDADE
DUPLICIDADE (Duplicity, 2009, Universal Pictures/Relativity Media, 125min) Direção e roteiro: Tony Gilroy. Fotografia: Robert Elswit. Montagem: John Gilroy. Música: James Newton Howard. Figurino: Albert Wolksy. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/George DeTitta Jr.. Produção executiva: Ryan Cavanaugh. Produção: Laura Bickford, Jennifer Fox, Kerry Orent. Elenco: Julia Roberts, Clive Owen, Tom Wilkinson, Paul Giamatti, Dennis O'Hare, Tom McCarthy. Estreia: 10/3/09
Cinco anos depois de formarem um casal envolvido em uma complicado quadrilátero amoroso no elogiado "Closer, perto demais", Julia Roberts e Clive Owen voltaram a dividir a tela. Dessa vez, porém, sem a densidade da obra dirigida de Mike Nichols, adaptada da peça teatral de Patrick Marber: na pele de dois espiões industriais que se apaixonam e tramam um golpe para garantir sua aposentadoria mesmo sem confiarem plenamente um no outro, a dupla oferece ao espectador uma trama leve e dotada de um senso de humor elegante que remete a clássicos como "Charada" - estrelado por Audrey Hepburn e Cary Grant - e comprova o talento do roteirista/diretor Tony Gilroy, recém-saído de várias indicações ao Oscar por seu "Conduta de risco" - que deu a estatueta de coadjuvante à Tilda Swinton. Fugindo do tom opressivo da obra estrelada por George Clooney, "Duplicidade" é uma comédia à moda antiga, que equilibra uma trama complexa com momentos de romantismo em cenários sofisticados ao redor do mundo. Pode soar confuso em vários momentos, mas é um entretenimento de classe, protagonizado por uma das mais carismáticas estrelas de Hollywood.
A trama de "Duplicidade" começa em Dubai, quando Ray Koval (Clive Owen) e Claire Stenwick (Julia Roberts) - dois agentes de órgãos de segurança rivais - se conhecem e passam a noite juntos. Ela rouba documentos importantes dele e desaparece por cinco anos, até que eles voltam a se encontrar, dessa vez trabalhando em empresas particulares, mas novamente inimigas. Ela é empregada de Howard Tully (Tom Wilkinson), o diretor de uma companhia farmacêutica que está em vias de lançar um revolucionário produto para acabar com a calvície. Ele trabalha para o rival de Tully, o egocêntrico Richard Garsick (Paul Giamatti), que tem uma equipe treinada para roubar segredos de seus concorrentes. Juntos, Ray e Claire resolvem trabalhar como agentes duplos, para descobrirem a fórmula secreta de Tully e se aposentarem em grande estilo. Através de flashbacks que contam como eles iniciaram seu plano, a trama avança até o grande clímax que vai finalmente mostrar se eles são tão inteligente e espertos quanto pensam - e se realmente estão jogando no mesmo time.
Abusando de uma edição complexa e esperta - ainda que às vezes em excesso - "Duplicidade" tem como seu maior mérito o fato de ser um filme direcionado ao público adulto, que foge dos efeitos visuais imbecilizantes e das piadas sem graça dos blockbusters. Apostando na inteligência da plateia, o roteiro de Gilroy exige dela uma atenção normalmente dispensada nas produções dos grandes estúdios, que visam apenas o retorno financeiro de seus projetos, independentemente de suas qualidades. O roteiro, que vai e volta no tempo, obriga a audiência a não desgrudar os olhos da tela, sob pena de perder o fio da meada - e consequentemente parar de acompanhar a trama, na verdade uma desculpa das mais charmosas para explorar mais uma vez a química entre Roberts e Owen, que parecem estar se divertindo ao dar vida a personagens tão distantes daqueles que lhes deram fama. Julia, principalmente, entrega uma performance inspirada e solar, que mostra um lado menos sério de seu talento, ainda pouco explorado apesar das comédias românticas que protagonizou nos anos 90. Sua Claire Stenwick é uma mulher forte, determinada e inteligente que manda no próprio nariz e não depende de homens para alcançar a felicidade - coisa rara no cinema americano apesar de opiniões contrárias - e ninguém melhor do que Roberts para interpretá-la. Um acerto de escalação de elenco que por si só já vale a sessão.
Além de Roberts, porém, "Duplicidade" também merece elogios por sua elegância visual. A fotografia de Robert Elswit (Oscar por "Sangue negro") tira o máximo proveito das paisagens naturais de Roma, Dubai e Nova York, evitando, apesar disso, os clichês quase inevitáveis. A leveza dos cenários, com seu charme e classe, contagia a atuação de um elenco à prova de qualquer crítica. Mesmo em papéis secundários, Paul Giamatti e Tom Wilkinson mostram que não são requisitados pelos maiores diretores de Hollywood à toa, e Clive Owen pela primeira vez deixa vislumbrar um lado cômico (ainda que sutil) de sua personalidade artística, um elemento a mais em um filme que, se não muda a história do cinema, ao menos lhe dá um pouco de consistência cerebral.
Cinco anos depois de formarem um casal envolvido em uma complicado quadrilátero amoroso no elogiado "Closer, perto demais", Julia Roberts e Clive Owen voltaram a dividir a tela. Dessa vez, porém, sem a densidade da obra dirigida de Mike Nichols, adaptada da peça teatral de Patrick Marber: na pele de dois espiões industriais que se apaixonam e tramam um golpe para garantir sua aposentadoria mesmo sem confiarem plenamente um no outro, a dupla oferece ao espectador uma trama leve e dotada de um senso de humor elegante que remete a clássicos como "Charada" - estrelado por Audrey Hepburn e Cary Grant - e comprova o talento do roteirista/diretor Tony Gilroy, recém-saído de várias indicações ao Oscar por seu "Conduta de risco" - que deu a estatueta de coadjuvante à Tilda Swinton. Fugindo do tom opressivo da obra estrelada por George Clooney, "Duplicidade" é uma comédia à moda antiga, que equilibra uma trama complexa com momentos de romantismo em cenários sofisticados ao redor do mundo. Pode soar confuso em vários momentos, mas é um entretenimento de classe, protagonizado por uma das mais carismáticas estrelas de Hollywood.
A trama de "Duplicidade" começa em Dubai, quando Ray Koval (Clive Owen) e Claire Stenwick (Julia Roberts) - dois agentes de órgãos de segurança rivais - se conhecem e passam a noite juntos. Ela rouba documentos importantes dele e desaparece por cinco anos, até que eles voltam a se encontrar, dessa vez trabalhando em empresas particulares, mas novamente inimigas. Ela é empregada de Howard Tully (Tom Wilkinson), o diretor de uma companhia farmacêutica que está em vias de lançar um revolucionário produto para acabar com a calvície. Ele trabalha para o rival de Tully, o egocêntrico Richard Garsick (Paul Giamatti), que tem uma equipe treinada para roubar segredos de seus concorrentes. Juntos, Ray e Claire resolvem trabalhar como agentes duplos, para descobrirem a fórmula secreta de Tully e se aposentarem em grande estilo. Através de flashbacks que contam como eles iniciaram seu plano, a trama avança até o grande clímax que vai finalmente mostrar se eles são tão inteligente e espertos quanto pensam - e se realmente estão jogando no mesmo time.
Abusando de uma edição complexa e esperta - ainda que às vezes em excesso - "Duplicidade" tem como seu maior mérito o fato de ser um filme direcionado ao público adulto, que foge dos efeitos visuais imbecilizantes e das piadas sem graça dos blockbusters. Apostando na inteligência da plateia, o roteiro de Gilroy exige dela uma atenção normalmente dispensada nas produções dos grandes estúdios, que visam apenas o retorno financeiro de seus projetos, independentemente de suas qualidades. O roteiro, que vai e volta no tempo, obriga a audiência a não desgrudar os olhos da tela, sob pena de perder o fio da meada - e consequentemente parar de acompanhar a trama, na verdade uma desculpa das mais charmosas para explorar mais uma vez a química entre Roberts e Owen, que parecem estar se divertindo ao dar vida a personagens tão distantes daqueles que lhes deram fama. Julia, principalmente, entrega uma performance inspirada e solar, que mostra um lado menos sério de seu talento, ainda pouco explorado apesar das comédias românticas que protagonizou nos anos 90. Sua Claire Stenwick é uma mulher forte, determinada e inteligente que manda no próprio nariz e não depende de homens para alcançar a felicidade - coisa rara no cinema americano apesar de opiniões contrárias - e ninguém melhor do que Roberts para interpretá-la. Um acerto de escalação de elenco que por si só já vale a sessão.
Além de Roberts, porém, "Duplicidade" também merece elogios por sua elegância visual. A fotografia de Robert Elswit (Oscar por "Sangue negro") tira o máximo proveito das paisagens naturais de Roma, Dubai e Nova York, evitando, apesar disso, os clichês quase inevitáveis. A leveza dos cenários, com seu charme e classe, contagia a atuação de um elenco à prova de qualquer crítica. Mesmo em papéis secundários, Paul Giamatti e Tom Wilkinson mostram que não são requisitados pelos maiores diretores de Hollywood à toa, e Clive Owen pela primeira vez deixa vislumbrar um lado cômico (ainda que sutil) de sua personalidade artística, um elemento a mais em um filme que, se não muda a história do cinema, ao menos lhe dá um pouco de consistência cerebral.
OPERAÇÃO VALKYRIA
OPERAÇÃO VALKYRIA (Valkyrie, 2008, MGM Pictures/United Artists/Bad Hat Harry Productions, 121min) Direção: Bryan Singer. Roteiro: Christopher McQuarrie, Nathan Alexander. Fotografia: Newton Thomas Siegel. Montagem e música: John Ottman. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Lilly Kilvert, Patrick Lumb/Bernhard Henrich. Produção executiva: Ken Kamins, Chris Lee, John Ottman, Dwight C. Schar, Mark Shapiro, Daniel M. Snyder. Produção: Gilbert Adler, Christopher McQuarrie, Bryan Singer. Elenco: Tom Cruise, Kenneth Branagh, Tom Wilkinson, Bill Nighy, Carice Van Houten, Thomas Kretschman, Terence Stamp, Tom Hollander. Estreia: 25/12/08
Bryan Singer começou a carreira chamando a atenção com filmes de suspense sutil e psicológico - "Os suspeitos" (95), que deu o primeiro Oscar à Kevin Spacey, e "O aprendiz" (98), uma adaptação majestosa de um conto de Stephen King, estrelada por Ian McKellen. Depois, fez fortuna com os dois primeiros capítulos de "X-Men", lançados em 2000 e 2003 e que abriram as portas para a febre de adaptações de HQs para o cinema e experimentou o gostinho do fracasso com sua - para muitos - decepcionante visão do Homem de Aço em "Superman, o retorno" (06). Foi para surpresa de muitos, portanto, que seu projeto seguinte tenha sido "Operação Valkyria", um drama de guerra baseado em fatos reais que, ao custo de 75 milhões de dólares e estrelado por Tom Cruise, tornou-se um dos mais bem-sucedidos filmes sobre a II Guerra Mundial de todos os tempos. Mesmo que não tenha feito muito barulho nas bilheterias americanas, a história da mais famosa tentativa alemã de assassinar Hitler rendeu mais de 200 milhões pelo mundo, comprovando o interesse das plateias pelo assunto - e o talento de Singer em transitar confortavelmente pelos mais variados gêneros sem deixar de lado a qualidade de sua obra.
