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quinta-feira

HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN


HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN (Harry Potter and the prisoner of Azkaban, 2004, Warner Bros, 142min) Direção: Alfonso Cuarón. Roteiro: Steve Kloves, romance de J.K. Rowling. Fotografia: Michael Seresin. Montagem: Steven Weisberg. Música: John Williams. Figurino: Jany Temine. Direção de arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Michael Barnathan, Callum McDougall, Tanya Seghatchian. Produção: Chris Columbus, David Heyman, Mark Radcliffe. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Michael Gambon, Maggie Smith, Gary Oldman, Emma Thompson, Julie Walters, Alan Rickman, David Thewliss, Tom Felton, Richard Griffiths, Fiona Shaw, Julie Christie, Robbie Coltrane. Estreia: 23/5/2004

2 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Efeitos Visuais

Quando Chris Columbus voltou atrás em sua decisão de comandar todos os filmes da série "Harry Potter" - da qual ele já havia dirigido os dois primeiros - uma nova odisseia de bastidores começou. A Warner, afinal, tinha um investimento dos mais preciosos em mãos (os direitos de todos os sete livros da saga) para entregá-lo a qualquer um. Entre os candidatos a assumir as rédeas do terceiro capítulo da milionária obra da britânica J.K. Rowling, então, surgiram nomes tão díspares quanto M. Night Shyamalan e Marc Forster. O primeiro tinha no currículo o megasucesso "O sexto sentido" (1999), que havia lhe rendido indicações ao Oscar de filme, direção e roteiro; o outro havia sido responsável por "A última ceia" (2001), que deu à Hale Berry a estatueta de melhor atriz. A responsabilidade de estar à frente de um blockbuster dos mais esperados da temporada 2004, porém, não foi tão sedutora assim, e ambos declinaram do convite: Shyamalan para realizar "A vila" (2004), e Forster para assinar "Em busca da Terra do Nunca" (2004). Foi aí que entrou em cena o mexicano Guillermo Del Toro, cujo currículo até então (com filmes como "Mutação", de 1997, "A espinha do diabo", de 2001, e "Blade II: O caçador de vampiros", de 2002) pouco recomendava para uma produção cujo público-alvo era infanto-juvenil. Para surpresa de muitos, Del Toro recusou o convite para penetrar no mundo de Hogwarts, mas não sem antes recomendar um amigo: enquanto preferiu tocar adiante um projeto de estimação - a adaptação de "Hellboy", baseado nas HQs de Mike Mignola -, ele apontou para seu conterrâneo Alfonso Cuarón. Em um primeiro olhar, Cuarón não poderia estar mais distante de Harry Potter, com filmes como o sexy "E sua mãe também" - que havia lhe rendido uma indicação ao Oscar de roteiro original - no portfolio. No entanto, Cuarón também sabia ser sensível e apropriado aos espectadores juvenis, como mostrou em 1995, ao adaptar o clássico "A princesinha", de Frances Hodgson Burnett, com a dose certa de emoção e delicadeza.

Com Cuarón no comando - aprovado por Rowling, fã de seus trabalhos anteriores - e um orçamento de estimados 130 milhões de dólares, "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" começava a dar os primeiros passos da série em direção à seriedade que os últimos capítulos apresentariam. Com um visual diferente dos dois primeiros filmes - cortesia da bela fotografia de Michael Seresin - e com sequências inteiras filmadas com câmeras em movimento, o terceiro filme da série apresenta também diferenças no figurino (especialmente os protagonistas) e um ritmo que equilibra cenas de ação, suspense e até comédia (como sempre acontece no começo do filme, Potter sofre nas mãos de seus tios e resolve a situação da melhor maneira que pode, com a ajuda de seus dons de bruxo, é claro). O roteiro, novamente adaptado por Steve Kloves, apresenta ao espectador novos elementos da saga, como o misterioso Sirius Black (interpretado com gosto por Gary Oldman), o padrinho do protagonista, que foge da prisão de Azkaban e, segundo a lenda, tem o objetivo de assassinar Harry, uma vez que é um dos mais fiéis seguidores do temido Voldemort (Ralph Fiennes). O que acontece, porém, é que Potter acaba descobrindo que o que sempre foi tido como verdade pode muito bem ser apenas parte dela. Com a ajuda de Hermione (Emma Watson) e Ron (Rupert Grint) - assim como também de alguns professores que conhecem a real história de Black -, o adolescente enfrenta o ano letivo mais perigoso de sua vida, visto até mesmo pelas previsões da professora Trelwaney (Emma Thompson, em papel pequeno que ela tira de letra).


Substituindo o falecido Richard Harris no crucial papel do professor Dumbledore, que foi oferecido também a Ian McKellen, Peter O'Toole e Christopher Lee, mantém em alto nível o elenco coadjuvante da série. Nomes como Maggie Smith, Alan Rickman, Fiona Shaw e Julie Walters continuam servindo de apoio a seus jovens colegas de cena, com generosidade ímpar. Conforme a trajetória de Harry Potter vai ficando cada vez menos infantil e se aproxima de momentos bastante tensos e violentos, a importância do corpo docente de Hogwarts se torna ainda mais importante e presente - e é admirável que a direção de Cuarón seja sensível ao ritmo da trama: o cineasta acelera quando precisa e mantém-se delicada ao examinar a relação de Potter com os personagens a seu lado. Daniel Radcliffe - assim como seus colegas mais próximos - mostra um amadurecimento tanto físico quanto artístico: não é um grande ator, mas é difícil imaginar outro intérprete para o jovem bruxo, um dos personagens mais populares da literatura e do cinema, um perfeito exemplo de entretenimento divertido e realizado com extremo cuidado e talento.

