QUESTÃO
DE TEMPO (About time, 2013, Working Title Films, 123min) Direção e
roteiro: Richard Curtis. Fotografia: John Guleserian. Montagem: Mark
Day. Música: Nick Laird-Clowes. Figurino: Verity Hawkes. Direção de
arte/cenários: John Paul Kelly/Liz Griffiths. Produção executiva: Liza
Chasin, Richard Curtis, Amelia Granger. Produção: Nicky Kentish Barnes,
Tim Bevan, Eric Fellner. Elenco: Domhnall Gleeson, Rachel McAdams, Bill
Nighy, Lydia Wilson, Lindsay Duncan, Richard Cordery, Tom Hollander,
Margot Robbie. Estreia: 27/6/13
É preciso ter uma
certa dose de boa vontade para comprar a premissa
inicial da comédia romântica "Questão de tempo", em tempos cínicos como
os que correm: um rapaz sem graça e sem maiores atrativos físicos
descobre, em seu aniversário de 21 anos que tem o poder - herdado do
lado masculino da família de seu pai - de viajar no tempo: basta que
esteja isolado em um armário ou
banheiro e apertar com força as mãos para que consiga transferir-se para
a data do passado (e só do passado) que escolher (desde que já tenha
estado lá, o que impede ambições maiores, como transformar a história do
mundo). De posse dessa valiosa informação, o rapaz a aproveita para
resolver sua vida sentimental, principalmente quando se muda para
Londres para cursar Direito e se apaixona por uma bela editora
americana.
Uma vez acreditando no absurdo da ideia
central, porém, o espectador
acaba fisgado por um filme que se destaca dos demais exemplares do
gênero por
contar não apenas uma história de amor, mas várias. O roteiro esperto de
Richard Curtis - que tem no currículo os deliciosos diálogos de "Quatro
casamentos e um funeral" e o romantismo abundante de "Simplesmente
amor" - não se restringe, felizmente, a contar como o desajeitado Tim
(Domhnall Gleeson) conquista a esfuziante Mary (Rachel McAdams): em duas
horas de projeção (uma duração que parece assustar em um primeiro
momento, mas torna-se essencial para o desenvolvimento da trama), Curtis
também oferece ao
público a história do belo relacionamento entre ele e seu pai
(interpretado com a verve histriônica já amplamente reconhecível de Bill
Nighy) e sua preocupação com os problemas sentimentais da irmã,
Katherine (Lydia Wilson) - que acabam por interferir diretamente em sua
felicidade e o obrigam a tomar atitudes impulsivas.
Assim como acontece em vários filmes da mesma temática - mais
recentemente o tenso "Efeito borboleta" - as ações de Tim tem
consequências imprevisíveis, o que deixa a audiência em constante estado
de dúvida em relação ao que está por vir. A maior vantagem do roteiro,
porém, está no fato de não deter-se exclusivamente nas idas e vindas do
casal protagonista, expandindo-se bravamente em terrenos menos
explorados. Mesmo que por vezes soe um tanto superficial - e sem coragem
de chegar até o fim de alguns dramas propostos - o filme conquista pela
leveza no tratamento, pela simpatia do elenco e pela fluidez da trama,
que acaba disfarçando seus pequenos pecados. Richard Curtis é,
inegavelmente, um mestre em diálogos e faz bom uso deles, nunca pesando a
mão, mesmo quando o dramalhão ameaça perigosamente dominar a narrativa -
e encontra em seus atores os intérpretes ideais para seus personagens
gente como a gente.
Enquanto
Rachel McAdams já pode ser considerada uma especialista em
filmes sobre viagens no tempo - ela está no elenco de "Te amarei para
sempre" e "Meia-noite em Paris" - é o praticamente desconhecido Domhnall
Gleeson, filho do ator Brendan Gleeson, a maior descoberta do filme.
Completamente fora dos padrões convencionais de beleza, o ator de 30
anos à época da estreia e que teve um papel de destaque na "Anna
Karenina" de Joe Wright, é
capaz de transmitir todas as emoções que o roteiro pede, demonstrando
que tem tudo para ter um futuro alvissareiro na capital do cinema, além
de ter uma química invejável com McAdams e Bill Nighy. Também é
impossível não destacar, como sempre nos filmes com a mão de Curtis, a
eclética e apropriada trilha sonora, que resgata até mesmo a clássica
"Il mondo", na voz de Jimmy Fontana.
Inteligente,
delicado, simpático e bem-intencionado, "Questão de tempo" é
uma comédia romântica das mais interessantes dos últimos tempos, graças
à dosagem exata entre doçura e humor e ao elenco bem escalado.
Pode fazer rir e chorar e não causa constrangimento por causa disso,
muito pelo contrário - as situações previstas no roteiro são capazes de
sensibilizar até ao mais renitente e racional espectador. Altamente
recomendável para qualquer público, e sem contraindicações.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
quinta-feira
quarta-feira
O PASSADO
O
PASSADO (Le passé, 2013, Memento Films Production/France 3 Cinéma,
130min) Direção e roteiro: Asghar Farhadi. Fotografia: Mahmoud Kalari.
Montagem: Juliette Welfling. Música: Evgueni Galperine, Youli Galperine.
Figurino: Jean-Daniel Vuillermoz. Direção de arte/cenários: Claude
Lenoir. Produção: Alexandre Mallet-Guy. Elenco: Bérénice Bejo, Tahar
Rahim, Ali Mosafa, Pauline Burlet, Elyes Aguis. Estreia: 17/5/13
(Festival de Cannes)
Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Bérénice Bejo)
Quando se trata de cinema, alguns males vem pro bem. Se não, vejamos: a atriz escolhida pelo cineasta iraniano Asghar Farhadi para estrelar seu filme seguinte ao excepcional "A separação" havia sido Marion Cottilard, vencedora do Oscar por "Piaf, um hino ao amor" e imediatamente adotada pela indústria hollywoodiana. Porém, conflitos de agenda - leia-se a divulgação do drama "Ferrugem e osso" pelo mundo - acabaram por impedir Cottilard de permanecer no projeto. Farhadi optou então por uma nova protagonista, Bérénice Bejo, indicada ao Oscar de coadjuvante por "O artista", e não teve do que reclamar: com uma atuação discreta e sutil, Bejo conquistou os jurados do Festival de Cannes e levou a Palma de Ouro de melhor atriz. Muito justo, já que é a sua personagem que move as engrenagens de "O passado", um dolorido drama familiar que comprova a imensa capacidade do cineasta em mexer com as emoções primárias do ser humano.
Assim como em "A separação" - merecido vencedor do Oscar de filme estrangeiro - a trama criada por Farhadi tem início com o término de um casamento. Na verdade, em "O passado" são dois que chegam ao fim, mas apenas um oficialmente. O iraniano Ahmad (Ali Mosaffa) retorna à Paris para assinar os papéis que enfim irão separá-lo de Marie-Anne (Bérénice Bejo), a quem não vê há quatro anos. Seu reencontro não é dos mais pacíficos, mas eles mantém um relacionamento amistoso principalmente devido ao carinho que ele nutre pelas duas filhas da ex-mulher, uma das quais, a adolescente Lucie (Pauline Burlet) não aceita de bom grado o novo namorado da mãe, o árabe Samir (Tahar Rahim, de "O profeta"), cuja mulher está em coma há oito meses e que tem um filho pequeno, Fouad (Elyes Aguis) com sérios problemas de comportamento. Aos poucos Ahmad toma conhecimento dos vários dramas que acontecem entre as quatro paredes da casa de Marie - uma série de meias-verdades, mal-entendidos e sentimentos escondidos que tem origem na tentativa de suicídio da mulher de Samir.
Mestre em conduzir suas narrativas sem pressa mas com contundência e precisão, Farhadi mais uma vez acerta no alvo. Com um roteiro extraordinário, repleto de reviravoltas que vão surgindo gradualmente diante do espectador, ele não apenas retrata as entranhas de uma família disfuncional como expõe, de forma impiedosa, as cicatrizes que o silêncio pode causar a quaisquer relacionamentos. Sem se preocupar em elucidar os motivos que levaram o casamento de Ahmad e Marie chegar ao fim, ele se concentra em fazer do protagonista uma espécie de detetive informal, que vai deslindando uma série de fatos dramáticos que resultaram na prisão sentimental na qual se encontram os personagens. Especialmente em sua meia-hora final, quando tudo que parecia certo subitamente começa a desmoronar, a trama ganha contornos cada vez mais surpreendentes, conduzindo em um final devastador - que se desvia magistralmente do clichê para emocionar sem cair no piegas. Sustentado por um elenco impecável (o que inclui com louvor as crianças), "O passado" é um filme imperdível para qualquer fã de histórias sobre pessoas normais.
Situando sua trama em uma Paris que é um caldeirão efervescente de culturas diversas - não é à toa que os dois homens de Marie são de nacionalidades opostas - Farhadi ainda inclui em sua história comentários sutis sobre a situação dos imigrantes ilegais e dá a seus atores momentos de extrema sensibilidade a explorar: se Tahar Rahim mostra uma faceta diferente do violento turco que marcou sua carreira em "O profeta", Bérénice Bejo justifica seu prêmio em Cannes com uma interpretação silenciosa, calma e que esconde uma profundidade que vai sendo revelada conforme seus problemas vão se acumulando em proporções gigantescas. Nesse embate, pouco sobra para Ali Mosaffa, que serve como uma espécie de juiz em uma batalha sem vencedores justos. Porém, nada é melhor que a delicadeza do cineasta, explícita desde as primeiras sequências e que explode na última cena, de uma sensibilidade tamanha que é bem possível que escape ao olhar de um espectador mais desatento. É um clímax quieto e pacífico que combina com o estilo inteligente e humanista de Farhadi, um dos nomes mais importantes do novo cinema mundial.
Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Bérénice Bejo)
Quando se trata de cinema, alguns males vem pro bem. Se não, vejamos: a atriz escolhida pelo cineasta iraniano Asghar Farhadi para estrelar seu filme seguinte ao excepcional "A separação" havia sido Marion Cottilard, vencedora do Oscar por "Piaf, um hino ao amor" e imediatamente adotada pela indústria hollywoodiana. Porém, conflitos de agenda - leia-se a divulgação do drama "Ferrugem e osso" pelo mundo - acabaram por impedir Cottilard de permanecer no projeto. Farhadi optou então por uma nova protagonista, Bérénice Bejo, indicada ao Oscar de coadjuvante por "O artista", e não teve do que reclamar: com uma atuação discreta e sutil, Bejo conquistou os jurados do Festival de Cannes e levou a Palma de Ouro de melhor atriz. Muito justo, já que é a sua personagem que move as engrenagens de "O passado", um dolorido drama familiar que comprova a imensa capacidade do cineasta em mexer com as emoções primárias do ser humano.
Assim como em "A separação" - merecido vencedor do Oscar de filme estrangeiro - a trama criada por Farhadi tem início com o término de um casamento. Na verdade, em "O passado" são dois que chegam ao fim, mas apenas um oficialmente. O iraniano Ahmad (Ali Mosaffa) retorna à Paris para assinar os papéis que enfim irão separá-lo de Marie-Anne (Bérénice Bejo), a quem não vê há quatro anos. Seu reencontro não é dos mais pacíficos, mas eles mantém um relacionamento amistoso principalmente devido ao carinho que ele nutre pelas duas filhas da ex-mulher, uma das quais, a adolescente Lucie (Pauline Burlet) não aceita de bom grado o novo namorado da mãe, o árabe Samir (Tahar Rahim, de "O profeta"), cuja mulher está em coma há oito meses e que tem um filho pequeno, Fouad (Elyes Aguis) com sérios problemas de comportamento. Aos poucos Ahmad toma conhecimento dos vários dramas que acontecem entre as quatro paredes da casa de Marie - uma série de meias-verdades, mal-entendidos e sentimentos escondidos que tem origem na tentativa de suicídio da mulher de Samir.
