segunda-feira

MÃE SÓ HÁ UMA

MÃE SÓ HÁ UMA (Mãe só há uma, 2016, Dezenove Som e Imagem, 82min) Direção e roteiro: Anna Muylaert. Fotografia: Barbara Alvarez. Montagem: Helio Villela. Música: Berna Ceppas. Figurino: Diogo Costa. Direção de arte: Thales Junqueira. Produção executiva: Maria Ionescu. Produção: Anna Muylaert, Sara Silveira. Elenco: Naomi Nero, Matheus Nachtergaele, Daniel Botelho, Dani Nefussi, Lais Dias, Luciana Paes, Helena Albergaria. Estreia: 12/02/16 (Festival de Berlim)

A história de um adolescente de 16 anos que descobre que não é filho legítimo da mãe que sempre o criou - e que, pior ainda, foi sequestrado na maternidade, assim como sua irmã caçula - seria um prato cheio para um cineasta convencional e pouco criativo. Não é difícil imaginar um roteiro centrado em lutas nos tribunais, cenas lacrimosas e todos aqueles clichês de famílias despedaçadas que fazem a festa dos fãs de telefilmes norte-americanos. Porém, Anna Muylaert não é uma cineasta convencional e pouco criativa: consagrada internacionalmente com "Que horas ela volta?" (2015), um filme emocional sem ser piegas e socialmente imprescindível sem ser panfletário, ela volta a surpreender com "Mãe só há uma", uma versão bastante inusitada da situação, levemente inspirada em fatos reais. Fugindo do óbvio sempre que possível e adicionando um elemento bastante complicador na trama, Muylaert se comprova como uma realizadora preocupada em ter uma assinatura própria - e mesmo que não chegue ao mesmo grande nível de seu filme anterior, entrega ao público uma obra no mínimo perturbadora em sua simplicidade estilística e complexidade dramática, apoiada em um ator estreante que ainda vai dar muito o que falar.

Sobrinho do ator Alexandre Nero, Naomi Nero ficou encarregado de dar vida ao protagonista, Pierre, um jovem em processo de descoberta da própria identidade que se vê no olho de um furacão quando descobre que a mulher que o criou desde o nascimento é na verdade uma criminosa, que o tirou de sua família verdadeira, mais rica e ainda traumatizada com seu desaparecimento. Além de lidar com tal situação - avassaladora para qualquer pessoa, especialmente em um período de transição tão conturbado quanto a adolescência - Pierre (ou Felipe, como sua família "verdadeira" o batizou ainda bebê) ainda guarda uma particularidade que pode chocar àqueles à sua volta: mesmo sem ser homossexual, gosta de vestir roupas femininas (mesmo quando está transando com mulheres) e não decidiu 100% qual sua preferência sexual. Tal característica, inserida no roteiro de forma inteligente e sem julgamentos, acaba por ser de vital importância para acrescentar uma provocativa e desafiadora camada a um conflito já bastante instigante, e nem sempre Nero consegue atingir todas as notas necessárias, ainda que se saia bastante bem na maior parte do tempo. Em uma interpretação contida, mais dada a silêncios do que a explosões, ele se aproveita de sua aparência ambígua para imprimir veracidade a um personagem difícil e repleto de nuances, e sob o comando de Muylaert, transforma Pierre/Felipe em alguém de carne e osso, não apenas uma criação fictícia. E esse mérito deve ser creditado à direção concisa e direta da cineasta.


Sem subterfúgios artificiais que possam tirar o foco do que lhe é mais importante - os personagens e seus conflitos internos e externos - o filme de Muylaert tem precisão cirúrgica quando se trata de investigar as emoções de Pierre e das pessoas à sua volta. Em menos de noventa minutos, ela vai fundo tanto na questão das dúvidas do protagonista em relação à sua sexualidade complicada quanto em seus dramas familiares. Sua profundidade, porém, não é facilmente identificável: ao invés de deter-se em infindáveis diálogos explicativos ou cenas desnecessariamente didáticas nas quais os personagens mais falam do que sentem, a cineasta acertadamente foca sua câmera para as expressões confusas, tensas e aflitivamente realistas de seus atores. Sem nenhum tipo de glamour, Muylaert simplesmente registra momentos de pessoas comuns passando por circunstâncias radicais - e se por diversas vezes dá a impressão de criar sequências desnecessárias (principalmente aquelas protagonizadas pelo menino Joaquim, irmão de sangue de Pierre/Felipe), ela mostra, em um final agridoce, que nada em seu roteiro é aleatório ou gratuito.

Nem mesmo a escolha de elenco de "Mãe só há uma" é gratuita: em uma inteligente brincadeira com o título, a diretora embaralha as cartas de seu filme e oferece à plateia a oportunidade de ver a mesma atriz em dois papeis diferentes. Tanto como a mãe biológica que reencontra o filho e tenta desesperadamente incluí-lo em sua vida - a despeito da perceptível falta de vontade do rapaz em fazer isso - quanto como a mãe de criação, uma sequestradora que não demonstra a menor culpa de seus atos, Dani Nefussi entrega uma atuação visceral, na tênue linha entre a emoção contida e a angústia mal-disfarçada. Quase irreconhecível em sua mudança de visual, é ela quem comanda, de certa forma, as mudanças mais radicais da narrativa, impulsionando a trama e catalisando boa parte das atitudes de seu rebento, inclusive e principalmente aquelas que vão desestruturar ainda mais o já abalado núcleo familiar - no qual se destaca, como sempre em performance impecável, o ator Matheus Nachtergaele. Nefussi representa as duas famílias de Pierre, duas vidas intimamente ligadas mas paradoxalmente distantes, e seu trabalho é o grande destaque do filme, que pode incomodar aos que procuram uma produção mais convencional mas que certamente vai agradar àquela parcela de espectadores que buscam mais do que simples diversão escapista. "Mãe só há uma" é mais uma prova da inquietude de sua diretora, uma das mais consistentes e sensíveis de sua geração. Vale a pena conferir e sentir-se desafiado.

domingo

PASSAGEIROS

PASSAGEIROS (Passengers, 2016, Columbia Pictures, 116min) Direção: Morten Tyldum. Roteiro: Jon Spaihts. Fotografia: Rodrigo Prieto. Montagem: Maryann Brandon. Música: Thomas Newman. Figurino: Jany Temime. Direção de arte/cenário: Guy Hendrix Dyas/Gene Serdena. Produção executiva: Greg Basser, Bruce Berman, Ben Browning, David B. Householter, Jon Spaihts, Lynwood Spinks, Ben Waisbren. Produção: Stephen Hamel, Michael Maher, Ori Marmur, Neal H. Moritz. Elenco: Chris Pratt, Jennifer Lawrence, Laurence Fishburne, Michael Sheen, Andy Garcia. Estreia: 14/12/16

2 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários

Quando um cineasta de fora de Hollywood consegue romper a barreira do bairrismo e chegar a uma indicação ao Oscar de melhor filme e direção, o que se espera que ele faça em seguida? Várias respostas seriam as corretas, mas o norueguês Morten Tyldum surpreendeu a todos optando pelo caminho menos provável: encarar uma ficção científica produzida por um grande estúdio e com um orçamento acima dos 100 milhões de dólares. Depois do contido e delicado "O jogo da imitação" - a história do matemático inglês que praticamente inventou o computador, abreviou a II Guerra Mundial em anos e foi condenado pelo governo por ser homossexual - Tyldum deixou a discrição de lado e abraçou sem medo o cinemão comercial com "Passageiros", realizado com todos os recursos de uma superprodução e dois atores em ascensão na liderança do elenco. Logicamente não obteve as mesmas críticas entusiasmadas de seu longa anterior, mas demonstrou um inesperado talento em lidar com as engrenagens de um gênero com regras próprias e bastante rígidas. Com um roteiro que equilibra com parcimônia ação, romance e suspense sem se preocupar com elocubrações metafísicas ou filosóficas, "Passageiros" cumpre o que promete, mesmo que jamais ouse.


Pensado inicialmente como um veículo para o ator Keanu Reeves - cuja companhia desenvolveu o projeto em seus primeiros estágios - "Passageiros" passou pelas mãos de vários nomes importantes de Hollywood antes de cair no colo de Tyldum, inclusive do criterioso David Fincher e do eclético Marc Forster. Depois da saída de Reeves - e consequentemente de sua cogitada colega de cena Rachel McAdams - a escolha de Chris Pratt, em alta depois do sucesso de "Guardiões da Galáxia" (2014) e "Jurassic World" (2015), pareceu uma escolha natural. Carismático e talentoso, Pratt conquista a plateia já em suas cenas iniciais, e sua simpatia consegue até mesmo fazer com que alguns de seus atos - bastante questionáveis - pareçam mais românticos do que realmente são. A seu lado, Jennifer Lawrence comprova que foi uma aposta certeira da indústria quando levou seu Oscar por "O lado bom da vida" (2012): bela, simpática e capaz de alcançar a nota certa em cada momento, ela ainda demonstra uma invejável química com seu parceiro de cena, transformando o que poderia ser mais uma experiência claustrofóbica e quase monótona em um agradável entretenimento, que agrada aos fãs do gênero sem afastar o espectador menos afeito a ele.


A história se passa na Starship Avalon, uma nave espacial que está levando 5.000 passageiros e mais duas centenas de tripulantes para uma das colônias da Terra, chamada Homestead Colony e que promete uma qualidade de vida muito superior à de seu planeta de origem. Atingida por uma chuva de asteroides, a nave sofre uma pane e acaba por despertar um dos viajantes, o engenheiro Jim Preston (Chris Pratt), que não demora a descobrir, para seu desespero, que ele acordou muito antes do esperado e que não há como chegar a seu destino final em menos de 90 anos. Tendo apenas o garçom androide Arthur (Michael Sheen) para conversar, ele leva um ano para chegar à conclusão de que a única maneira que tem de se relacionar com uma pessoa de verdade é acordando outro passageiro. Depois de examinar o perfil da escritora Aurora Lane (Jennifer Lawrence), ele acaba a escolhendo para ser sua parceira de desventura. A princípio acreditando que também despertou por acidente, ela ajuda o rapaz a procurar um modo de consertar a espaçonave e eles acabam se apaixonando. O despertar de um tripulante, Gus Mancuso (Laurence Fishburne) e a descoberta de que outros problemas ameaçam o sucesso da viagem - assim como a realidade sobre o despertar de Aurora (cujo nome é uma homenagem explícita à Bela Adormecida) - agitam ainda mais as coisas, obrigando a todos a forjar uma união para salvar suas vidas.