Convencido a embarcar no projeto pelo roteirista Christopher McQuarrie - vencedor do Oscar por "Os suspeitos" e que conheceu a história do Coronel Claus Von Stauffenberg ao visitar um memorial em sua homenagem em Berlim, em 2002 - o jovem cineasta demonstra total domínio das regras do suspense, aplicando-as em um filme de enquadramentos clássicos e narrativa sóbria, que equilibra com inteligência dados históricos com sequências de pura tensão, sem deixar-se cair na tentação de criar uma obra didática ou uma produção superficial. Cercado de uma equipe de confiança - como o diretor de fotografia Newton Thomas Siegel e o editor e compositor John Ottman - Singer consegue a façanha de contar uma história cujo final não é exatamente surpreendente sem nunca perder o interesse da plateia, fisgada por uma trama inacreditável - mas que, por ironia das ironias, aconteceu de verdade. Enfatizando o suspense de cada sequência ao utilizar os princípios básicos do gênero e explorá-los ao máximo, o diretor injeta sangue novo aos filmes de guerra ao substituir a violência explícita pela tensão potencializada de cada close-up no lugar certo ou pela música de Ottman, que comenta a ação sem tornar-se intrusiva e/ou óbvia. Comandando minuciosamente cada cena, ele conduz o espectador a uma viagem das mais interessantes rumo a um dos momentos mais cruciais da história do mundo.
A trama de "Operação Valkyria" se passa em julho de 1944, quando um grupo de soldados alemães, temendo pela sorte do país conforme se aproxima o desfecho da Grande Guerra, decide pôr em prática um audacioso e arriscado plano de eliminar Hitler e assumir o controle de Berlim - e consequentemente de toda a Alemanha. Mesmo sabendo que corre o risco de ser condenado por alta traição (crime punido com a morte), o Coronel Claus Von Stauffenberg (Tom Cruise) assume o papel de líder da conspiração, convencendo outros membros do alto escalão do governo a fazer parte do time de rebeldes e agindo pessoalmente no momento mais importante da ação. Ferido em batalha não muito antes dos acontecimentos, o coronel sabe que seu país está se encaminhando para uma inevitável derrota e, com um elevado senso de patriotismo, deixa em segundo plano até mesmo a família em vias de aumentar. Um personagem heroico e forte, Stauffenberg ressente-se apenas pela representação morna de Tom Cruise, um ator que, promissor nos anos 90, tornou-se um pastiche de si mesmo, incapaz de convencer em papéis que fujam do trivial. Sorte de Cruise é estar cercado de um elenco coadjuvante fabuloso, em que se destacam os sempre eficientes Bill Nighy e Tom Wilkinson, além de Kenneth Branagh e Thomas Kretschmann em papéis infelizmente menores que seu talento.
Visualmente atraente - a reconstituição da Alemanha nazista é um primor, e o figurino de Joanna Johnston é acima de qualquer crítica - "Operação Valkyria" tem muito mais acertos do que erros. Não é um filme perfeito apesar de suas qualidades evidentes nem tampouco risível como faz pensar o (péssimo) trailer, que dá a impressão de ser uma comédia histórica exagerada e fake. É um trabalho de impressionante qualidade técnica que conta uma história de interesse universal, sobre pessoas cuja coragem sobrepujou o medo do pior dos castigos: a morte. É mais um belo filme de Bryan Singer.
Bryan Singer começou a carreira chamando a atenção com filmes de suspense sutil e psicológico - "Os suspeitos" (95), que deu o primeiro Oscar à Kevin Spacey, e "O aprendiz" (98), uma adaptação majestosa de um conto de Stephen King, estrelada por Ian McKellen. Depois, fez fortuna com os dois primeiros capítulos de "X-Men", lançados em 2000 e 2003 e que abriram as portas para a febre de adaptações de HQs para o cinema e experimentou o gostinho do fracasso com sua - para muitos - decepcionante visão do Homem de Aço em "Superman, o retorno" (06). Foi para surpresa de muitos, portanto, que seu projeto seguinte tenha sido "Operação Valkyria", um drama de guerra baseado em fatos reais que, ao custo de 75 milhões de dólares e estrelado por Tom Cruise, tornou-se um dos mais bem-sucedidos filmes sobre a II Guerra Mundial de todos os tempos. Mesmo que não tenha feito muito barulho nas bilheterias americanas, a história da mais famosa tentativa alemã de assassinar Hitler rendeu mais de 200 milhões pelo mundo, comprovando o interesse das plateias pelo assunto - e o talento de Singer em transitar confortavelmente pelos mais variados gêneros sem deixar de lado a qualidade de sua obra.
Convencido a embarcar no projeto pelo roteirista Christopher McQuarrie - vencedor do Oscar por "Os suspeitos" e que conheceu a história do Coronel Claus Von Stauffenberg ao visitar um memorial em sua homenagem em Berlim, em 2002 - o jovem cineasta demonstra total domínio das regras do suspense, aplicando-as em um filme de enquadramentos clássicos e narrativa sóbria, que equilibra com inteligência dados históricos com sequências de pura tensão, sem deixar-se cair na tentação de criar uma obra didática ou uma produção superficial. Cercado de uma equipe de confiança - como o diretor de fotografia Newton Thomas Siegel e o editor e compositor John Ottman - Singer consegue a façanha de contar uma história cujo final não é exatamente surpreendente sem nunca perder o interesse da plateia, fisgada por uma trama inacreditável - mas que, por ironia das ironias, aconteceu de verdade. Enfatizando o suspense de cada sequência ao utilizar os princípios básicos do gênero e explorá-los ao máximo, o diretor injeta sangue novo aos filmes de guerra ao substituir a violência explícita pela tensão potencializada de cada close-up no lugar certo ou pela música de Ottman, que comenta a ação sem tornar-se intrusiva e/ou óbvia. Comandando minuciosamente cada cena, ele conduz o espectador a uma viagem das mais interessantes rumo a um dos momentos mais cruciais da história do mundo.
A trama de "Operação Valkyria" se passa em julho de 1944, quando um grupo de soldados alemães, temendo pela sorte do país conforme se aproxima o desfecho da Grande Guerra, decide pôr em prática um audacioso e arriscado plano de eliminar Hitler e assumir o controle de Berlim - e consequentemente de toda a Alemanha. Mesmo sabendo que corre o risco de ser condenado por alta traição (crime punido com a morte), o Coronel Claus Von Stauffenberg (Tom Cruise) assume o papel de líder da conspiração, convencendo outros membros do alto escalão do governo a fazer parte do time de rebeldes e agindo pessoalmente no momento mais importante da ação. Ferido em batalha não muito antes dos acontecimentos, o coronel sabe que seu país está se encaminhando para uma inevitável derrota e, com um elevado senso de patriotismo, deixa em segundo plano até mesmo a família em vias de aumentar. Um personagem heroico e forte, Stauffenberg ressente-se apenas pela representação morna de Tom Cruise, um ator que, promissor nos anos 90, tornou-se um pastiche de si mesmo, incapaz de convencer em papéis que fujam do trivial. Sorte de Cruise é estar cercado de um elenco coadjuvante fabuloso, em que se destacam os sempre eficientes Bill Nighy e Tom Wilkinson, além de Kenneth Branagh e Thomas Kretschmann em papéis infelizmente menores que seu talento.
Visualmente atraente - a reconstituição da Alemanha nazista é um primor, e o figurino de Joanna Johnston é acima de qualquer crítica - "Operação Valkyria" tem muito mais acertos do que erros. Não é um filme perfeito apesar de suas qualidades evidentes nem tampouco risível como faz pensar o (péssimo) trailer, que dá a impressão de ser uma comédia histórica exagerada e fake. É um trabalho de impressionante qualidade técnica que conta uma história de interesse universal, sobre pessoas cuja coragem sobrepujou o medo do pior dos castigos: a morte. É mais um belo filme de Bryan Singer.
quinta-feira
CONDUTA DE RISCO
CONDUTA DE RISCO (Michael Clayton, 2007, Castle Rock
Entertainment, 119min) Direção e roteiro: Tony Gilroy. Fotografia:
Robert Elswit. Montagem: John Gilroy. Música: James Newton Howard.
Figurino: Sarah Edwards. Direção de arte/cenários: Kevin Thompson/Paul
Cheponis, George De Titta Jr., Christine Mayer, Charles M. Potter.
Produção executiva: George Clooney, James Holt, Anthony Minghella,
Steven Soderbergh. Produção: Jennifer Fox, Kerry Orent, Sydney Pollack,
Steven Samuels. Elenco: George Clooney, Tom Wilkinson, Tilda Swinton,
Sydney Pollack, Michael O'Keefe, Denis O'Hare. Estreia: 31/8/07
(Festival de Veneza)
7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Tony Gilroy), Ator (George Clooney), Ator Coadjuvante (Tom Wilkinson), Atriz Coadjuvante (Tilda Swinton), Roteiro Original, Trilha Sonora Original
Vencedor do Oscar de Atriz Coadjuvante (Tilda Swinton)
A carreira de George Clooney se divide, com extremo sucesso, entre produções puramente comerciais - caso de "Um drink no inferno" e a série de filmes "Onze homens e um segredo" - e filmes de ressonância social e política - como os impactantes "Boa noite, e boa sorte" e "Syriana", que lhe rendeu um Oscar de ator coadjuvante. "Conduta de risco", filme de estreia de Tony Gilroy como cineasta, faz parte da segunda categoria. Roteirista da trilogia Bourne, entre outros filmes de sucesso, Gilroy dá uma guinada de noventa graus na carreira ao privilegiar, ao invés da ação, um filme cerebral, lento e que dialoga muito mais com os sombrios filmes conspiratórios dos anos 70 pós-Watergate do que com os dinossauros anabolizados dos Stallone e Schwarzenegger que povoaram as telas a partir da década de 90. Se tal escolha não chegou a abalar as bilheterias - apesar de respeitáveis 50 milhões arrecadados nos cinemas americanos - ao menos agradou em cheio à crítica e à Academia, que lhe homenageou com 7 indicações importantes ao Oscar, inclusive em três categorias de interpretação (Tilda Swinton, impecável, acabou levando a estatueta) e nas três mais cobiçadas: filme, direção e roteiro.