Mestre em conduzir suas narrativas sem pressa mas com contundência e precisão, Farhadi mais uma vez acerta no alvo. Com um roteiro extraordinário, repleto de reviravoltas que vão surgindo gradualmente diante do espectador, ele não apenas retrata as entranhas de uma família disfuncional como expõe, de forma impiedosa, as cicatrizes que o silêncio pode causar a quaisquer relacionamentos. Sem se preocupar em elucidar os motivos que levaram o casamento de Ahmad e Marie chegar ao fim, ele se concentra em fazer do protagonista uma espécie de detetive informal, que vai deslindando uma série de fatos dramáticos que resultaram na prisão sentimental na qual se encontram os personagens. Especialmente em sua meia-hora final, quando tudo que parecia certo subitamente começa a desmoronar, a trama ganha contornos cada vez mais surpreendentes, conduzindo em um final devastador - que se desvia magistralmente do clichê para emocionar sem cair no piegas. Sustentado por um elenco impecável (o que inclui com louvor as crianças), "O passado" é um filme imperdível para qualquer fã de histórias sobre pessoas normais.
Situando sua trama em uma Paris que é um caldeirão efervescente de culturas diversas - não é à toa que os dois homens de Marie são de nacionalidades opostas - Farhadi ainda inclui em sua história comentários sutis sobre a situação dos imigrantes ilegais e dá a seus atores momentos de extrema sensibilidade a explorar: se Tahar Rahim mostra uma faceta diferente do violento turco que marcou sua carreira em "O profeta", Bérénice Bejo justifica seu prêmio em Cannes com uma interpretação silenciosa, calma e que esconde uma profundidade que vai sendo revelada conforme seus problemas vão se acumulando em proporções gigantescas. Nesse embate, pouco sobra para Ali Mosaffa, que serve como uma espécie de juiz em uma batalha sem vencedores justos. Porém, nada é melhor que a delicadeza do cineasta, explícita desde as primeiras sequências e que explode na última cena, de uma sensibilidade tamanha que é bem possível que escape ao olhar de um espectador mais desatento. É um clímax quieto e pacífico que combina com o estilo inteligente e humanista de Farhadi, um dos nomes mais importantes do novo cinema mundial.
terça-feira
DOU-LHES UM ANO
DOU-LHES
UM ANO (I give it a year, 2013, StudioCanal/Anton Capital
Entertainment, 97min) Direção e roteiro: Dan Mazer. Fotografia: Ben
Davis. Montagem: Tony Craunston. Música: Ilan Eshkeri. Figurino:
Charlotte Walter. Direção de arte/cenários: Simon Elliott/Rebecca
Alleway. Produção executiva: Liza Chasin, Olivier Courson, Ron Halpern,
Debra Hayward. Produção: Tim Bevan, Eric Fellner, Kris Thykier. Elenco:
Rose Byrne, Rafe Spall, Anna Faris, Simon Baker, Minnie Driver, Jason
Flemyng, Stephen Merchant, Jane Asher, Claire Higgins, Olivia Colman.
Estreia: 15/01/13
Em termos de inteligência, personagens carismáticos e senso de humor, as comédias românticas inglesas dão um banho nas suas colegas hollywoodianas. Não à toa, filmes como "Quatro casamentos e um funeral", "Um lugar chamado Notting Hill", "O diário de Bridget Jones" e "Simplesmente amor" conquistaram os corações do público e as boas graças da crítica, com uma mistura sempre certeira entre o sarcasmo, o romantismo e uma escalação perfeita de elenco. Uma pena, porém, que "Dou-lhes um ano" - produzido pela mesma Working Title dos títulos citados acima - não tenha tido a mesma sorte nas bilheterias. Talvez por não ter astros de primeira grandeza enfeitando seu cartaz, o filme, escrito e dirigido por Dan Mazer - parceiro de Sacha Baron-Cohen na série de TV "Ali G" - passou em brancas nuvens pelos cinemas, uma injustiça que felizmente pode ser corrigida pelo mercado de dvds e blu-rays pelos fãs do gênero, que irão encontrar nele tudo que sempre procuram, com o acréscimo de uma ousadia a mais: o enfoque da trama central.
Tudo começa como manda o figurino: em poucos meses, o escritor Josh (Rafe Spall) e a publicitária Nat (Rose Byrne) se apaixonam, vivem um conto de fadas e decidem se casar mesmo sabendo que podem estar sendo bastante precipitados. Já na cerimônia de casamento, uma prima um tantinho invejosa e com o relacionamento já desgastado, Namoi (Minnie Driver, ótima), dá sua sentença: "Dou-lhe um ano!". Alguns meses mais tarde, sua profecia parece estar se concretizando, já que Josh e Nat se encontram em uma crise que os faz questionar sua pressa em oficializar a relação. Não bastasse a percepção de que são bastante diferentes entre si, ele precisa encarar a volta ao país de uma antiga namorada, Chloe (Anna Faris), e ela sente uma atração irresistível por um novo cliente, o milionário boa-pinta Guy (Simon Baker). Cabe a eles, então, administrar a crise ou admitir o erro e seguir em frente com uma nova vida.
Visto friamente, "Dou-lhes um ano" é uma receita quase pronta: tem o casal central enfrentando dificuldades, rivais interessantes que podem ou não ser o tiro de misericórdia no relacionamento, o amigo inconveniente (aqui interpretado pelo ótimo Stephen Merchant), situações constrangedoras, piadas com alto grau de ironia, coadjuvantes interessantes e uma trilha sonora agradável e adequada. Porém, é impossível não admitir que, apesar de tudo soar clichê, funciona que é uma beleza. Dotado de um senso de ritmo que faz com que sua hora e meia passe voando - em boa parte graças ao timing cômico do elenco - o filme de Mazer é uma surpresa e tanto para quem procura um passatempo descompromissado. Algumas piadas são excelentes - a forma como Nat canta errado várias canções e é corrigida por Josh, por exemplo - e a química entre os atores centrais é formidável. Ator de filmes como "Um dia" - onde vivia o humorista fracassado apaixonado por Anne Hathaway e nem de longe tinha aparência de galã de comédia romântica - e "As aventuras de Pi" - onde era o escritor a quem a história era narrada - o inglês Rafe Spall demonstra que tem todas as possibilidades de tornar-se astro em breve, e Rose Byrne, conhecida como a sofrida mãe dos filmes "Sobrenatural", revela uma face menos sombria e mais leve de seu talento - e, surpresa, é bastante simpática quando não está enfrentando espíritos do mal.
Realmente engraçado quando precisa ser, romântico quando apropriado e repleto de situações impagáveis - Josh tentando impedir os sogros de vê-lo nu nas fotos da lua-de-mel, Guy tentando seduzir Nat com pombos voando sobre eles em uma sala de hotel, uma impagável sessão de mímica com a família - "Dou-lhes um ano" é uma comédia romântica das melhores, capaz de conquistar até o mais renitente dos detratores do gênero. Pode não ter estourado nas bilheterias, mas é infinitamente superior à média, principalmente por algumas ousadias narrativas e pela excepcional escalação de elenco, que foge do convencional e acerta em cheio na verossimilhança e na naturalidade. Vale a pena experimentar.
Em termos de inteligência, personagens carismáticos e senso de humor, as comédias românticas inglesas dão um banho nas suas colegas hollywoodianas. Não à toa, filmes como "Quatro casamentos e um funeral", "Um lugar chamado Notting Hill", "O diário de Bridget Jones" e "Simplesmente amor" conquistaram os corações do público e as boas graças da crítica, com uma mistura sempre certeira entre o sarcasmo, o romantismo e uma escalação perfeita de elenco. Uma pena, porém, que "Dou-lhes um ano" - produzido pela mesma Working Title dos títulos citados acima - não tenha tido a mesma sorte nas bilheterias. Talvez por não ter astros de primeira grandeza enfeitando seu cartaz, o filme, escrito e dirigido por Dan Mazer - parceiro de Sacha Baron-Cohen na série de TV "Ali G" - passou em brancas nuvens pelos cinemas, uma injustiça que felizmente pode ser corrigida pelo mercado de dvds e blu-rays pelos fãs do gênero, que irão encontrar nele tudo que sempre procuram, com o acréscimo de uma ousadia a mais: o enfoque da trama central.
Tudo começa como manda o figurino: em poucos meses, o escritor Josh (Rafe Spall) e a publicitária Nat (Rose Byrne) se apaixonam, vivem um conto de fadas e decidem se casar mesmo sabendo que podem estar sendo bastante precipitados. Já na cerimônia de casamento, uma prima um tantinho invejosa e com o relacionamento já desgastado, Namoi (Minnie Driver, ótima), dá sua sentença: "Dou-lhe um ano!". Alguns meses mais tarde, sua profecia parece estar se concretizando, já que Josh e Nat se encontram em uma crise que os faz questionar sua pressa em oficializar a relação. Não bastasse a percepção de que são bastante diferentes entre si, ele precisa encarar a volta ao país de uma antiga namorada, Chloe (Anna Faris), e ela sente uma atração irresistível por um novo cliente, o milionário boa-pinta Guy (Simon Baker). Cabe a eles, então, administrar a crise ou admitir o erro e seguir em frente com uma nova vida.
Visto friamente, "Dou-lhes um ano" é uma receita quase pronta: tem o casal central enfrentando dificuldades, rivais interessantes que podem ou não ser o tiro de misericórdia no relacionamento, o amigo inconveniente (aqui interpretado pelo ótimo Stephen Merchant), situações constrangedoras, piadas com alto grau de ironia, coadjuvantes interessantes e uma trilha sonora agradável e adequada. Porém, é impossível não admitir que, apesar de tudo soar clichê, funciona que é uma beleza. Dotado de um senso de ritmo que faz com que sua hora e meia passe voando - em boa parte graças ao timing cômico do elenco - o filme de Mazer é uma surpresa e tanto para quem procura um passatempo descompromissado. Algumas piadas são excelentes - a forma como Nat canta errado várias canções e é corrigida por Josh, por exemplo - e a química entre os atores centrais é formidável. Ator de filmes como "Um dia" - onde vivia o humorista fracassado apaixonado por Anne Hathaway e nem de longe tinha aparência de galã de comédia romântica - e "As aventuras de Pi" - onde era o escritor a quem a história era narrada - o inglês Rafe Spall demonstra que tem todas as possibilidades de tornar-se astro em breve, e Rose Byrne, conhecida como a sofrida mãe dos filmes "Sobrenatural", revela uma face menos sombria e mais leve de seu talento - e, surpresa, é bastante simpática quando não está enfrentando espíritos do mal.