Ainda que o terço final carregue um pouco no exagero ao criar cenas de ação que justifiquem os gastos com efeitos especiais e o custo de 110 milhões de dólares, o roteiro de "Passageiros" tem uma vantagem em relação a alguns de seus congêneres: ao não se levar tão a sério como poderia, oferece ao público uma alternativa menos densa do que produções como "Gravidade" (2013), "Interestelar" (2014) e "A chegada" (2016), que se utilizaram dos elementos de ficção científica para discutir temas complexos e deixaram de lado, muitas vezes, a premissa básica do cinema de entretenimento: diversão. Sem intenção nenhuma a não ser levar a plateia a um passeio de duas horas em uma montanha-russa, Tyldum atinge plenamente seu objetivo, graças a um departamento técnico impecável - a direção de arte e a trilha sonora foram indicados ao Oscar - e a uma escalação certeira de elenco. Não muda a história da ficção científica e até pode ter alguns furos no roteiro, mas é praticamente impossível não se deixar envolver pela trama e por seu bom-humor contagiante. Uma ótima pedida.

sexta-feira

SILÊNCIO

SILÊNCIO (Silence, 2016, Cappa Defina Productions/CatchPlay, 161min) Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Jay Cocks, Martin Scorsese, romance de Shusaku Endô. Fotografia: Rodrigo Prieto. Montagem: Thelma Schoonmaker. Música: Kathryn Kluge, Kim Allen Kluge. Figurino: Dante Ferretti. Direção de arte/cenários: Dante Ferretti/Francesca LoSchiavo. Produção executiva: Brandt Andersen, Michael Barnes, Paul Breuls, Dale A. Brown, Manu Gargi, Wayne Marc Godfrey, Niels Juul, Nicholas Kazan, Matthew J. Malek, Gianni Nunnari, Chad A. Verdi, Michelle Verdi, Tyler Zacharia. Produção: Vittorio Cecchi Gori, Barbara de Fina, Randall Emmett, David Lee, Gaston Pavlovich, Martin Scorsese, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler. Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Ciàran Hinds, Tadanobu Asano, Issei Ogata. Estreia: 29/11/16 (Vaticano)

Indicado ao Oscar de Fotografia

Foi em 1988 que Martin Scorsese ganhou de presente de um padre de Nova York o romance "Silêncio", do escritor japonês Shusaku Endô, sobre dois jovens sacerdotes portugueses que partem para o Japão do século XVII em busca de seu mentor, que evidências apontam ter se tornado um apóstata - ou seja, renegado o cristianismo por medo de ser torturado e morto. Como um católico fervoroso que é, Scorsese ficou profundamente tocado com a história e pensou imediatamente em transformá-la em filme. No entanto, as reações raivosas a seu "A última tentação de Cristo", baseado no romance do grego Nikos Kazantzakis e também com alto teor de questionamento religioso, o levaram a deixar o projeto de lado. Demorou mais de uma década até que, ao lado do amigo Jay Cocks, retomasse a ideia de uma adaptação: de acordo com seus planos, "Silêncio" seria seu filme seguinte ao igualmente complicado (e igualmente projeto de estimação) "Gangues de Nova York" (2002). Mas as coisas, para variar, não correram conforme o esperado e, sem financiamento para uma produção cara e ambiciosa (além de potencialmente fadada a um fracasso comercial), Scorsese tratou de seguir a vida - e levar seu tão merecido Oscar, em 2007, por "Os infiltrados".

Quando finalmente conseguiu dinheiro suficiente para o início das filmagens, marcado para janeiro de 2015, porém, uma outra questão surgiu no caminho do diretor: a impossibilidade de contar com o elenco escalado na ocasião em que o projeto havia sido anunciado. Com a saída de Daniel Day-Lewis, Gael García Bernal e Benicio Del Toro, envolvidos em outros compromissos profissionais, Scorsese se viu obrigado a alterar a idade dos personagens e algumas de suas características para que melhor coubessem em suas novas escolhas. Assim, Day-Lewis foi substituído por Liam Neeson - invertendo a troca de papéis ocorrida em "Lincoln" (2012), de Steven Spielberg - e Gael García Bernal pelo promissor Andrew Garfield. No lugar de Benicio Del Toro - a mudança mais significativa em termos dramáticos - o escolhido foi Adam Driver, que, apesar da participação em "Star Wars: o despertar da força" (2015), dificilmente pode ser considerado um chamariz de bilheteria. Com um elenco talentoso e 40 milhões de dólares nas mãos, Scorsese viajou para Taiwan - maquiada como o Japão do século XVII pela direção de arte caprichada de Dante Ferretti e pela fotografia impressionante de Rodrigo Prieto - e deu início a 73 exaustivos dias de filmagens que finalmente proporcionaram ao diretor a chance de traduzir em imagens as palavras do escritor japonês. Infelizmente, porém, nem tudo mundo se entusiasmou com o resultado final de tanto esforço. Apesar de muitas críticas favoráveis, o filme acabou se tornando uma decepção tanto nas bilheterias (o que era relativamente esperado) quanto nas cerimônias de premiação (onde foi solenemente ignorado, salvo uma indicação ao Oscar de melhor fotografia).


Sem medo de chocar a audiência com sequências bastante explícitas - mas nunca apelativas - de tortura e violência cometidas contra aqueles que tentavam difundir o cristianismo no Japão do século XVII, Scorsese convida o espectador a uma narrativa de ritmo quase contemplativo, que contrasta vivamente com a constante tensão em que vivem os protagonistas, sempre a um passo de mergulharem em um pesadelo de intolerância e crueldade. As poderosas imagens de Rodrigo Prieto - sempre envoltas em brumas e luzes de velas - enfatizam com inteligência o turbilhão emocional de seus personagens, atormentados não apenas pelos perigos que enfrentam dia-a-dia, mas também por suas próprias consciências. A atuação extraordinária de Andrew Garfield - que no mesmo ano foi indicado ao Oscar de melhor ator por outro poderoso desempenho, em "Até o último homem", dirigido por Mel Gibson - encontra apoio no roteiro corajoso de Scorsese e Jay Cocks, que não hesita em intercalar longos diálogos teológicos com sequências inteiras dotadas de um significativo silêncio. A edição suave de Thelma Schoonmaker rompe radicalmente com sua tradição de agilidade e nervosismo, entregando ao público uma narrativa linear e delicada que equilibra a força da história com a suavidade de seus protagonistas, lutando por um ideal de paz e tolerância em um mundo pouco disposto a lhes dar ouvidos. Scorsese passeia com sua câmera por um Japão medieval povoado por pessoas com medo de suas crenças e buscando apoio espiritual diante das atrocidades cometidas em nome de Deus, mas nunca deixa de dar espaço a questionamentos, evitando apontar heróis ou vilões - ainda que, logicamente, o ponto de vista cristão sobreponha-se a qualquer outro no decorrer da trama. Dono de uma fé inabalável mas jamais fechado a discussões a respeito de sua religião, Scorsese mais uma vez levanta questionamentos relevantes na tela de cinema - mas, mais uma vez, parece pregar no deserto.

O fracasso de bilheteria de "Silêncio" não diz respeito à sua qualidade como cinema - Scorsese dá mostras, mais uma vez, do brilhante artista que é em diversos momentos da projeção - mas sim a seu tema. Controvérsia nunca foi algo estranho ao diretor nova-iorquino, que não tem medo de arriscar seu prestígio em projetos potencialmente inflamáveis, mas falar de intolerância religiosa em uma época em que o terrorismo parece uma ameaça indissolúvel apenas afastou ainda mais as plateias que lotam as salas atrás de escapismo. Seu filme é violento - não ao estilo "Os mercenários", mas dotado de uma violência real e sufocante - e inteligente demais para o público médio, mal-acostumado e fútil. Não é uma obra-prima, se estande em demais e por vezes parece um tanto redundante. Mas é visceral, sensível e de extrema relevância, além de apresentar algumas cenas plasticamente deslumbrantes e atuações intensas e apaixonadas - e um final devastador. O tempo fará justiça à "Silêncio", mais um grande filme a figurar no currículo impecável de Martin Scorsese.

quinta-feira

ANIMAIS NOTURNOS

ANIMAIS NOTURNOS (Nocturnal animals, 2016, Focus Features, 116min) Direção: Tom Ford. Roteiro: Tom Ford, romance "Tony & Susan", de Austin Wright. Fotografia: Seamus McGarvey. Montagem: Joan Sobel. Música: Abel Korzeniowski. Figurino: Ariane Phillips. Direção de arte/cenários: Shane Valentino/Meg Everist. Produção: Tom Ford, Robert Salerno. Elenco: Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Armie Hammer, Laura Linney, Isla Fisher, Michael Sheen, Ellie Bamber,  Karl Glusman, Robert Aramayo, Jena Malone. Estreia: 02/9/16 (Festival de Veneza)

Indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante (Michael Shannon)

Os créditos de abertura de "Animais noturnos" - estranhos, desconfortáveis, quase agressivos ao olhar - já preparam o espectador para o que virá nas próximas duas horas: em seu segundo filme como cineasta, o estilista Tom Ford não brinca em serviço e apresenta ao público um dos mais claustrofóbicos estudos sobre a culpa e o desespero produzidos por Hollywood nos últimos anos. Não quer dizer que seja completamente bem-sucedido em tudo que ambiciona dizer, mas é preciso reconhecer sua coragem em nadar contra a corrente do cinemão médio americano e realizar uma obra tão perturbadora e ao mesmo tempo tão visualmente atraente. Baseado no romance "Tony & Susan", de Austin Wright, Ford forjou um exercício de estilo que equilibra lampejos de brilhantismo com um ritmo claudicante que quase põe tudo a perder. Calorosamente aclamado no Festival de Veneza - onde teve seus direitos de distribuição comprados pelo valor recorde de 10 milhões de dólares - e indicado a surpreendentes oito estatuetas no BAFTA (o Oscar britânico), "Animais noturnos" não é nem a obra-prima que muitos aplaudem nem a fraude que outros tantos denunciam: é um filme acima da média, mas com sérios defeitos que o impedem de atingir a todas as notas a que se propõe.

Alternando liberdade criativa e fidelidade à sua fonte original, Tom Ford repete a estrutura do livro de Wright ao mesmo tempo em que acrescenta outras nuances a uma trama já naturalmente densa e repleta de simbolismos: a protagonista é Susan Morrow (Amy Adams em mais uma interpretação extraordinária), dona de uma galeria de arte sofisticada e bem frequentada. Casada com um executivo bonito e igualmente bem-sucedido (Armie Hammer), ela não consegue deixar de lado uma constante solidão, que se agrava com as viagens do marido e a distância dos filhos. Em uma dessas crises de melancolia, ela recebe o manuscrito de um livro escrito por Tony Hastings (Jake Gyllenhaal), com quem foi casada anos antes, em uma relação que acabou de forma bastante traumática. Junto com o livro, chega uma nota, onde Tony pede à ex-mulher que o leia e dê sua opinião. Temerosa com as possíveis intenções de Tony - que saiu do relacionamento extremamente magoado e ofendido - ela inicia a leitura e se vê envolvida em uma história repleta de uma inesperada violência.


No livro de Tony, chamado "Animais noturnos", o protagonista é Edward Sheffield (também interpretado por Gyllenhaal), um homem comum que, em viagem de férias com a mulher e a filha adolescente, é abordado na estrada por três desconhecidos que transformam sua vida em um pesadelo. Tendo a família sequestrada e depois morta, Edward se une a um policial da pequena cidade onde ocorreu o crime, Bobby Andes (Michael Shannon, indicado ao Oscar de ator coadjuvante) - também passando por um grave problema pessoal - para buscar justiça pelas próprias mãos. Seu silencioso desespero encontra eco em Susan, que começa a perceber nas entrelinhas do romance uma sórdida e sutil vingança do homem a quem amava contra alguns dos acontecimentos que aceleraram sua separação. Conforme o livro vai chegando ao seu final - e seu reencontro com Tony se aproxima - a mulher segura e confiante vai dando lugar a uma outra, triste e consumida por uma série de arrependimentos.

