TE PEGO LÁ FORA (Three o'clock high, 1987, Universal Pictures, 97min) Direção: Phil Joanou. Roteiro: Richard Christian Matheson, Thomas Szollosi. Fotografia: Barry Sonnenfeld. Montagem: Joe Ann Fogle. Música: Tangerine Dream. Figurino: Jane Ruhm. Direção de arte/cenários: William F. Matthews/Tom C. Bugenhaugen. Produção executiva: Alan Greisman, Aaron Spelling. Produção: David E. Vogel. Elenco: Casey Siemaszko, Annie Ryan, Richard Tyson, Stacey Glick, Jeffrey Tambor, Philip Baker Hall, Mitch Pileggi. Estreia: 09/10/87
Antes de assumir as rédeas do cultuado "U2: Rattle and Hum" - tido como um dos melhores documentários musicais realizados - o californiano Phil Joanou assinou um dos inúmeros cult movies adolescentes que rechearam as telas nos anos 80. Co-produzido por Steven Spielberg (que, no entanto, não está creditado), "Te pego lá fora" é uma rápida, divertida e inteligente homenagem ao clássico "Matar ou morrer", situando o conflito central - o desespero de um homem frente a um desafio inevitável - em uma escola de ensino fundamental e substituindo um xerife pacífico e recém-casado por um aluno introvertido que se vê diante de uma catástrofe iminente: uma briga no final do dia de aula.
Jerry Mitchell (Casey Siemaszko) é um adolescente como outro qualquer: não é o mais popular, nem o mais bonito nem tampouco genial. Seu único diferencial em relação a todos os outros alunos de sua escola é o fato de gerenciar a pequena loja de material escolar do local. Um dos redatores do jornal estudantil, a ele cabe a missão de fazer uma entrevista com um novo aluno, Buddy Revell (Richard Tyson), cuja fama não é nada amistosa: segundo as lendas que o precedem, ele já quebrou professores, colegas e quem quer que lhe desafiasse de alguma forma. Mesmo nada animado com a incumbência, Mitchell parte em busca de sua realização, mas acaba despertando a fúria do beligerante colega ao simplesmente tocar-lhe no braço. Com a promessa de uma briga para o final do dia, na frente de todos os alunos, Mitchell precisa então arrumar um jeito de fugir da luta ou encontrar uma maneira de evitá-la.
Assim como Gary Cooper no western de Fred Zinnemann, o Jerry Mitchell de "Te pego lá fora" conquista a empatia da plateia por ter uma alma pacífica - o que muitas vezes é confundido com covardia. Em sua agonia crescente, ele vê todos os seus esforços em fugir de uma surra anunciada caírem por terra sistematicamente. Nem a ajuda do melhor amigo e da provável namorada Franny (Anne Ryan) parece diminuir sua tensão - que aumenta gradativamente conforme outros problemas surgem em seu caminho, como um flagrante do segurança da escola (que o pega portando uma faca) e o roubo de todo o dinheiro disponível no caixa da loja que ele gerencia.
Dirigindo com um equilíbrio impressionante entre a tensão e a leveza - apropriado ao gênero - Joanou criou uma obra que dialoga com os clássicos oitentistas de John Hughes sem nunca perder a própria identidade. Engraçado sem ser histérico, "Te pego lá fora" também se privilegia do fato de não parecer datado ou exageradamente ingênuo. É uma sessão da tarde divertida e agradável, capaz de entreter sem machucar a inteligência do espectador.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
segunda-feira
MATADOR
MATADOR (Matador, 1986, Cia. Iberoamericana de TV S/A, 110min) Direção: Pedro Almodovar. Roteiro: Pedro Almodovar, Jesús Ferrero, argumento de Pedro Almodovar. Fotografia: Ángel Luis Fernández. Montagem: Pepe Salcedo. Música: Bernardo Bonezzi. Figurino: J.M. Cossio. Direção de arte/cenários: Fernando Sánchez/R. Arango, J. Morales, J. Rosell. Produção executiva: Andrés Vicente Gómez. Elenco: Assumpta Serna, Nacho Martínez, Antonio Banderas, Eva Cobo, Chus Lampreave, Carmen Maura, Eusébio Poncela. Estreia: 07/3/86
Depois de sacudir o underground espanhol com suas obras debochadas e construídas em torno de um humor anárquico e transgressor, Pedro Almodovar falou sério em "O que fiz eu para merecer isto?". Mas o humor que ainda fazia parte de seu quarto filme - mesmo que disfarçado em ironia - inexiste na obra mais ousada de sua primeira fase como cineasta. "Matador" reúne Eros e Thanatos - amor e morte - de forma poética, tensa e romântica - ainda que o romantismo em sua filmografia fuja violentamente do que se espera de uma história de amor corriqueira. Como ficaria claro em alguns de seus filmes posteriores, quando um personagem de Almodovar se apaixona ele rapta, mata ou estupra o objeto de seu afeto.
