segunda-feira

PRECIOSA, UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA





PRECIOSA (Precious, 2009, Lionsgate, 110min) Direção: Lee Daniels. Roteiro: Geoffrey Fletcher, livro "Push", de Sapphire. Fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Joe Klotz. Música: Mario Grogov. Figurino: Marina Draghici. Direção de arte/cenários: Roshelle Berliner/Kelley Burney, Paul Weatherer. Produção executiva: Lisa Cortés, Tom Heller, Tyler Perry, Oprah Winfrey. Produção: Lee Daniels, Gary Magness, Sarah-Siegel-Magness. Elenco: Gabourey Sidibe, Mo'nique, Paula Patton, Lenny Kravitz, Mariah Carey. Estreia: 16/01/2009 (Festival de Sundance)


6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Lee Daniels), Atriz (Gabourey Sidibe), Atriz Coadjuvante (Mo'nique), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor de 2 Oscar: Atriz Coadjuvante (Mo'nique), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Atriz Coadjuvante (Mo'nique)

Quando se assiste ao trailer de "Preciosa, uma história de esperança", é provável que se fique paralisado de medo de ser mais um daqueles dramas edificantes passados em guetos e que culpam a desigualdade social por todas as mazelas humanas. O nome de Oprah Winfrey nos créditos não é tranquilizador e ter Mariah Carey no elenco apenas aumenta as suspeitas dos desavisados. Isso sem falar no trailer em si, que visualmente dá a impressão de mais um daqueles filmes metidos a modernos que substituem a trama por uma edição cheia de picotes. Junto a tudo isso, o clima decadente de tristeza, dor, desespero e violência é capaz de afastar o mais fiel fã de cinema da vontade de encarar a experiência. Mas, se é que dá pra acreditar, quem se arriscar pelos caminhos da depressão alheia irá testemunhar alguns dos momentos mais legítimos do cinema na temporada 2009. Revelado no Festival de Sundance, "Preciosa" é, com o perdão do trocadilho fácil e previsível, uma preciosidade.

Tudo bem que o filme de Lee Daniels (indicado ao Oscar de direção) não tenta escapar de todas aquelas características citadas no início do post, mas o faz de maneira honesta, sensível e carinhosa. E, ao fugir do sensacionalismo que parece inerente a um filme desse naipe, ganha em credibilidade e conquista sua plateia - toda ela, indiferente se formada por homens, mulheres, negros ou brancos, ricos ou pobres.

 A personagem-título (vivida pela estreante Gabourey Sibide) é talvez uma das protagonistas mais tristes a cruzar as telas nos últimos anos. Aos 16 anos, Preciosa começa o filme grávida pela segunda vez do próprio pai, que a violenta desde criança. Sua filha mais velha tem síndrome de Down e mora com a bisavó, já que a mãe de Preciosa (em uma atuação desconcertante de Mo'nique) a trata literalmente aos pontapés. Semi-analfabeta, muitos e muitos quilos acima do peso e atormentada pelos colegas de bairro, resta a ela apenas fugir de sua realidade através de seus sonhos em ser modelo, ou cantora ou qualquer outra profissão glamorousa que a arranque de seus pesadelos reais. Sua vida começa a mudar quando, expulsa da escola, ela conhece uma professora doce e paciente (Paula Patton), que a ajuda a explorar suas qualidades até então desconhecidas inclusive por ela mesma.


"Preciosa" não é um filme perfeito. Talvez o que mais incomode seja o fato de injetar tanta tragédia na vida de sua personagem principal, o que, mesmo que sendo plenamente possível de acontecer na vida real, dilui um pouco a importância de cada uma delas. Os problemas com a mãe ficam menores diante da situação com a filha doente, que empalidece frente à violência sexual, que diminui de tamanho com a revelação de que seu pai tinha AIDS. É tanta desgraça que em determinado momento a verossimilhança do roteiro chega a ficar em xeque. Ainda bem que o final anestesia o público que ficou quase duas horas assistindo tanto drama.