Como todo artista consciente da força das imagens, Tom Ford faz de seus "Animais noturnos" um show visual, graças à belíssima fotografia de Seamus McGarvey e a direção de arte sofisticada de Shane Valentino. Mas, mais do que simplesmente enfeitar a tela com uma cuidadosa seleção de cores e contrastes, ele as utiliza como ferramentas para enfatizar ideias e pensamentos, o que é, sem dúvida, um dos maiores méritos de seu filme. Ao contrário de muitas obras que soam redundantes por não confiar na potência dos enquadramentos e da edição, "Animais noturnos" usa e abusa de silêncios e de pequenos detalhes que vão compondo o quadro geral proposto pelo roteiro. Conforme vai iluminando a história entre Susan e Edward - e de como ela é a base para o livro dele - o cineasta vai também empurrando o público rumo à uma conclusão que, longe de ser facilmente digerida, é igualmente brutal e desconcertante - o que seria impossível sem o elenco impecável escolhido a dedo. Se Aaron Taylor-Johnson (como um dos criminosos) saiu vencedor do Golden Globe e Michael Shannon recebeu uma indicação ao Oscar, eles são apenas peões em um jogo de xadrez comandado por dois atores em momentos brilhantes da carreira: Jake Gyllenhaal e Amy Adams.

Em um espetacular trabalho de interpretação, tanto Adams quanto Gyllenhaal encaram o desafio de trazer à luz dois personagens complexos, ricos em nuances e psicologicamente ambíguos de forma irretocável: enquanto Adams (injustamente esquecida pelo Oscar também por seu trabalho arrebatador em "A chegada") cria duas Susans distintas - um passado romântico e sonhador e um presente carente e solitário - com uma coerência impressionante, Gyllenhaal explora com meticulosidade um jovem repleto de sonhos profissionais pouco práticos e um personagem criado na sua imaginação, bem mais propenso a explicitar sua revolta através da violência. O uso constante de metáforas e símbolos pode até excessivo em determinados momentos, mas a garra do casal central de atores e a maneira sutil com que conduzem seus personagens praticamente anula os pecados do filme de Ford. Corajoso, inteligente e dono de uma personalidade rara no cinemão, "Animais noturnos" também é exagerado, pretensioso e de uma crueldade poética. Incoerências que fazem dele, no mínimo, um filme muito interessante mesmo àqueles que não concordem com seu estilo único.

quarta-feira

LOVING

LOVING (Loving, 2016, Raindog Films/Big Beach Films, 123min) Direção e roteiro: Jeff Nichols. Fotografia: Adam Stone. Montagem: Julie Monroe. Música: David Wingo. Figurino: Erin Benach. Direção de arte/cenários: Chad Keith/Adam Willis. Produção executiva: Jared Ian Goldman, Brian Kavanaugh-Jones, Jack Turner. Produção: Nancy Buirski, Ged Doherty, Colin Firth, Sarah Green, Peter Saraf. Elenco: Joel Edgerton, Ruth Negga, Will Dalton, Alano Miller, Chris Greene, David Jensen, Nick Kroll, Matt Malloy, Michael Shannon. Estreia: 16/5/16 (Festival de Cannes)

Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Ruth Negga)

Vai entender a Academia: no mesmo ano em que colocou na seleta lista dos indicados a melhor filme o formulaico "Estrelas além do tempo", praticamente ignorou o poderoso "Loving", também uma história real sobre preconceito racial e infinitamente mais tocante e corajoso em suas denúncias. Inspirado em documentário de 2011 chamado "The Loving Story" - dirigido por Nancy Buirski - e ovacionado de pé no Festival de Cannes de 2016, o filme de Jeff Nichols arrebatou uma solitária indicação ao Oscar (melhor atriz), o que não reflete sua qualidade e delicadeza. Conduzido com seriedade e respeito pelo cineasta, cujo currículo inclui os independentes "O abrigo" (2011) e "Amor bandido" (2012), a história de amor e sofrimento de um casal cujo único crime foi se amar e construir uma família emociona sem escorregar no dramalhão, contando apenas com as devastadoras atuações de seu par central de atores, Joel Edgerton e Ruth Negga, para conquistar a plateia.

A história começa em 1958, quando o pedreiro Richard Loving (Joel Edgerton em desempenho indicado ao Golden Globe e injustamente ignorado pelo Oscar) e sua namorada grávida, Mildred (Ruth Negga) saem de sua pequena cidade da Virginia para oficializarem sua relação em Washington. A alegação do rapaz é que na capital do país a burocracia é menor, mas a verdade é que em 24 estados americanos, o casamento interracial ainda era considerado crime - inclusive em sua região. Mesmo tentando esconder seu novo estado civil por medo de represálias, o casal é descoberto através de uma denúncia, e depois de passar dias na cadeia sem direito à fiança que libertou seu marido logo após a prisão, Mildred é condenada a um ano de prisão - pena que pode ser suspensa se ela concordar em ficar longe do estado por um mínimo de 25 anos. Acuado, o casal decide viver em Washington para evitar a pena, mas, acostumado a conviver em uma zona rural, sofre para adaptar-se a um novo estilo de vida. É somente anos mais tarde - e depois de um acidente com um dos seus três filhos - que Mildred resolve desafiar a lei e voltar para casa. Os anos 60 já estão sendo marcados pela luta pelos direitos civis, e ela conta com a ajuda do advogado Bernie Cohen (Nick Kroll) para ir até a Suprema Corte e garantir a igualdade prevista na Constituição.


O tom impresso por Jeff Nichols em seu filme é de sobriedade e discrição, um quase sussurro que reflete com exatidão a serenidade com que os protagonistas enfrentam seus dissabores. Apostando bem mais no silêncio do que em diálogos exaltados, o roteiro do próprio diretor encontra sustentação no trabalho fabuloso de seus atores. Vivendo personagens com dificuldade de expressar através de palavras todo o turbilhão que se passa em seu interior, tanto Joel Edgerton quanto Ruth Negga dão aulas de sutileza e expressão corporal a cada cena. Ele - no melhor trabalho de sua carreira - transmite toda a dor e impotência de seu Richard através de seu olhar triste e frustrado, que se transforma em fonte de coragem e carinho sempre que está ao lado da esposa. Ela, indicada ao Oscar com justiça, constrói uma Mildred Loving minuciosamente, utilizando o corpo e a voz para dar vida a uma mulher cuja coragem afrontou o preconceito da sociedade escorada unicamente no amor que sentia pelo marido e na certeza de que estava lutando por seus direitos. É interessante como Nichols respeita a personalidade dos dois protagonistas, não cobrindo-os de laivos heroicos ou tratando-os como pessoas maiores que a vida: o casal Loving era formado por um homem e uma mulher normais, com baixo grau de instrução e de uma classe social que lhes proporcionava apenas o essencial, mas lutou com unhas e dentes por seu amor e sua liberdade. Esse heroísmo é o que interessa ao cineasta, um heroísmo cotidiano que se torna, graças a seu olhar generoso, material de um filme essencial.

Filmado e editado de forma convencional, "Loving" é um filme que se torna grandioso não por sua linguagem, mas por seu tema e seus personagens. Confiando totalmente na história que tinha em mãos e em sua dupla de atores centrais - e sendo muito bem recompensado por isso - Jeff Nichols oferece à plateia um filme simples, mas jamais simplório, a respeito de um assunto que nunca se tornará ultrapassado, especialmente em tempos sombrios como os atuais, em que a sombra do fascismo e da xenofobia se debruçam sobre parte do Ocidente. A inspiradora história do casal Loving deu origem a um dos mais importantes filmes da temporada 2016, valorizado pela dedicação de seu elenco e pela delicadeza de retratar sem pieguices ou lições de moral um dos mais importantes capítulos da história dos Direitos Civis nos EUA. Bravo!

terça-feira

ESTRELAS ALÉM DO TEMPO

ESTRELAS ALÉM DO TEMPO (Hidden figures, 2016, Fox 2000 Pictures, 127min) Direção: Theodore Melfi. Roteiro: Allison Schroeder, Theodore Melfi, livro de Margot Lee Shetterly. Fotografia: Mandy Walker. Montagem: Peter Teschner. Música: Benjamin Wallfisch, Pharrell Williams, Hans Zimmer. Figurino: Renee Ehrlich Kalfus. Direção de arte/cenários: Wynn Thomas/Missy Parker. Produção executiva: Jamal Daniel, Kevin Halloran, Ivana Lombardi, Margot Lee Shetterley, Mimi Valdes, Renee Witt. Produção: Peter Chernin, Donna Gigliotti, Theodore Melfi, Jeno Topping, Pharrell Williams. Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monáe, Kevin Costner, Kirsten Dunst, Mahershala Ali, Jim Parsons. Estreia: 25/12/16

3 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer), Roteiro Adaptado

Depois de uma polêmica bastante justa em relação à ausência de artistas negros entre os indicados ao Oscar 2016, parece que a Academia de Hollywood finalmente abriu os olhos em relação à diversidade de sua indústria: em 2017, escolheu três filmes com temática racial para fazer parte de sua seleta lista de indicados ao prêmio principal. Um deles, "Moonlight: sob a luz do luar", merece todos os elogios e a estatueta que acabou com os planos de "La La Land: cantando estações". Outro, "Um limite entre nós", dirigido e estrelado por Denzel Washington - talvez o maior ator negro em atividade - é uma adaptação fiel, e portanto um bocado limitada, de uma peça teatral, mas tem ele e Viola Davis no elenco, o que sempre vale o espetáculo. No entanto, é difícil achar que "Estrelas além do tempo" não foi selecionado apenas por seu tema. Repleto de clichês, dirigido sem inspiração e com sérios problemas de foco, o filme de Theodore Melfi chegou a ganhar o prêmio máximo do Sindicato de Atores (melhor elenco), mas se ressente justamente de não dar a esse mesmo elenco um material menos previsível e piegas.

Assim como aconteceu com "Histórias cruzadas" (2011), de Tate Taylor, "Estrelas além do tempo" fez enorme sucesso de bilheteria, chegou a finalista do Oscar e tem Octavia Spencer entre seus ótimos atores (ela ganhou a estatueta de coadjuvante pelo filme de Taylor e repetiu a indicação aqui). Mas, também como "Histórias cruzadas" apela para um popularismo que, se agrada em cheio ao público médio, o distancia de ser um grande filme. Com uma história fascinante em mãos, e personagens ricas para explorar, o roteiro prefere optar pelo caminho mais fácil, minando ao máximo todas as poderosas nuances que sua história de superação e força poderia ter. No final das contas, entrega um filme correto, sem arestas e de óbvia relevância política e social, mas perde a chance de ser inesquecível como cinema. Com uma narrativa clássica - quase preguiçosa - Melfi parece não acreditar na potência da imagem, reiterando constantemente o que é dito e repetido, como a insistência em mostrar as placas de "COLORED" (negros) toda vez que precisa sublinhar ainda mais os fatos de racismo que ocorrem na trama. Essa aparente falta de confiança na inteligência do público, porém, é o que menos incomoda: o pior é a nítida sensação de que o roteiro não sabe exatamente qual a história que pretende contar.


Se não, vejamos: a trama se passa em 1961, quando os EUA e a União Soviética disputavam a primazia na corrida espacial. Suas protagonistas são três amigas, negras, que, apesar da brilhante inteligência, são consideradas peças menos importantes do jogo. Todas trabalham na NASA, mas são separadas de todos os colegas brancos e seu local de trabalho é uma sala especial - assim como o banheiro que são autorizadas a usar e o café que podem tomar. Quando uma delas, Katherine Goble (Taraji P. Henson, a melhor em cena) é chamada para trabalhar na equipe liderada por Al Harrison (Kevin Costner), ela acredita que seu talento para geometria analítica finalmente será reconhecido por seus semelhantes, mas, apesar da atenção de Harrison, percebe que continua sendo tratada como alguém inferior somente por sua raça. Enquanto isso, Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) luta para convencer sua chefe, Vivian Mitchell (Kirsten Dunst), a lhe promover a supervisora das demais computadoras, já que falta-lhe apenas o status e o salário para tal, uma vez que faz todo o trabalho referente ao cargo - obviamente, suas ambições são tratadas com quase desprezo. E por fim, Mary Jackson (a cantora Janelle Monáe, começando bem a carreira), encorajada por sua inteligência e por sua coragem, resolve tornar-se a primeira negra a cursar a Faculdade de Engenharia, entrando na Justiça para garantir seus direitos.

