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quinta-feira

BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA


BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA (Boy erased, 2018, Focus Features/Anonymous Content/Perfect World Pictures, 115min) Direção: Joel Edgerton. Roteiro: Joel Edgerton, livro de Garrard Conley. Fotografia: Eduard Grau. Montagem: Jay Rabinowitz. Música: Danny Bensi, Saunder Jurriaans. Figurino: Trish Summerville. Direção de arte/cenários: Chad Keith/Mallorie Coleman, Adam Willis. Produção executiva: Nash Edgerton, Kim Hodgert, Tony Lipp, Ann Ruark, Rebecca Yeldham. Produção: Joel Edgerton, Steve Golin, Kerry Kohansky-Roberts. Elenco: Lucas Hedges, Nicole Kidman, Russell Crowe, Joel Edgerton, Xavier Dolan, Madelyn Cline, Victor McKay, Flea, Cherry Jones. Estreia: 01/9/2018 (Festival de Telluride)

Em 2016, quando o livro "Boy erased" foi lançado, boa parte dos EUA ainda considerava legais as terapias de conversão sexual - conhecidas vulgarmente como "cura gay". Sem qualquer fundamento psicológico ou médico, setores ligados principalmente à religião praticamente torturavam jovens com pensamentos homossexuais (muitas vezes nem era necessário que tivessem passado à prática) com sessões de humilhação, rígidas regras de comportamento e tormento psicológico. Em seu livro de memórias, Garrard Conley narrava, mesmo que de forma quase poética, os tormentos pelos quais passou em seu período em um desses tratamentos. De seus escritos (pessoais e emotivos) nasceu um filme sensível e sóbrio, assinado por um ator/roteirista/diretor que promete grandes voos futuros e estrelado por um elenco nunca aquém de excepcional: apesar do fracasso comercial e de não ter chamado tanta atenção quanto se poderia esperar nas cerimônias de premiação, "Boy erased: uma verdade anulada" é uma pérola, um filme que já nasceu destinado a suscitar discussões e se tornar cult - além de ser um instrumento essencial na luta contra os abusos do conservadorismo criminoso que vem se alastrando perigosamente pelo Ocidente.

Dirigido pelo ator Joel Edgerton, que também escreveu o roteiro - depois que o próprio Conley declinou da oportunidade - e assumiu um dos papéis mais importantes da trama, "Boy erased" é um filme de emoções contidas, que raramente apela para o melodrama fácil. Graças à atuação discreta e introspectiva de Lucas Hedges (que vem se mostrando um dos melhores atores de sua geração) e ao tom suave imposto pela edição que não abusa dos flashbacks (mas os usa de forma eficiente), a produção escapa de ser apenas mais um filme-denúncia e se destaca como uma história de amor, respeito e tolerância - mesmo que, para que isso seja alcançado, tenha-se que se passar por pesadelos inimagináveis. Mesmo que não poupe o espectador de um constante desconforto (em especial quando mostra as sessões da malfadada busca pela "cura"), Edgerton evita pesar a mão em excesso: a fotografia de Eduard Grau (que cuidou do belo visual de "Direito de amar", de 2009) é luminosa em boa parte da narrativa (em contraste com o tema sombrio) e a trilha sonora (jamais invasiva) sublinha a ação de forma delicada, quase como um oásis diante da aridez do tema. E se por vezes o roteiro pode soar um tanto superficial (especialmente no desenho de alguns personagens), a falha é compensada pelo empenho de cada um dos atores selecionados pelo diretor (ele próprio incluído).