Como faria dezessete anos mais tarde em "Fale com ela", Almodovar utiliza o mundo das touradas como pano de fundo para sua história. Um dos protagonistas, Diego Montez (Nacho Martinez), é um ex-toureiro que, depois de um acidente na arena, passou a dedicar-se a ensinar sua arte a jovens aspirantes e sua primeira cena já demonstra claramente sua tendência a excitar-se com a morte e a violência, quando o público o flagra se masturbando enquanto assiste a um filme de terror. Em outra sequência inicial, uma mulher sexy e dominadora leva um amante para sua casa e, seguindo os movimentos de uma tourada, o mata no momento do orgasmo. Essa dupla central - improvável como protagonistas de uma história de amor nos moldes hollywoodianos - é que conduzirá a trama. Ele é o assassino de duas mulheres que enterrou em seu jardim. Ela é - como é informado logo depois - María Cardenal (Assumpta Serna), advogada bem-sucedida que entra na vida de Diego quando passa a defender seu jovem aluno Antonio (Antonio Banderas), que vai à justiça para assumir a morte de uma série de homens. Sendo a verdadeira criminosa, María tenta entender os motivos que o levaram a confessar crimes que não cometeu. Antonio, um rapaz filho de mãe religiosa conservadora (Julieta Serrano) é vidente e, com a ajuda da psicoterapeuta Julia (Carmen Maura), quer provar sua masculinidade, questionada pelo professor.
Ao contrário dos filmes anteriores de Almodovar, "Matador" apresenta uma série de personagens bem desenvolvidos, que fogem ao estigma de apenas estereótipos. Apesar de sua força icônica, os protagonistas de seu filme tem personalidades fortes e conduzem suas vidas de forma coerente com seus desejos e tendências. Como se fizessem parte de uma mesma espécie - e que só podem conviver entre si - Diego e Maria vêem-se nos olhos um do outro, apaixonam-se porque sabem que não tem outra escolha senão entregar-se a esse amor - doentio na visão dos outros, absolutamente inevitável em sua perspectiva. Nesse ponto, é exemplar como o cineasta narra tudo com sobriedade, evitando as cores exageradas e o humor corrosivo que já eram suas maiores características. "Matador" é sombrio, pesado e excitante. E talvez por isso seja um de seus melhores trabalhos.
Um estudo poderoso sobre o tesão, sobre o amor e a morte, "Matador" é, no entanto, um típico produto almodovariano em seu sucesso ao romper com o esperado, com o normal e com o superficial.
Depois de sacudir o underground espanhol com suas obras debochadas e construídas em torno de um humor anárquico e transgressor, Pedro Almodovar falou sério em "O que fiz eu para merecer isto?". Mas o humor que ainda fazia parte de seu quarto filme - mesmo que disfarçado em ironia - inexiste na obra mais ousada de sua primeira fase como cineasta. "Matador" reúne Eros e Thanatos - amor e morte - de forma poética, tensa e romântica - ainda que o romantismo em sua filmografia fuja violentamente do que se espera de uma história de amor corriqueira. Como ficaria claro em alguns de seus filmes posteriores, quando um personagem de Almodovar se apaixona ele rapta, mata ou estupra o objeto de seu afeto.