Realmente engraçado quando precisa ser, romântico quando apropriado e repleto de situações impagáveis - Josh tentando impedir os sogros de vê-lo nu nas fotos da lua-de-mel, Guy tentando seduzir Nat com pombos voando sobre eles em uma sala de hotel, uma impagável sessão de mímica com a família - "Dou-lhes um ano" é uma comédia romântica das melhores, capaz de conquistar até o mais renitente dos detratores do gênero. Pode não ter estourado nas bilheterias, mas é infinitamente superior à média, principalmente por algumas ousadias narrativas e pela excepcional escalação de elenco, que foge do convencional e acerta em cheio na verossimilhança e na naturalidade. Vale a pena experimentar.
segunda-feira
MATO SEM CACHORRO
MATO
SEM CACHORRO (Mato sem cachorro, 2013, Lupa Filmes/Mixer/Globo Filmes,
101min) Direção: Pedro Amorim. Roteiro: André Pereira, argumento de
Vitor Leite, colaboração de Pedro Amorim, Malu Miranda. Fotografia:
Gustavo Habda. Montagem: Pedro Amorim, Natara Ney. Música: Rica Amabis.
Figurino: Marcelo Pies. Direção de arte/cenários: Tiago Marques
Teixeira/Odair Zani. Produção executiva: Eliane Ferreira, Lili Nogueira.
Produção: Malu Miranda. Elenco: Bruno Gagliasso, Leandra Leal, Danilo
Gentili, Gabriela Duarte, Angela Leal, Rafinha Bastos, Flávio
Migliaccio, Joaquim Lopes, Enrique Diaz, Sandy, Sidney Magal, Fausto
Fawcett. Estreia: 04/10/13
No cinema nacional, a menção ao gênero comédia romântica imediatamente remete a tramas que giram em torno de mulheres desesperadas atrás de um casamento ou da independência sexual. Em termos de bilheteria dá certo, como mostram os números de filmes como "De pernas para o ar" e "Os homens são de Marte... e é pra lá que eu vou". Paradoxalmente, porém, falta nessas produções tanto o ponto de vista masculino (os homens são, via de regra, tratados como coadjuvantes de luxo) quanto o romantismo (qualquer momento em que ele poderia aparecer é normalmente substituído por piadas, muitas vezes sem graça). São essas lacunas que "Mato sem cachorro" tenta preencher. Escrito e dirigido por Pedro Amorim, o filme estrelado por Bruno Gagliasso e Leandra Leal consegue a proeza de fazer a plateia rir sem esquecer seu principal objetivo: contar uma história de amor. Equilibrando momentos de delicadeza com outros de humor quase escatológico, seu roteiro conquista o público justamente pela ousadia de misturar elementos tão díspares em um gênero tão perigosamente sujeito a ficar engessado a receitas insossas. De personalidade própria e humor particular, "Mato sem cachorro" é um achado dentro do cinema comercial brasileiro.
A trama em si é simples e direta como convém: o produtor musical Deco (um Bruno Gagliasso leve e distante dos personagens densos a que o público está acostumado) e a diretora de rádio Zoé (Leandra Leal a quilômetros de distância da assustadora Rosa de "O lobo atrás da porta") se apaixonam perdidamente no dia em que conhecem Guto, um adorável cãozinho que sofre de uma condição rara chamada narcolepsia canina - que o faz desmaiar a cada estado de maior excitação. Os três passam a formar uma família feliz até que, um ano e meio depois, o romance acaba e deixa o rapaz na pior, morando com o primo Leléo (Danilo Gentili, dono de algumas das melhores piadas mas por vezes um tanto exagerado no humor rasteiro) e incapaz de seguir a vida. Ao descobrir que Zoé está de namorado novo - o dono de uma estética canina chamado Fernando (Enrique Diaz, sensacional) - Deco resolve tomar o que é seu e sequestra Guto. As consequências de tal gesto - que o obrigará inclusive a produzir a banda do irmão de Zoé, um achado musical responsável por alguns dos melhores momentos do filme - tanto podem aproximá-lo da mulher que ama quanto afastá-los de vez. E, no meio do caminho, Amorim aproveita para desconstruir algumas imagens quase intocáveis do mundo artístico nacional.
Da cantora Sandy fazendo o papel dela mesma - e brigando com um policial durante um teste de bafômetro - até Gabriela Duarte - famosa por papéis românticos e aqui encarando uma desbocada pouco afeita a sutilezas - "Mato sem cachorro" faz desfilar na tela rostos conhecidos do grande público em aparições rápidas e eficientes em despertar o riso ou a surpresa. Angela Leal (mãe de Leandra na vida real) interpreta a mãe de Zoé, Rafinha Bastos surge em cena como um médico veterinário pouco paciente, Marcelo Tas vive os dois diretores gêmeos da rádio onde trabalha a protagonista e até mesmo Elke Maravilha dá as caras, no papel sem falas da senhora idosa que empresta o prédio para os ensaios da banda produzida por Deco - despida do glamour e dos excessos que marcaram sua carreira, Elke está irreconhecível (e é um atrativo a mais para um filme que ainda conta com Sidney Magal e Fausto Fawcett como eles mesmos). Não bastasse tudo isso, o trabalho de Amorim é uma comédia realmente engraçada, um romance que funciona e tem uma trilha sonora deliciosa.
Misturando Sidney Magal, Waldick Soriano, Radiohead e Sandy & Junior, Wando, Joan Jett e John Lennon no mesmo balaio, "Mato sem cachorro" assume sem medo sua veia pop, buscando uma aproximação direta com o público através de seus ícones e referências. Algumas vezes escorrega no excesso de palavrões desnecessários e nem sempre explora a contento algumas subtramas que poderiam ser interessantes (caso da radialista interpretada por Letícia Isnard e o medo que tem dos ouvintes mais agressivos), mas cumpre com louvor a promessas que faz. Além do mais, tem um atrativo extra para os amantes de cães, que irão se esbaldar com o carisma de Guto e as aventuras pelas quais ele obriga seus donos a passarem para encontrar um final feliz. Um raro exemplar de cinema comercial brasileiro que não deixa em seu final um sentimento de frustração. Vale a pena experimentar e se divertir nem que seja para comprovar o talento imenso de seus dois atores centrais.
No cinema nacional, a menção ao gênero comédia romântica imediatamente remete a tramas que giram em torno de mulheres desesperadas atrás de um casamento ou da independência sexual. Em termos de bilheteria dá certo, como mostram os números de filmes como "De pernas para o ar" e "Os homens são de Marte... e é pra lá que eu vou". Paradoxalmente, porém, falta nessas produções tanto o ponto de vista masculino (os homens são, via de regra, tratados como coadjuvantes de luxo) quanto o romantismo (qualquer momento em que ele poderia aparecer é normalmente substituído por piadas, muitas vezes sem graça). São essas lacunas que "Mato sem cachorro" tenta preencher. Escrito e dirigido por Pedro Amorim, o filme estrelado por Bruno Gagliasso e Leandra Leal consegue a proeza de fazer a plateia rir sem esquecer seu principal objetivo: contar uma história de amor. Equilibrando momentos de delicadeza com outros de humor quase escatológico, seu roteiro conquista o público justamente pela ousadia de misturar elementos tão díspares em um gênero tão perigosamente sujeito a ficar engessado a receitas insossas. De personalidade própria e humor particular, "Mato sem cachorro" é um achado dentro do cinema comercial brasileiro.
A trama em si é simples e direta como convém: o produtor musical Deco (um Bruno Gagliasso leve e distante dos personagens densos a que o público está acostumado) e a diretora de rádio Zoé (Leandra Leal a quilômetros de distância da assustadora Rosa de "O lobo atrás da porta") se apaixonam perdidamente no dia em que conhecem Guto, um adorável cãozinho que sofre de uma condição rara chamada narcolepsia canina - que o faz desmaiar a cada estado de maior excitação. Os três passam a formar uma família feliz até que, um ano e meio depois, o romance acaba e deixa o rapaz na pior, morando com o primo Leléo (Danilo Gentili, dono de algumas das melhores piadas mas por vezes um tanto exagerado no humor rasteiro) e incapaz de seguir a vida. Ao descobrir que Zoé está de namorado novo - o dono de uma estética canina chamado Fernando (Enrique Diaz, sensacional) - Deco resolve tomar o que é seu e sequestra Guto. As consequências de tal gesto - que o obrigará inclusive a produzir a banda do irmão de Zoé, um achado musical responsável por alguns dos melhores momentos do filme - tanto podem aproximá-lo da mulher que ama quanto afastá-los de vez. E, no meio do caminho, Amorim aproveita para desconstruir algumas imagens quase intocáveis do mundo artístico nacional.
Da cantora Sandy fazendo o papel dela mesma - e brigando com um policial durante um teste de bafômetro - até Gabriela Duarte - famosa por papéis românticos e aqui encarando uma desbocada pouco afeita a sutilezas - "Mato sem cachorro" faz desfilar na tela rostos conhecidos do grande público em aparições rápidas e eficientes em despertar o riso ou a surpresa. Angela Leal (mãe de Leandra na vida real) interpreta a mãe de Zoé, Rafinha Bastos surge em cena como um médico veterinário pouco paciente, Marcelo Tas vive os dois diretores gêmeos da rádio onde trabalha a protagonista e até mesmo Elke Maravilha dá as caras, no papel sem falas da senhora idosa que empresta o prédio para os ensaios da banda produzida por Deco - despida do glamour e dos excessos que marcaram sua carreira, Elke está irreconhecível (e é um atrativo a mais para um filme que ainda conta com Sidney Magal e Fausto Fawcett como eles mesmos). Não bastasse tudo isso, o trabalho de Amorim é uma comédia realmente engraçada, um romance que funciona e tem uma trilha sonora deliciosa.
Misturando Sidney Magal, Waldick Soriano, Radiohead e Sandy & Junior, Wando, Joan Jett e John Lennon no mesmo balaio, "Mato sem cachorro" assume sem medo sua veia pop, buscando uma aproximação direta com o público através de seus ícones e referências. Algumas vezes escorrega no excesso de palavrões desnecessários e nem sempre explora a contento algumas subtramas que poderiam ser interessantes (caso da radialista interpretada por Letícia Isnard e o medo que tem dos ouvintes mais agressivos), mas cumpre com louvor a promessas que faz. Além do mais, tem um atrativo extra para os amantes de cães, que irão se esbaldar com o carisma de Guto e as aventuras pelas quais ele obriga seus donos a passarem para encontrar um final feliz. Um raro exemplar de cinema comercial brasileiro que não deixa em seu final um sentimento de frustração. Vale a pena experimentar e se divertir nem que seja para comprovar o talento imenso de seus dois atores centrais.
domingo
GLORIA
GLORIA
(Gloria, 2013, Fabula/Nephilim Producciones, 110min) Direção: Sebastián
Lelio. Roteiro: Sebastián Lelio, Gonzalo Maza. Fotografia: Benjamín
Echazarreta. Montagem: Sebastián Lelio, Soledad Salfate. Figurino:
Eduardo Castro. Direção de arte: Marcela Urivi. Produção executiva:
Andrea Carrasco Stuven, Juan Ignacio Correa, Mariane Hartard, Rocío
Jadue. Elenco: Luis Collar, Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín. Elenco:
Paulina García, Sergio Hernández, Diego Fontecilla, Fabiola Zamora, Luz
Jiménez. Estreia: 10/02/13 (Festival de Berlim)
Gloria é uma mulher de cinquenta e poucos anos, separada há mais de uma década, mãe de dois filhos adultos, avó de um bebê e que mora sozinha em um pequeno apartamento de Santiago de onde pode ouvir as crises de um jovem vizinho com problemas psiquiátricos. Nos fins-de-semana, suas noites são preenchidas por bailes da terceira idade, onde ela tenta encontrar companhia e quem sabe um novo amor. Em uma dessas noitadas, ela conhece Rodolfo, um homem também separado, com quem inicia um promissor romance. Porém, o passado de seu novo amante não demora a atrapalhar seus planos: incapaz de distanciar-se definitivamente da esposa e das duas filhas, ele mostra-se não a solução para seus problemas, e sim mais uma dificuldade a ser vencida na luta pela felicidade e pela paz de espírito.