Mas na verdade o trunfo maior de "Preciosa" é seu elenco. Nem mesmo Mariah Carey como assistente social ou Lenny Kravitz como enfermeiro comprometem o impacto estarrecedor que Gabourey Sibide e principalmente Mo'nique causam nos espectadores, acostumados a atrizes de plástico simulando emoções pasteurizadas. A direção de Lee Daniels é precisa, crua, e sua câmera não evita capturar as performances inspiradas de suas atrizes bem de perto. O clima claustrofóbico de sua fotografia escura e quase palpável oferece à audiência um espetáculo nem um pouco agradável de miséria humana e, em cena, suas duas protagonistas se digladiam não apenas fisicamente mas em termos muito mais dolorosos. Se Gabourey impressiona pela quase passividade de sua personagem frente às tragédias de sua vida, a atuação de Mo'nique é impecável, desde suas cenas como megera indomável até suas inesquecíveis e dramáticas cenas finais. O Oscar de atriz coadjuvante apenas coroou uma interpretação soberba.

"Preciosa" não é e nem se pretende um conto de fadas. É uma história forte, forjada a ferro e fogo na alma, dolorosa mas ao mesmo tempo otimista. E é um impulso magistral na carreira de um diretor que posteriormente encararia o fracasso retumbante de seu ousado "Obsessão" e voltaria a retratar a comunidade negra com o politicamente correto "O mordomo da Casa Branca".

sexta-feira

A ESTRADA





A ESTRADA (The road, 2009, Dimension Films, 111min) Direção: John Hillcoat. Roteiro: Joe Penhall, romance de Cormac McCarthy. Fotografia: Javier Aguirresarobe. Montagem: Jon Gregory. Música: Nick Cave, Warren Ellis. Figurino: Margot Wilson. Direção de arte/cenários: Chris Kennedy/Robert Greenfield. Produção executiva: Marc Butan, Mark Cuban, Rudd Simmons, Todd Wagner. Produção: Paula Mae Schwartz, Steve Schwartz, Nick Wechsler. Elenco: Viggo Mortensen, Kodi Smith-McPhee, Charlize Theron, Robert Duvall, Guy Pearce. Estreia: 03/9/09 (Festival de Veneza)


Se existe uma coisa que deixa qualquer cinéfilo feliz da vida é assistir a um filme do qual não se espera muito e sair do cinema encantado. Depois de tanto ter que engolir péssimos exemplos cinematográficos vindo de uma Hollywood que adora pasteurizar sentimentos, os fãs de bom cinema foram surpreendido com um dos melhores filmes de 2009 e que, sintomaticamente, passou batido pelas cerimônias de premiação que renderam louvores a lixos como "Um sonho possível". Dirigido pelo relativamente novato John Hillcoat, "A estrada" é um petardo emocional dos mais sinceros, que equilibra com presteza elementos de um filme de suspense aterrador com um drama familiar de partir o coração.

Adaptado de um romance de Cormac McCarthy (escritor que teve sorte até agora com as transições de seus livros para o cinema, uma vez que é também o autor da trama de "Onde os fracos não tem vez"), "A estrada" não é exatamente um filme fácil, e exige do público uma entrega quase total a seu universo, já que não oferece respostas imediatas nem soluções comuns à audiência. A história se passa em uma época não definida, em um lugar também não declarado. Só o que se sabe é que, por alguma razão, poucas pessoas estão vivas e vagam perdidas pelas estradas, em busca de alimento e moradia segura. Algumas dessas pessoas apelam para o canibalismo como forma de sobrevivência e é nesse ambiente que um homem (Viggo Mortensen) tenta proteger o único filho (Kodi Smith-McPhee) da violência que os cerca, ao mesmo tempo em que lhe ensina como manter-se são e perspicaz a tudo que lhes rodeia. Seu objetivo é reencontrar a esposa que os abandonou (Charlize Theron) e, no meio do caminho, cruza com vândalos, assassinos, indigentes e um homem idoso (Robert Duvall, irreconhecível e em uma atuação estupenda) que perdeu o filho devido à tragédia que os jogou, a todos, no mesmo barco de desesperança.