Lucas Hedges - já indicado ao Oscar de coadjuvante por "Manchester à beira-mar", de 2006 - encontra o tom ideal para seu Jared Eamons, um adolescente de 18 anos, filho de um pastor batista, aluno dedicado e responsável, que se vê obrigado pelos pais a participar do tal programa de "reabilitação", comandado pelo prepotente Victor Sykes (Joel Edgerton em pessoa, em uma caracterização precisa, que se equilibra com exatidão no limite do desprezível). Enquanto testemunha atrocidades no período em que fica isolado de qualquer contato com seu mundo anterior (como celulares, diários e afins), Jared é obrigado a revisitar seu passado e confrontar sua conflituosa sexualidade (oprimida pelos preceitos familiares, pela religião e pela culpa). A única pessoa que lhe dá apoio durante o processo - e mesmo assim sem saber exatamente como agir, dividida entre o amor pelo filho, a fé em Deus e o respeito pelas crenças do marido - é sua mãe, Nancy (Nicole Kidman, brilhante), que tenta servir como porto seguro às turbulências do rapaz. Kidman é dona de alguns dos melhores momentos do filme - como o clímax, inexistente no livro mas eficaz como cinema - e divide com Russell Crowe a difícil missão de oferecer consistência a personagens que poderiam ter sido melhor desenvolvidos pelo roteiro: Marshall e Nancy Eamons surgem apenas como os pais repressores (ainda que amorosos), sem maiores nuances dramáticas ou camadas extras. O mesmo acontece com Sykes, o teatral líder da clínica Love in Action, cujo desfecho - revelado apenas nos letreiros finais - é a irônica pá de cal nas ideias absurdas que servem de base à todo o conceito de reorientação sexual.

Prestes a ser lançado no Brasil no final de janeiro de 2019, "Boy erased" acabou tendo sua estreia cancelada - a distribuidora alegou como motivos para tal decisão o fraco desempenho do filme nas bilheterias internacionais e a falta das esperadas indicações ao Oscar, mas ficou no ar o cheiro de censura que chegava com o novo governo (para dizer o mínimo) conservador. Tal situação não deixa de ser uma demonstração clara da importância do filme, com suas discussões e seu tema se tornando cada vez mais urgentes e fundamentais. Pode não ser uma obra-prima, mas serve como base para longos e sérios debates - e, como cinema, confirma Joel Edgerton (cuja estreia como diretor, o suspense "O presente", de 2015, já tinha indiscutíveis qualidades) como um cineasta promissor e relevante, capaz de surpreender em um futuro próximo.

segunda-feira

AMORES IMAGINÁRIOS

AMORES IMAGINÁRIOS (Les amours imaginaires, 2010, Mifilifilms/Quebec Film and Television, 101min) Direção e roteiro: Xavier Dolan. Fotografia: Stéphanie Weber-Biron. Montagem: Xavier Dolan. Figurino: Xavier Dolan. Direção de arte: Delphine Gélinas. Produção: Xavier Dolan, Carole Mondello, Daniel Morin. Elenco: Xavier Dolan, Monica Chokri, Niels Schneider, Anne Dorval, Louis Garrell. Estreia: 16/5/10 (Festival de Cannes)

Logo que estreou no Festival de Cannes em 2009 com seu primeiro filme, "Eu matei minha mãe", o jovem (20 anos de idade à época) Xavier Dolan tornou-se, instantaneamente, o enfant terrible do cinema canadense. Levou pra casa um prêmio especial do júri e virou assunto em qualquer roda de cinéfilos pelo mundo afora: para cada crítica azeda a seu respeito, pipocavam fãs encantados com seu estilo modernoso. Seu filme seguinte, "Amores imaginários" - que também teve sua estreia na Riviera Francesa - apenas acentuou a polêmica em torno de seu nome e a divisão entre admiradores e detratores. É justo, porém, encontrar um meio-termo saudável entre esses dois extremos. "Amores imaginários", uma comédia romântica, nem é tão espetacular como querem fazer crer os convertidos mais fanáticos nem tão vazio como proclamam os mais críticos. É, sim, um filme leve e quase superficial, que privilegia o visual ao conteúdo. Mas é, também, uma delícia de se assistir, desde que se deixe de lado qualquer preconceito ou expectativas grandiosas.