E "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" é justamente isso: entretenimento de primeira, capaz de agradar aos fãs dos livros e até mesmo àqueles que nunca abriram uma página sequer da saga de Rowling. Apesar de tratar - metaforicamente - com temas como depressão (representada pelos aterrorizantes dementadores), o filme de Cuarón se mantém no limite entre a fantasia e o terror, que ficaria a cada filme mais próximo dos protagonistas. Único filme da saga a não alcançar (por pouco) a marca de 800 milhões de dólares de bilheteria mundial, "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" concorreu a dois Oscar (trilha sonora original e efeitos visuais) e provou que, a despeito das mudanças na cadeira de diretor, mantém uma coerência interna e uma qualidade à prova das grandes expectativas de seu público. Cuarón, que assumiu não ter lido nenhum dos livros quando convidado para comandar esse terceiro filme - e que levaria o Oscar de direção por "Gravidade" (2013) - mostrou-se uma escolha certeira, que manteve o alto nível da série e emprestou-lhe um prestígio que apenas colaborou para seu sucesso de crítica e público.

domingo

FAHRENHEIT 451

FAHRENHEIT 451 (Fahrenheit 451, 1966, Anglo Enterprises, 112min) Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, romance de Ray Bradbury. Fotografia: Nicolas Roeg. Montagem: Thom Noble. Música: Bernard Herrmann. Figurino: Tony Walton. Direção de arte/cenários: Syd Cain. Produção executiva: Miriam Brickman. Produção: Lewis M. Allen. Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring. Estreia: 07/9/66 (Festival de Veneza)

Em 1953, o escritor Ray Bradbury imaginou um futuro distópico onde livros seriam proibidos pelo governo e incinerados pelos bombeiros, impedindo a população a ter acesso a qualquer palavra escrita. Alguns anos mais tarde, seu romance, batizado de "Fahrenheit 451" - em teoria, a temperatura necessária para a combustão das publicações - chegou às mãos do francês François Truffaut, notoriamente avesso a ficções científicas, e transformou completamente a opinião do célebre cineasta. Apaixonado pelo conceito da trama concebida por Bradbury e certo de que poderia fazer dela um filme memorável, Truffaut passou os próximos seis anos em busca de financiamento para o projeto. Nascia então seu primeiro - e único - filme falado em inglês. Lançado no Festival de Veneza de 1966, "Fahrenheit 451" é um clássico por excelência: inteligente, perturbador e emocionante, se mantém como uma crítica feroz ao totalitarismo ao mesmo tempo que convida o público a uma poética homenagem à literatura e seu poder transformador.

Antes de chegar às telas, porém, "Fahrenheit 451" mostrou-se um desafio dos mais trabalhosos para o inveterado cinéfilo, colaborador assíduo do prestigioso "Cahièrs du Cinéma" e já consagrado por filmes como "Os incompreendidos" (59) e "Jules e Jim: uma mulher para dois" (62). Não apenas o financiamento demorava a sair, mas também seu elenco dos sonhos parecia impossível de escalar. Para os dois principais papéis femininos, por exemplo, Truffaut queria a francesa Jean Seberg e a americana Tippi Hedren, mas viu seu desejo frustrado em dose dupla: Hedren estava ocupada com Alfred Hitchcock e Seberg (estrela do seminal "Acossado", de Jean-Luc Godard) foi considerada um nome pouco comercial pelos produtores. Nem mesmo Jane Fonda acertou sua participação e a contratação de Julie Christie para ambos os papéis (pela metade do cachê cobrado então pela atriz), ao contrário de ajudar, só complicou ainda mais a situação: sua presença causou a defecção do ator Terence Stamp - escolhido para interpretar o protagonista, Montag. Ex-namorado de Christie, o ator inglês não ficou confortável com a ideia de trabalhar com ela - especialmente quando havia a forte possibilidade de, fazendo dois personagens em cena, a bela Christie roubar a atenção. O resultado foi uma tremenda dor de cabeça aos produtores, que passaram a cogitar nomes tão diversos quanto Montgomery Clift, Marlon Brando, Paul Newman, Jean-Paul Belmondo, Charles Aznavour e Peter O'Toole - até que Truffaut finalmente bateu o martelo com Oskar Werner... e se arrependeu amargamente.


Não foi a primeira vez que cineasta e ator trabalharam juntos - ambos foram parte fundamental do sucesso de "Jules e Jim". Mas certamente Truffaut jamais imaginaria que a parceria outrora tão feliz se tornaria motivo de tanto desgosto. Com visões completamente opostas a respeito da forma como retratar o bombeiro Montag - personagem principal e que serve de ponte entre o filme e o público -, diretor e ator entraram em frequente rota de colisão durante as filmagens, e o próprio Truffaut declarou posteriormente que só não chegou a ponto de desistir do projeto devido à sua paixão pela história e pelo tempo que havia gasto na pré-produção. A situação ficou tão delicada que os dois chegaram a ficar sem dirigir a palavra um ao outro durante as duas últimas semanas de trabalho - some-se a isso uma crise nervosa de Julie Christie e as dificuldades do diretor em comunicar-se em inglês enquanto trabalhava em Londres e chega a ser quase um milagre que "Fahrenheit 451" tenha sido completado - e indo ainda mais longe, tenha ficado tão bom. Com o roteiro escrito em inglês por Truffaut e Jean-Louis Richard (que não dominavam o idioma e não ficaram totalmente satisfeitos com o resultado final), a adaptação do romance de Bradbury acerta em todos os aspectos - como cinema, como crítica social e como transposição de uma obra literária para as telas.

