PRECIOSA (Precious, 2009, Lionsgate, 110min) Direção: Lee Daniels. Roteiro: Geoffrey Fletcher, livro "Push", de Sapphire. Fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Joe Klotz. Música: Mario Grogov. Figurino: Marina Draghici. Direção de arte/cenários: Roshelle Berliner/Kelley Burney, Paul Weatherer. Produção executiva: Lisa Cortés, Tom Heller, Tyler Perry, Oprah Winfrey. Produção: Lee Daniels, Gary Magness, Sarah-Siegel-Magness. Elenco: Gabourey Sidibe, Mo'nique, Paula Patton, Lenny Kravitz, Mariah Carey. Estreia: 16/01/2009 (Festival de Sundance)
6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Lee Daniels), Atriz (Gabourey Sidibe), Atriz Coadjuvante (Mo'nique), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor de 2 Oscar: Atriz Coadjuvante (Mo'nique), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Atriz Coadjuvante (Mo'nique)
Quando se assiste ao trailer de "Preciosa, uma história de esperança", é provável que se fique paralisado de medo de ser mais um daqueles dramas edificantes passados em guetos e que culpam a desigualdade social por todas as mazelas humanas. O nome de Oprah Winfrey nos créditos não é tranquilizador e ter Mariah Carey no elenco apenas aumenta as suspeitas dos desavisados. Isso sem falar no trailer em si, que visualmente dá a impressão de mais um daqueles filmes metidos a modernos que substituem a trama por uma edição cheia de picotes. Junto a tudo isso, o clima decadente de tristeza, dor, desespero e violência é capaz de afastar o mais fiel fã de cinema da vontade de encarar a experiência. Mas, se é que dá pra acreditar, quem se arriscar pelos caminhos da depressão alheia irá testemunhar alguns dos momentos mais legítimos do cinema na temporada 2009. Revelado no Festival de Sundance, "Preciosa" é, com o perdão do trocadilho fácil e previsível, uma preciosidade.
Tudo bem que o filme de Lee Daniels (indicado ao Oscar de direção) não tenta escapar de todas aquelas características citadas no início do post, mas o faz de maneira honesta, sensível e carinhosa. E, ao fugir do sensacionalismo que parece inerente a um filme desse naipe, ganha em credibilidade e conquista sua plateia - toda ela, indiferente se formada por homens, mulheres, negros ou brancos, ricos ou pobres.
A personagem-título (vivida pela estreante Gabourey Sibide) é talvez uma das protagonistas mais tristes a cruzar as telas nos últimos anos. Aos 16 anos, Preciosa começa o filme grávida pela segunda vez do próprio pai, que a violenta desde criança. Sua filha mais velha tem síndrome de Down e mora com a bisavó, já que a mãe de Preciosa (em uma atuação desconcertante de Mo'nique) a trata literalmente aos pontapés. Semi-analfabeta, muitos e muitos quilos acima do peso e atormentada pelos colegas de bairro, resta a ela apenas fugir de sua realidade através de seus sonhos em ser modelo, ou cantora ou qualquer outra profissão glamorousa que a arranque de seus pesadelos reais. Sua vida começa a mudar quando, expulsa da escola, ela conhece uma professora doce e paciente (Paula Patton), que a ajuda a explorar suas qualidades até então desconhecidas inclusive por ela mesma.
Mas na verdade o trunfo maior de "Preciosa" é seu elenco. Nem mesmo Mariah Carey como assistente social ou Lenny Kravitz como enfermeiro comprometem o impacto estarrecedor que Gabourey Sibide e principalmente Mo'nique causam nos espectadores, acostumados a atrizes de plástico simulando emoções pasteurizadas. A direção de Lee Daniels é precisa, crua, e sua câmera não evita capturar as performances inspiradas de suas atrizes bem de perto. O clima claustrofóbico de sua fotografia escura e quase palpável oferece à audiência um espetáculo nem um pouco agradável de miséria humana e, em cena, suas duas protagonistas se digladiam não apenas fisicamente mas em termos muito mais dolorosos. Se Gabourey impressiona pela quase passividade de sua personagem frente às tragédias de sua vida, a atuação de Mo'nique é impecável, desde suas cenas como megera indomável até suas inesquecíveis e dramáticas cenas finais. O Oscar de atriz coadjuvante apenas coroou uma interpretação soberba.
"Preciosa" não é e nem se pretende um conto de fadas. É uma história forte, forjada a ferro e fogo na alma, dolorosa mas ao mesmo tempo otimista. E é um impulso magistral na carreira de um diretor que posteriormente encararia o fracasso retumbante de seu ousado "Obsessão" e voltaria a retratar a comunidade negra com o politicamente correto "O mordomo da Casa Branca".