Quem procurar no filme a ação característica dos filmes mais famosos que levam a assinatura de Gilroy irá decepcionar-se com "Conduta de risco", que tem um ritmo bem mais ameno e contido. Isso não quer dizer, no entanto, que seja menos explosivo - e sim, há uma explosão de carro logo nos primeiros minutos, que deflagra o longo flashback que explica a tensa condição em que se encontra seu protagonista, Michael Clayton (uma interpretação irretocável de Clooney). Empregado de uma firma de advogados - para quem conserta situações extremas que vão do mais banal ao mais complicado - ele está passando por uma crise pessoal de extrema urgência, que o faz dever 75 mil dólares a credores pouco dados a perdões. Pressionado e questionando sua própria ética ao perceber o quão desimportante ele na verdade é sob o ponto de vista de seu chefe, Marty Bach (Sydney Pollack), Clayton também chega a um impasse na carreira quando um dos advogados da firma, o respeitado Arthur Edens (Tom Wilkinson), também seu amigo pessoal, torna-se sua principal incumbência: responsável por um caso que põe uma milionária fábrica de pesticidas contra uma família de fazendeiros, Edens entra em crise psicótica e, disposto a revelar a verdade sobre a empresa nos tribunais, passa de aliado a inimigo. Tentando consertar o estrago, Clayton entra em rota de colisão contra a poderosa empresa - na figura da fria e ambiciosa Karen Crowder (Tila Swinton).
Aqueles que reclamarem que "Conduta de risco" demora a começar e que exige do público uma paciência e uma atenção aos quais ele está desacostumado estão certos. Realmente o roteiro de Gilroy não tem pressa em apresentar seus personagens e estabelecer a real história a ser contada, aproveitando sua primeira parte para definir claramente que, apesar da demarcação entre o bem e o mal, não há maniqueísmo em sua trama. Ok, a redenção do protagonista existe, assim como sua constatação de que há limites éticos até mesmo dentro de um universo onde tentativas de homicídio e chantagens são moeda corrente, mas o roteiro - que perdeu o Oscar para o frescor juvenil de "Juno" - não consegue deixar de soar incomodamente realista, a ponto de nem seu final agridoce aliviar a sensação de desesperança. Os inúmeros diálogos que questionam essa fronteira tênue e abstrata entre o legal e o criminoso, o certo e o errado, o ético e o maldoso representam um dos maiores méritos do filme, que aposta no que é dito - e muitas vezes no que não é dito - como principal elemento narrativo, enfatizado pela fotografia sóbria e pela trilha sonora minimalista de James Newton Howard, que sublinha os silêncios de Michael Clayton e seu desespero interior com delicadeza extrema.
Um filme para adultos cansados de perseguições de carros, seres imaginários e efeitos visuais mirabolantes, "Conduta de risco" é elegante e quase frio, buscando a cumplicidade da plateia através de uma história contada com seriedade e inteligência acima de tudo. Tal opção se reflete na direção de atores - concisa, objetiva, sutil - e em sua decisão acertadíssima de deixar para seu clímax o encontro dos dois titãs do elenco: quando George Clooney e Tilda Swinton finalmente ficam cara a cara, o filme de Tony Gilroy cresce, faz sentido e justifica o sucesso de crítica. Só por esse encontro - que se repetiria de forma mais divertida no subestimado "Queime depois de ler", dos irmãos Coen - "Conduta de risco" já vale uma sessão.
7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Tony Gilroy), Ator (George Clooney), Ator Coadjuvante (Tom Wilkinson), Atriz Coadjuvante (Tilda Swinton), Roteiro Original, Trilha Sonora Original
Vencedor do Oscar de Atriz Coadjuvante (Tilda Swinton)
A carreira de George Clooney se divide, com extremo sucesso, entre produções puramente comerciais - caso de "Um drink no inferno" e a série de filmes "Onze homens e um segredo" - e filmes de ressonância social e política - como os impactantes "Boa noite, e boa sorte" e "Syriana", que lhe rendeu um Oscar de ator coadjuvante. "Conduta de risco", filme de estreia de Tony Gilroy como cineasta, faz parte da segunda categoria. Roteirista da trilogia Bourne, entre outros filmes de sucesso, Gilroy dá uma guinada de noventa graus na carreira ao privilegiar, ao invés da ação, um filme cerebral, lento e que dialoga muito mais com os sombrios filmes conspiratórios dos anos 70 pós-Watergate do que com os dinossauros anabolizados dos Stallone e Schwarzenegger que povoaram as telas a partir da década de 90. Se tal escolha não chegou a abalar as bilheterias - apesar de respeitáveis 50 milhões arrecadados nos cinemas americanos - ao menos agradou em cheio à crítica e à Academia, que lhe homenageou com 7 indicações importantes ao Oscar, inclusive em três categorias de interpretação (Tilda Swinton, impecável, acabou levando a estatueta) e nas três mais cobiçadas: filme, direção e roteiro.
Quem procurar no filme a ação característica dos filmes mais famosos que levam a assinatura de Gilroy irá decepcionar-se com "Conduta de risco", que tem um ritmo bem mais ameno e contido. Isso não quer dizer, no entanto, que seja menos explosivo - e sim, há uma explosão de carro logo nos primeiros minutos, que deflagra o longo flashback que explica a tensa condição em que se encontra seu protagonista, Michael Clayton (uma interpretação irretocável de Clooney). Empregado de uma firma de advogados - para quem conserta situações extremas que vão do mais banal ao mais complicado - ele está passando por uma crise pessoal de extrema urgência, que o faz dever 75 mil dólares a credores pouco dados a perdões. Pressionado e questionando sua própria ética ao perceber o quão desimportante ele na verdade é sob o ponto de vista de seu chefe, Marty Bach (Sydney Pollack), Clayton também chega a um impasse na carreira quando um dos advogados da firma, o respeitado Arthur Edens (Tom Wilkinson), também seu amigo pessoal, torna-se sua principal incumbência: responsável por um caso que põe uma milionária fábrica de pesticidas contra uma família de fazendeiros, Edens entra em crise psicótica e, disposto a revelar a verdade sobre a empresa nos tribunais, passa de aliado a inimigo. Tentando consertar o estrago, Clayton entra em rota de colisão contra a poderosa empresa - na figura da fria e ambiciosa Karen Crowder (Tila Swinton).
Aqueles que reclamarem que "Conduta de risco" demora a começar e que exige do público uma paciência e uma atenção aos quais ele está desacostumado estão certos. Realmente o roteiro de Gilroy não tem pressa em apresentar seus personagens e estabelecer a real história a ser contada, aproveitando sua primeira parte para definir claramente que, apesar da demarcação entre o bem e o mal, não há maniqueísmo em sua trama. Ok, a redenção do protagonista existe, assim como sua constatação de que há limites éticos até mesmo dentro de um universo onde tentativas de homicídio e chantagens são moeda corrente, mas o roteiro - que perdeu o Oscar para o frescor juvenil de "Juno" - não consegue deixar de soar incomodamente realista, a ponto de nem seu final agridoce aliviar a sensação de desesperança. Os inúmeros diálogos que questionam essa fronteira tênue e abstrata entre o legal e o criminoso, o certo e o errado, o ético e o maldoso representam um dos maiores méritos do filme, que aposta no que é dito - e muitas vezes no que não é dito - como principal elemento narrativo, enfatizado pela fotografia sóbria e pela trilha sonora minimalista de James Newton Howard, que sublinha os silêncios de Michael Clayton e seu desespero interior com delicadeza extrema.
Um filme para adultos cansados de perseguições de carros, seres imaginários e efeitos visuais mirabolantes, "Conduta de risco" é elegante e quase frio, buscando a cumplicidade da plateia através de uma história contada com seriedade e inteligência acima de tudo. Tal opção se reflete na direção de atores - concisa, objetiva, sutil - e em sua decisão acertadíssima de deixar para seu clímax o encontro dos dois titãs do elenco: quando George Clooney e Tilda Swinton finalmente ficam cara a cara, o filme de Tony Gilroy cresce, faz sentido e justifica o sucesso de crítica. Só por esse encontro - que se repetiria de forma mais divertida no subestimado "Queime depois de ler", dos irmãos Coen - "Conduta de risco" já vale uma sessão.
sexta-feira
ENTRE QUATRO PAREDES
ENTRE
QUATRO PAREDES (In the bedroom, 2001, Good Machine/Standard Film
Company, 130min) Direção: Todd Field. Roteiro: Rob Festinger, Todd
Field, estória "Killings", de Andre Dubus. Fotografia: Antonio Calvache.
Montagem: Frank Reynolds. Música: Thomas Newman. Figurino: Melissa
Economy. Direção de arte/cenários: Josh Outerbridge. Produção executiva:
Ted Hope, John Pennotti. Produção: Todd Field, Ross Katz, Graham
Leader. Elenco: Sissy Spacek, Tom Wilkinson, Marisa Tomei, Nick Stahl,
William Mapother, Celia Weston, Karen Allen. Estreia: 19/01/01 (Festival
de Sundance)
5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Tom Wilkinson), Atriz (Sissy Spacek), Atriz Coadjuvante (Marisa Tomei), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz /Drama (Marisa Tomei)
Coadjuvante de filmes de grande bilheteria - "Twister" (96) - e de prestígio junto à crítica - "De olhos bem fechados" (99), de Stanley Kubrick - e experiente diretor de curtas-metragem (além de um episódio da telessérie "Once and again"), o ator Todd Field começou com o pé direito sua carreira como cineasta: ao adaptar para as telas um conto do escritor Andre Dubus sobre um casal de meia-idade abalado pela morte violenta do filho único, ele conseguiu a rara façanha de, logo em sua estreia, chegar à festa da Academia indicado em cinco importantes categorias, incluindo melhor filme, ator e atriz. Narrado em um tom minimalista que lembra o cinema europeu, "Entre quatro paredes" ainda deu à Sissy Spacek o Golden Globe de melhor atriz dramática - ela perdeu o Oscar para Hale Berry em "A última ceia", mas seu trabalho é um dos mais intensos de sua trajetória artística. Além dos elogios da crítica - e dos prêmios de melhor filme de estreia, melhor ator e melhor atriz na festa dos Independent Spirit Awards, o Oscar das produções independentes - a obra serviu também para dar uma nova chance à Marisa Tomei, que deixou de ser uma piada por sua estatueta de coadjuvante por "Meu primo Vinny" (92) para conquistar respeito como atriz dramática.
Em uma pequena cidade do Maine, o jovem estudante Frank Fowler (Nick Stahl) resolve dar um tempo na faculdade de arquitetura para manter o romance de verão que iniciou com a bela Natalia (Marisa Tomei, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante), uma mulher mais velha, separada e pai de dois filhos pequenos. Sua decisão não tem o apoio de seus pais, o médico Matt (Tom Wilkinson) e a professora de música Ruth (Sissy Spacek), que, no entanto, não se intrometem na relação para evitar maiores conflitos. A situação aparentemente resolvida sofre uma violenta reviravolta, porém, quando Richard Strout (William Mapother), ex-marido de Natalie, mata o jovem durante uma discussão e, por ser de uma família influente no local, é solto para aguardar o julgamento em liberdade. Torturados pela tristeza e pela culpa, Matt e Ruth precisam ainda lidar com o fato de cruzarem frequentemente com o assassino de seu filho pelas ruas da cidade e com a possibilidade de uma injustiça.