A belíssima fotografia de Javier Aguirresarobe, a trilha sonora discreta de Nick Cave e Warren Ellis e a maquiagem assustadora de Mandi Crane acabam se tornando elementos-chave nas mãos do diretor, que reitera a máxima de que o importante não é o destino e sim a viagem. Durante o processo de fuga/busca entre os protagonistas, a relação entre pai e filho chama mais a atenção do que os angustiantes momentos de tensão que perpassam o filme - mesmo que esses sejam filmados com extrema eficácia. É o carinho que move o pai desesperançoso e o filho dono de uma inocência sempre em vias de acabar que eleva o filme a uma categoria especial: é difícil não emocionar-se com o rosto ingênuo da sensacional revelação Kodi Smith-McPhee tentando devolver ao pai (vivido com garra por um Viggo Mortensen melhor ator do que nunca) a fé na bondade e na compaixão, assim como é virtualmente impossível acabar a sessão sem a certeza absoluta de ter-se assistido a uma obra corajosa, forte e comovente.

"A estrada" é um filmaço, feito com uma competência assustadora e que aponta a seu diretor um futuro bem menos distópico do que o representado por ele em 120 minutos de projeção.

quinta-feira

ELE NÃO ESTÁ TÃO A FIM DE VOCÊ

ELE NÃO ESTÁ TÃO A FIM DE VOCÊ (He's just not that into you, 2009, New Line Cinema, 129min) Direção: Ken Kwapis. Roteiro: Abby Kohn, Marc Silverstein, livro de Greg Behrendt, Liz Tuccillo. Fotografia: John Bailey. Montagem: Cara Silverman. Música: Cliff Eidelman. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Fae S. Buckley/K.C. Fox. Produção executiva: Drew Barrymore, Michael Beugg, Toby Emmerich, Michelle Weiss. Produção: Nancy Juvonen. Elenco: Jennifer Aniston, Drew Barrymore, Jennifer Connelly, Ben Affleck, Bradley Cooper, Scarlet Johansson, Ginifer Goodwin, Justin Long, Kevin Connolly. Estreia: 06/02/09

Sofrendo eternamente de um deserto de ideias originais, Hollywood sempre buscou na literatura a forma de sustentar sua produção. Até aí, nada de mais, uma vez que muitos clássicos do cinema saíram direto das mentes de gente como John Steinbeck ("As vinhas da ira", "Vidas amargas"), Truman Capote ("À sangue frio", Bonequinha de luxo") e Tolstói (as várias versões de "Anna Karenina"). O problema é que, não felizes em transportar para as telas romances de vários níveis de qualidade, os executivos começaram a apelar para o mais imprevisível segmento literário: a autoajuda. Um exemplo inconteste dessa afirmação é "Ele não está tão a fim de você", escrito pela dupla Greg Behrendt e Liz Tuccillo. Uma espécie de manual para que as mulheres identifiquem as razões pelas quais os homens não as procuram mais depois de um primeiro encontro, o livro virou uma comédia romântica que em nada difere das outras do gênero, exceto pelo elenco estelar.

Inspirado em uma frase clássica de um episódio da telessérie "Sex and the city", o filme dirigido por Ken Kwapis mostra diferentes tipos de relação amorosa através de oito amigos/conhecidos/colegas de trabalho na casa dos trinta e poucos anos que se debatem em problemas explorados pelo livro. De uma certa forma, quem conduz a trama é Gigi (Ginifer Goodwin, justamente a menos conhecida do elenco): confusa por nunca conseguir dar seguimento a seus primeiros encontros, ela encontra em Alex (Justin Long), o dono de um bar, uma espécie de guru masculino, que passa a ajudar-lhe a entender o lado oposto das relações. Alex é o melhor amigo de um desses homens que ignoraram Gigi, o corretor imobiliário Conor (Kevin Connolly), que tem suas razões para não querer mais nenhuma relação, uma vez que ainda é apaixonado pela ex-namorada, Anna (Scarlett Johnasson, abusando de suas caras e bocas de "I'm sexy and I know it"), que sonha começar uma carreira como cantora. Nessa busca, ela encontra com Ben (Bradley Cooper), que promete ajudar-lhe, mas sentindo-se atraído por ela, balança em seu casamento com a controladora Janine (Jennifer Connelly), colega de trabalho de Gigi e de Beth (Jennifer Aniston), que depois de sete anos de relacionamento resolve por o namorado Neil (Ben Affleck) contra a parede e exigir uma decisão relacionada a um casamento ou não. Enquanto isso, outra amiga delas, Mary (Drew Barrymore, uma das produtoras executivas através de sua produtora Flower Films), sente dificuldades em lidar com todas as formas de tecnologia envolvidas no início de uma relação.