É uma história encorajadora, inspiradora e emocionante, especialmente quando contextualizada - tanto no início dos anos 60, quando a tensão racial era ainda mais explícita na sociedade americana, quanto nos dias de hoje, com a onda de conservadorismo e fascismo ameaçando cada vez mais. Porém, "Estrelas além do tempo" perde o foco diversas vezes em sua narrativa, desviando a atenção de suas protagonistas para sequências desnecessariamente longas sobre problemas da NASA - que combinam com filmes como "Apollo 13" (95), mas que soam completamente deslocadas aqui - ou questões domésticas que diluem a força da mensagem. Dando a impressão de não confiar totalmente na empatia inerente de suas protagonistas, o roteiro faz questão de sublinhar cada momento de maior tensão racial que surge na trama, mas jamais se aprofunda na discussão, mantendo-se sempre na superficialidade que mais apetece à plateia média. Mais uma vez se assemelha com "Histórias cruzadas", um filme sobre negros feito para agradar ao público branco. "Estrelas além do tempo" se ressente de uma contundência maior, de um engajamento maior e menos óbvio. É um passatempo digno graças a seu excelente elenco e a suas protagonistas brilhantes, mas está longe de ser tão bom quanto muitos fizeram acreditar.

segunda-feira

A QUALQUER CUSTO

A QUALQUER CUSTO (Hell or high water, 2016, Film 44/OddLot Entertainment/Sidney Kimmel Entertainment, 102min) Direção: David Mackenzie. Roteiro: Taylor Sheridan. Fotografia: Giles Nuttgens. Montagem: Jake Roberts. Música: Nick Cave, Warren Ellis. Figurino: Malgosia Turzanska. Direção de arte/cenários: Tom Duffield/Wilhelm Pfau. Produção executiva: Braden Aftergood, Bill Lischak, Michael Nathanson, John Penotti, Gigi Pritzker, Rachel Shane, Bruce Toll. Produção: Peter Berg, Carla Hacken, Sidney Kimmel, Julie Yorn. Elenco: Chris Pine, Ben Foster, Jeff Bridges. Estreia: 16/5/16 (Festival de Cannes)

4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator Coadjuvante (Jeff Bridges), Roteiro Original, Montagem

Quando "A qualquer custo" estreou, na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2016, foi impossível não perceber a influência do cinema dos irmãos Coen - mais especificamente de "Onde os fracos não tem vez" (2007) - na narrativa proposta pelo roteirista Taylor Sheridan e pelo diretor David Mackenzie. Longe de ser um ponto negativo no filme, a homenagem (talvez involuntária, talvez proposital) acaba por ser um trunfo a mais em uma produção barata (custou 12 milhões de dólares, menos do que o salário dos grandes astros de Hollywood) que foi conquistando o público aos poucos e que, com a ajuda da crítica especializada, terminou a temporada disputando o Oscar em quatro categorias, incluindo melhor filme e ator coadjuvante (Jeff Bridges totalmente à vontade). Bem-humorado, ágil e emocionante na medida certa, é um bem azeitado misto de western moderno e comédia dramática que ainda encontra tempo para uma contundente crítica ao sistema financeiro norte-americano, cada vez mais dominado pelas instituições bancárias.

Os protagonistas da trama são dois irmãos de temperamentos opostos: o mais velho, Tanner (Ben Foster), é impulsivo, irresponsável e acaba de sair da prisão; o mais novo, Toby (Chris Pine), amarga uma separação traumática, o afastamento dos filhos e um período de sofrimento enquanto cuidava da mãe doente. Para pagar as dívidas da fazenda herdada e apaziguar os ânimos da ex-mulher, Toby aceita fazer parte do plano de seu irmão e assaltar uma série de bancos do interior do Texas. No meio do caminho, eles passam a ser caçados pelo dedicado Marcus Hamilton (Jeff Bridges), que, ao lado do parceiro indígena, Alberto Parker (Gil Birmingham), embarca em uma incansável busca pelo paradeiro dos dois jovens, que aproveitam sua odisseia pessoal para reafirmarem seus laços familiares, prejudicados pelo longo processo de doença de sua mãe e pela prisão de Tanner.


O roteiro de Taylor Sheridan é um primor de concisão e objetividade, que não apela para tramas paralelas desnecessárias nem tampouco cria coadjuvantes supérfluos: tudo que apresenta desde seu primeiro minuto é crucial para o desenvolvimento da história que se propõe a narrar, inclusive os personagens que cruzam o caminho dos protagonistas (um tom quase surreal que também lembra muito o estilo dos irmãos Coen). Indicado ao Oscar em sua categoria, Sheridan mistura elementos de faroeste moderno com visual e ritmo de road movie, apoiando-se basicamente no talento de seus atores para conquistar a plateia. Para sua sorte, a direção de David Mackenzie acerta o tom com extrema habilidade, entregando a responsabilidade a um elenco nitidamente confortável em seus papéis. Se Jeff Bridges brinca como nunca na pele do policial no encalço dos irmãos assaltantes - seus diálogos com o parceiro são sensacionais - e Ben Foster comprova sua capacidade ilimitada de entregar-se de corpo e alma a seus trabalhos, é Chris Pine quem mais surpreende, inundando de humanidade e sensibilidade um personagem que é, talvez, o mais importante de sua carreira, normalmente focada em produções mais comerciais e menos independentes. É seu personagem o elo do filme com o público, e o ator consegue transmitir toda as nuances exigidas sem apelar para excessos. Um grande acerto.

Sem evitar a violência necessária - mas cuidando para que ela não seja o ponto crucial do filme - Mackenzie constrói o suspense de "A qualquer preço" através dos atos de seus personagens, todos plenamente cientes das consequências de suas ações. Mesmo que talvez seja previsível que algo trágico vá acontecer no final do caminho (afinal trata-se de um conto sobre trangressões morais e legais como forma de remediar injustiças, o que nunca acaba em final totalmente feliz), o roteiro toma o cuidado de não ser óbvio ou explícito demais, passando sua mensagem de maneira direta e clara, sem subestimar a inteligência da plateia ou saturá-la com discursos panfletários. É um filme que entrega à audiência exatamente aquilo que promete - e até um pouco mais, se for levado em consideração o alto grau de qualidade de seu elenco, muito acima do chamado do dever. Um dos grandes filmes da temporada 2016, mesmo que em formato discreto e despretensioso.

domingo

ALIADOS

ALIADOS (Allied, 2016, Paramount Pictures, 127min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Steven Knight. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Mick Audsley, Jeremiah O'Driscoll. Música: Alan Silvestri. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Gary Freeman/Raffaella Giovanetti. Produção executiva: Steven Knight, Jacqueline Levine, Patrick McCormick, Denis O'Sullivan, Jack Rapke. Produção: Graham King, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Brad Pitt, Marion Cottilard, Matthew Goode, Jared Harris. Estreia: 13/11/16

Indicado ao Oscar de Figurino

Talvez tenha sido a expectativa gerada em torno da união de três grandes nomes de Hollywood no projeto. Talvez tenha sido o excesso de boatos a respeito dos bastidores, que insistiam em um rumoroso caso extraconjugal entre os atores principais. Ou talvez tenha sido a estratégia de lançamento justamente na época do ano em que chegam aos cinemas os filmes que irão disputar as principais indicações ao Oscar. O fato é que "Aliados", uma caprichada produção de época, passada durante a II Guerra Mundial, que mistura ação, suspense e romance em doses homeopáticas, dirigida por Robert Zemeckis e estrelada por Brad Pitt e Marion Cottilard naufragou nas bilheterias americanas: com um custo estimado em 85 milhões de dólares, rendeu pouco mais de 40 milhões no mercado doméstico (EUA e Canadá) e nem mesmo chegou a ser lembrado pela Academia, arrebatando uma solitária indicação ao Oscar de melhor figurino. Porém, seu relativo fracasso de bilheteria (a renda internacional ajudou a chegar aos 100 milhões de faturamento) não reflete as qualidades do filme, que, mesmo estando aquém do talento dos envolvidos, é um thriller romântico acima da média, que peca apenas por não apresentar nenhuma novidade ao gênero ou surpreender o espectador.

Assim como o clássico dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em 1942, "Aliados" começa sua trama em Casablanca, no Marrocos. É lá que o Comandante Max Vatan, integrante da resistência canadense na II Guerra Mundial, chega para cumprir uma missão imposta por seus superiores: encontrar a francesa Marianne Beauséjour e, junto com ela, assassinar o embaixador alemão no país. Para isso, eles precisam fingir ser casados, e não demora para que, solteiros e atraentes, eles acabem por se apaixonar de verdade depois da convivência forçada. Logo após o sucesso de sua missão, eles se casam e, resolvidos a formar uma família, vão morar na Inglaterra, onde passam a viver uma vida tranquila ao lado da filha pequena. Tal paz se mostra frágil, no entanto, quando Max é informado que sua mulher é, na verdade, uma espiã nazista que matou a verdadeira Marianne e assumiu sua identidade. Sem acreditar na verdade - mas abalado a ponto da dúvida - ele passa a investigar o passado da mulher que ama, na tentativa de provar sua inocência. No caminho, ele encontra como principal fonte de informações um antigo companheiro de Marianne, Guy Sangster (Matthew Goode), que vive preso a uma cadeira de rodas com o rosto desfigurado.


Com uma ambientação sofisticada e um cuidado extremo no visual - cortesia da fotografia climática de Don Burgess, habitual parceiro de Zemeckis - "Aliados" ganha muitos pontos por sua semelhança com os grandes clássicos produzidos em Hollywood nas décadas de 30 e 40. Amparado por um tom que dialoga diretamente com grandes filmes do passado, o roteiro de Steven Knight - indicado ao Oscar pelo script de "Coisas belas e sujas" (2003) - acerta quando direciona seu foco para as investigações de Vatan e as intrigas relacionadas à guerra, mas falha em seu ponto crucial: o relacionamento entre o casal de protagonistas. Apesar das fofocas que insistiam em colocar Marion Cottilard como pivô da separação de Brad Pitt e Angelina Jolie, sua química com o colega de cena nunca chega a esquentar a tela com cenas mais intensas (sejam elas de sexo ou de romance puro e simples). Essa falta de combustão acaba por ser um defeito mortal para as intenções do filme: sem acreditar totalmente no amor de Max por Marianne, como acreditar em tudo que ele faz para provar sua inocência?