A criatividade de Truffaut começa já nos créditos de abertura: uma vez que no universo proposto pelo roteiro a leitura é algo proibido, não há letreiros e sim uma narração em off apresentando o elenco e a equipe técnica. Logo em seguida, o público passa a conhecer uma sociedade opressiva e totalitária, onde a população vive à mercê de um governo que proíbe o consumo de livros - e incentiva as denúncias contra aqueles que desafiam as leis. Nesse universo quase asséptico intelectualmente, a única função do corpo de bombeiros é justamente incinerar todos os livros descobertos e impedir que outros meios de comunicação senão a televisão sejam acessíveis como meio de informação. O protagonista, vivido por Oskar Werner, é Guy Montag, um desses bombeiros, um profissional dedicado e à espera de uma promoção que está em vias de chegar. E é justamente nesse ponto de sua carreira que Montag é surpreendido por um novo sentimento: fascinado pela bela Clarisse (Julie Christie), ele se vê subitamente curioso em conhecer o prazer da leitura, para desespero de sua mulher, a fútil Linda (também Christie). Tentado a mergulhar cada vez mais em um novo ambiente (onde o livre-pensar é uma realidade e o idealismo intelectual é capaz de forjar mártires orgulhosos), Montag descobre que seus fechados horizontes podem transformar-se em infinitas possibilidades - mas, para isso, precisa escolher entre a vida que leva e os perigos do não-conformismo.

Visualmente interessante - ainda que pareça um tanto datado - e contado em ritmo fluido e envolvente, "Fahrenheit 451" é uma obra-prima. Nem mesmo os embates dos bastidores foi capaz de minar o que há de mais brilhante no filme: sua mensagem de amor à liberdade e à literatura. Um pouco incômoda em seus momentos iniciais - até que a plateia finalmente compreenda exatamente o que está acontecendo - e fascinante em seu terço final, quando Montag descobre um novo caminho para sua vida, a obra de Truffaut sobrevive ao tempo como uma das mais importantes ficções científicas do cinema moderno (mesmo que abra mão de alguns elementos icônicos do gênero, como a violência e os efeitos visuais abundantes, que transformariam os filmes das décadas seguintes mais e mais parecidos com videogames do que com cinema). Felizmente a ideia de Mel Gibson em refilmá-lo não vingou: dificilmente alguém seria capaz de ser tão competente em transmitir as ideias do romance de Bradbury do que Truffaut foi em seu único filme em língua inglesa.

quarta-feira

LONGE DELA

LONGE DELA (Away from her, 2006, Foundry Films/Capri Releasing, 110min) Direção: Sarah Polley. Roteiro: Sarah Polley, conto "The bear come over the mountain", de Alice Munro. Fotografia: Luc Montpellier. Montagem: David Wharnsby. Música: Jonathan Goldsmith. Figurino: Debra Hanson. Direção de arte/cenários: Kathleen Climie/Mary Kirkland. Produção executiva: Atom Egoyan, Doug Mankoff. Produção: Daniel Iron, Simone Urdl, Jennifer Weiss. Elenco: Julie Christie, Gordon Pinsent, Olympia Dukakis, Michael Murphy, Tom Harvey, Stacey LaBerge. Estreia: 11/9/06 (Festival de Toronto)

2 indicações ao Oscar: Atriz (Julie Christie), Roteiro Adaptado

Em 2001, no voo de volta da Islândia, onde havia acabado de filmar "No such thing", de Hal Hartley, a jovem atriz Sarah Polley - conhecida por filmes como "O doce amanhã" e "Vamos nessa" - deu de cara com o conto "The bear come over the mountain", da escritora Alice Munro e nao pode deixar de imaginar como uma adaptação para o cinema da história poderia ser poderosa, especialmente se o papel principal feminino ficasse nas mãos de Julie Christie, com quem havia acabado de fazer o filme de Hartley. Depois de ver o projeto de seu primeiro filme abortado - a história de uma atriz de doze anos de idade fazendo uma série de televisão - Polley resolveu então recorrer a seu plano B. Roteiro escrito, ela o enviou à Christie, que o recusou por diversas vezes, por mais de um ano até que finalmente dobrou-se à tenacidade da jovem diretora estreante. Surgia assim "Longe dela", um belo e tocante drama sobre o amor, a velhice e a abnegação - que deu a Christie, merecidamente, uma indicação ao Oscar de melhor atriz. Tendo estreado no Festival de Toronto de 2006, porém, o filme só chegou às telas americanas em 2007, o que fez com que a eterna Lara de "Doutor Jivago" batesse de frente com Marion Cottilard em "Piaf, um hino ao amor" - o que acabou com suas chances de vitória. Se tal acontecesse, porém, não seria nada injusto: poucas vezes uma interpretação feminina foi tão sutil e delicada.

Christie - com seus belos olhos azuis e sua beleza plácida em nada prejudicada pelo tempo - faz o papel de Fiona Anderson, uma mulher inteligente e dedicada ao casamento de 44 anos com o professor aposentado Grant (Gordon Pinsent), com quem vive em Ontário, no Canadá. Sem filhos, o casal, ainda apaixonado apesar das crises pelas quais passaram durante essas quatro décadas, se vê, de repente, diante de seu maior desafio: a possibilidade de Fiona ser portadora do mal de Alzheimer, aventada por seus lapsos de memória cada vez mais constantes. A solução encontrada pelos dois, a menos a princípio, é sua internação em um sanatório chamado Meadowlake - um lugar pacífico e agradável onde ela pode conviver com outros pacientes e ser assistida por médicos e enfermeiros especializados. O problema maior do hospital, no entanto, é a regra de manter os pacientes sem visitas durante seus primeiros trinta dias, como forma de facilitar a adaptação. Grant sente-se torturado pela possibilidade, mas quando este período de tempo passa e ele finalmente reencontra a esposa, ela não apenas não o reconhece como o marido de uma vida toda como demonstra um interesse especial por um colega de internação, o também casado Aubrey Barque (Michael Murphy).