A opção dos roteiristas de "Ele não está tão a fim de você" em contar várias histórias paralelas sem aprofundar-se muito em nenhuma delas é o trunfo e o ponto fraco do filme. Sem apostar exageradamente em nenhum núcleo, a obra dá ao espectador a chance de ignorar as histórias menos interessantes e prestar mais atenção naquelas que mais lhe são simpáticas, mas ao mesmo tempo, cria personagens superficiais o bastante para que nenhum deles consiga destacar-se em meio ao emaranhado de situações apresentadas - que, justiça seja feita, fazem sentido para qualquer pessoa que já passou ou está passando por uma relação amorosa. Nesse ponto, talvez a personagem de Jennifer Connelly - mesmo sendo a mais chata em uma primeira visão - seja a mais real da trama, por jamais cair na armadilha fácil das piadinhas previsíveis (ou talvez seja a bela Connelly que é melhor atriz do que todo mundo do elenco que passe essa impressão).

Bonitinho, simpático, agradável, ligeiro. Todos esses adjetivos podem ser utilizados quando se fala de "Ele não está tão a fim de você" e todos eles estão corretos. O problema é que eles também definem a grande maioria das comédias românticas americanas, o que imediatamente o relega a ser apenas mais uma produção rotineira, ainda que não ofenda ninguém. Vale pelo elenco e por uma ou outra cena mais engraçada.

quarta-feira

EDUCAÇÃO


EDUCAÇÃO (An education, 2009, BBC Films, 100min) Direção: Lone Scherfig. Roteiro: Nick Hornby, livro de Lynn Barber. Fotografia: John de Borman. Montagem: Barney Pilling. Música: Paul Englishby. Figurino: Odile Dicks-Mireaux. Direção de arte/cenários: Andrew McAlpine/Anna Lynch Robinson. Produção executiva: Douglas E. Hansen, Nick Hornby, Wendy Japhet, Jamie Laurenson, James D. Stern, David M. Thompson. Produção: Fiona Dwyer, Amanda Posey. Elenco: Carey Mulligan, Peter Sarsgaard, Alfred Molina, Cara Seymour, Dominic Cooper, Olivia Williams, Rosamund Pike, Emma Thompson. Estreia: 18/01/09 (Sundance)

3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Carey Mulligan), Roteiro Adaptado

Existem inúmeras maneiras de um filme conquistar seu público. Astros com cachês milionários, efeitos visuais de ponta, orçamentos estratosféricos, campanhas de marketing enlouquecedoras... Mas nada disso é suficiente se falta o essencial: gente. Pessoas, com sentimentos dúbios e por essa razão mesmo verdadeiros são ainda o principal motivo que faz com que duas horas no escurinho do cinema não sejam apenas 120 minutos de uma vida jogados fora. E é justamente esse senso de "humanismo" que gera filmes como "Educação", que, mesmo sem nenhum dos ingredientes citados acima conquistou seu lugar ao sol em várias listas de melhores filmes de 2009. Glória suprema? Indicações ao Oscar de melhor filme, melhor atriz (Carey Mulligan) e roteiro adaptado (trabalho a cargo do escritor Nick Hornby). Merecia mais.