Justiça seja feita: "Aliados" não é um filme ruim. É plasticamente impecável, dirigido com precisão e com uma dupla de atores extremamente talentosos - e da qual sobressai-se a impressionante naturalidade de Marion Cottilard em interpretar absolutamente qualquer papel. O problema é, definitivamente, a total falta de surpresas do roteiro. Até mesmo a reviravolta final soa deslocada e sem muito sentido, como se estivesse sendo tirada da cartola para caber na receita para um filme de sucesso. Os fãs do casal central não terão do que reclamar, mas não deixa de ser um tanto decepcionante ver tantos bons elementos misturados de forma tão mecânica e sem inspiração. Vale como passatempo, mas jamais será um filme inesquecível.

sábado

É APENAS O FIM DO MUNDO

É APENAS O FIM DO MUNDO (Juste la fin du monde, 2016, Sons of Manual/MK2 Productions/Téléfilm Canada, 97min) Direção: Xavier Dolan. Roteiro: Xavier Dolan, peça teatral de Jean-Luc Lagarce. Fotografia: André Turpin. Montagem: Xavier Dolan. Música: Gabriel Yared. Direção de arte/cenários: Colombe Raby/Pascale Deschênes. Produção executiva: Patrick Roy. Produção: Sylvain Corbeil, Xavier Dolan, Nancy Grant, Elisha Karmitz, Nathanael Karmitz, Michel Merkt. Elenco: Gaspard Ulliel, Marion Cotillard, Vincent Cassel, Léa Seydoux, Nathalie Baye. Estreia: 19/5/16 (Festival de Cannes)

Um perfeito exemplo de que nem mesmo a crítica é capaz de chegar a um consenso quando se trata de arte é o filme "É apenas o fim do mundo", sexto longa-metragem do jovem canadense Xavier Dolan: vaiado pela imprensa na ocasião de sua estreia no Festival de Cannes de 2016, o filme acabou saindo da Riviera Francesa com o Grande Prêmio do Júri Oficial e o Prêmio do Júri Ecumênico, além de ter ficado entre os nove pré-finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano. Sucesso de bilheteria na França, onde arrastou mais de 1 milhão de pessoas às salas de cinema, a adaptação da peça teatral de Jean-Luc Lagarce é, talvez, o mais maduro filme do diretor, que mantém nele suas características mais importantes mas consegue, ao mesmo tempo, administrar sua tendência ao excesso e entregar à plateia uma obra dramaticamente consistente e visualmente atraente, com um equilíbrio excepcional entre as linguagens do teatro e do cinema e um elenco excepcional.

Encontrando no texto de Lagarce - inspirado em suas próprias vivências familiares - uma matéria-prima que vai ao encontro de sua coerente filmografia até o momento, Xavier Dolan constrói uma atmosfera claustrofóbica e melancólica que, como qualquer bom teatro, vai se avolumando gradativamente até a explosão final, catártica e emocional. Ao contrário de seus filmes anteriores, onde os conflitos eram sempre resolvidos no grito - do início ao fim da projeção - em "É apenas o fim do mundo" os dramas são tratados de forma discreta, sutil, em fogo brando, dando apenas pequenas mostras do turbilhão que se passa nos corações e nas mentes de seus personagens, todos com uma saudável cota de problemas e angústias. Utilizando com inteligência a linguagem cinematográfica, ele faz uso exemplar dos silêncios reveladores e da edição minimalista, que revelam com parcimônia o clima de desespero e nostalgia que acompanha a visita do protagonista à casa dos pais, doze anos depois de sua deserção. Vivido com brilhante suavidade por Gaspard Ulliel (que foi o herói romântico de "Eterno amor" (04), de Jean-Pierre Jeunet), o escritor Louis Knipper é mais um alter-ego do cineasta, mas concebido com mais nuances e menos agressividade - uma docilidade que contrasta com a violência de seus dramas pessoais.


Afastado da família há mais de uma década, Louis resolve fazer uma inesperada visita à cidade natal, com o objetivo declarado já em sua primeira fala, de "anunciar a sua morte". Assim que chega em casa, porém, o rapaz já se vê diante da dificuldade de expressar seus sentimentos, uma vez que todos parecem munidos de uma extrema incapacidade de empatia. Sua excêntrica mãe (Nathalie Baye) preocupa-se exclusivamente com o cardápio da ocasião, falando sem parar para disfarçar seu desconforto. Sua irmã caçula, Suzanne (Léa Seydoux) - com quem teve pouco contato - é uma jovem rebelde e hostil, que vê nele uma possibilidade de abandonar um lar opressivo e tedioso. Seu irmão mais velho, Antoine (Vincent Cassel), é bruto, amargo e pouco afeito a demonstrações de carinho - nem mesmo com a bela e fragilizada esposa, Catherine (Marion Cottilard). Sintomaticamente, é com ela, a única pessoa sem laços de sangue, que surge o maior entendimento: não é preciso palavras para que a frequentemente oprimida Catherine descubra o motivo da visita de Louis, que aos poucos passa a questionar a decisão de informar à família seu estado de saúde.

Com uma trilha sonora escolhida a dedo - desde a abertura com "Home is where it hurts", da cantora Camille, até os créditos finais ao som de "Natural blues", de Moby - Dolan pontua sua narrativa com imagens poderosas (um de seus pontos fortes) para ilustrar as muitas vezes dolorosas palavras escritas por Jean-Luc Lagarce, que encontram nos atores escolhidos pelo diretor seus intérpretes ideais. Gaspard Ulliel nunca esteve tão bem, transmitindo a dor de seu personagem mesmo sendo o mais silencioso dentre toda a barulhenta família. Nathalie Baye - que já havia trabalhado com o diretor em "Laurence anyways" (2012) - se entrega com corpo e alma à sua quase desagradável mãe, enquanto Vincent Cassel faz como ninguém o tipo "boçal com orgulho". Não à toa, ambos estão foram indicados ao César de coadjuvantes - o filme também está no páreo de melhores ator, diretor, montagem e filme estrangeiro. Mas é Marion Cottilard, mais uma vez, que rouba a cena. Com uma personagem que difere de tudo que já fez até então - uma mulher oprimida e quase humilhada por um marido abusivo - a vencedora do Oscar por "Piaf, um hino ao amor" (2008) mostra, mais uma vez, porque é uma das grandes atrizes de sua geração. Seus momentos de dor e compreensão com Gaspard Ulliel são o grande trunfo de "É apenas o fim do mundo", um filme de silêncios e segredos que aponta um novo caminho na carreira de Xavier Dolan. Difícil entender as vaias.

sexta-feira

KING COBRA

KING COBRA (King Cobra, 2016, Rabbit Bandini Productions, 91min) Direção: Justin Kelly. Roteiro: Justin Kelly, estória de Justin Kelly, D. Madison Savage, livro de Andrew E. Stoner, Peter A. Conway. Fotografia: Benjamin Loeb. Montagem: Joshua Raymond Lee. Música: Tim Kvanosky. Figurino: Matthew Simonelli. Direção de arte/cenários: Anastasia White/Christine Foley. Produção executiva: Brandon Baker, Edward Bass, Marla Lynn Brandon, Pichai Chirathivat, Michael Clofine, Matthew Helderman, Kim Jackson, Katie Leary, Jeffrey C. Leo, Joe Listhaus, Austin Renfroe, Jason Rose, Ron Simons, Luke Dylan Taylor, Jack Warner, Derek Zemrak. Produção: James Franco, Vince Jovilette, Scott Levenson, Jordan Yale Levine, Iris Torres. Elenco: Garrett Clayton, Christian Slater, James Franco, Alicia Silverstone, Keegan Allen, Molly Ringwald. Estreia: 16/4/16 (Tribeca Festival)

 É difícil saber o que os realizadores de "King Cobra" esperavam fazer. Se sua intenção era criar um novo "Boogie nights: prazer sem limites" (97), retratando de forma crua os bastidores da indústria do cinema pornô, deram com os burros n'água, porque seu diretor e roteirista Justin Kelly não tem nem de longe o mesmo talento de Paul Thomas Anderson. Porém, se o objetivo era chegar aos limites do trash com uma produção apelativa e por vezes canhestra que emula o espírito do objeto de seu estudo (os filmes de sexo explícito), pode-se dizer que fez um gol de placa. Produzido por James Franco - que se envolve muitas vezes em produções de gosto muitíssimo duvidoso - e sem medo de chocar ou surpreender o espectador (nem sempre de forma positiva), o filme é no mínimo curioso, mas dificilmente pode ser considerado bom cinema, ainda que sua coragem já lhe dê certa vantagem em uma indústria cada vez menos ousada, especialmente quando se trata de histórias gays.

Baseado em fatos reais contados em um livro de Andrew Stoner e Peter A. Conway, "King Cobra" acompanha os acontecimentos que levaram ao assassinato, em 2007, de Bryan Kocis, dono da Cobra Videos, especializada em filmes pornôs direcionados ao público homossexual masculino. Rebatizado como Stephen no filme dirigido por Justin Kelly, o empresário é vivido por Christian Slater em uma atuação corajosa e desprovida de tiques que pode ser considerada, sem medo, a melhor de sua carreira. Stephen é mostrado no filme como um homem comum, respeitado pela vizinhança e amado pela família mas que esconde de todos a real origem de sua vida confortável: como produtor de vídeos de sexo explícito, ele não apenas ganha dinheiro o suficiente para manter seus luxos mas também conhece rapazes com quem pode saciar seus desejos sexuais. É essa a relação que ele começa com o jovem Sean (Garrett Clayton), que se torna um dos mais populares astros de sua produtora, com o pseudônimo de Brent Corrigan. A relação entre eles - prejudicada pelo fato de Stephen querer dominar o rapaz de todas as formas possíveis - aos poucos começa a ficar complicada, e é aí que entram em cena os elementos catalisadores de toda a tragédia.


Garoto de programa agenciado pelo próprio namorado Joe (James Franco), o ambicioso Harlow (Keegan Allen) logo descobre, através do grande sucesso de Corrigan, que produzir seus próprios vídeos pode ser um meio fácil de sustentar a vida de excessos que a dupla leva. Aproveitando-se da vontade do jovem Corrigan em assumir o controle da sua vida, a dupla resolve tentá-lo com uma proposta tentadora - mas Stephen surge no meio do caminho, atrapalhando seus negócios. Uma reviravolta na história (relacionada ao contrato assinado pelo rapaz com o produtor) encaminha tudo para a violência e o crime. Nessa hora, é preciso dizer, o roteiro de Kelly é particularmente feliz, contando sua história sem apelar para os malabarismos narrativos que destruíram "Crimes em Wonderland" (2003), que falava sobre a decadência do ator pornô John Holmes (Val Kilmer). Mudando o tom chulo de sua primeira metade - que apresenta cenas de sexo filmadas sem glamour e de uma crueza admirável, ainda que questionável do ponto de vista estético - ele passa a apontar de forma simples e direta os motivos que levaram à trágica morte de Stephen/Bryan. É incômodo e desconfortável em muitos momentos, mas de certa forma, sua sinceridade acaba por amenizar seus defeitos visuais e transformá-los em estilo narrativo.