Contando sua história fora de ordem cronológica - mas sem os exageros estilísticos com os quais muitos estreantes tentam demonstrar serviço - Sarah Polley demonstra um surpreendente conhecimento da alma humana (especialmente das pessoas de mais idade), desenvolvendo em seus personagens uma profundidade rara (cortesia de sua origem literária, provavelmente). Muitas vezes abdicando dos diálogos e deixando que seus atores (sensacionais) falem mais com os olhos, ela exige do espectador uma sensibilidade quase feminina, desenhada em pequenos gestos e em uma tristeza pungente, que atravessa todo o filme, sublinhada pela trilha sonora minimalista de Jonathan Goldsmith e pela fotografia elegante de Luc Montpellier, que tira proveito da branquidão da neve canadense para enfatizar a solidão dos protagonistas - como se dentro deles também houvesse uma geleira intransponível que só pode ser derretida com o amor e o calor humano, por mais doloroso que ele possa soar.

Em seu terço final, quando fica claro ao espectador a razão pela qual Grant procura a esposa de Aubrey, a conformada Marion (Olympia Dukakis, sempre ótima), "Longe dela" cresce ainda mais. Ousando em um desfecho pouco comum - que consegue ser ao mesmo tempo feliz e extremamente melancólico - Polley desconstroi de forma tênue mas firme as convenções a respeito de casamento, fidelidade e generosidade, entregando ao público uma história forte e comovente a respeito do poder do amor e da lealdade. Amparado por uma atuação monstruosa de Julie Christie e pela força silenciosa de Gordon Pinchent - que perdeu a esposa em janeiro de 2007, quatro meses depois da estreia do filme - "Longe dela" é de deixar o coração apertado, mas aquecido. Uma estreia das mais auspiciosas.


sábado

HAMLET

HAMLET (Hamlet, 1996, Castle Rock Entertainment, 238min) Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Kenneth Branagh, peça teatral de William Shakespeare. Fotografia: Alex Thomson. Montagem: Neil Farrell. Música: Patrick Doyle. Figurino: Alexandra Byrne. Direção de arte/cenários: Tim Harvey. Produção: David Barron. Elenco: Kenneth Branagh, Derek Jacobi, Julie Christie, Kate Winslet, Brian Blessed, Richard Briers, Rufus Sewell, Michael Maloney, Richard Attenborough, Billy Crystal, Judi Dench, Gérard Depardieu, John Gielgud, Rosemary Harris, Charlton Heston, Jack Lemmon, Timothy Spall, Robin Williams. Estreia: 25/12/96

4 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários

Uma das mais clássicas manifestações artísticas da loucura - ou do arremedo de uma - acabou tornando-se uma das mais ousadas produções cinematográficas da década de 90 e quiçá da história da sétima arte. Conhecido por suas adaptações da obra do dramaturgo William Shakespeare para o cinema, o irlandês Kenneth Branagh - que já havia dirigido "Henry V" (89) e "Muito barulho por nada" (93) e atuado como Iago em "Othello" (96) - arriscou sua reputação e seu prestígio ao transpor o mais clássico dos clássicos do bardo, palavra por palavra, para as telas. Brilhantemente produzido, interpretado por um elenco estrelado que se dá ao luxo de ter Charlton Heston, Gérard Depardieu e Jack Lemmon em pontas e longo a ponto de testar os limites de paciência do público - poucos minutos menos de quatro horas de duração - o "Hamlet" de Branagh (e pode-se dizer sem medo, o "Hamlet" definitivo do cinema) pode assustar até ao mais fervoroso purista com sua fidelidade canina ao texto original, mas, graças à direção segura e inteligente, a uma edição cirurgicamente precisa e a um elenco impecável, sobressai-se às demais adaptações pelo ritmo pulsante e pela modernidade visual impressa em cada fotograma. Realizado com meros 18 milhões de dólares - um trocado perto dos orçamentos milionários que assustavam os executivos dos estúdios à época - o filme de Kenneth Branagh é assombrosamente deslumbrante e um presente para os fãs de bom cinema e bom teatro.

Uma das histórias mais conhecidas da literatura mundial, "Hamlet" só chegou às telas com tal opulência visual e ousadia narrativa - que não oprime uma linha sequer do texto original - graças à teimosia de seu diretor e ator principal, que rondou por mais de um ano de estúdio em estúdio de Hollywood tentando financiamento para um projeto que todos consideravam fadado ao fracasso. Não é difícil imaginar os motivos para tanta recusa: não apenas Branagh batia pé nas quatro horas de duração de seu filme como tinha ainda que lidar com a bilheteria decepcionante e as críticas negativas de seu filme anterior, "Frankenstein de Mary Shelley", que não havia tido o desempenho esperado pelos produtores. Além do mais, Shakespeare estava se tornando arroz de festa na terra do cinema, sendo adaptado de todas as formas possíveis e imagináveis - até mesmo o australiano Baz Luhrmann estava a caminho de lançar uma versão psicodélica de "Romeu e Julieta", estrelado por Leonardo DiCaprio e o próprio "Hamlet" já havia sido refilmado recentemente por Franco Zefirelli, com Mel Gibson no papel principal. Tudo conspirava contra o irlandês, até que a Castle Rock tomou coragem e, com poucas exigências finais (um elenco com atores conhecidos e uma versão editada para lançamento mundial) deixou que o cineasta fosse em frente. É impossível assistir-se ao resultado final sem um suspiro de agradecimento profundo à sua coragem.