A ideia de um triângulo amoroso moderno no cinema não é nenhuma novidade - haja visto François Truffaut ("Jules e Jim: uma mulher para dois") e Bernardo Bertolucci ("Os sonhadores"), alguns dos célebres cineastas que investigaram essa modalidade de relacionamento. Em seu filme, Dolan não faz questão de soar revolucionário ou ousado, preferindo o caminho da sutileza e da delicadeza, deixando ao espectador o prazer de ir descobrindo aos poucos os rumos de sua trama. O próprio cineasta interpreta um dos protagonistas, o homossexual Francis, que se apaixona perdidamente pelo belo, inteligente, sexy e liberal Nicolas (Niels Schneider). O problema maior é que sua melhor amiga, Marie (Monica Chokri), também cai de amores pelo rapaz, e nenhum dos dois sabe exatamente para qual deles o rapaz está mais inclinado em oferecer o seu amor (ou sequer SE está interessado nisso): Nicolas os trata com igual atenção e carinho, embaralhando cada vez mais as pistas que levam a seu coração - e à sua cama.


Se peca em não aprofundar a psicologia de seus personagens, Dolan acerta em cheio ao tratar seu filme como uma espécie de inventário visual de sua época. É perceptível o cuidado do jovem diretor com cada detalhe de sua mise-en-scéne, desde os objetos de cena até o figurino absurdamente antenado com sua ambientação, assim como a bela fotografia de Stéphanie Weber-Biron e alguns enquadramentos belíssimos que nem mesmo o quase exagero de sequências em câmera lenta consegue atrapalhar. O olho de Dolan para as pequenas coisas e reações é admirável, assim como seu talento em explorar ao máximo a potencialidade de cada tomada. Não há, em seu filme, nenhuma cena que não seja minuciosamente preparada por sua visão esteticamente apurada. E é justamente essa atenção ao aspecto visual - em detrimento a um desenvolvimento maior de seus personagens - que incomoda tanta gente. Porém, o que talvez muitos críticos não tenham percebido em "Amores imaginários" é a sua absoluta falta de compromisso com o realismo.

Dolan trata seu filme como uma espécie de sátira a seu próprio universo cultural, um lugar onde as pessoas querem se parecer com James Dean e idolatram Audrey Hepburn, frequentam cafés e festas com gente bonita e descolada e transitam em cenários coloridos e absurdamente fotogênicos. A beleza exterior é equilibrada apenas pelas histórias dolorosas/engraçadas/patéticas contadas por outros personagens diretamente para a câmera - um artifício que funcionou às mil maravilhas em "Harry & Sally: feitos um para o outro" e que volta a ser bastante interessante nas mãos do diretor: são essas personagens desconhecidas que dão suporte ao roteiro, mostrando ao espectador que amar dói, sim, mas não mata ninguém. Sendo assim, "Amores imaginários" não é um filme feito para aqueles que consideram o cinema como uma arte de reflexão séria e densa. Pode soar raso, sim, e talvez até o seja. Mas todos aqueles que já se apaixonaram entendem perfeitamente as sensações pelas quais passam Francis e Marie. E essa empatia, essa compreensão pelo sofrimento dos outros, é uma das grandes qualidades de um filme que já demonstra grande amadurecimento de seu diretor - que pegaria o caminho dos temas mais profundos em seus filmes seguintes, "Laurence anyways" e "Mommy".

sábado

É APENAS O FIM DO MUNDO

É APENAS O FIM DO MUNDO (Juste la fin du monde, 2016, Sons of Manual/MK2 Productions/Téléfilm Canada, 97min) Direção: Xavier Dolan. Roteiro: Xavier Dolan, peça teatral de Jean-Luc Lagarce. Fotografia: André Turpin. Montagem: Xavier Dolan. Música: Gabriel Yared. Direção de arte/cenários: Colombe Raby/Pascale Deschênes. Produção executiva: Patrick Roy. Produção: Sylvain Corbeil, Xavier Dolan, Nancy Grant, Elisha Karmitz, Nathanael Karmitz, Michel Merkt. Elenco: Gaspard Ulliel, Marion Cotillard, Vincent Cassel, Léa Seydoux, Nathalie Baye. Estreia: 19/5/16 (Festival de Cannes)