Não é difícil perceber, no entanto, que alguns defeitos de "King Cobra" são duros de engolir. O maior deles é a falta de carisma e talento do protagonista Garrett Clayton, que parece ter assumido o tom canastrão de seu personagem mesmo quando suas cenas não lhe exigem tal desempenho. Sua apatia fica ainda mais nítida quando comparada com a forma quase febril com que seus companheiros de elenco encaram o roteiro, em especial os atores mais conhecidos do elenco, Christian Slater (deixando definitivamente para trás o status de símbolo sexual adolescente dos anos 80) e James Franco (corajosamente brincando com sua imagem de bom moço). Com sequências que beiram o exagero sendo constantemente jogadas na tela (aparentemente sem critério mas que no fundo fazem parte de um conjunto doentiamente coerente), o filme acaba por assumir, quase sem querer, o status de cult - uma obra que, através dos excessos e da crueza visual e temática, pode vir a encontrar seu público junto a espectadores que buscam alternativas à pasteurização hollywoodiana mesmo que (e talvez exatamente por isso) elas quebrem seus paradigmas narrativos e estéticos. Além do mais, quase como um bônus, o elenco de "King Cobra" ainda traz outras surpresas, como Molly Ringwald (a garota de rosa shocking em pessoa) na pele da irmã de Stephen, e Alicia Silverstone como a mãe (?!) de Garrett. Não é um filme para qualquer público - pode chocar aos mais sensíveis - mas merece uma conferida por sua coragem em afrontar tudo que se espera de um filme com pretensões comerciais. Aplausos pela ousadia.

quarta-feira

A LONGA CAMINHADA DE BILLY LYNN

A LONGA CAMINHADA DE BILLY LYNN (Billy Lynn's long halftime walk, 2016, Bona Film Group/Film4/Ink Factory, 113min) Direção: Ang Lee. Roteiro: Jean-Christophe Castelli, romance de Ben Fountain. Fotografia: John Toll. Montagem: Tim Squyres. Música: Jeff Dana, Mychael Danna. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: Mark Friedberg/Elizabeth Keenan. Produção executiva: Brian Bell, Guo Guangchang, Jeff Robinov, Ben Waisbren. Produção: Stephen Cornwell, Ang Lee, Marc Platt, Rhodri Thomas. Elenco: Joe Alwyn, Garrett Hedlund, Arturo Castro, Mason Lee, Astro, Vin Diesel, Steve Martin, Kirsten Stewart, Chris Tucker, Tim Blake Nelson. Estreia: 14/10/16 (Festival de Nova York)

É incrível, mas mesmo um cineasta de imenso talento, como é o caso de Ang Lee (vencedor de dois Oscar de direção e um de filme estrangeiro) pode cometer grandes equívocos. O primeiro deles foi "Cavalgada com o diabo" (99), sobre a Guerra de Secessão e estrelado por Tobey Maguire. Depois, veio "Hulk" (2003), que apesar das qualidades é mais lembrado como um fracasso do que como um êxito comercial. E então, depois do enorme sucesso e dos prêmios por "As aventuras de Pi" (2012), surge "A longa caminhada de Billy Lynn", que não apenas naufragou nas bilheterias americanas (mal ultrapassou a marca de 1 milhão de dólares de arrecadação, contra seu orçamento de 40) como também colecionou críticas nada amigáveis da imprensa, normalmente bastante gentil com os filmes do cineasta. Enfatizando seu ritmo lento em excesso, sua falha em transmitir as mensagens que deseja e a fragilidade do roteiro - baseado em romance de Ben Fountain - as resenhas negativas infelizmente tem razão: o filme de Lee é indubitavelmente chato, e na maior parte do tempo falha sensivelmente em transmitir sua principal mensagem contra a guerra no Iraque.

Ao contrário do que fez o inglês Sam Mendes, que também criticava a intervenção americana no Oriente Médio em seu "Soldado anônimo" (2005) - também fracasso de bilheteria, mas elogiado e prestigiado pela crítica - o trabalho de Ang Lee não consegue, em momento algum, conquistar a empatia da plateia para seu protagonista, interpretado pelo britânico Joe Alwyn em sua estreia no cinema. Apesar de demonstrar talento, Alwyn é inexperiente para desviar das constantes armadilhas de um roteiro confuso, sem emoção e que dá a impressão de não caminhar para lugar algum. Diretor sensível e inteligente, Lee consegue extrair bons desempenhos de seus atores mesmo quando a tarefa parece árdua, mas esbarra em uma surpreendente incapacidade de fazer com que sua história seja atraente para o público, o que não deixa de ser decepcionante quando se trata de um homem que transformou um filme de kung-fu em arte pura com "O tigre e o dragão" (2000) e emocionou o mundo com um romance entre cowboys homossexuais em "O segredo de Brokeback Mountain" (2005). Talvez focado em experimentar um formato novo - com um número de frames muito superior ao convencional - o cineasta tenha deixado escapar o que de melhor ele sempre apresentou em sua filmografia: o sentimento acima de qualquer outro elemento narrativo.


Mesmo em filmes como "As aventuras de Pi", filmado em 3D e recheado de efeitos visuais fascinantes, Ang Lee nunca abriu mão de dar extrema atenção à verdadeira alma de seus trabalhos: os personagens. Em "A longa caminhada de Billy Lynn", porém, parece que ele esqueceu de seu mandamento primordial: não apenas o protagonista como todos os coadjuvantes carecem de força e de empatia, impedindo a plateia de conectar-se a suas reações e emoções. Essa falta absoluta de identificação do público com o personagem central é imperdoável, uma vez que o centro da narrativa é justamente a trajetória emocional de Billy, iluminada através de flashbacks que nem sempre funcionam como deveriam e por vezes chegam a atrapalhar a condução da história, mais confundindo do que esclarecendo. O roteiro, por sua vez, insinua o tempo todo que algo grandioso está sendo preparado para seu clímax e quando tem a oportunidade de converter esse restinho de expectativa em algo que justifique as quase duas horas de duração do filme, entrega um desfecho tão decepcionante quanto o resto da produção - se é que alguém da audiência ainda tinha esperanças de um final menos morno.

O pior é que a sinopse do filme de Lee é até instigante: Billy Lynn, o protagonista, é um jovem de 19 anos de idade tornado uma espécie de herói de guerra depois de um ato de coragem cometido durante um confronto no Iraque. Com sua ação filmada e televisionada, ele e seu pelotão (intitulado Brave Squad) conquistam a admiração incondicional do povo norte-americano a ponto de haver interesse até mesmo de Hollywood em transformar sua trajetória em filme. Para capitalizar em cima da popularidade do grupo, o exército dos EUA programa uma espécie de turnê dos soldados, culminando com sua apresentação no show de intervalo de um jogo de futebol transmitido no Dia de Ação de Graças. Nesse meio-tempo, Lynn conhece as diferenças entre o que se fala a respeito do conflito no Oriente Médio e o que realmente acontece nos campos de batalha - enquanto relembra também sua relação com a família. Essa trama, porém, não engrena, deixando o espectador sempre esperando que a ação vá começar a qualquer momento, o que não acontece jamais. "A longa caminhada de Billy Lynn" é um grande passo em falso na carreira de Ang Lee e um dos filmes mais decepcionantes da temporada 2016.

terça-feira

COM A MALDADE NA ALMA

COM A MALDADE NA ALMA (Hush... hush, sweet Charlotte, 1964, 20th Century Fox, 133min) Direção: Robert Aldrich. Roteiro: Henry Farrell, Lukas Heller, estória de Henry Farrell. Fotografia: Joseph Biroc. Montagem: Michael Luciano. Música: De Vol. Figurino: Norma Koch. Direção de arte/cenários: William Glasgow/Raphael Bretton. Produção: Robert Aldrich. Elenco: Bette Davis, Olivia de Havilland, Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Mary Astor, Victor Buono. Estreia: 15/12/64

7 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Agnes Moorehead), Fotografia em P&B, Montagem, Trilha Sonora Original, Canção ("Hush... Hush, Sweet Charlotte), Figurino em P&B, Direção de Arte/Cenários em P&B
Vencedor do Golden Globe de Atriz Coadjuvante (Agnes Moorehead) 

Depois do estrondoso sucesso de "O que terá acontecido a Baby Jane?" (62), todo mundo em Hollywood estava ansioso por um reencontro entre suas duas protagonistas, Bette Davis e Joan Crawford. Todo mundo exceto Robert Aldrich, o diretor do filme, que teve de lidar com a célebre e amplamente conhecida rivalidade entre elas durante as (e depois das) filmagens. Aldrich preferia qualquer coisa no mundo a ter de passar novamente pelo pesadelo de domar as duas megeras, mas como em Hollywood quem manda é o vil metal, em 1964 ele estava outra vez diante do desafio de dominar o furacão: com o objetivo puro e simples de capitalizar em cima da tendência inaugurada por "Baby Jane" - filmes de terror estrelados por grandes nomes da era de ouro do cinema, como "Almas mortas", que manteve Crawford em alta mesmo nos anos 60 - Aldrich aceitou o desafio de realizar "Com a maldade na alma", que seguiria à risca todos os mandamentos do gênero, com direito a cabeças rolando, suspense psicológico de almanaque e reviravoltas nem tão surpreendentes assim. A grande questão é que nem mesmo o cineasta - já devidamente escolado em bastidores problemáticos - poderia prever que a produção, criada como veículo para Bette e Joan, acabasse desfalcado de uma das estrelas e chegasse às telas com apenas metade do apelo comercial.

Chegando à locação prevista para o filme e já entrando em crise com Bette Davis - que fazia questão de ostentar uma situação mais confortável durante as filmagens - a pouco delicada Joan Crawford acabou não esquentando banco: depois de algumas semanas, nem precisou utilizar-se da cláusula que lhe desobrigava de participar das campanhas publicitárias do filme ao lado da colega de cena e foi demitida por Aldrich... e só ficou sabendo através dos jornais, devidamente avisados por Davis. É óbvio que tal situação não ajudou em nada a já complicada trajetória do filme - rebatizado como "Hush... Hush, Sweet Charlotte" depois que o original "O que terá acontecido à prima Charlotte" dava à produção um indisfarçável ar de caça-níqueis (o que na verdade ela era). Para substituir Crawford foi chamada Olivia de Havilland - que já havia ficado com um papel seu em "A dama enjaulada", do mesmo ano, e que tornou-se amiga inseparável de Bette Davis, a ponto de brindarem com Coca-cola toda manhã - vale lembrar que Joan fazia parte da diretoria da Pepsi à época. A entrada de Olivia no filme pode ter deixado os bastidores menos tensos (ou divertidos, dependendo do ponto de vista), mas certamente prejudicou o resultado final: "Com a maldade na alma" não tem a metade da inventividade, crueldade e do irresistível tom de decadência de "Baby Jane".


É lógico que um filme estrelado por Bette Davis já é, por si só, imperdível, uma vez que a grande atriz invariavelmente dá um show, mesmo quando tem em mãos um papel com possibilidades limitadas. Porém, "Com a maldade na alma" esbarra em um roteiro que se pretende cheio de reviravoltas quando, na verdade, apenas se estende desnecessariamente em uma trama muitas vezes enfadonha. O começo, é preciso que se diga, é sensacional: no final dos anos 20, um grandioso baile oferecido por um dos fazendeiros mais ricos de Baton Rouge, no sul dos EUA é abalado pelo cruel e violento assassinato de um homem, que tem a cabeça e uma das mãos decepadas com um cutelo. Imediatamente a culpa recai sobre a filha do dono da casa, Charlotte Hollis (Bette Davis), cujos planos de fugir com a vítima (casada) foram interrompidos pela covardia do rapaz. Décadas mais tarde, Charlotte vive sozinha na vasta propriedade da família, depois da morte do pai, e passa por dificuldades devido à desapropriação da fazenda para construção de uma ponte. Acreditando cegamente que quem está por trás da situação é a viúva de seu ex-amante, Jewel Mayhew (Mary Astor), ela fica aliviada com a chegada de uma prima há muito distante, Miriam Deering (Olivia de Havilland). Porém, Miriam, que antigamente era o interesse amoroso do médico de Charlotte, Drew Bayliss (Joseph Cotten), não chega para ajudar a prima a resolver a questão das terras e sim para ajudá-la na transição para uma nova vida, distante de onde ela foi criada. É o que basta para a sanidade mental de Charlotte começar a dar sérios sinais de declínio.