Com uma personagem simples na descrição e complexa na vastidão de sentimentos - demonstrados através de olhares melancólicos e de lágrimas que brotam nos momentos mais impróprios - a chilena Paulina García conquistou os eleitores do Festival de Berlim de 2013, de onde saiu-se vitoriosa como melhor atriz. Nada mais justo. Sem apelar para histrionismos previsíveis, García é o corpo e a alma de um filme cuja simplicidade aparente esconde uma profusão de camadas emocionais que justificaram sua escolha como representante oficial do Chile na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Mesmo tendo ficado de fora da lista final, "Gloria" não deixou de tornar-se, aos poucos, um dos filmes mais comentados do ano pelos fãs de cinema, principalmente pela receptividade mais que positiva junto a diversos festivais internacionais. Minimalista ao extremo - tanto em termos de roteiro quanto de interpretação - o filme de Sebastián Lelio é daqueles que demoram a conquistar (talvez seja necessário até mesmo mais de uma sessão para que isso aconteça), mas o faz sem artifícios dramáticos. É a vida como ela é, retratada com delicadeza e sobriedade.
Interpretada com impressionante naturalidade por Paulina García - que não demonstra o menor pudor em mostrar sua nudez em cenas de sexo que jamais passariam pelo controle de qualidade hollywoodiano (leia-se sem filtros ou corpos esculpidos à mão) - Gloria é uma mulher que se encontra em qualquer supermercado ou fila de banco: discreta atrás de seus grandes óculos, ela se desdobra para ser uma avó presente, faz ioga para agradar à filha que está em vias de envolver-se com um namorado sueco, se incomoda com o vizinho desequilibrado e, como um Tony Manero da terceira idade, trabalha a semana inteira na expectativa de divertir-se nos bailes de sábado. Não tem um corpo malhado e nem procura um príncipe encantado, apenas um homem comum, que esteja a seu lado nos anos que lhe restam. Gloria chora quando se emociona com uma canção - e a trilha sonora faz questão de homenagear a música brasileira, com uma bela versão de "Águas de março" - e chora quando ouve o email que o namorado da filha mandou, dizendo que a ama. Gloria comete erros de julgamento e muitas vezes sua carência a faz parecer uma adolescente. Gloria se sente traída, mas sabe perdoar - assim como também reconhece a hora de ser boba e partir para o contra-ataque. Gloria ri, chora, ama e odeia. Em uns dias perde e em outros ganha. Mas sempre recomeça, porque a esperança é a última que morre.
"Gloria" não é um filme para qualquer tipo de público. Talvez muitos o considerem chato, sem história para contar e com uma protagonista sem as qualidades heroicas que se espera de uma personagem principal. Porém, é esse o objetivo de Sebastián Lelio e seu filme: mostrar a rotina quase sem graça de uma mulher que busca a felicidade mesmo quando parece que não há mais onde se procurar. Mesmo que o filme em vários momentos dê inúmeras porradas na cabeça de sua protagonista - e poucas pessoas teriam sua paciência em relação aos problema que encontra em seu relacionamento com Rodolfo (Sergio Hernández) - ela nunca deixa de lado a tenacidade e a crença em si mesma e no amor. A cena final deixa tudo isso bem claro, e é impossível não estar do lado de Gloria quando os créditos finais começam. Se você não gostou da primeira vez, tente de novo: é aos poucos que tudo vai se tornando belo e encantador.
Gloria é uma mulher de cinquenta e poucos anos, separada há mais de uma década, mãe de dois filhos adultos, avó de um bebê e que mora sozinha em um pequeno apartamento de Santiago de onde pode ouvir as crises de um jovem vizinho com problemas psiquiátricos. Nos fins-de-semana, suas noites são preenchidas por bailes da terceira idade, onde ela tenta encontrar companhia e quem sabe um novo amor. Em uma dessas noitadas, ela conhece Rodolfo, um homem também separado, com quem inicia um promissor romance. Porém, o passado de seu novo amante não demora a atrapalhar seus planos: incapaz de distanciar-se definitivamente da esposa e das duas filhas, ele mostra-se não a solução para seus problemas, e sim mais uma dificuldade a ser vencida na luta pela felicidade e pela paz de espírito.
Com uma personagem simples na descrição e complexa na vastidão de sentimentos - demonstrados através de olhares melancólicos e de lágrimas que brotam nos momentos mais impróprios - a chilena Paulina García conquistou os eleitores do Festival de Berlim de 2013, de onde saiu-se vitoriosa como melhor atriz. Nada mais justo. Sem apelar para histrionismos previsíveis, García é o corpo e a alma de um filme cuja simplicidade aparente esconde uma profusão de camadas emocionais que justificaram sua escolha como representante oficial do Chile na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Mesmo tendo ficado de fora da lista final, "Gloria" não deixou de tornar-se, aos poucos, um dos filmes mais comentados do ano pelos fãs de cinema, principalmente pela receptividade mais que positiva junto a diversos festivais internacionais. Minimalista ao extremo - tanto em termos de roteiro quanto de interpretação - o filme de Sebastián Lelio é daqueles que demoram a conquistar (talvez seja necessário até mesmo mais de uma sessão para que isso aconteça), mas o faz sem artifícios dramáticos. É a vida como ela é, retratada com delicadeza e sobriedade.
Interpretada com impressionante naturalidade por Paulina García - que não demonstra o menor pudor em mostrar sua nudez em cenas de sexo que jamais passariam pelo controle de qualidade hollywoodiano (leia-se sem filtros ou corpos esculpidos à mão) - Gloria é uma mulher que se encontra em qualquer supermercado ou fila de banco: discreta atrás de seus grandes óculos, ela se desdobra para ser uma avó presente, faz ioga para agradar à filha que está em vias de envolver-se com um namorado sueco, se incomoda com o vizinho desequilibrado e, como um Tony Manero da terceira idade, trabalha a semana inteira na expectativa de divertir-se nos bailes de sábado. Não tem um corpo malhado e nem procura um príncipe encantado, apenas um homem comum, que esteja a seu lado nos anos que lhe restam. Gloria chora quando se emociona com uma canção - e a trilha sonora faz questão de homenagear a música brasileira, com uma bela versão de "Águas de março" - e chora quando ouve o email que o namorado da filha mandou, dizendo que a ama. Gloria comete erros de julgamento e muitas vezes sua carência a faz parecer uma adolescente. Gloria se sente traída, mas sabe perdoar - assim como também reconhece a hora de ser boba e partir para o contra-ataque. Gloria ri, chora, ama e odeia. Em uns dias perde e em outros ganha. Mas sempre recomeça, porque a esperança é a última que morre.
"Gloria" não é um filme para qualquer tipo de público. Talvez muitos o considerem chato, sem história para contar e com uma protagonista sem as qualidades heroicas que se espera de uma personagem principal. Porém, é esse o objetivo de Sebastián Lelio e seu filme: mostrar a rotina quase sem graça de uma mulher que busca a felicidade mesmo quando parece que não há mais onde se procurar. Mesmo que o filme em vários momentos dê inúmeras porradas na cabeça de sua protagonista - e poucas pessoas teriam sua paciência em relação aos problema que encontra em seu relacionamento com Rodolfo (Sergio Hernández) - ela nunca deixa de lado a tenacidade e a crença em si mesma e no amor. A cena final deixa tudo isso bem claro, e é impossível não estar do lado de Gloria quando os créditos finais começam. Se você não gostou da primeira vez, tente de novo: é aos poucos que tudo vai se tornando belo e encantador.
sábado
MANDELA: O CAMINHO PARA A LIBERDADE
MANDELA:
O CAMINHO PARA A LIBERDADE (Mandela: Long walk to freedom, 2013,
Videovision Entertainment/Distant Horizon/Film Afrika Worldwide, 141min)
Direção: Justin Chadwick. Roteiro: William Nicholson, autobiografia de
Nelson Mandela. Fotografia: Lol Crawley. Montagem: Rick Russell. Música:
Alex Heffes. Figurino: Diana Cilliers, Ruy Filipe. Direção de
arte/cenários: Johnny Breedt/Fred Du Preez, Melinda Launspach, Mandla
Mathenjwa. Produção executiva: Basil Ford, François Ivernel, Cameron
McCracken, Philswie Mthethwa, Geoffrey Ohena, Sudhir Pragjee, Sanjeev
Singh. Produção: Ananth Singh. Elenco: Idris Elba, Naomie Harris, Tony
Kgoroge, Riaad Moosa, Zolani Mkiva, Simo Mogwaza. Estreia: 07/9/13
(Festival de Toronto)
Indicado ao Oscar de Melhor Canção ("Ordinary love")
Vencedor do Golden Globe de Melhor Canção ("Ordinary love")
Um dos maiores desafios quando se decide contar a história de uma vida em um filme - em especial uma vida longa e repleta de acontecimentos de suma importância - é conseguir condensá-la em palatáveis duas horas de duração (ou em alguns casos, um pouco mais) sem soar superficial ou deixar de lado acontecimentos vitais. Cineastas experientes já caíram na armadilha (Richard Attenborough acertou em "Gandhi" e falhou em "Chaplin", por exemplo) e o relativamente novato Justin Chadwick por pouco não se afundou ainda mais com o esperado "Mandela: o caminho para a liberdade". Com apenas dois filmes no currículo - o mais famoso deles sendo "A outra", adaptação do romance de Philippa Gregory sobre Ana Bolena e Henrique VIII, estrelado por Natalie Portman e Eric Bana - Chadwick arriscou-se na condução da história de uma das personalidades fundamentais do século XX e sobreviveu para contar a história. Mesmo com os defeitos que se poderiam esperar de uma produção tão ambiciosa, "Mandela: o caminho para a liberdade" consegue o feito nada desprezível de encapsular em pouco menos de duas horas e meia de projeção uma história repleta de sofrimento, esperança e violência sem deixar de lado o essencial: o retrato de seu protagonista como ser humano, passível de erros e acertos como qualquer um.
Com o roteiro de William Nicholson - Oscar por "Os infiltrados" - baseado na autobiografia do próprio Mandela, o filme de Chadwick não se contenta em mostrar ao público apenas as lutas do protagonista contra o apartheid e seu despertar político junto ao CNA (Congresso Nacional Africano) que acabou por levá-lo à presidência. Sem medo de querer abraçar o mundo com as pernas, Nicholson começa sua história na infância de Nelson, em uma tribo afastada da capital do país, e acompanha sua trajetória até as eleições de 1994, quando ele se torna o primeiro presidente negro da África do Sul. Quase didaticamente, o filme expõe à plateia as batalhas raciais que fizeram da região um dos lugares mais socialmente injustos do mundo enquanto segue a vida pessoal de seu protagonista, com seus casamentos falidos e até mesmo sua incapacidade de lidar com a desigualdade. Sem medo de denegrir uma imagem quase santificada pela população, o filme de Chadwick mostra um jovem Nelson Mandela capaz de agredir a primeira esposa e até seu lado mulherengo dá as caras - felizmente, porém, esse fator "TV Fama" não assume o foco por muito tempo, já que suas conquistas como homem público é que são o ponto central da produção, que decepcionou a muitos quando não alcançou todas as indicações ao Oscar que se esperava (apenas a bela canção-tema, da banda irlandesa U2, chegou à festa da Academia, depois de ter ganho um Golden Globe).