Mesmo acima da idade para interpretar o papel principal, Kenneth Branagh é o corpo e a alma de "Hamlet", a energia que contagia a todos e o estopim de uma trama recheada de traições vis, paixões avassaladoras, ódios arraigados e uma coleção de mortes das mais conhecidas do teatro universal - que em suas mãos soa fresca e reluzente como se tivesse sido escrita há dois dias. Para quem não sabe, se é que alguém não sabe, tudo começa quando o jovem príncipe Hamlet volta à sua Dinamarca natal para os funerais de seu pai (Brian Blessed) e para as novas núpcias de sua mãe, Gertrude (Julie Christie), que, mal esperou quatro meses para casar-se com o cunhado, Claudius (Derek Jacobi), novo rei do país. Infeliz com a situação, o príncipe fica ainda mais movido ao ódio quando o fantasma de seu progenitor lhe aparece, acusando o irmão de tê-lo assassinado para roubar-lhe a esposa e o trono. Com o objetivo de vingar a morte do pai, Hamlet inicia um plano ambicioso - que envolve fingir uma loucura que ele pode mesmo portar, um grupo de atores mambembes que recebe no palácio com o objetivo de impulsionar uma confissão do tio e até a mulher que ama, a doce Ofélia (Kate Winslet).

Mais do que simplesmente contar com cada detalhe - por mais insignificante que ele possa parecer - a história criada por Shakespeare, Kenneth Branagh consegue, em seu filme, o que havia conseguido apenas parcialmente em suas adaptações anteriores: fazer com que o texto extremamente teatral da peça caiba com perfeição na tela de cinema - no caso, em formato 65mm, que lhe permitiu alcançar um visual mais clássico que buscava com o objetivo de aproximar o filme de um cinema mais visualmente atraente e que só voltou a ser utilizado em 2012, quando Paul Thomas Anderson filmou seu "O mestre". Seu objetivo é plenamente atingido quando a plateia testemunha momentos de pura poesia visual, enfatizada pela fotografia esplêndida de Alex Thomson e pela direção de arte irretocável que concorreu ao Oscar - assim como o figurino de Alexandra Byrne, a música de Patrick Doyle e o roteiro do próprio diretor. Pulsante, passional e por vezes exaustivamente emocionante, "Hamlet" é a mais perfeita combinação entre cinema e teatro já realizada. Uma obra-prima de grandes proporções.

segunda-feira

INVERNO DE SANGUE EM VENEZA

INVERNO DE SANGUE EM VENEZA (Don't look now, 1973, Casey Productions/Eldorado Films, 110min) Direção: Nicolas Roeg. Roteiro: Alan Scott, Chris Bryant, estória de Daphne Du Maurier. Fotografia: Anthony Richmond. Montagem: Graeme Clifford. Música: Pino Donaggio. Direção de arte: Giovanni Soccol. Produção executiva: Anthony B. Unger. Produção: Peter Katz. Elenco: Donald Sutherland, Julie Christie, Hilary Mason, Clelia Matania. Estreia: 09/12/73

É difícil um filme de suspense ganhar o espectador logo nas primeiras cenas sem que para isso precise apelar para a sanguinolência explícita. E já de cara o perturbador "Inverno de sangue em Veneza" fisga o público, com uma engenhosa edição que diz, apenas com imagens sublimes de crianças brincando em um gramado e uma trilha sonora espetacular de Pino Donaggio, que vem desgraça pela frente. Não demora muito e a plateia é testemunha de tal desgraça: a filha pequena do arquiteto John Baxter (Donald Sutherland) morre afogada praticamente diante dos olhos terrificados do pai e do irmão. Assim começa um dos filmes mais aclamados do cineasta inglês Nicolas Roeg, adaptado de um conto da escritora Daphne Du Maurier - a mesma autora de "Rebecca, a mulher inesquecível" e "Os pássaros", que aprovou de tal maneira a forma cinematográfica que sua estória recebeu que não hesitou em escrever uma carta ao diretor, cumprimentando-o pelo tom funesto que ele imprimiu à trama.

O tom funesto, aliás, não fica apenas na primeira e chocante sequência de "Inverno de sangue em Veneza". A morte da pequena Christine é apenas o ponto de partida para uma viagem angustiante a ruas escuras e pouco convidativas da cidade italiana do título nacional. Fugindo da tentação de mostrar Veneza como um paraíso turístico, Roeg a retrata como o cenário de um pesadelo psicológico, onde cegas videntes, premonições assustadoras e serial killers convivem pacificamente com igrejas em processo de restauração e imagens misteriosas se esgueirando em becos escuros com intenções ainda mais tenebrosas. Roeg se utiliza da fotografia estilizada de Anthony Richmond - que apresenta momentos de grande beleza plástica - e da edição repleta de elipses temporais de Graeme Clifford para traduzir em imagens uma narrativa densa que mantém o suspense até as cenas finais, que completam o complexo quebra-cabeça armado desde seu princípio.