"Educação" é baseado no livro de memórias de Lynn Barber e se passa na Inglaterra do início dos anos 60, tempo do existencialismo francês e da explosão do jazz. A protagonista é Jenny Mellor (vivida por uma Carey Mulligan impecável), uma adolescente de 16 anos, filha única, extremamente cobrada pelos pais (Alfred Molina e Cara Seymour), que a querem vê-la estudando em Oxford, como maneira de melhorar de vida. Seus objetivos, no entanto, começam a sofrer alterações quando ela conhece David Goldman (Peter Sarsgaard), um homem duas décadas mais velho, que, sedutoramente, a apresenta a um mundo totalmente novo. Ao lado dele e de um casal de amigos da mesma idade, Jenny passa a frequentar clubes noturnos, concertos de jazz, leilões de arte e até mesmo conhecer a Paris de seus sonhos. A princípio contra a vontade de seus pais e posteriormente incentivada por eles, a jovem inicia seu próprio processo de educação, chegando a questionar a formação acadêmica da escola onde estuda (e batendo de frente com algumas professoras, vividas pelas ótimas Olivia Williams e Emma Thompson).


Contar mais sobre "Educação" é tirar o grande prazer que é surpreender-se com sua elegância, sua classe, seu humor sutil e britânico, pontuado por uma cálida trilha sonora e uma reconstituição de época acima de qualquer crítica. A história de amor entre Jenny e David se desenrola em seu próprio ritmo, imposto pelas convenções sociais do período e pela decisão da protagonista em manter sua pureza até os 17 anos. É uma história sem maiores sobressaltos (com exceção do último e chocante) contada com delicadeza pela estreante Lone Scherfing e interpretada com talento de gente grande por Carey Mulligan (que merecia bem mais o Oscar do que a vencedora Sandra Bullock). Ao lado de veteranos das telas, a jovem Carey irradia frescor, inteligência e abre seu caminho para futuros e maiores voos.

terça-feira

DO COMEÇO AO FIM


DO COMEÇO AO FIM (Do começo ao fim, 2009, Pequena Central de Produções, 94min) Direção e roteiro: Aluizio Abranches. Fotografia: Ueli Steiger. Montagem: Fábio S. Limma. Música: André Abujamra. Direção de arte: Bruno Testore Schmidt. Produção: Aluizio Abranches, Fernando Libonati, Marco Nanini. Elenco: Júlia Lemmertz, Fábio Assunção, Jean Pierre Noher, Louise Cardoso, Rafael Cardoso, João Gabriel Vasconcellos. Estreia: 12/11/09

Dois jovens, meio-irmãos que foram criados juntos pelos pais amorosos e cercados de uma vida confortável e feliz, se apaixonam perdidamente e, após a morte da mãe, resolvem assumir seu romance. Os dois jovens são homens. E são meio-irmãos. E mesmo assim, ninguém no filme - nem o pai de um deles, nem seus amigos, nem as pessoas que convivem diariamente com eles - parece se importar com isso. O preconceito e a tolerância estão ao alcance de todos. Parece um conto de fadas gay, certo? Errado. É o filme "Do começo ao fim", de Aluizio Abranches, que causou controvérsia por seu tema somente do lado de fora das telas, quando foi lançado.

A intenção de Abranches, também autor do roteiro, parece não ser discutir temas que poderiam suscitar belos e intensos debates, como a imprevisibilidade do amor, a homossexualidade em si (assunto de inúmeras obras que a utilizam como ponto de partida para infindáveis polêmicas) e o incesto. Como está, seu filme dá a nítida impressão de ser apenas mais uma simples história de amor, igual a dezenas de outras que o cinema - em especial o americano - entrega semanalmente às telas de cinema. O problema é que, enquanto em qualquer história de amor que se preze há obstáculos para o final feliz, em "Do começo ao fim" tudo dá certo desde sempre. O pior que acontece aos dois protagonistas é a proposta de uma viagem internacional para um deles, que precisa optar entre manter-se perto do objeto de seu amor ou partir (por um período de tempo, apenas) em busca de sua realização profissional. A falta de drama, a falta de um sentimento de tristeza e melancolia que sempre reveste o amor é o calcanhar de Aquiles do filme de Abranches, de resto realizado com extrema competência técnica.