Interpretado com um misto de fúria e delicadeza por Idris Elba - ignorado pelo Oscar mas lembrado pelo Golden Globe com uma indicação à estatueta - o Nelson Mandela do filme de Chadwick tem pouco do mesmo personagem sob a visão de Morgan Freeman e Clint Eastwood no premiado "Invictus", de 2009. Sua transformação de advogado determinado a lutar pela igualdade racial através da luta física em um homem mais maduro e ciente de que apenas o diálogo pode mudar o estado das coisas é mostrada com delicadeza por um trabalho admirável de modulação de voz, de olhares mais complacentes e uma edição eficiente, que equilibra seu período na cadeia com as mudanças sociais e políticas que ocorrem em seu país e na vida de sua família (em especial na de sua segunda esposa, Winnie, em excelente interpretação de Naomie Harris). A opção em contar a história de Mandela juntamente com a da África do Sul de seu tempo é acertada, por permitir à audiência que entenda com todos os detalhes o tamanho de sua importância para o país e o mundo. Pode parecer uma ambição exagerada, mas Chadwick, mesmo com pouca experiência, consegue transmitir em vários momentos a angústia e a dor de uma nação dividida pela cor. Talvez um cineasta mais ousado pudesse injetar mais potência às cenas, mas seria injusto não reconhecer as muitas qualidades de sua obra.
"Mandela: o caminho para a liberdade" não é o filme que poderia ser. Tem alguns momentos francamente dispensáveis e por vezes carece de um foco mais definido. Porém, é interpretado com vigor e paixão, conta sua história sem apelar para o sentimentalismo e, melhor ainda, serve como um lembrete (mais um) sobre a força do amor em detrimento do ódio. Em uma época onde a tolerância precisa ser cada vez mais desenvolvida, é um filme obrigatório, sobre uma personalidade indispensável. Não é uma obra perfeita, mas é suficientemente bom para lembrar a todos sobre toda essa tragédia que ainda hoje machuca o mundo.
Indicado ao Oscar de Melhor Canção ("Ordinary love")
Vencedor do Golden Globe de Melhor Canção ("Ordinary love")
Um dos maiores desafios quando se decide contar a história de uma vida em um filme - em especial uma vida longa e repleta de acontecimentos de suma importância - é conseguir condensá-la em palatáveis duas horas de duração (ou em alguns casos, um pouco mais) sem soar superficial ou deixar de lado acontecimentos vitais. Cineastas experientes já caíram na armadilha (Richard Attenborough acertou em "Gandhi" e falhou em "Chaplin", por exemplo) e o relativamente novato Justin Chadwick por pouco não se afundou ainda mais com o esperado "Mandela: o caminho para a liberdade". Com apenas dois filmes no currículo - o mais famoso deles sendo "A outra", adaptação do romance de Philippa Gregory sobre Ana Bolena e Henrique VIII, estrelado por Natalie Portman e Eric Bana - Chadwick arriscou-se na condução da história de uma das personalidades fundamentais do século XX e sobreviveu para contar a história. Mesmo com os defeitos que se poderiam esperar de uma produção tão ambiciosa, "Mandela: o caminho para a liberdade" consegue o feito nada desprezível de encapsular em pouco menos de duas horas e meia de projeção uma história repleta de sofrimento, esperança e violência sem deixar de lado o essencial: o retrato de seu protagonista como ser humano, passível de erros e acertos como qualquer um.
Com o roteiro de William Nicholson - Oscar por "Os infiltrados" - baseado na autobiografia do próprio Mandela, o filme de Chadwick não se contenta em mostrar ao público apenas as lutas do protagonista contra o apartheid e seu despertar político junto ao CNA (Congresso Nacional Africano) que acabou por levá-lo à presidência. Sem medo de querer abraçar o mundo com as pernas, Nicholson começa sua história na infância de Nelson, em uma tribo afastada da capital do país, e acompanha sua trajetória até as eleições de 1994, quando ele se torna o primeiro presidente negro da África do Sul. Quase didaticamente, o filme expõe à plateia as batalhas raciais que fizeram da região um dos lugares mais socialmente injustos do mundo enquanto segue a vida pessoal de seu protagonista, com seus casamentos falidos e até mesmo sua incapacidade de lidar com a desigualdade. Sem medo de denegrir uma imagem quase santificada pela população, o filme de Chadwick mostra um jovem Nelson Mandela capaz de agredir a primeira esposa e até seu lado mulherengo dá as caras - felizmente, porém, esse fator "TV Fama" não assume o foco por muito tempo, já que suas conquistas como homem público é que são o ponto central da produção, que decepcionou a muitos quando não alcançou todas as indicações ao Oscar que se esperava (apenas a bela canção-tema, da banda irlandesa U2, chegou à festa da Academia, depois de ter ganho um Golden Globe).
Interpretado com um misto de fúria e delicadeza por Idris Elba - ignorado pelo Oscar mas lembrado pelo Golden Globe com uma indicação à estatueta - o Nelson Mandela do filme de Chadwick tem pouco do mesmo personagem sob a visão de Morgan Freeman e Clint Eastwood no premiado "Invictus", de 2009. Sua transformação de advogado determinado a lutar pela igualdade racial através da luta física em um homem mais maduro e ciente de que apenas o diálogo pode mudar o estado das coisas é mostrada com delicadeza por um trabalho admirável de modulação de voz, de olhares mais complacentes e uma edição eficiente, que equilibra seu período na cadeia com as mudanças sociais e políticas que ocorrem em seu país e na vida de sua família (em especial na de sua segunda esposa, Winnie, em excelente interpretação de Naomie Harris). A opção em contar a história de Mandela juntamente com a da África do Sul de seu tempo é acertada, por permitir à audiência que entenda com todos os detalhes o tamanho de sua importância para o país e o mundo. Pode parecer uma ambição exagerada, mas Chadwick, mesmo com pouca experiência, consegue transmitir em vários momentos a angústia e a dor de uma nação dividida pela cor. Talvez um cineasta mais ousado pudesse injetar mais potência às cenas, mas seria injusto não reconhecer as muitas qualidades de sua obra.
"Mandela: o caminho para a liberdade" não é o filme que poderia ser. Tem alguns momentos francamente dispensáveis e por vezes carece de um foco mais definido. Porém, é interpretado com vigor e paixão, conta sua história sem apelar para o sentimentalismo e, melhor ainda, serve como um lembrete (mais um) sobre a força do amor em detrimento do ódio. Em uma época onde a tolerância precisa ser cada vez mais desenvolvida, é um filme obrigatório, sobre uma personalidade indispensável. Não é uma obra perfeita, mas é suficientemente bom para lembrar a todos sobre toda essa tragédia que ainda hoje machuca o mundo.
sexta-feira
VERSOS DE UM CRIME
VERSOS
DE UM CRIME (Kill your darlings, 2013, Killer Films/Benaroya Pictures,
104min) Direção: John Krokidas. Roteiro: John Krokidas, Austin Bunn,
estória de Austin Bunn. Fotografia: Reed Morano. Montagem: Brian A.
Kates. Música: Nico Muhly. Figurino: Christopher Peterson. Direção de
arte/cenários: Stephen Carter/Sarah E. McMillan. Produção executiva:
Jared Ian Goldman, Joe Jenckes, Pamela Koffler, Randy Manis, Stefan
Sonnenfeld. Produção: Michael Benaroya, Rose Ganguzza, John Krokidas,
Christine Vachon. Elenco: Daniel Radcliffe, Dane DeHaan, Michael C.
Hall, Ben Foster, Jack Huston, Jennifer Jason Leigh, Elizabeth Olsen,
John Cullum, David Cross. Estreia: 18/01/13 (Festival de Sundance)
Com todo o respeito que se pode ter com a obra de autores como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, o filme de John Krokidas que conta um período crucial na sua formação vai acabar entrando para a história como "o filme em que Harry Potter fez cenas de sexo gay". Realmente, Daniel Radcliffe deixou para trás o estigma de ator de um personagem só - e um personagem extremamente marcante para toda uma geração - para mergulhar sem medo em um papel difícil e ousado (além da tal cena com outro homem, ele passa o filme todo fumando compulsivamente e usando drogas), mas "Versos de um crime" é bem mais do que apenas o veículo para a maturidade profissional de um jovem ator. Baseado em uma trágica história real acontecida nas raízes do movimento beat - de onde saíram os nomes seminais de Ginsberg, Burroughs e Kerouac - o filme de Krokidas é um bom retrato de um momento único na literatura americana moderna, e o respeito que tem pela trama e por seus personagens pode ser refletido em sua pífia bilheteria: mesmo com o chamariz do nome de Radcliffe nos créditos, a obra mal passou de um milhão de dólares de arrecadação no mercado doméstico. Sinal de que, mais do que simplesmente capitalizar em cima do nome do ator, Krokidas preferiu a integridade do seu trabalho. Só por isso já merece uma espiada.
A trama começa em 1944, quando o jovem Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe, muito bem no papel) é aceito na Universidade de Columbia, para desespero de sua mãe bipolar (Jennifer Jason Leigh) e orgulho de seu pai, o poeta Louis Ginsberg (David Cross). Assim que chega a seu novo universo, o tímido e desajeitado aspirante a escritor entra em rota de colisão com a ortodoxia do ensino e encontra no rebelde Lucien Carr (Dane DeHaan) o companheiro ideal para um novo tipo de vida social, regada a drogas, bebida e boemia. Nesse ambiente, ele conhece também o estranho William Burroughs (Ben Foster, sempre ótimo), de família nobre e ideais estéticos revolucionários e o entusiasmado Jack Kerouac (Jack Huston), que mesmo casado, frequenta o mesmo circuito dos estudantes. Para seu desgosto, porém, ele também fica conhecendo o misterioso David Kammerer (Michael C. Hall), que mantém uma relação dúbia com Carr há alguns anos. Fascinado pelo colega, Ginsberg aos poucos se envolvendo cada vez mais em suas ideais de por em prática uma nova escola literária, até que seus sentimentos começam a atrapalhar os planos - e Kammerer passa a se tornar uma ameaça ao grupo.
Passado no período anterior à publicação das obras mais famosas do grupo de protagonistas, "Versos de um crime" é mais feliz no retrato da geração beatnik do que o esperado "On the road", que Walter Salles lançou em 2012 e foi praticamente ignorado por crítica e público. Ao contrário da produção de Salles, o filme de John Krokidas vai mais fundo em todos os aspectos particulares do universo dos escritores/personagens, desde o consumo de drogas até a sexualidade dúbia que envolve Ginsberg, Carr e Kammerer (mostrado no filme sob uma luz complexa que dá oportunidade a Michael C. Hall de criar um personagem fascinante e monstruoso ao mesmo tempo). Sem medo de enfrentar temas espinhosos, o roteiro passeia sem julgamentos morais por mesas do Harlem, festas particulares regadas a excessos de todo tipo, desafios constantes à seriedade do academicismo da universidade e até pelos polêmicos métodos de inspiração dos autores. Sem deixar-se encantar em exagero por seus personagens, Krokidas (em seu primeiro longa-metragem) os trata com respeito, mas nunca com reverência em demasia, revelando seus defeitos da mesma forma com que mostra seus inúmeros defeitos. O roteiro pode até demorar a chegar onde realmente quer - o crime de que fala o título nacional só acontece mesmo no terço final da narrativa - mas até lá ele permite ao espectador algo raro no cinema contemporâneo: conhecer o que se passa dentro de cada um dos protagonistas.