Depois da morte de sua filha, John aceita o trabalho de restaurar uma igreja em Veneza e vai para a Itália acompanhado da esposa, Laura (Julie Christie). Seu objetivo, além do interesse no emprego, é tentar superar o trauma da perda, mas a coisa não parece que vai ser assim tão fácil quando eles encontram duas irmãs em um restaurante da cidade. Uma das irmãs, cega e medium, afirma a Laura ter contato com a menina morta. Além disso, insiste que John também o dom da mediunidade e que precisa sair urgente da cidade, por sua vida estar correndo sério risco. Nesse meio-tempo, o arquiteto passa a ter visões de uma menina vestida com a mesma capa de chuva vermelha que sua filha usava na ocasião de sua morte - e, por coincidência ou não, o casal começa a esbarrar constantemente nas duas velhas irmãs.

Apesar de seu ritmo um tanto lento ser um risco ao espectador menos dado a experimentações estéticas e formais, "Inverno de sangue em Veneza" tem, inegavelmente, o poder de manter o suspense até seu clímax, que também foge do padrão do gênero. Intercalando cenas de extremo poder dramático com momentos de uma aparente paz de espírito entre o casal central - incluindo uma cena de sexo bastante longa e que acabou sendo uma das sequências mais comentadas do filme - Roeg conduz com sutileza uma trama forte e tensa que só vai fazer sentido totalmente em seus momentos finais. Pode ser que a audiência sinta-se incomodada, mas não é essa a intenção de uma obra de arte?

quinta-feira

EM BUSCA DA TERRA DO NUNCA


EM BUSCA DA TERRA DO NUNCA (Finding Neverland, 2004, Miramax Films, 106min) Direção: Marc Foster. Roteiro: David Magee, peça teatral "The man who was Peter Pan", de Allan Knee. Fotografia: Robert Schaefer. Montagem: Matt Cheesee. Música: Jon A. P. Kaczmarek. Figurino: Alexandra Byrne. Direção de arte/cenários: Gemma Jackson/Trisha Edwards. Produção executiva: Gary Binkow, Neal Israel, Michelle Shy, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Nellie Bellflower, Richard N. Gladstein. Elenco: Johnny Depp, Kate Winslet, Dustin Hoffman, Julie Christie, Radha Mitchell, Freddie Highmore, Kelly McDonald, Ian Hart. Estreia: 04/9/04 (Festival de Veneza)

7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Johnny Depp), Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Montagem, Figurino, Direção de arte/cenários
Vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora Original

É fácil emocionar a plateia quando se fala de temas comoventes como fantasia, doenças fatais e crianças em busca da felicidade e inocência eternas. Mas é difícil tocar nesses assuntos sem escorregar rumo à pieguice e ao sentimentalismo barato. Por isso não deixa de ser louvável o fato de Marc Foster – do econômico “A última ceia” – ter transformado “Em busca da Terra do Nunca”, um roteiro repleto de armadilhas emocionais, em um filme delicado sem exageros e em uma obra ingênua sem ser simplória. Indicado a sete Oscar – inclusive de Melhor Filme – a adaptação da peça teatral de Allan Knee levou apenas a estatueta de Trilha Sonora, mas ganhou audiências do mundo inteiro graças a suas qualidades inegáveis.

A trama se passa em Londres, em 1903, quando o dramaturgo James Barrie (um Johnny Depp controlado mas inexplicavelmente indicado ao Oscar de melhor ator) está amargando um grande fracasso de crítica e público. Pressionado por seu empresário (uma simpática participação de Dustin Hoffman) e por sua esposa Mary (Radha Mitchell), ele passa horas de seu dia em um parque da cidade, aguardando por inspiração. Ela surge de maneira imprevisível quando ele conhece a bela viúva Sylvia Llewelyn Davies (Kate Winslet excelente como sempre) e seus quatro filhos pequenos. Fascinado pela família que luta contra suas dificuldades financeiras, Barrie começa a escrever uma peça de teatro em que conta a história de um menino que se recusa a crescer, unindo a suas idéias elementos bastante diferentes como fadas, piratas e crocodilos. Quando a estréia está prestes a acontecer, o escritor tem que lidar com a doença fatal de Sylvia e de como esse fato irá repercutir junto ao pequeno Peter (a revelação Freddie Highmore), o mais sensível e carente de seus filhos.

         

É quase impossível não render-se à simpatia de “Em busca da Terra do Nunca”. O roteiro equilibrado de David Magee conquista pelo humor, pela delicadeza e até mesmo pela emoção, passando perto de tornar-se lacrimoso. Graças à engenhosidade do diretor e do editor Matt Chesse, as histórias de Barrie e sua esposa e de sua relação com a família Davies nunca chegam a se atropelar, e o mundo de fantasia criado pelo escritor junto às crianças serve como metáfora de uma forma de escape do mundo injusto e triste a que elas são obrigadas a submeter-se. Ancorado em um elenco em plena sintonia, o roteiro prende a atenção do público, para então entregar-lhe um final arrasador, de arrancar lágrimas do mais empedernido ser humano.