Quando o filme começa, Francisco (Lucas Cotrim) e Thomás (Gabriel Kaufman) ainda são crianças e moram com a mãe, Julieta (Júlia Lemmertz, sempre convincente) e seu segundo marido, Alexandre (Fábio Assunção), pai de Thomás. Unidos de forma quase obsessiva, os dois irmãos despertam certa estranheza, tanto em Julieta quanto em seu ex-marido, Pedro (Jean-Pierre Noher), mas a dúvida a respeito da natureza de tal união logo é posta de lado. Algum tempo depois, com Julieta morta, Francisco (já na pele de João Gabriel Vasconcellos) e Thomás (o hoje global Rafael Cardoso) assumem, diante de todos, o amor que sentem um pelo outro - não um amor fraternal, mas um amor de um homem pelo outro. Apaixonados, eles vivem, então, toda a felicidade que o relacionamento pode oferecer, até que uma viagem inesperada põe em xeque suas prioridades.

"Do começo ao fim" é plasticamente refinado, dirigido com delicadeza e interpretado por atores que extraem o máximo de emoção possível diante de um roteiro um tanto limitado. As cenas de sexo entre João Gabriel Vasconcellos e Rafael Cardoso são de bom-gosto, sem vulgaridades desnecessárias e a bela trilha sonora serve perfeitamente a seus propósitos. Poderia ser um grande filme, se não lhe faltasse justamente o que poderia fazer dele um marco: um estudo sobre a força do amor diante de convenções nem sempre justificáveis. É bonito, mas falta conteúdo.

segunda-feira

ABRAÇOS PARTIDOS


ABRAÇOS PARTIDOS (Los abrazos rotos, 2009, El Deseo SA, 127min) Direção e roteiro: Pedro Almodovar. Fotografia: Rodrigo Prieto. Montagem: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias. Figurino: Sonia Grande. Direção de arte/cenários: Antxón Gómez/Marta Blasco, Pilar Revuelta. Produção: Agustin Almodovar, Esther García. Elenco: Penelope Cruz, Lluis Homar, Blanca Portillo, Tamar Novas, Angela Molina, Lola Dueñas, Rossy de Palma. Estreia: 17/3/09 (Barcelona)

"Abraços partidos", o 18º longa-metragem de Pedro Almodovar  proporciona a seu público um fato até então inédito em sua vitoriosa carreira: a autocitação. Não que isso seja um defeito, até porque qualquer citação de Almodovar sempre será bem-vinda, mas é que, quando se assiste às cenas de "Garotas e maletas" - o filme dentro do filme - dá uma saudade tremenda da época em que o diretor espanhol não se levava tão a sério e, mesmo não sendo tão respeitado como passou a ser depois de obras mais "maduras", fazia rir diante dos absurdos de seus roteiros e suas personagens iconoclastas e neuróticas. Talvez como forma de mostrar que por detrás do diretor sóbrio de "Fale com ela" e "Volver" ainda existe um enfant terrible, Almodovar encerra seu filme com sorrisos, depois de mais de duas horas de uma trágica história de amor que trai sua adoração e respeito pelo melodrama - já explícita em "A flor do meu segredo".

Como raríssimas ocasiões na carreira do cineasta, o protagonista é um homem. No caso, um roteirista cego chamado Harry Caine (que soa como hurricane - ou furacão) que vê seu passado literalmente bater-lhe à porta na figura de Ray X (Rubén Ochandiano), um aspirante à cineasta que quer contratar-lhe para escrever um roteiro. Caine recusa a oferta sem saber que o jovem tem uma forte ligação com a trágica história de seu torturado relacionamento com a bela Lena (Penelope Cruz, linda como nunca), a esposa de Ernesto Martel (José Luis Gómez), um empresário milionário que também foi o produtor de seu último (e inacabado, ao menos para ele, filme). Para saciar a curiosidade de Diego (Tamar Novas), filho de sua assistente Judit (Blanca Portillo), Caine passa a narrar os fatos que o levaram à cegueira e à aposentadoria como cineasta.