Mesmo que não aproveite o bastante o talento enorme de Ben Foster como William Burroughs e o trate como coadjuvante de luxo, "Versos de um crime" também tem a seu favor a escalação corajosa de elenco. Daniel Radcliffe sai-se muito bem no papel central, mostrando que existe vida pós-Harry Potter, e seu parceiro de cena, Dane DeHaan, é perfeito para o tipo de personagens torturados. A química entre os dois é perfeita e sempre que estão juntos o filme cresce exponencialmente - coisa que não acontece quando o foco da narrativa cai na amizade entre Carr e Jack Kerouac, um desvio de atenção que quase prejudica o filme justamente quando ele está se encaminhando para seu trágico desenlace. Nem mesmo a doce presença de Elizabeth Olsen como a esposa de Kerouac ameniza a sensação de um precioso tempo desperdiçado quando se tem uma história mais importante a ser contada. Tal pecado, porém, não consegue estragar uma das estreias mais interessantes dos últimos anos na cadeira de direção. Com ou sem Harry Potter, "Versos de um crime" tem mais qualidades que defeitos e merece uma segunda chance junto a seu público-alvo.
Com todo o respeito que se pode ter com a obra de autores como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, o filme de John Krokidas que conta um período crucial na sua formação vai acabar entrando para a história como "o filme em que Harry Potter fez cenas de sexo gay". Realmente, Daniel Radcliffe deixou para trás o estigma de ator de um personagem só - e um personagem extremamente marcante para toda uma geração - para mergulhar sem medo em um papel difícil e ousado (além da tal cena com outro homem, ele passa o filme todo fumando compulsivamente e usando drogas), mas "Versos de um crime" é bem mais do que apenas o veículo para a maturidade profissional de um jovem ator. Baseado em uma trágica história real acontecida nas raízes do movimento beat - de onde saíram os nomes seminais de Ginsberg, Burroughs e Kerouac - o filme de Krokidas é um bom retrato de um momento único na literatura americana moderna, e o respeito que tem pela trama e por seus personagens pode ser refletido em sua pífia bilheteria: mesmo com o chamariz do nome de Radcliffe nos créditos, a obra mal passou de um milhão de dólares de arrecadação no mercado doméstico. Sinal de que, mais do que simplesmente capitalizar em cima do nome do ator, Krokidas preferiu a integridade do seu trabalho. Só por isso já merece uma espiada.
A trama começa em 1944, quando o jovem Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe, muito bem no papel) é aceito na Universidade de Columbia, para desespero de sua mãe bipolar (Jennifer Jason Leigh) e orgulho de seu pai, o poeta Louis Ginsberg (David Cross). Assim que chega a seu novo universo, o tímido e desajeitado aspirante a escritor entra em rota de colisão com a ortodoxia do ensino e encontra no rebelde Lucien Carr (Dane DeHaan) o companheiro ideal para um novo tipo de vida social, regada a drogas, bebida e boemia. Nesse ambiente, ele conhece também o estranho William Burroughs (Ben Foster, sempre ótimo), de família nobre e ideais estéticos revolucionários e o entusiasmado Jack Kerouac (Jack Huston), que mesmo casado, frequenta o mesmo circuito dos estudantes. Para seu desgosto, porém, ele também fica conhecendo o misterioso David Kammerer (Michael C. Hall), que mantém uma relação dúbia com Carr há alguns anos. Fascinado pelo colega, Ginsberg aos poucos se envolvendo cada vez mais em suas ideais de por em prática uma nova escola literária, até que seus sentimentos começam a atrapalhar os planos - e Kammerer passa a se tornar uma ameaça ao grupo.
Passado no período anterior à publicação das obras mais famosas do grupo de protagonistas, "Versos de um crime" é mais feliz no retrato da geração beatnik do que o esperado "On the road", que Walter Salles lançou em 2012 e foi praticamente ignorado por crítica e público. Ao contrário da produção de Salles, o filme de John Krokidas vai mais fundo em todos os aspectos particulares do universo dos escritores/personagens, desde o consumo de drogas até a sexualidade dúbia que envolve Ginsberg, Carr e Kammerer (mostrado no filme sob uma luz complexa que dá oportunidade a Michael C. Hall de criar um personagem fascinante e monstruoso ao mesmo tempo). Sem medo de enfrentar temas espinhosos, o roteiro passeia sem julgamentos morais por mesas do Harlem, festas particulares regadas a excessos de todo tipo, desafios constantes à seriedade do academicismo da universidade e até pelos polêmicos métodos de inspiração dos autores. Sem deixar-se encantar em exagero por seus personagens, Krokidas (em seu primeiro longa-metragem) os trata com respeito, mas nunca com reverência em demasia, revelando seus defeitos da mesma forma com que mostra seus inúmeros defeitos. O roteiro pode até demorar a chegar onde realmente quer - o crime de que fala o título nacional só acontece mesmo no terço final da narrativa - mas até lá ele permite ao espectador algo raro no cinema contemporâneo: conhecer o que se passa dentro de cada um dos protagonistas.
Mesmo que não aproveite o bastante o talento enorme de Ben Foster como William Burroughs e o trate como coadjuvante de luxo, "Versos de um crime" também tem a seu favor a escalação corajosa de elenco. Daniel Radcliffe sai-se muito bem no papel central, mostrando que existe vida pós-Harry Potter, e seu parceiro de cena, Dane DeHaan, é perfeito para o tipo de personagens torturados. A química entre os dois é perfeita e sempre que estão juntos o filme cresce exponencialmente - coisa que não acontece quando o foco da narrativa cai na amizade entre Carr e Jack Kerouac, um desvio de atenção que quase prejudica o filme justamente quando ele está se encaminhando para seu trágico desenlace. Nem mesmo a doce presença de Elizabeth Olsen como a esposa de Kerouac ameniza a sensação de um precioso tempo desperdiçado quando se tem uma história mais importante a ser contada. Tal pecado, porém, não consegue estragar uma das estreias mais interessantes dos últimos anos na cadeira de direção. Com ou sem Harry Potter, "Versos de um crime" tem mais qualidades que defeitos e merece uma segunda chance junto a seu público-alvo.
quinta-feira
O LOBO ATRÁS DA PORTA
O
LOBO ATRÁS DA PORTA (O lobo atrás da porta, 2013, Gullane Filmes,
101min) Direção e roteiro: Fernando Coimbra. Fotografia: Lula Carvalho.
Montagem: Karen Akerman. Figurino: Valeria Stefani. Produção: Caio
Gullane, Fabiano Gullane, Débora Ivanov, Gabriel Lacerda. Elenco:
Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabíula Nascimento, Juliano Cazarré,
Thalita Carauta. Estreia: 11/9/13 (Festival de Toronto)
Já sem a aura de preconceito que o prejudicava em termos de bilheteria, o cinema nacional estabilizou-se no mercado com produções que encontraram um diálogo com a plateia, seja através de filmes com o viés realista de "Cidade de Deus" e "Tropa de elite" - que também foram merecidamente incensados pela crítica mundial - ou de comédias rasas e superficiais, como "Se eu fosse você" e "De pernas para o ar" - cópias mal-ajambradas de sessões da tarde hollywoodianas. No meio desse confronto entre gêneros já estabelecidos dentro de uma indústria ainda incipiente, nada como uma obra que ouse fugir do já testado e aprovado. Apostando no suspense e fugindo do previsível, o cineasta e roteirista Fernando Coimbra surpreende a plateia com o denso e aterrador "O lobo atrás da porta", que bebe na fonte de filmes consagrados como "Atração fatal" e na história real da famosa Fera da Penha - que virou manchete de jornal nos anos 70 - para construir um dos mais marcantes produtos do cinema brasileiro dos últimos anos.
Quem comanda o show é Leandra Leal, uma das atrizes mais competentes de sua geração, que dá vida à complexa Rosa, uma jovem aparentemente normal que entra em desespero quando percebe que está perdendo o amor de Bernardo (Milhem Cortaz), o homem casado com quem tem um avassalador romance. Com medo de ser abandonada, ela começa uma insuspeita amizade com a esposa dele, a desconfiada Sylvia (Fabíula Nascimento) - até que o desaparecimento da filha pequena do casal embaralha todas as cartas do jogo e ilumina uma relação composta de amor, desejo e uma ponta de humilhação que acaba por levar a todos a um caminho sem volta em direção à ruína. Construindo sua narrativa de forma a parecer um quebra-cabeças, com as peças se encaixando aos poucos até o angustiante desfecho, Coimbra fez por merecer os prêmios do Grand Prix do Cinema Nacional, de onde "O lobo" saiu reconhecido em sete categorias - filme, direção, atriz, roteiro, atriz coadjuvante (Thalita Carauta), fotografia e montagem - e, de quebra, mostrou ao público que nem só de produções puramente comerciais ou experimentais vive o cinema nacional.
Sem medo de ir fundo na construção do suspense que cerca o destino de seus protagonistas - e contando com a ajuda fundamental de um elenco escolhido a dedo que dá extrema credibilidade à cada cena - Fernando Coimbra se recusa a apontar vilões ou defender quaisquer atitudes de seus personagens. Evitando julgamentos morais ou sentimentalismos desnecessários, o cineasta acompanha a dolorosa busca de Sylvia e Bernardo por sua filha com uma câmera discreta e silenciosa, testemunha tanto dos arroubos sensuais entre Bernardo e Rosa quanto dos desvãos de sua história - ações impensadas que resultam em reações das mais angustiantes já retratadas pelo cinema brasileiro. Sem enfatizar desnecessariamente o suspense em uma trama já banhada de tensão desde as primeiras cenas, Coimbra faz uso inteligente da edição, prendendo a atenção do público até seus momentos decisivos - e ao contrário do que se poderia esperar de um filme com tal grau de claustrofobia emocional, ele faz questão de mostrar constantemente seus personagens em espaços abertos e ensolarados (paradoxalmente, são as cenas românticas que se passam em ambientes fechados e escuros, uma metáfora adequada aos sentimentos dúbios da protagonista). A fotografia de Lula Carvalho acerta em não chamar mais a atenção do que a história, e o elenco coadjuvante é um espetáculo à parte.
Ator de talento pouco explorado na televisão - onde frequentemente é relegado à alívio cômico - Juliano Cazarré vive um delegado que tenta colocar uma ordem nas contradições que encontra no caso, mas é Thalita Carauta quem mais surpreende: na pele de uma "amiga" de Rosa que tem papel fundamental no desenrolar da trama, a atriz deixa de lado o estigma de comediante para entregar um desempenho impecável e assustador, capaz de fazer qualquer um olhar com desconfiança redobrada os silêncios e a tranquilidade dos subúrbios e dos bairros mais familiares de sua cidade. Ao contar uma história simples, com personagens críveis e humanos, Fernando Coimbra conseguiu um feito e tanto: incutir medo na audiência sem apelar para monstros ou assassinos seriais. Seu filme parece dizer, a cada momento, que o perigo pode estar em qualquer esquina. Sensacional!