Enfatizando mais a opressão cotidiana da cidade onde se passa a história e os sentimentos de desespero dos protagonistas do que um roteiro frequentemente carente de grandes acontecimentos - até mesmo o homicídio é mostrado com uma discrição que afasta o filme da maioria das produções hollywoodianas - "Entre quatro paredes" é quase um estranho no ninho dentro do cinema dramático americano. Todd Field entra no lar da família Fowler como uma testemunha invisível e silenciosa, lendo seu pensamento e justificando suas drásticas decisões sem sublinhar de forma óbvia as consequências dos atos de seus personagens. A trilha sonora do veterano Thomas Newman é sutil, quase tênue, refletindo a opção de Field em tratar sua obra com o máximo de economia. Tal decisão, ao mesmo tempo em que dá personalidade ao filme, impede uma identificação maior do público, que pode estranhar tamanha frieza no tratamento tão distante de uma história capaz de despertar tantas emoções e revolta. A sorte do cineasta é que, a despeito da aparente frieza do roteiro, seus atores estão absolutamente fantásticos.
Capaz de dizer muito com apenas um olhar, Sissy Spacek está brilhante na pele de Ruth Fowler, uma mulher pacata e discreta que vê sua vida desmoronar de uma hora para outra e não consegue lidar com os meandros frequentemente cruéis da justiça. Tom Wilkinson (indicado ao Oscar de melhor ator) interpreta seu Matt como um animal domesticado que percebe estar voltando a suas origens quando é desafiado a conviver com uma dor que não se ameniza com o passar dos dias. E Marisa Tomei não precisa de muitas cenas para convencer o público de toda a complexidade de sentimentos de sua Natalie, a catalisadora involuntária de um desastre sem precedentes que destroi tudo a seu redor. A cena em que sua personagem reencontra Ruth depois da morte de Frank é uma das mais fortes do filme, mesmo que abdique de gritos e lágrimas em exagero.
Uma história contada em tom menor, "Entre quatro paredes" pode emocionar aos mais sensíveis, mas sofre de um ritmo lento em demasia que prejudica o envolvimento de um público maior - além de um desfecho anti-climático que apenas reitera sua opção em fugir dos clichês melodramáticos do cinemão ianque.
5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Tom Wilkinson), Atriz (Sissy Spacek), Atriz Coadjuvante (Marisa Tomei), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz /Drama (Marisa Tomei)
Coadjuvante de filmes de grande bilheteria - "Twister" (96) - e de prestígio junto à crítica - "De olhos bem fechados" (99), de Stanley Kubrick - e experiente diretor de curtas-metragem (além de um episódio da telessérie "Once and again"), o ator Todd Field começou com o pé direito sua carreira como cineasta: ao adaptar para as telas um conto do escritor Andre Dubus sobre um casal de meia-idade abalado pela morte violenta do filho único, ele conseguiu a rara façanha de, logo em sua estreia, chegar à festa da Academia indicado em cinco importantes categorias, incluindo melhor filme, ator e atriz. Narrado em um tom minimalista que lembra o cinema europeu, "Entre quatro paredes" ainda deu à Sissy Spacek o Golden Globe de melhor atriz dramática - ela perdeu o Oscar para Hale Berry em "A última ceia", mas seu trabalho é um dos mais intensos de sua trajetória artística. Além dos elogios da crítica - e dos prêmios de melhor filme de estreia, melhor ator e melhor atriz na festa dos Independent Spirit Awards, o Oscar das produções independentes - a obra serviu também para dar uma nova chance à Marisa Tomei, que deixou de ser uma piada por sua estatueta de coadjuvante por "Meu primo Vinny" (92) para conquistar respeito como atriz dramática.
Em uma pequena cidade do Maine, o jovem estudante Frank Fowler (Nick Stahl) resolve dar um tempo na faculdade de arquitetura para manter o romance de verão que iniciou com a bela Natalia (Marisa Tomei, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante), uma mulher mais velha, separada e pai de dois filhos pequenos. Sua decisão não tem o apoio de seus pais, o médico Matt (Tom Wilkinson) e a professora de música Ruth (Sissy Spacek), que, no entanto, não se intrometem na relação para evitar maiores conflitos. A situação aparentemente resolvida sofre uma violenta reviravolta, porém, quando Richard Strout (William Mapother), ex-marido de Natalie, mata o jovem durante uma discussão e, por ser de uma família influente no local, é solto para aguardar o julgamento em liberdade. Torturados pela tristeza e pela culpa, Matt e Ruth precisam ainda lidar com o fato de cruzarem frequentemente com o assassino de seu filho pelas ruas da cidade e com a possibilidade de uma injustiça.
Enfatizando mais a opressão cotidiana da cidade onde se passa a história e os sentimentos de desespero dos protagonistas do que um roteiro frequentemente carente de grandes acontecimentos - até mesmo o homicídio é mostrado com uma discrição que afasta o filme da maioria das produções hollywoodianas - "Entre quatro paredes" é quase um estranho no ninho dentro do cinema dramático americano. Todd Field entra no lar da família Fowler como uma testemunha invisível e silenciosa, lendo seu pensamento e justificando suas drásticas decisões sem sublinhar de forma óbvia as consequências dos atos de seus personagens. A trilha sonora do veterano Thomas Newman é sutil, quase tênue, refletindo a opção de Field em tratar sua obra com o máximo de economia. Tal decisão, ao mesmo tempo em que dá personalidade ao filme, impede uma identificação maior do público, que pode estranhar tamanha frieza no tratamento tão distante de uma história capaz de despertar tantas emoções e revolta. A sorte do cineasta é que, a despeito da aparente frieza do roteiro, seus atores estão absolutamente fantásticos.
Capaz de dizer muito com apenas um olhar, Sissy Spacek está brilhante na pele de Ruth Fowler, uma mulher pacata e discreta que vê sua vida desmoronar de uma hora para outra e não consegue lidar com os meandros frequentemente cruéis da justiça. Tom Wilkinson (indicado ao Oscar de melhor ator) interpreta seu Matt como um animal domesticado que percebe estar voltando a suas origens quando é desafiado a conviver com uma dor que não se ameniza com o passar dos dias. E Marisa Tomei não precisa de muitas cenas para convencer o público de toda a complexidade de sentimentos de sua Natalie, a catalisadora involuntária de um desastre sem precedentes que destroi tudo a seu redor. A cena em que sua personagem reencontra Ruth depois da morte de Frank é uma das mais fortes do filme, mesmo que abdique de gritos e lágrimas em exagero.
Uma história contada em tom menor, "Entre quatro paredes" pode emocionar aos mais sensíveis, mas sofre de um ritmo lento em demasia que prejudica o envolvimento de um público maior - além de um desfecho anti-climático que apenas reitera sua opção em fugir dos clichês melodramáticos do cinemão ianque.
domingo
WILDE
WILDE
(Wilde, 1997, BBC/Capitol Films, 118min) Direção: Brian Gilbert.
Roteiro: Julian Mitchell, livro de Richard Ellman. Fotografia: Martin
Fuhrer. Montagem: Michael Bradsell. Música: Debbie Wiseman. Figurino:
Nic Ede. Direção de arte/cenários: Maria Djurkovic. Produção executiva:
Alex Graham, Alan Howden, Deborah Raffin, Michael Viner, Michiyo
Yoshizaki. Produção: Marc Samuelson, Peter Samuelson. Elenco: Stephen
Fry, Jude Law, Vanessa Redgrave, Jennifer Ehle, Gemma Jones, Judy
Parfitt, Michael Sheen, Tom Wilkinson, Ioan Gruffud, Zoe Wanamaker,
Orlando Bloom. Estreia: 01/9/97
Um dos escritores mais respeitados e conhecidos do mundo - especialmente graças à sua obra-prima "O retrato de Dorian Gray" - o irlandês Oscar Wilde era conhecido em sua época também devido a seu estilo de vida pouco recomendado à alta sociedade. Notadamente homossexual - fato que nem mesmo seu casamento e os posteriores filhos conseguiram disfarçar perante a sociedade - ele frequentemente desfilava por Londres com algum jovem rapaz à tiracolo, suscitando todos os tipos de comentários (que naturalmente ficavam restritos a quatro paredes). Um desses rapazes, porém, foi o responsável indireto por jogar o autor de "A importância de ser honesto" em um escândalo de grandes proporções que nem mesmo o respeito público por sua obra literária foi capaz de abafar: condenado à dois anos de trabalhos forçados (a homossexualidade era crime passível de punição na Inglaterra do século XIX), Wilde se viu humilhado e rechaçado pela população, em um dos mais infames casos jurídicos do país. É esse recorte da vida do escritor - que se passa entre a criação de seu maior livro e a condenação que lhe fragilizou a saúde - a base de "Wilde", bela cinebiografia de Brian Gilbert que, apesar das inúmeras qualidades, passou quase despercebido pelos cinemas e pelas cerimônias de premiação.
Sua maior qualidade - e a que mais merecia homenagens nos tapetes vermelhos que tanto aplaudem talentos menores - é a atuação de Stephen Fry no papel central. Além da semelhança física com o Oscar Wilde, o ator inglês entrega um desempenho irretocável, que abrange todas as nuances da complexa personalidade do escritor de forma orgânica e objetiva. Em sua interpretação a plateia pode ver o homem apaixonado, o intelectual sardônico, o pai amoroso, o marido carinhoso, o dândi debochado e finalmente o mártir vencido pelo preconceito e pelo amor incondicional àquele que, de um modo ou outro, foi a faísca que deflagrou sua decadência. Ignorado por todas as cerimônias de premiação, Fry - que parece ter nascido para interpretar Wilde - foi o grande injustiçado de um ano em que a Academia resolveu homenagear a velha guarda de Hollywood (Jack Nicholson, Dustin Hoffman, Robert Duvall e Peter Fonda foram indicados ao Oscar) e lançar um novo candidato a astro (Matt Damon, que saiu vencedor na categoria de roteiro original ao lado de Ben Affleck mas cuja lembrança no páreo de interpretação masculina soou mais como um incentivo do que como merecimento). Essa esnobada de todos os críticos - somente o Golden Globe lhe indicou no ano seguinte, quando o filme finalmente estreou nos EUA - porém, não tiram o brilho, tanto do ator quanto do filme em si.
A obra de Gilbert começa quando Wilde, voltando à Londres depois de uma temporada nos EUA, se casa com a doce Constance (Jennifer Ehle), com quem tem dois filhos justamente quando começa a tornar-se um dramaturgo de sucesso. É nessa época também que ele passa a exercer mais explicitamente sua homossexualidade, envolvendo-se com homens mais jovens e frequentemente de menos posses, que não se importam em dividir sua cama com outros rapazes na mesma situação - como Robie Ross (Michael Sheen), que se torna amigo íntimo e fiel do escritor. Sua rotina se altera profundamente, porém, quando ele se apaixona perdidamente pelo sedutor e manipulador Alfred 'Bosie' Douglas (Jude Law, antes de ficar famoso com "O talentoso Ripley" mas já demonstrando grande talento e beleza), filho do influente Marquês de Queensbery (Tom Wilkinson). Furioso com a relação entre o filho e aquele a quem considera um "pederasta pervertido", o marquês inicia uma campanha de difamação que resulta em um julgamento que expõe o estilo de vida de Oscar - e consequentemente, na sua ruína financeira e moral.