Pode até parecer bobinho, superficial e sentimentaloide, mas "Em busca da Terra do Nunca" é muito mais do que isso: é uma obra centrada em pessoas, seres humanos buscando fugir de uma realidade triste e acinzentada em busca de um lugar colorido, onde fadas convivem harmoniosamente com crianças que não querem nunca crescer e descobrir sua finitude. Uma pequena obra-prima!

domingo

TRÓIA


TRÓIA (Troy, 2004, Warner Bros, 163min) Direção: Wolfgang Petersen. Roteiro: David Benioff, poesia "A ilíada", de Homero. Fotografia: Roger Pratt. Montagem: Peter Honess. Música: James Horner. Figurino: Bob Ringwood. Direção de arte/cenários: Nigel Phelps/Anna Pinnock, Peter Young. Produção: Wolfgang Petersen, Diana Rathbun, Colin Wilson. Elenco: Brad Pitt, Orlando Bloom, Eric Bana, Diane Kruger, Julie Christie, Peter O'Toole, Brian Cox, Brendan Gleeson, Sean Bean. Estreia: 14/5/04

Indicado ao Oscar de Figurino

 Muito foi falado sobre os excessos de “Tróia”, a super-produção de Wolfgang Petersen sobre a Guerra entre Tróia e Esparta. Realizado com um orçamento milionário de cerca de 175 milhões de dólares e com uma renda abaixo do esperado no mercado americano, o filme, estrelado por Brad Pitt, foi massacrado pela crítica, ignorado pelas cerimônias de premiação e fez um barulho muito menos ensurdecedor do que se esperava de um projeto de seu porte. No final das contas, graças à arrecadação pelo resto do mundo, “Tróia” conseguiu se pagar, mas mesmo assim passou à história como um fracasso. Mas é realmente tão ruim como se pintou?
   
Na verdade, como história “Tróia” é uma nulidade. Chega a ser vergonhoso como o roteiro do prestigiado David Benioff – autor de “A última noite”, de Spike Lee – ignora fatos importantes e cria outros jamais citados com a única intenção de deixar a trama mais dramática e romanesca. Incorrendo na ira dos puristas, Benioff comprou briga também com o público menos ligado à mitologia, justamente por não se decidir entre narrar um romance capaz de desencadear batalhas grandiosas ou mostrar essas batalhas, timidamente filmadas por Roger Pratt apesar do orçamento generoso.

        

O filme começa quando o príncipe caçula de Tróia, o jovem Paris (o fraquíssimo Orlando Bloom) inicia uma história de amor com a bela Helena (a inexpressiva e nem tão bela assim Diane Kruger), esposa de um dos príncipes de Esparta. O flagrante adultério – e a subsequente fuga para casa – destrói a paz recém estabelecida entre os dois países e o rei de Esparta, Agamenon (o onipresente Brian Cox) cede aos desejos sanguinários de seu irmão Menelau (Brendan Gleeson) e declara guerra à Tróia. Para ajudá-los nas sangrentas batalhas lideradas pelo competente Heitor (Eric Bana), os espartanos contam com a ajuda do lendário Aquiles (Brad Pitt), que entra em uma guerra que não é sua quando tem seu primo assassinado por Heitor.
   
Como já foi dito, “Tróia” não deve ser visto como uma aula de História. Repleto de falhas e invenções, o roteiro - que desagradou totalmente ao cineasta Terry Gilliam, que recusou a oferta de dirigí-lo - ganha pontos quando humaniza personagens tidos como deuses, como Aquiles, por exemplo. No entanto, ao mesmo tempo em que faz isso, de certa forma enfraquece seu herói. Diante de um íntegro e valente Heitor vivido com sutileza e garra pelo sensacional Eric Bana, o personagem de Brad Pitt empalidece sem maiores chances de redenção e conseqüentemente leva a trama a um cruel impasse: pra quem se deve torcer afinal? Para um país que prefere começar uma guerra por uma mulher ou por um quase mercenário pop e arrogante? Essa dubiedade, que poderia elevar o filme a um patamar de maior inteligência, no entanto o amarra a uma quase esquizofrenia. Se levarmos em consideração que as cenas pretensamente climáticas do filme – a invasão de Tróia pelo cavalo de madeira dado de presente pelos gregos – são filmadas quase com preguiça e que  o desenvolvimento dos personagens é quase nulo, certamente podemos afirmar que a obra do alemão Petersen é um fiasco. Mas se levarmos em conta a beleza da produção, a história bem contada (ainda que repleta de furos) e a atuação de nomes consagrados como Peter O’Toole – dono da cena mais tocante do filme – e jovens como Eric Bana, pode-se considerar “Tróia” como um filme que poderia ter sido extraordinário mas que nunca deixa de ser apenas razoável.

segunda-feira

DOUTOR JIVAGO


DOUTOR JIVAGO (Doctor Zhivago, 1965, MGM Pictures,197min) Direção: David Lean. Roteiro: Robert Bolt, baseado no romance de Boris Pasternak. Fotografia: Freddie Young. Montagem: Norman Savage. Música: Maurice Jarre. Figurino: Phyllis Dalton. Direção de arte/cenários: John Box / Dario Simoni. Produção: Carlo Ponti. Elenco: Omar Sharif, Julie Christie, Rod Steiger, Tom Courtenay, Geraldine Chaplin, Alec Guinness, Klaus Kinski, Ralph Richardson. Estreia: 22/12/65

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (David Lean), Ator Coadjuvante (Tom Courtenay), Roteiro Adaptado, Fotografia em Cores, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino em Cores, Direção de arte/Cenários em Cores, Som
Vencedor de 5 Oscar: Roteiro Adaptado, Fotografia, Trilha Sonora Original, Figurino em Cores, Direção de Arte/Cenários em Cores

Vencedor de 5 Golden Globes: Filme/Drama, Diretor (David Lean), Ator/Drama (Omar Sharif), Roteiro, Trilha Sonora