Um perfeito exemplo de que nem mesmo a crítica é capaz de chegar a um consenso quando se trata de arte é o filme "É apenas o fim do mundo", sexto longa-metragem do jovem canadense Xavier Dolan: vaiado pela imprensa na ocasião de sua estreia no Festival de Cannes de 2016, o filme acabou saindo da Riviera Francesa com o Grande Prêmio do Júri Oficial e o Prêmio do Júri Ecumênico, além de ter ficado entre os nove pré-finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano. Sucesso de bilheteria na França, onde arrastou mais de 1 milhão de pessoas às salas de cinema, a adaptação da peça teatral de Jean-Luc Lagarce é, talvez, o mais maduro filme do diretor, que mantém nele suas características mais importantes mas consegue, ao mesmo tempo, administrar sua tendência ao excesso e entregar à plateia uma obra dramaticamente consistente e visualmente atraente, com um equilíbrio excepcional entre as linguagens do teatro e do cinema e um elenco excepcional.

Encontrando no texto de Lagarce - inspirado em suas próprias vivências familiares - uma matéria-prima que vai ao encontro de sua coerente filmografia até o momento, Xavier Dolan constrói uma atmosfera claustrofóbica e melancólica que, como qualquer bom teatro, vai se avolumando gradativamente até a explosão final, catártica e emocional. Ao contrário de seus filmes anteriores, onde os conflitos eram sempre resolvidos no grito - do início ao fim da projeção - em "É apenas o fim do mundo" os dramas são tratados de forma discreta, sutil, em fogo brando, dando apenas pequenas mostras do turbilhão que se passa nos corações e nas mentes de seus personagens, todos com uma saudável cota de problemas e angústias. Utilizando com inteligência a linguagem cinematográfica, ele faz uso exemplar dos silêncios reveladores e da edição minimalista, que revelam com parcimônia o clima de desespero e nostalgia que acompanha a visita do protagonista à casa dos pais, doze anos depois de sua deserção. Vivido com brilhante suavidade por Gaspard Ulliel (que foi o herói romântico de "Eterno amor" (04), de Jean-Pierre Jeunet), o escritor Louis Knipper é mais um alter-ego do cineasta, mas concebido com mais nuances e menos agressividade - uma docilidade que contrasta com a violência de seus dramas pessoais.


Afastado da família há mais de uma década, Louis resolve fazer uma inesperada visita à cidade natal, com o objetivo declarado já em sua primeira fala, de "anunciar a sua morte". Assim que chega em casa, porém, o rapaz já se vê diante da dificuldade de expressar seus sentimentos, uma vez que todos parecem munidos de uma extrema incapacidade de empatia. Sua excêntrica mãe (Nathalie Baye) preocupa-se exclusivamente com o cardápio da ocasião, falando sem parar para disfarçar seu desconforto. Sua irmã caçula, Suzanne (Léa Seydoux) - com quem teve pouco contato - é uma jovem rebelde e hostil, que vê nele uma possibilidade de abandonar um lar opressivo e tedioso. Seu irmão mais velho, Antoine (Vincent Cassel), é bruto, amargo e pouco afeito a demonstrações de carinho - nem mesmo com a bela e fragilizada esposa, Catherine (Marion Cottilard). Sintomaticamente, é com ela, a única pessoa sem laços de sangue, que surge o maior entendimento: não é preciso palavras para que a frequentemente oprimida Catherine descubra o motivo da visita de Louis, que aos poucos passa a questionar a decisão de informar à família seu estado de saúde.