Contando sua história basicamente em flashbacks, Pedro Almodovar apresenta à sua audiência uma história de amor que difere em muito de tudo que ele mesmo contou anteriormente. Substituindo o sarcasmo e a ironia pela melancolia, ele se aproxima muito mais de "Fale com ela" do que "Mulheres à beira de um ataque de nervos" (inspiração para "Garotas e maletas"). Poucas vezes na obra do diretor o amor foi retratado de maneira tão séria e avassaladora, sem espaços para piadas ou até mesmo para sexo: talvez este seja seu filme menos calcado na sexualidade, um dos pilares de sua obra até então. O que pode afastar seu público fiel, portanto - as características marcantes de sua filmografia - pode aproximá-lo daqueles que ainda não se deixaram seduzir pela perfeição de seus filmes de 1998 pra cá, quando ele aprimorou seu estilo com inteligência e sensibilidade. "Abraços partidos", não fosse a presença de Penelope Cruz e a presença afetiva de Angela Molina, Lola Dueñas e Rossy de Palma (todas ex-colaboradoras de Pedro), poderia tranquilamente se passar por um filme de qualquer diretor, tamanha a neutralidade imposta por Almodovar na maior parte de suas duas horas de duração.

Essa neutralidade, porém, não quer dizer, de modo algum, que "Abraços partidos" não tenha personalidade. Pedro Almodovar sabe como ninguém utilizar as ferramentas à sua disposição para criar imagens e personagens que ficam para sempre na mente do espectador. Aqui, ele cria duas sequências antológicas: a hilariante cena em que o milionário Ernesto Martel descobre, através de uma dubladora, que sua amada Lena está tendo um caso com seu diretor e a belíssima tomada que mostra o casal em uma praia deserta, abraçados e totalmente inocentes da tragédia que viria a mudar suas vidas em pouco tempo. Se não fosse o bastasse a forma mágica como o cineasta conta sua história - seduzindo a plateia aos poucos - essas duas cenas (e "Garotas e maletas", é claro) já valeriam o espetáculo. Mas um Almodovar nunca oferece poucas sensações.

quinta-feira

TUDO PODE DAR CERTO


TUDO PODE DAR CERTO (Whatever works, 2009) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Harris Savides Montagem: Alisa Lepselter Figurino: Suzy Benzinger Direção de arte/cenários: Santo Loquasto/Ellen Christiansen Produção executiva: Brahim Chioua, Vincent Maraval Produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum Elenco: Larry David, Evan Rachel Wood, Henry Cavill, Patricia Clarkson, Ed Begley Jr. Estreia: 22/4/09

Boris Yellkinoff é um sexagenário a um passo da misantropia, que passa seus dias ensinando xadrez a crianças que ele considera zumbis sem cérebro e pregando a seus amigos sua visão particular (e obviamente negativa) do mundo, da vida e da humanidade em geral, que ele considera um fracasso absoluto. Manco de uma perna – consequência de uma abortada tentativa de suicídio ocorrida à época de seu divórcio – e incapaz de dar-se ao luxo de um simples prazer, ele também sofre de um transtorno psicológico que o faz cantar “Parabéns a você” quatro vezes sempre que lava as mãos e é o protagonista de “Tudo pode dar certo”, 45º filme de Woody Allen, que volta à sua Nova York natal depois de uma refrescante volta ao mundo que legou aos fãs obras geniais como “Match point: ponto final” (rodado na Inglaterra) e “Vicky Cristina Barcelona” (que, como o próprio título deixa claro, se passava na Espanha). Interpretado por Larry David – conhecido do público por seu papel na série de TV “Curb your enthusiasm” – Yelnikoff é mais um personagem icônico criado por Allen, um diretor que, apesar da longevidade da carreira e da prolífica produção, ainda encontra meios de surpreender e encantar a plateia, mesmo que em pequenas proporções.
“Tudo pode dar certo” não é um dos melhores filmes do cineasta, mas ainda assim tem momentos brilhantes – em especial graças aos diálogos inteligentes e sardônicos – e alguns insights geniais a respeito do mundo e da sociedade atuais (difícil não ver em Yelnikoff muito do próprio Allen, que por mais que tente, nunca consegue convencer crítica e público que seus personagens são totalmente obra de ficção e não inspirados em sua própria e conhecidíssima persona). Boris é um resmungão chato e rabugento, mas não deixa de ter razão em muitas de suas afirmações, o que o torna deliciosamente verdadeiro: percebendo antes de todo mundo a insignificância dos problemas humanos e acreditando piamente que os homens não tem dentro de si a bondade inerente que muitos afirmam, ele é um espectador atento do colapso da Criação, mas seu mau-humor e cinismo constantes são tão desprovidos de maldade que se tornam hilariantes e encantadores, especialmente para a segunda protagonista criada por Allen – tão radicalmente diferente em sua inocência e otimismo que acaba, inevitavelmente, colidindo e invadindo compulsoriamente o mundinho cético do veterano professor.