Houve um tempo em Hollywood que a palavra "épico" sempre vinha acompanhada do nome do diretor David Lean, e não era para menos. Basta assistir a qualquer um de seus filmes mais famosos - "A ponte do Rio Kwai" e "Lawrence da Arábia", por exemplo, para ficar apenas nas obras que lhe deram o Oscar - para perceber que o cineasta inglês tinha uma fascinação mais do que corriqueira por histórias que exigissem vastas paisagens, personagens apaixonadas - por uma causa, por uma missão, por uma pessoa - e principalmente histórias que se prestassem a longas durações. Exagero? "Lawrence" tem 216 minutos, "Rio Kwai" tem 161. Tendo isso tudo em vista, não é nada surpreendente que ele tenha se interessado pela adaptação cinematográfica do romance "Doutor Jivago", escrito por Boris Pasternak. Afinal de contas, além de todos os ingredientes citados acima, o livro de Pasternak - publicado em 1958 apenas fora da União Soviética, que só o pode ler em 1989 - ainda tinha um viés social que aumentava consideravelmente seu poder de sedução junto a uma plateia que dava seus primeiros passos em direção à consciência política. Sintomaticamente, "Doutor Jivago" foi o filme mais popular de Lean, arrecadando sozinho mais do que todos os seus trabalhos anteriores somados.

"Doutor Jivago" começa pra valer em 1912, às vésperas da I Guerra Mundial, em Moscou. É lá que o poeta e estudante de Medicina Yuri Jivago (Omar Sharif) toma contato com as diferenças sociais que empurram aos poucos a Rússia a uma revolução. Noivo de sua irmã de criação, Tonya (Geraldine Chaplin), ele conhece a bela Lara (Julie Christie), uma jovem que desperta os desejos lascivos do poderoso Komarovsky (Rod Steiger) que, entre outras mulheres, também é amante de sua mãe. Lara é noiva de Pasha (Tom Courtenay), um dos mais engajados membros do partido que tenciona tomar o poder russo. Quando a Guerra realmente chega, Lara e Jivago se reencontram em circunstâncias bastante dramáticas - ele como médico e ela como enfermeira voluntária - e se apaixonam, apesar de seus compromissos sentimentais (embora ela nunca mais tenha visto seu marido, um dos líderes do movimento que em pouco tempo forçará a Revolução Russa). Ao retornar para Moscou, Jivago encontra seu país em estado crítico, tendo a própria mansão de sua família invadida por dezenas de famílias. Ao recolher-se ao interior da Rússia com a mulher, o sogro e o filho, ele volta a encontrar Lara, e dessa vez eles se entregam ao forte sentimento que nutrem um pelo outro. A felicidade, no entanto, é efêmera, uma vez que a guerra civil que divide o país eclode e ameaça seu relacionamento.



Épico no sentido mais amplo do termo, "Doutor Jivago" é um espetáculo para ser degustado com admiração incondicional. A impressionante fotografia de Freddie Young, premiada com o Oscar, é uma das mais extraordinárias da história do cinema, marcando com eficiência e sensibilidade a passagem do tempo e o estado de espírito das personagens - não foi à toa que as filmagens sofreram grande atraso devido ao perfeccionismo de Lean, que fez questão de filmar cada cena dentro de seu respectivo período de tempo. A neve, que é visão constante ao espectador nunca foi tão linda, assim como a areia do deserto nunca esteve tão fotogênica quanto em "Lawrence da Arábia" . E os inúmeros closes nos olhos azuis de Christie apenas reforçam sua beleza e sua fragilidade, que se transforma em uma força inesperada em momentos extremos. Mas apesar do talento tanto de Julie quanto de Sharif, o romance entre suas personagens talvez seja o elo mais fraco de toda a trama.

Por incrível que pareça quando se trata de um épico romântico, a história de amor entre Jivago e Lara não chega a conquistar o público tanto quanto o cenário político-social em que ela se desenrola. Mesmo que as cenas entre os dois sejam de uma beleza inegável - culpa também da extraordinária e consagrada trilha sonora de Maurice Jarre - o interesse da plateia acaba sendo muito maior na trama política do filme e em suas consequências. Algumas cenas bastante violentas - mas ainda assim de uma poesia dolorosa - são magistralmente dirigidas por Lean em contraponto à placidez silenciosa de outras sequências.O roteiro, que condensa um livro de mais de 600 páginas em pouco mais de três horas de duração, busca fazer milagres. Ao mesmo tempo que foge gloriosamente do didatismo - o que de certa forma deixa a plateia um pouco perdida em alguns momentos - tenta fazer acreditar no romance entre seus protagonistas. Não é tarefa das mais fáceis e nem sempre seu objetivo é atingido plenamente - nas páginas escritas por Pasternak a paixão entre Jivago e Lara soa mais crível e avassaladora do que na tela, onde Sharif e Julie - atraentes, sem dúvida, mas um tanto apáticos - não transmitem o amor intenso de suas personagens. Comparados com a fúria de Rod Steiger e Tom Courtenay (o último indicado ao Oscar de coadjuvante) eles empalidecem bastante, mas ainda assim conquistam a cumplicidade do espectador. Em todo caso, poderia ter sido pior, já que o produtor Carlo Ponti queria que sua esposa Sophia Loren interpretasse a protagonista (dá pra imaginar a voluptuosa Loren na pele da sentimental Lara?)

"Doutor Jivago" é um grande filme. Soa moderno ainda hoje, graças à direção de Lean, que mescla seu estilo clássico com a garra e o perfeccionismo costumeiros. Embala os corações mais sensíveis com sua história de amor e enche os olhos daqueles que apreciam um cinema-espetáculo com seu visual arrebatador. Boris Pasternak ganhou o Nobel de Literatura por seu trabalho. E David Lean o adaptou à altura. Um filme para ver e rever!

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...