Com uma trilha sonora escolhida a dedo - desde a abertura com "Home is where it hurts", da cantora Camille, até os créditos finais ao som de "Natural blues", de Moby - Dolan pontua sua narrativa com imagens poderosas (um de seus pontos fortes) para ilustrar as muitas vezes dolorosas palavras escritas por Jean-Luc Lagarce, que encontram nos atores escolhidos pelo diretor seus intérpretes ideais. Gaspard Ulliel nunca esteve tão bem, transmitindo a dor de seu personagem mesmo sendo o mais silencioso dentre toda a barulhenta família. Nathalie Baye - que já havia trabalhado com o diretor em "Laurence anyways" (2012) - se entrega com corpo e alma à sua quase desagradável mãe, enquanto Vincent Cassel faz como ninguém o tipo "boçal com orgulho". Não à toa, ambos estão foram indicados ao César de coadjuvantes - o filme também está no páreo de melhores ator, diretor, montagem e filme estrangeiro. Mas é Marion Cottilard, mais uma vez, que rouba a cena. Com uma personagem que difere de tudo que já fez até então - uma mulher oprimida e quase humilhada por um marido abusivo - a vencedora do Oscar por "Piaf, um hino ao amor" (2008) mostra, mais uma vez, porque é uma das grandes atrizes de sua geração. Seus momentos de dor e compreensão com Gaspard Ulliel são o grande trunfo de "É apenas o fim do mundo", um filme de silêncios e segredos que aponta um novo caminho na carreira de Xavier Dolan. Difícil entender as vaias.

quinta-feira

LAURENCE ANYWAYS

LAURENCE ANYWAYS (Laurence anyways, 2012, Lyla Films/MK 2 Productions, 168min) Direção e roteiro: Xavier Dolan. Fotografia: Yves Bélanger. Montagem: Xavier Dolan. Música: Noia. Figurino: François Barbeau, Xavier Dolan. Direção de arte/cenários: Anne Pritchard/Louis Dandonneau, Pascale Deschênes. Produção executiva: Xavier Dolan, Gus Van Sant. Produção: Charles Gillibert, Nathanael Karmitz, Lyse Lafontaine. Elenco: Melvil Poupaud, Suzanne Clément, Nathalie Baye, Monica Chokri, Sophie Faucher, Emmanuel Schwartz. Estreia: 18/5/12 (Festival de Cannes)

O que fazer se, com apenas 22 anos de idade, você já realizou dois filmes elogiados pela crítica, premiados em festivais de prestígio como Cannes e é considerado um dos maiores talentos do cinema de seu país? Se seu nome for Xavier Dolan, a resposta óbvia é: fazer um filme ainda mais ambicioso, que trate de um assunto tabu e que enfatize ainda mais as características de sua filmografia até então. Com todos esses elementos, "Laurence anyways" faz todo o sentido dentro do universo artístico de Dolan, um menino-prodígio alçado à condição de gênio tão prematuramente que, como era de se esperar, arrumou tanto detratores ferozes quanto fãs devotos. E seu terceiro filme apenas serviu para fomentar ainda mais as discussões a respeito de seu talento: afinal, ele é um cineasta realmente dotado ou apenas um rapaz de sorte adotado por uma parcela da crítica sedenta por novidades? Para delírio de ambas as facções, "Laurence anyways" dá munição aos dois lados.

Como nos dois primeiros filmes de Dolan, em "Laurence anyways" há uma preocupação extrema com o visual: desde a fotografia deslumbrante de Yves Bélanger até os cenários e os figurinos (supervisionados pelo próprio diretor), tudo é cuidadosamente planejado para causar o máximo e impacto dramático e estético. Com uma profusão de belíssimas sequências em câmera lenta que enfatizam o universo particular de seus personagens - assim como seus estados de espírito - o cineasta cria metáforas visuais poéticas e inteligentes, mas em alguns momentos tropeça na redundância e em sua dificuldade de enxugar a narrativa, desnecessariamente longa a ponto de testar a paciência do espectador. No entanto, esse excesso de virtuosismo não impede a plateia de compreender e se envolver com o drama de seus protagonistas, complexos e dotados de dimensões raras no cinema contemporâneo, tão propenso a dedicar-se a personagens maniqueístas e simplórios. Ajuda muito, nesse ponto, que Dolan conte com dois ótimos atores principais, Melvin Poupaud (substituindo Louis Garrell, o escolhido inicial) e principalmente Suzanne Clément.