Sem o duelo de interpretações proporcionado por Davis e Crawford em "Baby Jane", "Com a maldade na alma" se sustenta basicamente no admirável talento da primeira em tirar leite de pedra. O roteiro parece não se decidir entre o trash e o suspense psicológico, mesclando cenas puramente camp com momentos em que busca soar como Alfred Hitchcock - inspiração óbvia desde o sucesso comercial de "Psicose" (60). Nem sempre funciona, mais por culpa de uma história bastante previsível do que pela direção de Aldrich (sempre tentando encontrar a maneira menos fácil de enxergar uma cena) ou pela atuação de seus atores, ainda que Olivia de Havilland nunca tenha parecido tão canastrona. A reviravolta da trama tampouco entusiasma ou surpreende aos espectadores mais escolados e somente Agnes Moorehead (de "A feiticeira") consegue sobressair-se, com um trabalho premiado com o Golden Globe e indicado ao Oscar - por incrível que pareça, o filme obteve uma recepção bem mais calorosa da Academia do que "Baby Jane", sendo indicado a sete estatuetas no ano em que "My fair lady" sagrou-se o grande campeão. Na pele da leal e corajosa empregada da solitária solteirona, Moorehead é a única que chega a ameaçar roubar a cena de Bette Davis, que, como sempre, entrega-se de corpo e alma a um filme, mesmo que ele não esteja entre seus melhores. É Davis, sempre ela, que faz "Com a maldade na alma" valer a pena. Nem que seja para assistir-se a mais um de seus shows particulares.

segunda-feira

CINE HOLLIÚDY

CINE HOLLIÚDY (Cine Holliúdy, 2013, Dowtown Films, 91min) Direção e roteiro: Halder Gomes. Fotografia: Carina Sanginitto. Montagem: Helgi Thor. Direção de arte/cenários: Juliana Ribeiro. Produção executiva: Halder Gomes, Dayane Queiroz. Produção: Halder Gomes. Elenco: Edmilson Filho, Miriam Freeland, Roberto Bomtempo, Joel Gomes, Rainer Cadete, Jesuíta Barbosa, Falcão. Estreia: 09/8/13

A princípio, um filme nacional cujo protagonista lembra Carlitos e que pode ser descrito como uma mistura entre "Cinema Paradiso" (1989), de Giuseppe Tornatore e "Bye bye, Brasil" (1976), de Cacá Diegues pode parecer um samba do crioulo doido, uma miscelânea sem sentido de estilos e nacionalidades com tudo para dar errado. Porém, quando a comédia "Cine Holliúdy" chega a seus créditos finais, depois de uma hora e meia de um humor ingênuo e despretensioso, é impossível ao espectador não ter se deixado cativar. Versão estendida de um curta-metragem do cineasta cearense Helder Gomes, o filme é uma lufada de ar fresco nas comédias pasteurizadas e rigidamente presas à fórmula já desgastada do tradicional cinema de humor brasileiro. Com raízes nitidamente regionalistas e sem ter vergonha delas - muito pelo contrário, as assume com extremo orgulho e as utiliza como mais um meio de fazer rir, através de um dialeto particular a ponto da necessidade de se utilizar legendas para melhor compreensão - "Cine Holliúdy" é uma grande e carinhosa brincadeira com a sétima arte, debochado e nostálgico em doses exatas. E de quebra ainda faz uma sutil crítica aos governos populistas e à chegada da televisão nos mais escondidos recantos do país, matando assim, a diversão popular representada pelo circo e pelas salas de cinema.


Apesar das leituras sociais e políticas que pode suscitar, porém, "Cine Holliúdy" é, acima de tudo, entretenimento. E dos bons. Simples, direto e sem medo de atingir o público pela pureza de seu humor quase infantil, o filme de Halder Gomes se beneficia de uma estrutura narrativa sem maiores ousadias e um protagonista cujo carisma gigantesco conquista o espectador logo de cara. Dotado de uma esperança e uma pureza que o tornam irresistível a qualquer público, Francisgleydisson é herdeiro direto do vagabundo de Chaplin, com seu humor físico de uma precisão cirúrgica e seu humanismo à toda prova. Não à toa, faz parte de sua receita uma criança (seu filho, que tem no pai seu maior e infalível ídolo) e uma dama (sua esposa, apaixonada pelo marido e disposta a qualquer sacrifício para manter-se a seu lado e alimentar seus sonhos). É esse triângulo familiar o alicerce no qual se sustenta a trama criada pelo cineasta, que mergulha no coração do Brasil dos anos 70 para contar uma história de amor ao cinema - mais especificamente o cinema de artes marciais que consagrou-se à época graças a filmes de Bruce Lee e outros menos cotados. São filmes assim que Francisgleydisson apresenta em seu cinema itinerante, que sofre com a concorrência da televisão e a burocracia que enfrenta em cada cidade a que chega.


Sem medo de apostar em estereótipos para alcançar com facilidade a simpatia do público, Helder Gomes acerta em cheio ao assumir o lado quase circense de seu filme. Quando Francisgleydisson e sua família chegam à uma pequena cidade do interior do Ceará para abrir seu "Cine Holliúdy", o que se vê na tela é um desfile de tipos impagáveis, invariavelmente com o objetivo de fazer rir através da identificação imediata. Muitas vezes sem mesmo um nome, os habitantes do lugar surgem para comentar a chegada da novidade, expor suas expectativas e, posteriormente, unir-se aos demais conterrâneos na fatídica exibição, um clímax cuidadosamente preparado para arrancar gargalhadas sem muito espaço para qualquer tipo de aprofundamentos psicológicos e/ou dramáticos. Em certos casos, seria um defeito. No filme de Gomes, é um gol de placa: de forma certeira ele apresenta seus personagens secundários com poucas linhas de texto e não é preciso mais nada para que todos eles já fiquem registrados na mente do espectador. O galã, o cego, o gay, a moça fogosa, o padre, o prefeito, a primeira-dama e outros tipos são apenas símbolos, arquétipos cômicos que fortalecem a proposta do cineasta em fazer de seu filme um microcosmo do Brasil, uma visão bem-humorada de um país que, mesmo afundado em uma ditadura militar, ainda não havia desistido de sonhar (e que metáfora melhor para o sonho do que uma tela de cinema?).

Diretor de dois filmes de temática espírita ("Bezerra de Menezes" e "As mães de Chico Xavier"), Helder Gomes encontrou em "Cine Holliúdy" sua voz definitiva. É um filme de personalidade forte e com o timing exato de humor e sensibilidade (em um equilíbrio inversamente proporcional ao italiano "Cinema Paradiso", de quem pega emprestado o nome e a temática), além de ser dono de uma brasilidade absolutamente indissociável de sua trama e protagonistas. Na pele do doce e sonhador Francisgleydisson, o ator Edmilson Filho - campeão de artes marciais que faz uso de seu impressionante talento para o humor físico para criar uma antológica sequência na parte final do filme - surge como uma grande revelação do cinema nacional, uma alternativa saudável e renovadora aos artifícios do chamado "cinema comercial brasileiro". Com seu carisma à serviço de um roteiro delicioso, de humor brejeiro mas nunca vulgar, ele transforma o filme em uma joia rara, digno de figurar entre as grandes comédias já produzidas no Brasil. Imperdível!

domingo

INTERESTELAR

INTERESTELAR (Interstellar, 2014, Paramount Pictures/Warner Bros/Legendary Entertainment, 169min) Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan, Jontahan Nolan. Fotografia: Hoyte Van Hoytema. Montagem: Lee Smith. Música: Hans Zimmer. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Nathan Crowley/Gary Fettis, Helen Kozora-Tell. Produção executiva: Jordan Goldberg, Jake Myers, Kip Thorne, Thomas Tull. Produção: Christopher Nolan, Lynda Obst, Emma Thomas. Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain, Matt Damon, Michael Caine, Ellen Burstyn, David Oyelowo, Wes Bentley, William Devane, Casey Affleck, Topher Grace. Estreia: 26/10/14

5 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som, Mixagem de Som, Efeitos Visuais
Vencedor do Oscar de Efeitos Visuais 

Em 2006, quando ainda era um projeto da Paramount Pictures, "Interestelar" seria dirigido por um tal de Steven Spielberg, que contratou Jonathan Nolan para escrever o roteiro, inspirado em teorias científicas do físico Kip Thorne. A história original, que envolvia um conceito chamado de "caminho de minhoca" e várias outras situações que também inspiraram Carl Sagan a escrever seu clássico "Contato", acabou sendo deixada de lado pelo oscarizado cineasta em 2012, quando foi parar, então, nas mãos do irmão do roteirista, um homem que, em poucos anos de carreira, já havia redefinido os filmes de super-heróis com uma sombria trilogia protagonizada por Batman e criado um dos mais fascinantes e inteligentes filmes de ação da história ("A origem"): assumindo um projeto arriscado, caro (165 milhões de dólares) e sujeito à boa vontade de uma plateia mal-acostumada com blockbusters que não exigem muito do cérebro, Christopher Nolan transferiu a produção para sua casa (Warner Bros) e, com uma equipe de confiança a seu lado, realizou mais uma obra-prima que conquistou o público. Com mais de 600 milhões de dólares arrecadados ao redor do mundo, "Interestelar" - uma ficção científica empolgante, inteligente e emocionante - também colocou seu diretor em uma posição bastante privilegiada na indústria, ao ser o quarto filme seguido do diretor eleito como um dos dez melhores do ano pelo American Film Institute.

Como é comum na filmografia de Nolan, "Interestelar" se utiliza de uma técnica impecável para contar uma história que, no fundo, tem ressonâncias emocionais da mais alta profundidade. Sua receita de sucesso - contar com personagens fortes e ligações interpessoais que conectem a plateia com a trama, por mais complexa que ela possa parecer a princípio - mostrou-se vitoriosa principalmente em "A origem" (2010), e volta a funcionar à perfeição neste que talvez seja seu filme mais difícil até o momento. Longo (quase três horas de duração), dotado de um ritmo próprio que evita os clichês de filmes de ação e repleto de explicações científicas que poderiam assustar qualquer espectador acostumado às explosões sem sentido de Michael Bay, "Interestelar" é a prova cabal de que inteligência e diversão podem tranquilamente caminhar lado a lado - e que o público não é tão avesso quanto se pensa ao ato de por o cérebro para funcionar de vez em quando. Vencedor do Oscar de efeitos visuais - concorreu também às estatuetas de edição de som, mixagem de som, trilha sonora e direção de arte - o filme seduz pelo visual estonteante, mas se torna uma experiência única quando deixa a sensibilidade falar mais alto que a tecnologia.


A história imaginada por Nolan começa como mais uma produção sobre futuros distópicos, onde a humanidade está ameaçada de desaparecer diante de uma série de catástrofes que foram minando, pouco a pouco, todos os recursos naturais da Terra. É nesse ambiente desolador que o público é apresentado ao protagonista, Cooper (Matthew McConaughey), um engenheiro e piloto de testes da NASA tornado fazendeiro no Texas após a morte da esposa, e que tenta, a muito custo, manter a propriedade da família e cuidar dos dois filhos e do sogro. Seu destino, porém, logo lhe será revelado: após investigar o aparecimento de misteriosos sinais em sua fazenda, Cooper resolve seguir suas coordenadas e acaba parando em um bunker secreto, comandado pelo veterano John Brand (Michael Caine), um cientista com quem já havia trabalhado no passado. É Brand quem convence Cooper a entrar na mais perigosa aventura de sua vida: juntar-se a um pequeno grupo de exploradores - que inclui a filha de seu ex-chefe, Amelia (Anne Hathaway) - e viajar no espaço à procura de planetas que possam servir de salvação para o aparentemente inevitável extermínio da Terra e seus habitantes. Pensando nos filhos e na possibilidade de salvar a humanidade - um plano B seria o de colonização de outro ambiente propício à sobrevivência humana - Cooper aceita a missão, para desespero de sua filha, Murphy (Mackenzie Foy), uma menina de inteligência acima da média que se recusa a aceitar a partida do pai. A viagem exploratória começa, e é a partir daí que "Interestelar" pega todo mundo de surpresa.