Construindo sua história sem pressa e estabelecendo com inteligência a relação desigual entre Wilde e Bosie - um rapaz egoísta, irresponsável e imaturo que é incapaz de perceber o estrago que suas atitudes podem causar ao amante - Brian Gilbert também cuida em dotar de personalidade os coadjuvantes de sua história, vividos por atores sensacionais como Tom Wilkinson e Vanessa Redgrave - que interpreta a mãe do protagonista com a personalidade forte de sempre. Dirigindo com elegâncias as cenas de sexo - que nunca ultrapassam o limite do bom-gosto e servem apenas para ilustrar o drama central - o cineasta conduz o roteiro de forma a enfatizar a situação extrema de seus personagens e não apenas de comentá-la como uma testemunha neutra. Nitidamente simpática a Wilde e à causa gay, a produção não se furta a retratar seu personagem principal como uma vítima de uma sociedade preconceituosa e hipócrita, o que confere ao filme ares de uma atualidade pungente. Mesmo que não se aprofunde na psicologia de seus protagonistas - que muitas vezes soam bastante fúteis e volúveis - o roteiro serve com perfeição para apresentar ao público uma das histórias mais tristes e revoltantes dos bastidores da literatura mundial. Um filme que não merecia o pouco-caso com que foi recebido e deve ser descoberto pelos fãs do gênero e de um dos maiores escritores da língua inglesa de todos os tempos.
Um dos escritores mais respeitados e conhecidos do mundo - especialmente graças à sua obra-prima "O retrato de Dorian Gray" - o irlandês Oscar Wilde era conhecido em sua época também devido a seu estilo de vida pouco recomendado à alta sociedade. Notadamente homossexual - fato que nem mesmo seu casamento e os posteriores filhos conseguiram disfarçar perante a sociedade - ele frequentemente desfilava por Londres com algum jovem rapaz à tiracolo, suscitando todos os tipos de comentários (que naturalmente ficavam restritos a quatro paredes). Um desses rapazes, porém, foi o responsável indireto por jogar o autor de "A importância de ser honesto" em um escândalo de grandes proporções que nem mesmo o respeito público por sua obra literária foi capaz de abafar: condenado à dois anos de trabalhos forçados (a homossexualidade era crime passível de punição na Inglaterra do século XIX), Wilde se viu humilhado e rechaçado pela população, em um dos mais infames casos jurídicos do país. É esse recorte da vida do escritor - que se passa entre a criação de seu maior livro e a condenação que lhe fragilizou a saúde - a base de "Wilde", bela cinebiografia de Brian Gilbert que, apesar das inúmeras qualidades, passou quase despercebido pelos cinemas e pelas cerimônias de premiação.
Sua maior qualidade - e a que mais merecia homenagens nos tapetes vermelhos que tanto aplaudem talentos menores - é a atuação de Stephen Fry no papel central. Além da semelhança física com o Oscar Wilde, o ator inglês entrega um desempenho irretocável, que abrange todas as nuances da complexa personalidade do escritor de forma orgânica e objetiva. Em sua interpretação a plateia pode ver o homem apaixonado, o intelectual sardônico, o pai amoroso, o marido carinhoso, o dândi debochado e finalmente o mártir vencido pelo preconceito e pelo amor incondicional àquele que, de um modo ou outro, foi a faísca que deflagrou sua decadência. Ignorado por todas as cerimônias de premiação, Fry - que parece ter nascido para interpretar Wilde - foi o grande injustiçado de um ano em que a Academia resolveu homenagear a velha guarda de Hollywood (Jack Nicholson, Dustin Hoffman, Robert Duvall e Peter Fonda foram indicados ao Oscar) e lançar um novo candidato a astro (Matt Damon, que saiu vencedor na categoria de roteiro original ao lado de Ben Affleck mas cuja lembrança no páreo de interpretação masculina soou mais como um incentivo do que como merecimento). Essa esnobada de todos os críticos - somente o Golden Globe lhe indicou no ano seguinte, quando o filme finalmente estreou nos EUA - porém, não tiram o brilho, tanto do ator quanto do filme em si.
A obra de Gilbert começa quando Wilde, voltando à Londres depois de uma temporada nos EUA, se casa com a doce Constance (Jennifer Ehle), com quem tem dois filhos justamente quando começa a tornar-se um dramaturgo de sucesso. É nessa época também que ele passa a exercer mais explicitamente sua homossexualidade, envolvendo-se com homens mais jovens e frequentemente de menos posses, que não se importam em dividir sua cama com outros rapazes na mesma situação - como Robie Ross (Michael Sheen), que se torna amigo íntimo e fiel do escritor. Sua rotina se altera profundamente, porém, quando ele se apaixona perdidamente pelo sedutor e manipulador Alfred 'Bosie' Douglas (Jude Law, antes de ficar famoso com "O talentoso Ripley" mas já demonstrando grande talento e beleza), filho do influente Marquês de Queensbery (Tom Wilkinson). Furioso com a relação entre o filho e aquele a quem considera um "pederasta pervertido", o marquês inicia uma campanha de difamação que resulta em um julgamento que expõe o estilo de vida de Oscar - e consequentemente, na sua ruína financeira e moral.
Construindo sua história sem pressa e estabelecendo com inteligência a relação desigual entre Wilde e Bosie - um rapaz egoísta, irresponsável e imaturo que é incapaz de perceber o estrago que suas atitudes podem causar ao amante - Brian Gilbert também cuida em dotar de personalidade os coadjuvantes de sua história, vividos por atores sensacionais como Tom Wilkinson e Vanessa Redgrave - que interpreta a mãe do protagonista com a personalidade forte de sempre. Dirigindo com elegâncias as cenas de sexo - que nunca ultrapassam o limite do bom-gosto e servem apenas para ilustrar o drama central - o cineasta conduz o roteiro de forma a enfatizar a situação extrema de seus personagens e não apenas de comentá-la como uma testemunha neutra. Nitidamente simpática a Wilde e à causa gay, a produção não se furta a retratar seu personagem principal como uma vítima de uma sociedade preconceituosa e hipócrita, o que confere ao filme ares de uma atualidade pungente. Mesmo que não se aprofunde na psicologia de seus protagonistas - que muitas vezes soam bastante fúteis e volúveis - o roteiro serve com perfeição para apresentar ao público uma das histórias mais tristes e revoltantes dos bastidores da literatura mundial. Um filme que não merecia o pouco-caso com que foi recebido e deve ser descoberto pelos fãs do gênero e de um dos maiores escritores da língua inglesa de todos os tempos.
quinta-feira
OU TUDO OU NADA
OU
TUDO OU NADA (The full monty, 1997, Redwave Films/Channel Four
Films/20th Century Fox Films, 91min) Direção: Peter Cattaneo. Roteiro:
Simon Beaufoy. Fotografia: John De Borman. Montagem: David Freeman, Nick
Moore. Música: Anne Dudley. Figurino: Jill Taylor. Direção de
arte/cenários: Max Gottlieb. Produção: Uberto Pasolini. Elenco: Robert
Carlyle, Tom Wilkinson, Mark Addy, William Snape, Steve Huison, Paul
Barber, Hugo Speer, Lesley Sharp, Emily Woof. Estreia: 13/8/97
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Direção (Peter Cattaneo), Roteiro Original, Trilha Sonora Original (Comédia/Musical)
Vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora Original (Comédia/Musical)
A cerimônia do Oscar 98 teve um protagonista indiscutível - "Titanic", com suas 14 indicações e 11 estatuetas - e alguns coadjuvantes de importância razoável - "Melhor é impossível", "Gênio indomável" e "Los Angeles, cidade proibida", todos premiados em duas categorias cada um. Mas um dos filmes mais falados da disputa não tinha astros conhecidos em seu elenco, havia sido realizado com uns trocados e era falado em um inglês que até mesmo os americanos tinham certa dificuldade em compreender. Em mais um caso de Davi contra Golias na maior festa do cinema, a comédia "Ou tudo ou nada" - com um orçamento de 3,5 milhões de dólares - tentava derrotar o mastodôntico transatlântico de 200 milhões de James Cameron com base apenas na simpatia que despertou nas plateias mundiais e nas entusiasmadas críticas angariadas pelo planeta. Logicamente suas armas não foram poderosas o bastante - levou apenas o Oscar de melhor trilha sonora, que soou como um prêmio de consolação - mas só o fato de estar entre os cinco finalistas de melhor filme de um ano bem forte já pode ser considerado uma vitória e tanto para uma obra tão pouco ambiciosa.
Mistura de comédia de costumes com crítica social, "Ou tudo ou nada" ganhou o público justamente pela despretensão, que é a sua maior qualidade. Enxuto e esperto ao utilizar suas limitações orçamentárias a seu favor, transmitindo em cada cena a sensação de decadência e melancolia de uma comunidade desprovida de esperança e expectativas de progresso, o filme do estreante Peter Cattaneo - que de cara se viu disputando uma estatueta dourada com nomes consagrados como Cameron e Gus Van Sant - desconstrói o pessimismo diante de uma das maiores crises financeiras da história da Inglaterra com uma história alto-astral e positiva, recheada de personagens absolutamente críveis em sua banalidade e uma trilha sonora deliciosa de clássicos da era da discoteca.
A trama se passa em uma pequena cidade inglesa chamada Sheffield, que, de um passado brilhante e promissor como "a cidade do aço", transformou-se, uma década e meia mais tarde, em mais uma comunidade assombrada pelo fantasma da crise e do desemprego massivo. Apenas mais um dentre milhares, o desesperado Gary (Robert Carlyle) está em vias de perder inclusive a guarda compartilhada do único filho quando tem uma ideia no mínimo inusitada: reunir um grupo de homens na mesma situação que ele para organizar um show de striptease completo e assim, arrumar dinheiro para pagar as contas. O fato de nem ele nem seus companheiros de projeto serem exatamente galãs é o menor dos seus problemas: com pouco tempo e sem local para ensaiar, o grupo também precisa lidar com sua baixa autoestima e o medo do fracasso, agravado depois que seus planos são expostos à toda população, gerando uma grande expectativa na cidade. Tal pressão passa a torturar principalmente o tímido Dave (Mark Addy) - complexado por achar-se acima do peso - e Gerald (Tom Wilkinson), que esconde da esposa que perdeu o emprego há seis meses e vê aos poucos suas dívidas se acumulando.