O roteiro de Dolan acompanha dez anos na vida de um casal atípico - ainda que apaixonado e em plena sintonia emocional e cultural. Laurence Alia (Melvin Poupaud em atuação brilhante em sua discrição) é um professor de literatura e Fred (Suzanne Clément) uma atriz tentando um lugar ao sol. Seu relacionamento franco e honesto sofre um duro golpe quando o rapaz resolve dar vazão a uma antiga necessidade de sua alma e passa a assumir uma identidade feminina. Apesar de chocada com a novidade, Fred tenta apoiar o marido, enfrentando o preconceito da sociedade e as próprias dúvidas em relação ao destino de seu relacionamento. Enquanto isso, Laurence gradualmente vai se tornando uma outra pessoa, dedicada à poesia e discriminada pela hipocrisia da sociedade em que antigamente vivia - o que inclui até mesmo sua mãe, Julienne (Nathalie Baye). Com o passar do tempo, Laurence e Fred chegam à conclusão de que a separação é o melhor caminho, mas o forte sentimento que nutrem um pelo outro os impede de cortar definitivamente o laço que os une - e nem mesmo novos relacionamentos parecem empecilhos para sua inegável química.

Fascinante em seu retrato de um personagem transsexual antes que o tema se tornasse comum até na televisão - em séries como "Transparent" e "Sense8" - "Laurence anyways" inova também em não discutir de forma definitiva a sexualidade de seu protagonista, preferindo deixar no ar a forma com que ele lida com o assunto. Laurence não é gay - ele é um homem com identidade feminina, uma discussão que assumiu relevância social enorme do lançamento do filme até hoje. O fato de vestir-se de mulher não significa que ele não tenha tesão em Fred, que, no entanto, sofre com a ambiguidade da situação mas mantém-se leal até onde seu coração permite. Todas as sequências que mostram suas tentativas de permanecer ao lado do homem que ama são de cortar o coração - a mostra definitiva de que Dolan, apesar da juventude e da tendência exibicionista, também sabe como falar à alma do espectador e criar personagens críveis e humanos. Afora isso, o final amargo/realista é de apertar o peito de todos aqueles que se deixarem cativar pela angústia e pela coragem dos protagonistas. Dolan não é um gênio - ainda tem muito o que aprender - mas tampouco é fogo de palha. Existe muito talento no rapaz e ele ainda vai dar muito o que falar.

domingo

MOMMY

MOMMY (Mommy, 2014, Metafilms/SODEC, 139min) Direção e roteiro: Xavier Dolan. Fotografia: André Turpin. Montagem: Xavier Dolan. Música: Noia. Figurino: Xavier Dolan. Direção de arte/cenários: Colombe Raby/Jean-Charles Claveau. Produção: Xavier Dolan, Nancy Grant. Elenco: Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon, Suzanne Clément, Patrick Huard, Alexandre Goyette. Estreia: 22/5/14 (Festival de Cannes)

Prêmio do Júri no Festival de Cannes

Em 2009, o jovem Xavier Dolan, então com meros 20 anos de idade, lançou o autobiográfico "Eu matei a minha mãe", em que narrava a difícil convivência de um adolescente homossexual com sua mãe - colocando-o como vítima de uma criação severa e opressiva. Cinco anos, quatro filmes e uma série de elogios e prêmios depois, o enfant terrible do cinema canadense surpreendeu ao demonstrar uma precoce maturidade em seu quinto longa-metragem. Em "Mommy"", ele inverte o ponto-de-vista de seu filme de estreia e, ciente das dificuldades pelas quais sua mãe teve de passar ao criar um filho não exatamente convencional, entrega um drama potente, belamente fotografado e interpretado com os nervos à flor da pele. Não à toa, levou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e angariou os mais entusiasmados aplausos de sua carreira até então.