Melody Celestine (a bela e talentosa Evan Rachel Wood, de “Aos treze” (03) e “Across the universe” (07) é o extremo oposto de Boris. Ingênua, otimista e pouco dotada intelectualmente, ela chega à Nova York disposta a vencer na vida – o que ela acha que pode acontecer facilmente, haja visto seus prêmios em concursos de beleza em sua pequena cidade do interior do país. Contrariando todas as regras que sua ojeriza à boa parte das pessoas manda, o homem que um dia foi candidato a um Nobel de Física deixa que a jovem – que não conhece ninguém na cidade e nem tem onde dormir - entre em seu apartamento e passe a noite lá. Quando ele percebe, já se passaram meses e a situação não dá sinais de mudança – a não ser na personalidade da própria Melody, que passa a ver o mundo com os olhos do novo amigo até que se declara, para surpresa geral, apaixonada por ele. Os dois universos aparentemente antagônicos acabam por se unir em um casamento inusitado, mas uma nova visita pode pôr tudo a perder: abandonada pelo marido, sem a propriedade que foi obrigada a vender e querendo reaproximar-se da filha, a mãe de Melody, Marietta (Patricia Clarkson, sempre ótima) chega à Manhattan – e ao mesmo tempo em que se envolve simultaneamente com dois homens e descobre a fotografia como carreira, resolve livrar a filha do relacionamento com Boris, aproximando-a do jovem ator inglês Randy James (Henry Cavill, o futuro “Homem de aço” (13)).



Mesmo sem apresentar nada de muito novo dentro do universo no qual transitam suas criações, Woody Allen consegue, em “Tudo pode dar certo”, conquistar o público com personagens deliciosamente construídos, repletos de contradições e angústias como qualquer pessoa normal. Com sua visão ácida da vida e a experiência adquirida em décadas de carreira, o cineasta/roteirista demonstra um conhecimento único da alma humana, brindando suas criações com uma dose certeira de coerência e impulsividade. É assim que a religiosa e rígida Marietta abandona a conduta irretocável de sua vida pregressa para entregar-se a um relacionamento afetuoso e satisfatório com dois homens ao mesmo tempo – mas nem por isso deixa de lado a vontade de encontrar para a filha um homem mais adequado à sua idade e possibilidades futuras. É assim que Melody se encanta por um homem com idade para ser seu avô por causa de sua forma quase crua de enxergar o mundo – mas acaba percebendo que isso o impede (e a ela, por consequência) de enxergar as coisas boas da vida. É assim que o pai de Melody (Ed Begley Jr.) redescobre uma nova faceta de sua vida – escondida até de si mesmo por décadas – quando chega à cidade atrás da ex-mulher. E, finalmente, é assim que Boris descobre, da maneira mais prosaica do mundo, que nem tudo é parte de um plano maior – e que é preciso fazer o que for mais acessível para finalmente encontrar um mínimo de felicidade.
Contrastando com o pessimismo irredutível de algumas das obras mais bem-sucedidas de Allen (caso do excepcional “Crimes e pecados”, de 1989), o final feliz de “Tudo pode dar certo” contraria até mesmo a forma como Boris apresenta o filme, quebrando a quarta parede e dirigindo-se diretamente ao público. Segundo ele, o que está para ser visto não é um filme alto-astral, feito para agradar e fazer com que todos saiam do cinema sorrindo e felizes. Mas, de forma irônica e como que enfatizando a impotência do homem em ditar as regras do seu futuro, Allen faz com que o desfecho da trama vire pelo avesso as teorias radicais de seu ranzinza protagonista, dando até mesmo a ele a chance de uma redenção e revisão de ideologias. No fim das contas, é um Woody Allen otimista e benevolente que se mostra em “Tudo pode dar certo” – o que, de certa forma, não deixa de ser também uma reversão de expectativas das mais agradáveis e bem-vindas.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...