Simples e direto, "Ou tudo ou nada" sofre de uma certa superficialidade no desenho de seus personagens, que, com exceção de Gary, Gerald e Dave, são relegados a um segundo plano quase injusto no roteiro escrito por Simon Beaufoy - que anos depois ganharia o Oscar por "Quem quer ser um milionário?": mesmo quando a trama acena para o desenvolvimento maior dos coadjuvantes, tal promessa nunca ultrapassa os limites do mais básico simplismo. Sorte que as atuações de Mark Addy como o inseguro Dave e Robert Carlyle como a mente criativa por trás do evento funcionem com perfeição, entregando à plateia uma emoção genuína que disfarça a fragilidade do roteiro. Além disso, é impossível não estampar um sorriso no rosto diante da mais clássica do filme: na fila do banco, enquanto aguardam o pagamento de seu seguro-desemprego, os seis operários (desesperançados, tristes, fora de forma e da idade mais apropriada para isso) não resistem ao som de "Hot stuff", de Donna Summer e fazem, alienados do mundo à sua volta, a coreografia prevista para seu show. Uma cena singela, engraçada e simpática - qualidades que levaram a obra de Cattaneo ao palco do Oscar em um ano em que filmes geniais como "Boogie nights", de Paul Thomas Anderson e "Jackie Brown", de Quentin Tarantino, apenas a assistiram de longe.
4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Direção (Peter Cattaneo), Roteiro Original, Trilha Sonora Original (Comédia/Musical)
Vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora Original (Comédia/Musical)
A cerimônia do Oscar 98 teve um protagonista indiscutível - "Titanic", com suas 14 indicações e 11 estatuetas - e alguns coadjuvantes de importância razoável - "Melhor é impossível", "Gênio indomável" e "Los Angeles, cidade proibida", todos premiados em duas categorias cada um. Mas um dos filmes mais falados da disputa não tinha astros conhecidos em seu elenco, havia sido realizado com uns trocados e era falado em um inglês que até mesmo os americanos tinham certa dificuldade em compreender. Em mais um caso de Davi contra Golias na maior festa do cinema, a comédia "Ou tudo ou nada" - com um orçamento de 3,5 milhões de dólares - tentava derrotar o mastodôntico transatlântico de 200 milhões de James Cameron com base apenas na simpatia que despertou nas plateias mundiais e nas entusiasmadas críticas angariadas pelo planeta. Logicamente suas armas não foram poderosas o bastante - levou apenas o Oscar de melhor trilha sonora, que soou como um prêmio de consolação - mas só o fato de estar entre os cinco finalistas de melhor filme de um ano bem forte já pode ser considerado uma vitória e tanto para uma obra tão pouco ambiciosa.
Mistura de comédia de costumes com crítica social, "Ou tudo ou nada" ganhou o público justamente pela despretensão, que é a sua maior qualidade. Enxuto e esperto ao utilizar suas limitações orçamentárias a seu favor, transmitindo em cada cena a sensação de decadência e melancolia de uma comunidade desprovida de esperança e expectativas de progresso, o filme do estreante Peter Cattaneo - que de cara se viu disputando uma estatueta dourada com nomes consagrados como Cameron e Gus Van Sant - desconstrói o pessimismo diante de uma das maiores crises financeiras da história da Inglaterra com uma história alto-astral e positiva, recheada de personagens absolutamente críveis em sua banalidade e uma trilha sonora deliciosa de clássicos da era da discoteca.
A trama se passa em uma pequena cidade inglesa chamada Sheffield, que, de um passado brilhante e promissor como "a cidade do aço", transformou-se, uma década e meia mais tarde, em mais uma comunidade assombrada pelo fantasma da crise e do desemprego massivo. Apenas mais um dentre milhares, o desesperado Gary (Robert Carlyle) está em vias de perder inclusive a guarda compartilhada do único filho quando tem uma ideia no mínimo inusitada: reunir um grupo de homens na mesma situação que ele para organizar um show de striptease completo e assim, arrumar dinheiro para pagar as contas. O fato de nem ele nem seus companheiros de projeto serem exatamente galãs é o menor dos seus problemas: com pouco tempo e sem local para ensaiar, o grupo também precisa lidar com sua baixa autoestima e o medo do fracasso, agravado depois que seus planos são expostos à toda população, gerando uma grande expectativa na cidade. Tal pressão passa a torturar principalmente o tímido Dave (Mark Addy) - complexado por achar-se acima do peso - e Gerald (Tom Wilkinson), que esconde da esposa que perdeu o emprego há seis meses e vê aos poucos suas dívidas se acumulando.
Simples e direto, "Ou tudo ou nada" sofre de uma certa superficialidade no desenho de seus personagens, que, com exceção de Gary, Gerald e Dave, são relegados a um segundo plano quase injusto no roteiro escrito por Simon Beaufoy - que anos depois ganharia o Oscar por "Quem quer ser um milionário?": mesmo quando a trama acena para o desenvolvimento maior dos coadjuvantes, tal promessa nunca ultrapassa os limites do mais básico simplismo. Sorte que as atuações de Mark Addy como o inseguro Dave e Robert Carlyle como a mente criativa por trás do evento funcionem com perfeição, entregando à plateia uma emoção genuína que disfarça a fragilidade do roteiro. Além disso, é impossível não estampar um sorriso no rosto diante da mais clássica do filme: na fila do banco, enquanto aguardam o pagamento de seu seguro-desemprego, os seis operários (desesperançados, tristes, fora de forma e da idade mais apropriada para isso) não resistem ao som de "Hot stuff", de Donna Summer e fazem, alienados do mundo à sua volta, a coreografia prevista para seu show. Uma cena singela, engraçada e simpática - qualidades que levaram a obra de Cattaneo ao palco do Oscar em um ano em que filmes geniais como "Boogie nights", de Paul Thomas Anderson e "Jackie Brown", de Quentin Tarantino, apenas a assistiram de longe.
sexta-feira
A SOMBRA E A ESCURIDÃO
A SOMBRA E A ESCURIDÃO (The ghost and the darkness, 1996, Constellation Entertainment,109min) Direção: Stephen Hopkins. Roteiro: William Goldman. Fotografia: Vilmos Zsigsmond. Montagem: Roger Bondelli, Robert Brown, Steve Mirkovich. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Stuart Wurtzel/Hilton Rosemarin. Produção executiva: Michael Douglas, Steven Reuther. Produção: A. Kitman Ho, Gale Anne Hurd, Paul Radin. Elenco: Michael Douglas, Val Kilmer, Tom Wilkinson, John Kani, Bernard Hill, Emily Mortimer. Estreia: 11/10/96
Vencedor do Oscar de Efeitos Sonoros
No final do século XIX, um engenheiro inglês é mandado para a África para construir uma ponte, liderando um grupo que reunia africanos e indianos. O que parecia um trabalho como outro qualquer - ainda que desafiador e ambicioso - torna-se um pesadelo quando o grupo passa a ser constantemente atacado por um par de leões, que, em questão de pouco tempo faz mais de 40 vítimas entre os operários. Contando com a ajuda de um experiente caçador, o jovem engenheiro - que está em vias de tornar-se pai pela primeira vez - assume a missão de exterminar as feras, mas descobre, atônito, que tudo é ainda mais difícil do que parecia ser, já que os animais fogem totalmente do esperado, conseguindo inclusive livrar-se de armadilhas infalíveis.
A trama de "A sombra e a escuridão", suspense dirigido por Stephen Hopkins vencedor do Oscar de Efeitos Sonoros em 1997 é tão inacreditável que é difícil de crer que não é invenção de algum roteirista lunático de Hollywood. A história do engenheiro John Patterson - vivido por um inexpressivo como sempre Val Kilmer - chegou aos cinemas em um filme de suspense elegante, produzido pelo ator Michael Douglas, que, com a prerrogativa de produtor executivo, embarcou no projeto também como ator, na pele do caçador Charles Remington, um personagem fictício que, dramaticamente, funciona bastante bem e é responsável por alguns dos momentos mais intensos da narrativa. São as cenas em que os dois caçadores partem em busca dos cruéis assassinos - mostrados com extrema parcimônia pela câmera do veterano Vilmos Zsigmond - que prendem o espectador, hipnotizados pela edição competente e pela trilha sonora adequada de Jerry Goldsmith.
Seguindo a tradição inaugurada por Steven Spielberg em seu "Tubarão" - a de não mostrar o rosto das ameaças até que seja impossível escondê-lo - "A sombra e a escuridão" esboça seu suspense com sutileza, utilizando-se de seu impressionante desenho de som para criar uma atmosfera de tensão constante até que finalmente os dois monstros ("interpretados" por leões verdadeiros na maioria esmagadora das cenas) surgem em cena para fazer a audiência pular da poltrona. A truculência dos bichos - mostrada com relativa liberdade para um filme que almeja grande bilheteria - é equiparada à sua aparente inteligência: nunca no cinema animais irracionais conseguem ser tão brilhantes, a ponto de destruir sistematicamente todas as tentativas de captura de seus perseguidores. E para quem tem a intenção de reclamar que leões normalmente não atacam seres humanos há uma explicação (não mostrada no filme, mas posteriormente revelada por estudiosos): os vilões do filme de Hopkins provavelmente mataram tantos homens porque eram velhos e humanos tem a carne mais tenra do que os animais que são normalmente o alvo do rei das selvas.
"A sombra e a escuridão" não encontrou seu público nos EUA, com sua bilheteria ficando aquém do orçamento de 55 milhões de dólares. Mas é um espetáculo repleto de qualidades, que vão desde sua reconstituição de época cuidadosa até aos já citados trabalhos de som, devidamente premiados com uma estatueta da Academia. Equilibrando com inteligência momentos de pura tensão com cenas bem escritas, que dão espaço aos atores - em especial Michael Douglas, que mesmo aparecendo depois de 45 minutos de projeção rouba o show do apático Kilmer - o filme de Hopkins é uma das pérolas esquecidas do cinema americano dos anos 90.
Vencedor do Oscar de Efeitos Sonoros
No final do século XIX, um engenheiro inglês é mandado para a África para construir uma ponte, liderando um grupo que reunia africanos e indianos. O que parecia um trabalho como outro qualquer - ainda que desafiador e ambicioso - torna-se um pesadelo quando o grupo passa a ser constantemente atacado por um par de leões, que, em questão de pouco tempo faz mais de 40 vítimas entre os operários. Contando com a ajuda de um experiente caçador, o jovem engenheiro - que está em vias de tornar-se pai pela primeira vez - assume a missão de exterminar as feras, mas descobre, atônito, que tudo é ainda mais difícil do que parecia ser, já que os animais fogem totalmente do esperado, conseguindo inclusive livrar-se de armadilhas infalíveis.