Já sem a aura de preconceito que o prejudicava em termos de bilheteria, o cinema nacional estabilizou-se no mercado com produções que encontraram um diálogo com a plateia, seja através de filmes com o viés realista de "Cidade de Deus" e "Tropa de elite" - que também foram merecidamente incensados pela crítica mundial - ou de comédias rasas e superficiais, como "Se eu fosse você" e "De pernas para o ar" - cópias mal-ajambradas de sessões da tarde hollywoodianas. No meio desse confronto entre gêneros já estabelecidos dentro de uma indústria ainda incipiente, nada como uma obra que ouse fugir do já testado e aprovado. Apostando no suspense e fugindo do previsível, o cineasta e roteirista Fernando Coimbra surpreende a plateia com o denso e aterrador "O lobo atrás da porta", que bebe na fonte de filmes consagrados como "Atração fatal" e na história real da famosa Fera da Penha - que virou manchete de jornal nos anos 70 - para construir um dos mais marcantes produtos do cinema brasileiro dos últimos anos.
Quem comanda o show é Leandra Leal, uma das atrizes mais competentes de sua geração, que dá vida à complexa Rosa, uma jovem aparentemente normal que entra em desespero quando percebe que está perdendo o amor de Bernardo (Milhem Cortaz), o homem casado com quem tem um avassalador romance. Com medo de ser abandonada, ela começa uma insuspeita amizade com a esposa dele, a desconfiada Sylvia (Fabíula Nascimento) - até que o desaparecimento da filha pequena do casal embaralha todas as cartas do jogo e ilumina uma relação composta de amor, desejo e uma ponta de humilhação que acaba por levar a todos a um caminho sem volta em direção à ruína. Construindo sua narrativa de forma a parecer um quebra-cabeças, com as peças se encaixando aos poucos até o angustiante desfecho, Coimbra fez por merecer os prêmios do Grand Prix do Cinema Nacional, de onde "O lobo" saiu reconhecido em sete categorias - filme, direção, atriz, roteiro, atriz coadjuvante (Thalita Carauta), fotografia e montagem - e, de quebra, mostrou ao público que nem só de produções puramente comerciais ou experimentais vive o cinema nacional.
Sem medo de ir fundo na construção do suspense que cerca o destino de seus protagonistas - e contando com a ajuda fundamental de um elenco escolhido a dedo que dá extrema credibilidade à cada cena - Fernando Coimbra se recusa a apontar vilões ou defender quaisquer atitudes de seus personagens. Evitando julgamentos morais ou sentimentalismos desnecessários, o cineasta acompanha a dolorosa busca de Sylvia e Bernardo por sua filha com uma câmera discreta e silenciosa, testemunha tanto dos arroubos sensuais entre Bernardo e Rosa quanto dos desvãos de sua história - ações impensadas que resultam em reações das mais angustiantes já retratadas pelo cinema brasileiro. Sem enfatizar desnecessariamente o suspense em uma trama já banhada de tensão desde as primeiras cenas, Coimbra faz uso inteligente da edição, prendendo a atenção do público até seus momentos decisivos - e ao contrário do que se poderia esperar de um filme com tal grau de claustrofobia emocional, ele faz questão de mostrar constantemente seus personagens em espaços abertos e ensolarados (paradoxalmente, são as cenas românticas que se passam em ambientes fechados e escuros, uma metáfora adequada aos sentimentos dúbios da protagonista). A fotografia de Lula Carvalho acerta em não chamar mais a atenção do que a história, e o elenco coadjuvante é um espetáculo à parte.
Ator de talento pouco explorado na televisão - onde frequentemente é relegado à alívio cômico - Juliano Cazarré vive um delegado que tenta colocar uma ordem nas contradições que encontra no caso, mas é Thalita Carauta quem mais surpreende: na pele de uma "amiga" de Rosa que tem papel fundamental no desenrolar da trama, a atriz deixa de lado o estigma de comediante para entregar um desempenho impecável e assustador, capaz de fazer qualquer um olhar com desconfiança redobrada os silêncios e a tranquilidade dos subúrbios e dos bairros mais familiares de sua cidade. Ao contar uma história simples, com personagens críveis e humanos, Fernando Coimbra conseguiu um feito e tanto: incutir medo na audiência sem apelar para monstros ou assassinos seriais. Seu filme parece dizer, a cada momento, que o perigo pode estar em qualquer esquina. Sensacional!
quarta-feira
MESMO SE NADA DER CERTO
MESMO
SE NADA DER CERTO (Begin again, 2013, Exclusive Media Group/Sycamore
Pictures, 104min) Direção e roteiro: John Carney. Fotografia: Yaron
Orbach. Montagem: Andrew Marcus. Música: Gregg Alexander. Figurino:
Arjun Bhasin. Direção de arte/cenários: Chad Keith/Kris Moran. Produção
executiva: Guy East, Sam Hoffman, Ben Nearn, Tom Rice, Marc Schipper,
Nigel Sinclair, Molly Smith. Produção: Judd Appatow, Tobin Armsbrust,
Anthony Bregman. Elenco: Mark Ruffalo, Keira Knightley, Adam Levine,
James Corden, Hailee Steinfeld, Catherine Keener, Cee Lo Green. Estreia:
07/9/13 (Festival de Toronto)
Indicado ao Oscar de Melhor Canção ("Lost stars")
Em 2007, o cineasta John Carney conquistou o mundo com a história de um amor platônico regado à música folk e estrelado por ilustres desconhecidos: "Apenas uma vez" tornou-se cult, ganhou o Oscar de melhor canção e mostrou que nem só de grandes produções hollywoodianas vive o cinema romântico. Seis anos depois, com um orçamento um pouco mais generoso - e um elenco formado por indicados ao Oscar bem conhecidos do grande público - Carney mostrou que seu sucesso não foi apenas sorte de principiante. "Mesmo se nada der certo" é um delicioso drama romântico musical, recheado de belas canções, momentos encantadores, diálogos certeiros e personagens cativantes, capazes de deixar qualquer espectador com um enorme sorriso nos lábios ao final da sessão. E para isso não é preciso nem mesmo um único beijo na boca entre os protagonistas.
A primeira - e fascinante - cena do filme mostra a jovem inglesa Gretta (Keira Knightley) sendo praticamente obrigada a subir ao palco de um bar com música ao vivo de Nova York para mostrar uma canção de sua autoria. Quem se empolga com sua apresentação, apesar da tristeza inerente que vem da música, é Dan (Mark Ruffalo), sócio de uma gravadora independente que imediatamente propõe a ela um contrato de exclusividade. Acontece que as coisas não são exatamente como parecem, como logo ficará claro. Dan acaba de ser demitido da própria empresa, está separado da mulher, Miriam (Catherine Keener), e vive um relacionamento distante com a filha adolescente, Violet (Hailee Steinfeld). Gretta está em vias de embarcar de volta à Inglaterra, de onde saiu ao lado do namorado, Dave (Adam Levine, vocalista da banda pop Maroon 5) apenas para ser tratada como mera assistente durante a gravação de seu álbum - e pior ainda, ser trocada por outra mulher. Ambos se sentindo no pior momento de suas vidas, eles tem a ideia de gravar um disco ao ar livre, pelas ruas de Nova York, como forma de dar a volta por cima. Surge, então, uma amizade profunda, baseada na admiração e empatia.
Os acertos são muitos em "Mesmo se nada der certo": mesmo com o mísero orçamento de cerca de oito milhões de dólares - o que não paga nem a divulgação de certos blockbusters - John Carney conseguiu fazer um filme que em momento algum parece barato ou feito às pressas. A química entre Mark Ruffalo (sempre ótimo em papéis de perdedor) e Keira Knightley (em papel que quase foi parar nas mãos da cantora Adele) é excelente, e a atriz consegue até mesmo disfarçar sua tendência em fazer caras e bocas. Adam Levine sai-se muito bem no papel de Dave, ainda que não pareça que lhe tenha sido um grande desafio viver nas telas um personagem que pode muito bem ter semelhanças com sua rotina real (e a ele cabe a interpretação da bela "Lost stars", indicada ao Oscar de melhor canção). E os coadjuvantes de luxo - Catherine Keener, Hailee Steinfeld e até o colega de Levine na bancada do "The Voice" americano, Cee Lo Green - oferecem um ingrediente a mais em uma receita deliciosa.
É brilhante, por exemplo, a sequência em que Dan e Gretta caminham pelas ruas de Nova York ouvindo música pelo fone de ouvido e compartilhando seu gosto um com o outro - é uma das cenas mais românticas dos últimos anos mesmo que eles mal se toquem durante todo o tempo. E todas as cenas que mostram a gravação do álbum de Gretta pela cidade é de uma delicadeza ímpar, que mostra o extremo bom-gosto do cineasta e sua capacidade de transformar o mais simples metal em ouro puro. Essa alquimia rara é sua maior qualidade como diretor e roteirista - e a paixão que demonstra por seus personagens e pela música transcende a tela até chegar ao público, que, sem escolha, se deixa seduzir alegremente por suas histórias de recomeços e novas chances. Um filme encantador!
Indicado ao Oscar de Melhor Canção ("Lost stars")
Em 2007, o cineasta John Carney conquistou o mundo com a história de um amor platônico regado à música folk e estrelado por ilustres desconhecidos: "Apenas uma vez" tornou-se cult, ganhou o Oscar de melhor canção e mostrou que nem só de grandes produções hollywoodianas vive o cinema romântico. Seis anos depois, com um orçamento um pouco mais generoso - e um elenco formado por indicados ao Oscar bem conhecidos do grande público - Carney mostrou que seu sucesso não foi apenas sorte de principiante. "Mesmo se nada der certo" é um delicioso drama romântico musical, recheado de belas canções, momentos encantadores, diálogos certeiros e personagens cativantes, capazes de deixar qualquer espectador com um enorme sorriso nos lábios ao final da sessão. E para isso não é preciso nem mesmo um único beijo na boca entre os protagonistas.
A primeira - e fascinante - cena do filme mostra a jovem inglesa Gretta (Keira Knightley) sendo praticamente obrigada a subir ao palco de um bar com música ao vivo de Nova York para mostrar uma canção de sua autoria. Quem se empolga com sua apresentação, apesar da tristeza inerente que vem da música, é Dan (Mark Ruffalo), sócio de uma gravadora independente que imediatamente propõe a ela um contrato de exclusividade. Acontece que as coisas não são exatamente como parecem, como logo ficará claro. Dan acaba de ser demitido da própria empresa, está separado da mulher, Miriam (Catherine Keener), e vive um relacionamento distante com a filha adolescente, Violet (Hailee Steinfeld). Gretta está em vias de embarcar de volta à Inglaterra, de onde saiu ao lado do namorado, Dave (Adam Levine, vocalista da banda pop Maroon 5) apenas para ser tratada como mera assistente durante a gravação de seu álbum - e pior ainda, ser trocada por outra mulher. Ambos se sentindo no pior momento de suas vidas, eles tem a ideia de gravar um disco ao ar livre, pelas ruas de Nova York, como forma de dar a volta por cima. Surge, então, uma amizade profunda, baseada na admiração e empatia.
Os acertos são muitos em "Mesmo se nada der certo": mesmo com o mísero orçamento de cerca de oito milhões de dólares - o que não paga nem a divulgação de certos blockbusters - John Carney conseguiu fazer um filme que em momento algum parece barato ou feito às pressas. A química entre Mark Ruffalo (sempre ótimo em papéis de perdedor) e Keira Knightley (em papel que quase foi parar nas mãos da cantora Adele) é excelente, e a atriz consegue até mesmo disfarçar sua tendência em fazer caras e bocas. Adam Levine sai-se muito bem no papel de Dave, ainda que não pareça que lhe tenha sido um grande desafio viver nas telas um personagem que pode muito bem ter semelhanças com sua rotina real (e a ele cabe a interpretação da bela "Lost stars", indicada ao Oscar de melhor canção). E os coadjuvantes de luxo - Catherine Keener, Hailee Steinfeld e até o colega de Levine na bancada do "The Voice" americano, Cee Lo Green - oferecem um ingrediente a mais em uma receita deliciosa.