Abdicando do papel central - afinal o personagem é um adolescente de 15 anos e nem mesmo com seu rosto juvenil ele convenceria o público - Dolan tem o controle quase total de seu filme, assinando a obra como diretor, roteirista, produtor e editor. Poderia ser apenas mais um exercício cansativo de autossuficiência se o rapaz não tivesse talento bastante para dar conta de tantas responsabilidades. Ao optar até mesmo por um formato de fotografia que enfatiza as limitações claustrofóbicas do jovem protagonista (e que se abre em uma já antológica sequência ao som de "Wonderwall", da banda inglesa Oasis), o jovem cineasta demonstra uma segurança ímpar no desenvolvimento do emocional material que tem em mãos, conseguindo até mesmo conter a tendência ao exagero dramático que caracterizava seus primeiros trabalhos. Cuidadoso na escolha de cada detalhe de seu filme, Dolan atinge o coração do espectador ao sublinhar principalmente a relação complicada entre seus dois protagonistas - visceralmente interpretados por Antoine-Olivier Pilon e Ann Dorval (que, sintomaticamente, também era a atriz central de "Eu matei a minha mãe").


Dorval - intensa, entregue, à flor da pele - dá vida à Diane Després, uma viúve jovem e atraente que dá duro como faxineira para sustentar-se e ao filho único, Steve (Antoine Olivier-Pilon), que vive em uma instituição psiquiátrica desde que foi diagnosticado como portador da Síndrome do Déficit de Atenção. Quando ela toma a decisão de retirá-lo do hospital - impulsionada pelo fato do rapaz ter agredido violentamente um colega - sua vida se transforma. Steve é extremamente inconstante e oscila radicalmente entre a docilidade e a agressividade, além de ser incapaz de encaixar-se nos moldes tradicionais de ensino. É aí que entra em cena Kyla (Suzanne Clemént), uma vizinha que s oferece para dar aulas particulares para ele e torna-se amiga íntima de Diane. Dona de um trauma familiar que envolve a morte de uma criança, ela acaba por ser testemunha da relação extrema entre mãe e filho, que atinge níveis surpreendentes de violência física e psicológica. No entanto, ela não consegue deixar de notar, também, o amor obsessivo de um pelo outro.

Um filme capaz de deixar o coração do espectador apertado e em lágrimas, "Mommy" é mais do que apenas o filme da maturidade de Xavier Dolan: é um poderoso drama familiar, repleto de momentos antológicos e sequências dolorosamente realistas, escritas e interpretadas com uma naturalidade admiráveis. Com cenas intensamente tristes - em especial perto do desfecho, razoavelmente otimista - e uma trilha sonora que mistura Oasis, Dido, Lana Del Rey, Counting Crows e Andrea Bocelli, o filme de Dolan funciona bem tanto como cinema - é tecnicamente o mais bem-acabado do cineasta - quanto como pedido de desculpas por seus dramas e excessos juvenis. Um trabalho avassalador e inesquecível, de deixar qualquer um de queixo caído.

quinta-feira

TOM NA FAZENDA

TOM NA FAZENDA (Tom à la ferme, 2013, MK2 Productions/Arte France Cinéma, 102min) Direção: Xavier Dolan. Roteiro: Xavier Dolan, Michel Marc Bouchard, peça teatral de Michel Marc Bouchard. Fotografia: André Turpin. Montagem: Xavier Dolan. Música: Gabriel Yared. Figurino: Xavier Dolan. Direção de arte/cenários: Colombe Raby/Pascale Deschênes. Produção executiva: Xavier Dolan, Nancy Grant. Produção: Xavier Dolan, Charles Gillibert, Nathanael Karmitz. Elenco: Xavier Dolan, Pierre-Yves Cardinal, Lise Roy, Evelyne Brochu, Manuel Tadros. Estreia: 02/9/13 (Festival de Veneza)