A trama de "A sombra e a escuridão", suspense dirigido por Stephen Hopkins vencedor do Oscar de Efeitos Sonoros em 1997 é tão inacreditável que é difícil de crer que não é invenção de algum roteirista lunático de Hollywood. A história do engenheiro John Patterson - vivido por um inexpressivo como sempre Val Kilmer - chegou aos cinemas em um filme de suspense elegante, produzido pelo ator Michael Douglas, que, com a prerrogativa de produtor executivo, embarcou no projeto também como ator, na pele do caçador Charles Remington, um personagem fictício que, dramaticamente, funciona bastante bem e é responsável por alguns dos momentos mais intensos da narrativa. São as cenas em que os dois caçadores partem em busca dos cruéis assassinos - mostrados com extrema parcimônia pela câmera do veterano Vilmos Zsigmond - que prendem o espectador, hipnotizados pela edição competente e pela trilha sonora adequada de Jerry Goldsmith.
Seguindo a tradição inaugurada por Steven Spielberg em seu "Tubarão" - a de não mostrar o rosto das ameaças até que seja impossível escondê-lo - "A sombra e a escuridão" esboça seu suspense com sutileza, utilizando-se de seu impressionante desenho de som para criar uma atmosfera de tensão constante até que finalmente os dois monstros ("interpretados" por leões verdadeiros na maioria esmagadora das cenas) surgem em cena para fazer a audiência pular da poltrona. A truculência dos bichos - mostrada com relativa liberdade para um filme que almeja grande bilheteria - é equiparada à sua aparente inteligência: nunca no cinema animais irracionais conseguem ser tão brilhantes, a ponto de destruir sistematicamente todas as tentativas de captura de seus perseguidores. E para quem tem a intenção de reclamar que leões normalmente não atacam seres humanos há uma explicação (não mostrada no filme, mas posteriormente revelada por estudiosos): os vilões do filme de Hopkins provavelmente mataram tantos homens porque eram velhos e humanos tem a carne mais tenra do que os animais que são normalmente o alvo do rei das selvas.
"A sombra e a escuridão" não encontrou seu público nos EUA, com sua bilheteria ficando aquém do orçamento de 55 milhões de dólares. Mas é um espetáculo repleto de qualidades, que vão desde sua reconstituição de época cuidadosa até aos já citados trabalhos de som, devidamente premiados com uma estatueta da Academia. Equilibrando com inteligência momentos de pura tensão com cenas bem escritas, que dão espaço aos atores - em especial Michael Douglas, que mesmo aparecendo depois de 45 minutos de projeção rouba o show do apático Kilmer - o filme de Hopkins é uma das pérolas esquecidas do cinema americano dos anos 90.
terça-feira
O SONHO DE CASSANDRA
O SONHO DE CASSANDRA (Cassandra's dream, 2007, Wild Bunch, 108min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Vilmos Zsigmon. Montagem: Alisa Lepselter. Música: Philip Glass. Figurino: Jill Taylor. Montagem: Maria Djurkovic/Tatiana MacDonald. Produção executiva: Brahim Chioua, Vincent Maraval, Daniel Wuhrmann. Produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum, Gareth Wiley. Elenco: Ewan McGregor, Colin Farrell, Tom Wilkinson, Sally Hawkins, John Benfield, Claire Higgins, Hayley Atwell. Estreia: 02/9/07 (Festival de Veneza)
"Família é família! Sangue é sangue! Você não faz perguntas. Você protege os seus." Com esse argumento fechado a questionamentos o bem-sucedido cirurgião plástico Howard (Tom Wilkinson) pede a seus dois sobrinhos que cometam, por ele, o mais terrível crime que um ser humano pode cometer: o homicídio. Precisando ver-se livre de um antigo associado que pode lhe arruinar a vida, o médico propõe aos rapazes, filhos de sua irmã, que o eliminem. O que a princípio parece um absurdo inominável aos poucos toma forma de real possibilidade graças às dificuldades financeiras dos irmãos. O mais velho, Ian (Ewan McGregor) sonha em tornar-se empresário do ramo de hotéis e abandonar o negócio de restaurantes do pai - especialmente quando se apaixona pela ambiciosa atriz Angela (Hayley Atwell). O caçula, Terry (Colin Farrell) é viciado em jogo e precisa urgentemente de dinheiro para cobrir uma dívida acumulada. Proposta aceita e fato consumado, cabe a eles administrarem o sentimento de culpa - em especial o frágil Terry, que não consegue esquecer o acontecimento - e lidar com a solução rápida de seus problemas monetários.
Filme seguinte de Woody Allen após o suspense com humor negro "Scoop, o grande furo", o drama "O sonho de Cassandra" não agradou aos críticos e nem tornou-se um sucesso comercial. Tendo sua estreia americana adiada para depois da temporada que apresenta os possíveis vencedores do Oscar, o terceiro trabalho consecutivo do cineasta a ser rodado na Inglaterra sofreu inúmeros ataques por não atingir o mesmo grau de excelência de "Match point, ponto final", com quem dialoga em temática e gênero. Enquanto no filme estrelado por Jonathan Rhys-Meyers a culpa praticamente inexistia depois do crime que dá partida à trama, nesse novo filme ela é personagem essencial, ainda que surja apenas no pensamento obsessivo de Terry. Se na obra de Allen que emulava "Crime e castigo" havia sensualidade, tensão e um certo glamour, em seu primeiro trabalho sem atores americanos no elenco só o que aparece em cena é angústia, remorso e uma decadência moral sem o mesmo charme de um "Crimes e pecados". Musicado por Philip Glass, "O sonho de Cassandra" não é um típico Woody Allen, mas, mesmo com todos os seus defeitos, ainda consegue ser um trabalho acima da média.
O grande acerto de Allen foi o de misturar as cartas de seu baralho e oferecer a seus jovens atores centrais papéis que fogem de sua zona de conforto. Enquanto o esperado era que o irlandês Colin Farrell se esbaldasse como o amoral Ian e o escocês Ewan McGregor brindasse o público com o tenso Terry - que se entrega ao álcool e à tendência suicida depois do crime - o filme vira tudo de cabeça para baixo com a escalação surpreendente de seu elenco. Se Tom Wilkinson brilha como o cirurgião que transforma a vida dos sobrinhos oferecendo-os dinheiro em troca de um assassinato, McGregor e Farrell saem-se fazem o possível para mostrar que tem capacidade de sobra para encarnar papéis distintos. Nem sempre se saem bem - mais culpa das personagens pouco carismáticas - mas ficam bem longe do desastre. E é inegável que Allen sabe o que faz com as cenas de suspense: assim como em "Match point", as sequências que exigem tensão são muito bem dirigidas.
"O sonho de Cassandra" realmente não é um Woody Allen dos melhores. É lento em demasia, tem problemas no desenho de algumas personagens e acaba bruscamente. Mas tem um elenco sensacional, uma direção elegante e é bem mais inteligente do que a grande maioria de seus congêneres. Vale uma conferida, mas não entrará em nenhuma lista de melhores do cineasta.
sexta-feira
O EXORCISMO DE EMILY ROSE
O EXORCISMO DE EMILY ROSE (The exorcism of Emily Rose, 2005, Screen Gems, 119min) Direção: Scott Derrikson. Roteiro: Paul Harris Boardman, Scott Derrikson. Fotografia: Tom Stern. Montagem: Jeff Betancourt. Música: Christopher Young. Figurino: Tish Monaghan. Direção de arte/cenários: David Brisbin/Lesley Beale. Produção executiva: Andre Lamal, David McIlvan, Terry McKay, Julie Yorn. Produção: Paul Harris Boardman, Beau Flynn, Gary Lucchesi, Tom Rosenberg, Tripp Vinson. Elenco: Laura Linney, Tom Wilkinson, Jennifer Carpenter, Campbell Scott, Colm Feore, Joshua Close, Kenneth Welsh, Henry Czerny, Shoreh Aghdashloo, Mary Beth Hurt. Estreia: 01/9/05 (Festival de Veneza)
Na metade dos anos 70, na Alemanha, uma jovem de 23 anos chamada Anneliese Michel, diagnosticada como epilética, morreu de subnutrição e desidratação depois de ter sido submetida a 67 (!!) tentativas de exorcismo. O caso levou os pais da jovem e os dois padres responsáveis pelas cerimônias aos tribunais, acusados de negligência - e ao lançamento de um livro que contava sua trágica história, chamado "The exorcism of Anneliese Michel" e escrito pela antropóloga Felicitas D. Goodman. Com base nesse drama - que pedia desesperadamente por uma adaptação para o cinema - os dois jovens roteiristas Paul Harris Boardman e Scott Derrikson criaram um filme único, que mistura com inteligência dois gêneros bastante caros à indústria de Hollywood (filmes de terror e filmes de tribunal) e que surpreendeu por jamais subestimar a inteligência de sua plateia. Realizado com cerca de 20 milhões de dólares, "O exorcismo de Emily Rose" coletou mais de 140 milhões pelo mundo. A melhor notícia? Mereceu cada centavo.
Para efeitos dramáticos, o roteiro de Boardman e Derrikson precisou fazer alterações na história original, todas elas responsáveis por deixar o ritmo e a narrativa mais ricos e palatáveis à audiência média - e que, por definição, é quem decide a sorte de um filme nas bilheterias. Sendo assim, a protagonista alemã cede lugar a uma estudante americana, a dedicada e esforçada Emily Rose (em uma performance aterradora de Jennifer Carpenter, que mais tarde se tornaria a irmã da personagem-título da série "Dexter"). Quando o filme começa, Rose já está morta e a competente advogada Erin Bruner (Laura Linney) é chamada para defender o padre Richard Moore (Tom Wilkinson), acusado de ter causado sua morte durante um exorcismo. A ambição da advogada é subir na firma onde trabalha, e ela esbarra na ferrenha ideia do sacerdote, que insiste em contar toda a história da jovem em pleno tribunal. Batendo de frente com o promotor Ethan Thomas (Campbell Scott), Bruner começa a investigar a fundo todos os acontecimentos que levaram à morte de Emily - que foi diagnosticada como epilética e psicótica. Segundo Thomas, o padre é culpado por ter impedido a vítima de ter um acompanhamento médico e cabe a ela provar - mesmo sendo totalmente cética - que Rose estava possuída por uma legião de demônios.
O melhor de "O exorcismo de Emily Rose" é que ele funciona em todos os níveis nos quais se propõe. Como drama de tribunal, é capaz de prender o espectador na poltrona como se estivesse nos melhores livros de John Grisham, com o drama na medida certa e dando oportunidades raras para seu elenco coadjuvante - que inclui a ótima Shohreh Aghdashloo, Colm Feore e Henry Czerny. Como suspense é aterrorizante, tenso e dramaticamente consistente, dando ao público momentos assustadores e revelando o talento intenso da jovem Jennifer Carpenter. E como drama religioso é capaz de emocionar sem apelar para clichês católicos - ou de qualquer outra doutrina. Tal equilíbrio só é possível devido ao talento de seus diretores/roteiristas, que nunca caem na tentação de privilegiar uma ou outra linha narrativa, intercalando-as de forma inteligente e intrigante - e que só dá uma resposta ao público nos comoventes momentos finais.
Quem procura um bom filme de tribunal ou um filme de terror adulto e que foge da sanguinolência habitual no gênero só tem a ganhar com uma sessão de "O exorcismo de Emily Rose". É o filme de terror mais arrepiante de sua época. No bom sentido!