É brilhante, por exemplo, a sequência em que Dan e Gretta caminham pelas ruas de Nova York ouvindo música pelo fone de ouvido e compartilhando seu gosto um com o outro - é uma das cenas mais românticas dos últimos anos mesmo que eles mal se toquem durante todo o tempo. E todas as cenas que mostram a gravação do álbum de Gretta pela cidade é de uma delicadeza ímpar, que mostra o extremo bom-gosto do cineasta e sua capacidade de transformar o mais simples metal em ouro puro. Essa alquimia rara é sua maior qualidade como diretor e roteirista - e a paixão que demonstra por seus personagens e pela música transcende a tela até chegar ao público, que, sem escolha, se deixa seduzir alegremente por suas histórias de recomeços e novas chances. Um filme encantador!
terça-feira
ÁLBUM DE FAMÍLIA
ÁLBUM
DE FAMÍLIA (August: Osage County, 2013, The Weinstein Company, 121min)
Direção: John Wells. Roteiro: Tracy Letts, peça teatral de sua autoria.
Fotografia: Adriano Goldman. Montagem: Stephen Mirrione. Música:
Gustavo Santaolalla. Figurino: Cindy Evans. Direção de arte/cenários:
David Gropman/Nancy Haigh. Produção executiva: Ron Burkle, Celia Costas,
Jerry Frankel, Claire Rudnick Polstein, Jeffrey Richards, Bob
Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: George Clooney, Jean Doumanian,
Grant Heslov, Steve Traxler. Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Ewan
McGregor, Sam Shepard, Chris Cooper, Benedict Cumberbatch, Juliette
Lewis, Abigail Breslin, Margo Martindale, Julianne Nicholson, Dermot
Mulroney. Estreia: 09/9/13 (Festival de Toronto)
2 indicações ao Oscar: Atriz (Meryl Streep), Atriz Coadjuvante (Julia Roberts)
O dramaturgo Tracy Letts foi apresentado ao público cinéfilo com o ultra-violento e cínico “Killer Joe, matador de aluguel”, que chegou às telas sob a direção do veterano John Frankenheimer e apresentava uma família cuja desfuncionalidade chegava às raias do assassinato. Os personagens de “Álbum de família”, também baseado em um de seus textos teatrais, não alcançam tal extremo, mas dificilmente podem ser considerados exemplos de equilíbrio e respeito por laços de sangue. Interpretados por alguns dos maiores nomes do cinema atual, os membros da família Weston fazem desfilar pela tela, em cerca de duas horas de duração, um festival de rancores, humilhações, ciúmes, inveja e agressão capaz de causar inveja à Tenessee Williams e Edward Albee. Infelizmente, nem mesmo a experiência do elenco excepcional consegue disfarçar a inseguirança do diretor John Wells, que, confiando plenamente em seus atores e no texto pulsante de Letts, parece ter medo de fugir da armadilha do teatro filmado.
Ok, Wells até foge dos limites do cenário único – no caso, a velha casa da família Weston, localizada na pequena cidade de August, condado de Osage (daí o título original) – mas não é o bastante para esconder as origens teatrais da história. Para sua sorte, o texto de Letts é ágil o bastante para prender a atenção do público até suas cenas finais, principalmente porque os dramas do clã retratado pelo dramaturgo são os mais variados possíveis, indo de romances ilícitos até a segredos mantidos por décadas. No centro de todo o furacão emocional está a matriarca Violet (Meryl Streep no papel que lhe rendeu sua 18ª indicação ao Oscar), que depois do desaparecimento do marido, Beverly (Sam Shepard), recebe em sua propriedade toda a sua família - e, junto com ela, uma série de problemas que resolvem vir à tona encorajados pela falta de tato da anfitriã, que sofre de câncer na língua e vê seus medicamentos falarem mais alto que a delicadeza. É assim que ela enfrenta, amarga e cruel, a filha mais velha, Barbara (Julia Roberts), que passa por uma grave crise no casamento com Bill (Ewan McGregor) – cujo relacionamento extraconjugal com uma mulher mais jovem não consegue ser esquecida por ela – e na criação da única filha, a adolescente Jean (Abigail Breslin em papel para o qual foi testada a também excelente Chloe Grace Moretz). Barbara era a filha preferida de Beverly, e quando ele finalmente é encontrado morto, seu funeral aprofunda ainda mais as diferenças da família.
A única que ficou em casa cuidando da mãe durante sua doença, Ivy (Julianne Nicholson) é tratada com desprezo por Violet, que não vê nela a capacidade de casar ou viver uma história de amor – em segredo, porém, ela está apaixonada e é correspondida pelo primo, Charlie (Benedict Cumberbatch), que, assim como ela, é menosprezado pela mãe, Mattie Fae (a ótima Margo Martindale substituindo Kathy Bates, sondada pela produção), mas protegido pelo pai, Charles (Chris Cooper). Fechando o barulhento grupo está a caçula do trio de filhas de Violet, a inconsequente Karen (Juliette Lewis), que chega acompanhada do novo namorado, Steve (Dermot Mulroney) – que acaba por se engraçar com a adolescente Jean, para desespero de Barbara e Bill. Testemunhando toda a confusão, há a empregada doméstica Johnna (Misty Uphaim), de origem indígena e alvo de constantes ataques de racismo por parte de Violet. É essa família que irá passar um fim-de-semana inteiro lavando a roupa suja acumulada por anos e anos de segredos e meias-verdades.
“Álbum de família” é um show de atores. John Wells nem tem muito trabalho em comandar seu elenco, completamente à vontade em papéis repletos de possibilidades – todas elas exploradas à perfeição. Os embates mais verbalmente violentos – entre Meryl Streep e Julia Roberts, ambas indicadas pela Academia – são uma delícia de assistir, principalmente porque Streep deita e rola com uma personagem francamente desagradável e hostil e Roberts deixa de lado sua persona de estrela para entregar uma atuação forte e visceral. Wells não se preocupa em criar um visual marcante, preferindo dedicar-se a aproveitar a carpintaria dramática do texto de Letts – com reviravoltas dignas de uma boa telenovela – como base para seu filme. Experiente em programas de televisão (dirigiu vários episódios da série “Plantão médico”) mas com apenas um outro filme no currículo, o pouco visto “A grande virada”, de 2001, Wells não consegue escapar de uma direção pouco inventiva e ousada. Mesmo que a produção caminhe sem trancos até o final (diferente do desfecho da peça) fica a nítida impressão de um filme que não atingiu todo o seu potencial. Ainda assim, é um prazer enorme ser testemunha de tantos shows de interpretação concentrados em pouco mais de duas horas.
2 indicações ao Oscar: Atriz (Meryl Streep), Atriz Coadjuvante (Julia Roberts)
O dramaturgo Tracy Letts foi apresentado ao público cinéfilo com o ultra-violento e cínico “Killer Joe, matador de aluguel”, que chegou às telas sob a direção do veterano John Frankenheimer e apresentava uma família cuja desfuncionalidade chegava às raias do assassinato. Os personagens de “Álbum de família”, também baseado em um de seus textos teatrais, não alcançam tal extremo, mas dificilmente podem ser considerados exemplos de equilíbrio e respeito por laços de sangue. Interpretados por alguns dos maiores nomes do cinema atual, os membros da família Weston fazem desfilar pela tela, em cerca de duas horas de duração, um festival de rancores, humilhações, ciúmes, inveja e agressão capaz de causar inveja à Tenessee Williams e Edward Albee. Infelizmente, nem mesmo a experiência do elenco excepcional consegue disfarçar a inseguirança do diretor John Wells, que, confiando plenamente em seus atores e no texto pulsante de Letts, parece ter medo de fugir da armadilha do teatro filmado.
Ok, Wells até foge dos limites do cenário único – no caso, a velha casa da família Weston, localizada na pequena cidade de August, condado de Osage (daí o título original) – mas não é o bastante para esconder as origens teatrais da história. Para sua sorte, o texto de Letts é ágil o bastante para prender a atenção do público até suas cenas finais, principalmente porque os dramas do clã retratado pelo dramaturgo são os mais variados possíveis, indo de romances ilícitos até a segredos mantidos por décadas. No centro de todo o furacão emocional está a matriarca Violet (Meryl Streep no papel que lhe rendeu sua 18ª indicação ao Oscar), que depois do desaparecimento do marido, Beverly (Sam Shepard), recebe em sua propriedade toda a sua família - e, junto com ela, uma série de problemas que resolvem vir à tona encorajados pela falta de tato da anfitriã, que sofre de câncer na língua e vê seus medicamentos falarem mais alto que a delicadeza. É assim que ela enfrenta, amarga e cruel, a filha mais velha, Barbara (Julia Roberts), que passa por uma grave crise no casamento com Bill (Ewan McGregor) – cujo relacionamento extraconjugal com uma mulher mais jovem não consegue ser esquecida por ela – e na criação da única filha, a adolescente Jean (Abigail Breslin em papel para o qual foi testada a também excelente Chloe Grace Moretz). Barbara era a filha preferida de Beverly, e quando ele finalmente é encontrado morto, seu funeral aprofunda ainda mais as diferenças da família.
A única que ficou em casa cuidando da mãe durante sua doença, Ivy (Julianne Nicholson) é tratada com desprezo por Violet, que não vê nela a capacidade de casar ou viver uma história de amor – em segredo, porém, ela está apaixonada e é correspondida pelo primo, Charlie (Benedict Cumberbatch), que, assim como ela, é menosprezado pela mãe, Mattie Fae (a ótima Margo Martindale substituindo Kathy Bates, sondada pela produção), mas protegido pelo pai, Charles (Chris Cooper). Fechando o barulhento grupo está a caçula do trio de filhas de Violet, a inconsequente Karen (Juliette Lewis), que chega acompanhada do novo namorado, Steve (Dermot Mulroney) – que acaba por se engraçar com a adolescente Jean, para desespero de Barbara e Bill. Testemunhando toda a confusão, há a empregada doméstica Johnna (Misty Uphaim), de origem indígena e alvo de constantes ataques de racismo por parte de Violet. É essa família que irá passar um fim-de-semana inteiro lavando a roupa suja acumulada por anos e anos de segredos e meias-verdades.
“Álbum de família” é um show de atores. John Wells nem tem muito trabalho em comandar seu elenco, completamente à vontade em papéis repletos de possibilidades – todas elas exploradas à perfeição. Os embates mais verbalmente violentos – entre Meryl Streep e Julia Roberts, ambas indicadas pela Academia – são uma delícia de assistir, principalmente porque Streep deita e rola com uma personagem francamente desagradável e hostil e Roberts deixa de lado sua persona de estrela para entregar uma atuação forte e visceral. Wells não se preocupa em criar um visual marcante, preferindo dedicar-se a aproveitar a carpintaria dramática do texto de Letts – com reviravoltas dignas de uma boa telenovela – como base para seu filme. Experiente em programas de televisão (dirigiu vários episódios da série “Plantão médico”) mas com apenas um outro filme no currículo, o pouco visto “A grande virada”, de 2001, Wells não consegue escapar de uma direção pouco inventiva e ousada. Mesmo que a produção caminhe sem trancos até o final (diferente do desfecho da peça) fica a nítida impressão de um filme que não atingiu todo o seu potencial. Ainda assim, é um prazer enorme ser testemunha de tantos shows de interpretação concentrados em pouco mais de duas horas.
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