Menino-prodígio do cinema canadense, Xavier Dolan tomou o mundo de assalto logo em sua estreia como cineasta, o biográfico "Eu matei a minha mãe", lançado quando ele tinha apenas 20 anos de idade e que lhe rendeu entusiasmados elogios e prêmios, inclusive no sisudo Festival de Cannes. Depois disso, lançou o estiloso "Amores imaginários" - que enfatizava seu cuidado com o visual e o tornou queridinho do público que buscava um cinema que transitasse entre a seriedade do cinema francês e o tom mais comercial das produções hollywoodianas. Porém, depois do quase pretensioso "Laurence Anyways" - também premiado em Cannes a despeito de seus excessos - o ainda jovem Dolan (nascido em 1989) mostrou que também sabe ser sutil. Lançado no Festival de Veneza de 2013, "Tom na fazenda" surpreendeu por deixar de lado todas as características tão marcantes na filmografia do diretor (a passionalidade juvenil, a preocupação em exagero com o visual, a dificuldade em cortar cenas desnecessárias) e começar uma fase de maturidade em sua carreira. É uma grata surpresa, até mesmo para seus detratores.

Pela primeira vez utilizando material alheio - no caso uma peça teatral do corroteirista Michel Marc Bouchard - Dolan conta uma história onde os silêncios, o não-dito e o subtexto são muito mais importantes do que os diálogos, que surgem apenas como mapa para uma história de sentimentos dúbios e doentios. O próprio diretor ficou com o papel central, o publicitário Tom, que deixa Montreal para acompanhar o funeral do namorado, em uma cidade do interior do Canadá. Hospedado na fazenda de propriedade da família do rapaz - que escondia da mãe sua condição de homossexual - ele imediatamente percebe que terá grandes problemas em lidar com o irmão do morto, o truculento Francis (Pierre-Yves Cardinal), que tão logo o vê inicia um processo pouco discreto de bullying. Enquanto engole em seco as provocações do "cunhado" - que também lhe dá inúmeras mostras de uma personalidade torturada - Tom ainda precisa convencer Agathe (Lise Roy), a mãe dos dois, que seu filho Guillaume tinha uma noiva na cidade. Para isso, ele conta com a ajuda da amiga Sarah (Evelyne Brochu), que chega à fazenda justamente quando a relação entre Tom e François já está ultrapassando os limites da normalidade.


Um filme construído mais em cima de perguntas do que de respostas - como Guillaume morreu? qual era exatamente a relação dele com o irmão? por que François ainda mora com a mãe? por que Tom simplesmente não vai embora da fazenda quando os ataques de François aumentam de intensidade? o que dizia nos diários de Guillaume? - "Tom na fazenda" é precioso por deixar que o público preencha as lacunas da história de acordo com sua imaginação. Até mesmo a tendência de Dolan em exprimir-se através de gritos é deixada de lado, mostrando um lado até então desconhecido do ator, que injeta intensidade em seu personagem através de olhares (apavorados, devastados, desejosos, tímidos) e não apenas dos diálogos poderosos de Bouchard - que também dão oportunidade aos ótimos Lise Roy (em papel que também defendeu nos palcos) e Pierre-Yves Cardinal, perfeito na pele de um homem cuja verdadeira face se mantém escondida até mesmo quando tudo parece estar claro. Dolan acerta em priorizar a dinâmica da relação entre Tom e François - a força-motriz da trama - e o faz com uma sutileza surpreendente, acentuada pela trilha sonora discreta do premiado Gabriel Yared que dá espaço até mesmo para a melancólica "Going to a town", cantada por Rufus Weinright nos créditos de encerramento.

Ao deixar no espectador uma constante sensação de perigo e tensão, Javier Dolan consegue, com "Tom na fazenda", a façanha de unir, em um mesmo filme, o drama da morte, a angústia de ter que esconder a real identidade, o medo da violência e a sensação indescritível do desejo pelo perigo. Cineastas mais experientes talvez tivessem dificuldade em mesclar tantos elementos, mas Dolan, felizmente, acertou em cheio - e preparou a audiência para seu filme seguinte, o devastador "Mommy", em que fez as pazes com o passado e mostrou uma maturidade precoce e muito bem-vinda.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...