Durante mais de duas horas, o roteiro dos irmãos Nolan segue o padrão dos filmes de ficção científica a que o público está habituado: efeitos visuais de primeira, alguns diálogos recheados de termos complexos, sequências de ação deslumbrantes e com altas doses de suspense, personagens que não são exatamente o que parecem. São seus trinta minutos finais, porém, que o tornam especial. Com uma reviravolta que põe em perspectiva tudo que foi mostrado até então e torna essenciais cada linha de diálogo e cada detalhe mostrados anteriores, a trama fecha um ciclo que, mais do que científico e metafísico, é essencialmente familiar e emotivo, oferecendo à uma Murphy adulta (e vivida com a competência de sempre por Jessica Chastain) uma importância crucial para um desfecho de arrepiar até ao mais cínico dos espectadores. Não importa se a plateia entende os conceitos de "buraco de minhoca" ou tem domínio da maior parte das explanações científicas da trama: é a humanidade que vem dos personagens que faz do filme universal e atemporal. Mais uma obra-prima de Christopher Nolan.

sábado

O HOMEM IRRACIONAL

O HOMEM IRRACIONAL (Irrational man, 2015, Gravier Productions, 95min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Darius Khondji. Montagem: Alisa Lepselter. Figurino: Suzy Benzinger. Direção de arte/cenários: Carl Sprague/Jennifer Engel. Produção executiva: Ronald L. Chez, Adam B. Stern, Allan Teh. Produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum, Edward Walson. Elenco: Joaquin Phoenix, Emma Stone, Parker Posey. Estreia: 15/5/15 (Festival de Cannes)

O método de trabalho de Woody Allen o preserva de um dos mais nocivos processos da indústria de Hollywood. Enquanto um filme seu é lançado e passa pelo longo e muitas vezes dolorido escrutínio da crítica e do público, ele já está mergulhado em outro projeto, a quilômetros de distância da obra anterior. É assim que sua carreira sobrevive firme e forte há mais mais de quatro décadas: sem deixar-se abalar pela recepção à sua vasta filmografia, que se divide entre pequenas obras-primas, filmes apenas corretos e alguns tropeços inquestionáveis. Pois foi saindo de um desses insucessos, o enfadonho "Magia ao luar" (2014) que Allen voltou a alguns de seus temas mais caros. Em "O homem irracional" ele mistura filosofia e literatura em uma trama de suspense que, assim como a maioria de seus trabalhos mais recentes, borra frequentemente a linha entre o bem e o mal de seu protagonista e surpreende a plateia com relevantes observações sobre a eterna discussão entre o certo e o errado. Não é estupendo como "Match point" (2005), mas significa vários passos adiante em relação a seu filme anterior - e é estrelado pela mesma Emma Stone.

Encantadora como sempre, Stone interpreta Jill Pollard, uma estudante de filosofia, brilhante e dedicada, que cai de amores pelo novo professor de sua universidade, o taciturno e misterioso Abe Lucas (Joaquin Phoenix exagerando na pose de pessimista de plantão). A fama de Lucas o procede quando ele chega à faculdade, mas ninguém sabe exatamente quais boatos a seu respeito são realmente verdadeiros. É verdade que seu melhor amigo morreu enquanto trabalhava em uma guerra? Foi esse mesmo amigo que lhe roubou a mulher e lhe jogou em uma profunda depressão? E sua reputação de mulherengo procede? Parece que sim, ou ao menos em parte, conforme Jill descobre com o tempo. Não apenas ela se apaixona por ele, a despeito de ter um namorado carinhoso, como tem que relevar o fato de que outra professora, Rita Richards (Parker Posey), não parece disposta a deixar o caminho livre para seu romance. Mesmo envolvido por Jill, porém, Lucas não consegue deixar de lado sua forma pouco agradável de ver a vida, até que um dia uma solução lhe aparece diante dos olhos: um assassinato que, a seu ver, vai ajudar a transformar o mundo em um lugar melhor. Mas será que essa maneira pouco ortodoxa de consertar o que está errado é justificável?


Quem é fã do cinema de Woody Allen vai ter muito a admirar em "O homem irracional", que apresenta sem disfarces muitas de suas características mais conhecidas, como os longos diálogos recheados de referências culturais sofisticadas e a extrema concisão no número de personagens e tramas paralelas. Concentrando todo seu foco nas relações de Abe Lucas com as duas mulheres que o cercam - e as consequências de suas ações aparentemente bem pensadas - o cineasta nova-iorquino mais uma vez explora a fascinante questão do crime como solução, mas, apesar das intenções ambiciosas, nem sempre atinge seu alvo. Talvez culpa da falta de carisma de Joaquin Phoenix, a falha do diretor em envolver o espectador de forma completa acaba por tornar seu filme uma espécie de ensaio de tudo o que realmente poderia ser. A ideia central é ótima, as reviravoltas são inteligentes e o final é imprevisível, mas existe uma apatia em seu protagonista que acaba por contagiar todo o resto da produção. Por mais que Emma Stone esteja ótima e Parker Posey brilhe em cada cena em que apareça, a ausência de empatia do espectador com o personagem central impede que a trama se torne ainda mais envolvente e praticamente anula o principal elemento do filme: a curiosidade sobre seu destino.

Ainda assim, "O homem irracional" apresenta muitas qualidades a serem apreciadas. Mestre em criar diálogos inteligentes e interessantes, Allen se utiliza de teorias filosóficas (de Kierkegaard a Hanna Arendt) para sublinhar os atos de seus personagens e lhes empresta características bastante humanas, ainda que por vezes esbarre na superficialidade. O filme também sofre com alguns problemas de ritmo, mas nada que atrapalhe o prazer que sempre é acompanhar os personagens neuróticos e brilhantes de um cineasta que, apesar da longevidade da carreira, ainda é capaz, ocasionalmente, de brindar o público com histórias fascinantes e relevantes. "O homem irracional" não se inscreve na lista de seus grandes filmes, mas é um entretenimento da qualidade que se espera de Woody Allen.

sexta-feira

HOLLYWOODLAND: BASTIDORES DA FAMA

HOLLYWOODLAND: BASTIDORES DA FAMA (Hollywoodland, 2006, Focus Features/Miramax, 126min) Direção: Allen Coulter. Roteiro: Paul Bernbaum. Fotografia: Jonathan Freeman. Montagem: Michael Berenbaum. Música: Marcelo Zarvos. Figurino: Julie Weiss. Direção de arte/cenários: Leslie McDonald/Odetta Stoddard. Produção executiva: J. Miles Dale, Jake Myers, Joe Pichirallo. Produção: Glenn Williamson. Elenco: Ben Affleck, Adrien Brody, Diane Lane, Bob Hoskins, Robin Tunney, Lois Smith. Estreia: 31/8/06 (Festival de Veneza)

Provavelmente apenas os mais dedicados estudiosos do cinema e da televisão conhecem - de nome e sem consultas ao Google - a trajetória do ator George Reeves, morto em 1959 depois de uma carreira marcada essencialmente por sua participação no seriado de tv "As aventuras do Super-homem", que permaneceu no ar entre 1952 e 1958 e no qual ele interpretava o super-herói de Krypton. Sentindo-se preso no papel que praticamente o impediu de ser levado a sério como ator dramático, Reeves foi encontrado morto, vítima de um tiro justamente na ocasião em que sua casa estava repleta de convidados. Foi suicídio ou homicídio? E, no caso de a segunda resposta for a correta, quem o cometeu? A jovem noiva, Leonore Lemmon (Robin Tunney)? A amante casada com um chefão da indústria de cinema, Toni Mannix (Diane Lane)? Ou o próprio executivo, Eddie Mannix (Bob Hoskins), vingando-se do adultério? Todas essas questões, ainda não definitivamente resolvidas, são a base de "Hollywoodland: bastidores da fama", filme que investiga, em tom ficcional, um caso que abalou a indústria do entretenimento americano à sua época. Comandado por Allen Coulter - experiente diretor de episódios de séries, como "Arquivo X", "Sex and the city", "A sete palmos", "Família Soprano" e "Roma" - e estrelado por um surpreendente Ben Affleck, o filme não chega a atingir todo o potencial de seu explosivo tema, mas é uma curiosa viagem pelos bastidores de Hollywood e os perigos da fogueira das vaidades que a cidade se orgulha em ser.

Na verdade, o roteiro se concentra em Louis Simo (Adrien Brody), um detetive particular com problemas no casamento que começa a investigar a morte de Reeves a partir do pedido da mãe da vítima, a aparentemente inconsolável Helen Bessolo (Lois Smith). Sabendo que o caso pode lhe dar a visibilidade necessária para que crie um nome respeitável na profissão, Simo passa a dedicar-se dia e noite à investigação - o que significa mergulhar não apenas na rotina do ator nas semanas imediatamente anteriores à sua morte, mas principalmente voltar no tempo, até os dias do começo de sua carreira, quando contou com a inestimável ajuda da bela Toni Mannix para manter-se confortavelmente e conseguir o papel de Super-homem em uma bem-sucedida série. Conforme vai avançando pelos meandros do sistema de entretenimento, Simo percebe que o glamour muitas vezes oferecido ao público nem sempre corresponde a bastidores saudáveis e/ou felizes. Esse choque de realidade o fará questionar a própria vida e carreira - principalmente quando, durante a investigação, passa a entender os sentimentos dúbios de Reeves em relação a seu status de ídolo popular.


Indicado ao Golden Globe de melhor ator em filme dramático e premiado no Festival de Veneza por sua atuação discreta e eficiente, Ben Affleck acerta o tom de seu George Reeves, criando um personagem repleto de idiossincrasias e nuances, fato raro em uma carreira marcada por severas críticas a seu talento como intérprete. Herdando um papel que quase foi de Hugh Jackman, ele deixa de lado sua persona de astro para tornar-se um ator real, imprimindo verdade e melancolia por baixo da máscara de vaidade e orgulho exibida por Reeves para o grande público. Não chega a ser uma atuação extraordinária e digna de um Oscar, mas é um grande passo para um ator que, à época, frequentava mais as manchetes sensacionalistas devido a seu romance com Jennifer Lopez - e o fracasso retumbante de filmes como "Contato de risco" (2003) e "Sobrevivendo ao Natal" (2004) - do que por seus méritos artísticos. Não à toa, seu trabalho chamou mais a atenção do público e da imprensa do que a interpretação sóbria e contida de Adrien Brody, que, desde seu inesperado Oscar por "O pianista" (2002) tenta encontrar um veículo adequado a seu modo quase sonolento de atuação. Na pele de Louis Simo ele nem precisa se esforçar muito para transmitir toda a sensação de tédio e desencanto que nasce das revelações que surgem em seu caminho - é uma interpretação minimalista que funciona, embora em alguns momentos dê a impressão de nunca atingir um clímax. E, de certa forma, esse é um problema do filme em si.

Mesmo tendo em mãos uma história intrigante e repleta de possibilidades, o roteirista Paul Bernbaum não consegue atingir todo seu potencial, principalmente por não conseguir fazer a conexão entre a história de Simo e a trajetória de Reeves de forma orgânica. Utilizando-se de flashbacks de forma confusa a maior parte do tempo, o filme tampouco ultrapassa a superficialidade quando trata dos bastidores de Hollywood, perdendo a chance de explorar um universo sempre rico e interessante. Diane Lane - que em 2015 viveu a esposa do roteirista Dalton Trumbo em "Trumbo: lista negra" - faz o que pode para dar vida a uma personagem dividida entre as aparências e a paixão, mas sofre com a irregularidade do roteiro. Sem apontar uma solução definitiva para o caso da morte de Reeves, o filme simplesmente levanta questões sem resolvê-las, para frustração do público que procura um desfecho mais contundente. É um bom filme, mas é incapaz de ficar na memória da plateia. Uma pena!

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...