Na metade dos anos 70, na Alemanha, uma jovem de 23 anos chamada Anneliese Michel, diagnosticada como epilética, morreu de subnutrição e desidratação depois de ter sido submetida a 67 (!!) tentativas de exorcismo. O caso levou os pais da jovem e os dois padres responsáveis pelas cerimônias aos tribunais, acusados de negligência - e ao lançamento de um livro que contava sua trágica história, chamado "The exorcism of Anneliese Michel" e escrito pela antropóloga Felicitas D. Goodman. Com base nesse drama - que pedia desesperadamente por uma adaptação para o cinema - os dois jovens roteiristas Paul Harris Boardman e Scott Derrikson criaram um filme único, que mistura com inteligência dois gêneros bastante caros à indústria de Hollywood (filmes de terror e filmes de tribunal) e que surpreendeu por jamais subestimar a inteligência de sua plateia. Realizado com cerca de 20 milhões de dólares, "O exorcismo de Emily Rose" coletou mais de 140 milhões pelo mundo. A melhor notícia? Mereceu cada centavo.
Para efeitos dramáticos, o roteiro de Boardman e Derrikson precisou fazer alterações na história original, todas elas responsáveis por deixar o ritmo e a narrativa mais ricos e palatáveis à audiência média - e que, por definição, é quem decide a sorte de um filme nas bilheterias. Sendo assim, a protagonista alemã cede lugar a uma estudante americana, a dedicada e esforçada Emily Rose (em uma performance aterradora de Jennifer Carpenter, que mais tarde se tornaria a irmã da personagem-título da série "Dexter"). Quando o filme começa, Rose já está morta e a competente advogada Erin Bruner (Laura Linney) é chamada para defender o padre Richard Moore (Tom Wilkinson), acusado de ter causado sua morte durante um exorcismo. A ambição da advogada é subir na firma onde trabalha, e ela esbarra na ferrenha ideia do sacerdote, que insiste em contar toda a história da jovem em pleno tribunal. Batendo de frente com o promotor Ethan Thomas (Campbell Scott), Bruner começa a investigar a fundo todos os acontecimentos que levaram à morte de Emily - que foi diagnosticada como epilética e psicótica. Segundo Thomas, o padre é culpado por ter impedido a vítima de ter um acompanhamento médico e cabe a ela provar - mesmo sendo totalmente cética - que Rose estava possuída por uma legião de demônios.
O melhor de "O exorcismo de Emily Rose" é que ele funciona em todos os níveis nos quais se propõe. Como drama de tribunal, é capaz de prender o espectador na poltrona como se estivesse nos melhores livros de John Grisham, com o drama na medida certa e dando oportunidades raras para seu elenco coadjuvante - que inclui a ótima Shohreh Aghdashloo, Colm Feore e Henry Czerny. Como suspense é aterrorizante, tenso e dramaticamente consistente, dando ao público momentos assustadores e revelando o talento intenso da jovem Jennifer Carpenter. E como drama religioso é capaz de emocionar sem apelar para clichês católicos - ou de qualquer outra doutrina. Tal equilíbrio só é possível devido ao talento de seus diretores/roteiristas, que nunca caem na tentação de privilegiar uma ou outra linha narrativa, intercalando-as de forma inteligente e intrigante - e que só dá uma resposta ao público nos comoventes momentos finais.
Quem procura um bom filme de tribunal ou um filme de terror adulto e que foge da sanguinolência habitual no gênero só tem a ganhar com uma sessão de "O exorcismo de Emily Rose". É o filme de terror mais arrepiante de sua época. No bom sentido!
terça-feira
BATMAN BEGINS
BATMAN BEGINS (Batman begins, 2005, Warner Bros, 140min) Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan, David S. Goyer, estória de David S. Goyer, personagens criadas por Bob Kane. Fotografia: Wally Pfister. Montagem: Lee Smith. Música: James Newton Howard, Hans Zimmer. Figurino: Lindy Hemming. Direção de arte/cenários: Nathan Crowley/Paki Smith, Simon Wakefield. Produção executiva: Benjamin Melniker, Michael E. Uslan. Produção: Larry Franco, Charles Roven, Emma Thomas. Elenco: Christian Bale, Katie Holmes, Gary Oldman, Liam Neeson, Morgan Freeman, Michael Caine, Cillian Murphy, Tom Wilkinson, Rutger Hauer, Ken Watanabe, Linus Roache. Estreia: 15/6/05
Indicado ao Oscar de Fotografia
Depois do verdadeiro fiasco de "Batman & Robin", dirigido por Joel Schumacher em 1997 - e que praticamente enterrou as possibilidades do super-heroi - muita gente acreditava que a franquia do homem-morcego (tão rentável nas mãos de Tim Burton) estava acabada de vez. Foi preciso uma recauchutagem geral para que o Cavaleiro das Trevas, criado por Bob Kane nos anos 30 voltasse às boas graças do público e da crítica. Com o criativo e talentoso Christopher Nolan - recém saído do sucesso "Amnésia" e do prestigiado "Insônia" - no comando, "Batman begins" tem a inteligência de ignorar a série cinematográfica lançada em 1989 e partir do princípio da história, das origens do heroi mascarado, que viu seus pais morrerem assassinados quando ainda era uma criança.
Escalar o inglês Christian Bale (lançado por Steven Spielberg em "Império do sol", de 1987) como protagonista foi o acerto primordial de Nolan. Frio nas horas certas e com o físico adequado para o papel, Bale apaga em poucos minutoso trauma deixado por Michael Keaton, Val Kilmer e George Clooney (ainda que este último não tenha sido o responsável pela derrocada da série). Na pele do milionário Bruce Wayne, o jovem ator consegue ser o super-heroi que todos desejavam ver sem apelar para o escapismo tradicional mas bastante fake dos filmes anteriores. Wayne, depois da tragedia que testemunhou, foi embora da mansão de sua família, foi preso, fez um treinamento quase ninja e volta à Gotham City com a missão de salvá-la da sua destruição total pela violência. Contando com a ajuda do Comissário Gordon (um Gary Oldman envelhecido mas ainda brilhante) e da assistente de promotoria que foi sua namorada na infância (a inapropriada Katie Holmes no único erro de escalação do elenco), ele parte para o ataque contra os bandidos que querem transformar sua cidade em ruínas.
Christopher Nolan é um exímio diretor de atores, o que faz toda a diferença na transformação da sombria saga de Batman de um ralo filme de ação em um drama de personagens, mesmo que às vezes eles sejam um tanto superficiais. O romance entre Wayne e sua namorada, por exemplo, nunca empolga (culpa talvez da constante apatia de Katie Holmes). A ideia genial de Batman fazer a sua primeira (e triunfal) aparição somente depois de meia-hora de projeção, no entanto, dá vida nova e inteligente ao roteiro. Michael Caine, Morgan Freeman, Ken Watanabe, Liam Neeson e Tom Wilkinson - todos já indicados ao Oscar - são coadjuvantes de luxo em uma diversão de primeira, que prova que filmes-pipoca podem e devem ser espertos e não tratar o público como crianças. A edição, repleta de idas e voltas - que no começo até atrapalham um pouco - também ajuda o filme a fugir do óbvio, e a bela fotografia de Wally Pfister (dona de sua única indicação ao Oscar) dá o tom exato da bela obra de Nolan.
"Batman begins" pode não ter rendido tanto dinheiro quanto os primeiros filmes do heroi, mas arrebanhou prestígio suficiente para dar o pontapé inicial em uma nova e bem-sucedida série e preparar a audiência para
seu extraordinário segundo capítulo, "Batman, o cavaleiro das trevas", que deixaria o mundo de queixo caído.
Indicado ao Oscar de Fotografia
Depois do verdadeiro fiasco de "Batman & Robin", dirigido por Joel Schumacher em 1997 - e que praticamente enterrou as possibilidades do super-heroi - muita gente acreditava que a franquia do homem-morcego (tão rentável nas mãos de Tim Burton) estava acabada de vez. Foi preciso uma recauchutagem geral para que o Cavaleiro das Trevas, criado por Bob Kane nos anos 30 voltasse às boas graças do público e da crítica. Com o criativo e talentoso Christopher Nolan - recém saído do sucesso "Amnésia" e do prestigiado "Insônia" - no comando, "Batman begins" tem a inteligência de ignorar a série cinematográfica lançada em 1989 e partir do princípio da história, das origens do heroi mascarado, que viu seus pais morrerem assassinados quando ainda era uma criança.
Escalar o inglês Christian Bale (lançado por Steven Spielberg em "Império do sol", de 1987) como protagonista foi o acerto primordial de Nolan. Frio nas horas certas e com o físico adequado para o papel, Bale apaga em poucos minutoso trauma deixado por Michael Keaton, Val Kilmer e George Clooney (ainda que este último não tenha sido o responsável pela derrocada da série). Na pele do milionário Bruce Wayne, o jovem ator consegue ser o super-heroi que todos desejavam ver sem apelar para o escapismo tradicional mas bastante fake dos filmes anteriores. Wayne, depois da tragedia que testemunhou, foi embora da mansão de sua família, foi preso, fez um treinamento quase ninja e volta à Gotham City com a missão de salvá-la da sua destruição total pela violência. Contando com a ajuda do Comissário Gordon (um Gary Oldman envelhecido mas ainda brilhante) e da assistente de promotoria que foi sua namorada na infância (a inapropriada Katie Holmes no único erro de escalação do elenco), ele parte para o ataque contra os bandidos que querem transformar sua cidade em ruínas.
Christopher Nolan é um exímio diretor de atores, o que faz toda a diferença na transformação da sombria saga de Batman de um ralo filme de ação em um drama de personagens, mesmo que às vezes eles sejam um tanto superficiais. O romance entre Wayne e sua namorada, por exemplo, nunca empolga (culpa talvez da constante apatia de Katie Holmes). A ideia genial de Batman fazer a sua primeira (e triunfal) aparição somente depois de meia-hora de projeção, no entanto, dá vida nova e inteligente ao roteiro. Michael Caine, Morgan Freeman, Ken Watanabe, Liam Neeson e Tom Wilkinson - todos já indicados ao Oscar - são coadjuvantes de luxo em uma diversão de primeira, que prova que filmes-pipoca podem e devem ser espertos e não tratar o público como crianças. A edição, repleta de idas e voltas - que no começo até atrapalham um pouco - também ajuda o filme a fugir do óbvio, e a bela fotografia de Wally Pfister (dona de sua única indicação ao Oscar) dá o tom exato da bela obra de Nolan.
"Batman begins" pode não ter rendido tanto dinheiro quanto os primeiros filmes do heroi, mas arrebanhou prestígio suficiente para dar o pontapé inicial em uma nova e bem-sucedida série e preparar a audiência para
seu extraordinário segundo capítulo, "Batman, o cavaleiro das trevas", que deixaria o mundo de queixo caído.
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