Como faria dezessete anos mais tarde em "Fale com ela", Almodovar utiliza o mundo das touradas como pano de fundo para sua história. Um dos protagonistas, Diego Montez (Nacho Martinez), é um ex-toureiro que, depois de um acidente na arena, passou a dedicar-se a ensinar sua arte a jovens aspirantes e sua primeira cena já demonstra claramente sua tendência a excitar-se com a morte e a violência, quando o público o flagra se masturbando enquanto assiste a um filme de terror. Em outra sequência inicial, uma mulher sexy e dominadora leva um amante para sua casa e, seguindo os movimentos de uma tourada, o mata no momento do orgasmo. Essa dupla central - improvável como protagonistas de uma história de amor nos moldes hollywoodianos - é que conduzirá a trama. Ele é o assassino de duas mulheres que enterrou em seu jardim. Ela é - como é informado logo depois - María Cardenal (Assumpta Serna), advogada bem-sucedida que entra na vida de Diego quando passa a defender seu jovem aluno Antonio (Antonio Banderas), que vai à justiça para assumir a morte de uma série de homens. Sendo a verdadeira criminosa, María tenta entender os motivos que o levaram a confessar crimes que não cometeu. Antonio, um rapaz filho de mãe religiosa conservadora (Julieta Serrano) é vidente e, com a ajuda da psicoterapeuta Julia (Carmen Maura), quer provar sua masculinidade, questionada pelo professor.
Ao contrário dos filmes anteriores de Almodovar, "Matador" apresenta uma série de personagens bem desenvolvidos, que fogem ao estigma de apenas estereótipos. Apesar de sua força icônica, os protagonistas de seu filme tem personalidades fortes e conduzem suas vidas de forma coerente com seus desejos e tendências. Como se fizessem parte de uma mesma espécie - e que só podem conviver entre si - Diego e Maria vêem-se nos olhos um do outro, apaixonam-se porque sabem que não tem outra escolha senão entregar-se a esse amor - doentio na visão dos outros, absolutamente inevitável em sua perspectiva. Nesse ponto, é exemplar como o cineasta narra tudo com sobriedade, evitando as cores exageradas e o humor corrosivo que já eram suas maiores características. "Matador" é sombrio, pesado e excitante. E talvez por isso seja um de seus melhores trabalhos.
Um estudo poderoso sobre o tesão, sobre o amor e a morte, "Matador" é, no entanto, um típico produto almodovariano em seu sucesso ao romper com o esperado, com o normal e com o superficial.
sexta-feira
O QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO?
O QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO? (Qué he hecho yo para merecer esto?, 1984, Kaktus Produciones Cinematograficas, 101min) Direção e roteiro: Pedro Almodovar. Fotografia: Angel L. Fernandez. Montagem: José Salcedo. Música: Bernardo Bonezzi. Figurino: Cecília Roth. Direção de arte: Román Arango, Pin Morales. Produção executiva: Hervé Hachuel. Elenco: Carmen Maura, Luis Hostalot, Veronica Forqué, Gonzalo Suarez, Chus Lampreave. Estreia: 25/10/84
Em seu quarto longa-metragem, Pedro Almodovar deixou de lado o deboche característico de seus primeiros trabalhos para falar sério. Quer dizer, mais ou menos. Ao contar a triste e melancólica história de uma mulher presa a uma vida sem esperanças, o cineasta espanhol mais popular da Espanha não abdicou de um certo humor negro, unindo a ele uma visão crítica sobre a sociedade de seu país, mais precisamente sobre a parcela menos favorecida economicamente. Tendo como protagonista a excelente Carmen Maura - que transmite em sua atuação a seriedade proposta mesmo diante dos absurdos característicos da obra do diretor - "O que fiz eu para merecer isto?" é, justamente por esse desvio de rota na trajetória almodovariana de fazer rir, seu filme menos popular. Mas sempre é hora de corrigir essa injustiça.
Gloria, a protagonista interpretada por Maura em sua terceira colaboração com Almodovar, é uma faxineira que vive em um prédio pouco luxuoso de Madri com o marido taxista, Antonio (Angel de Andrés-Lopez) - que se gaba de saber falsificar assinaturas e caligrafias - a sogra (Chus Lampreave), que vende víveres à própria família, e os dois filhos adolescentes - um trafica drogas e o outro ela mesma entrega a seu dentista pedófilo como forma de dar-lhe uma vida melhor. Sua vida triste e solitária - apesar do constante movimento em seu apartamento minúsculo - só é alterada quando ela encontra com sua vizinha, a garota de programa Cristal (Veronica Forqué) e faz faxinas na casa do escritor Lucas Villalba (Gonzalo Suaréz), que deseja escrever uma falsa biografia de Hitler e quer a ajuda das fraudes de Antonio.
Almodovar não deixa de brincar com o espectador, com seu costumeiro humor debochado, mas dessa vez ele segura a mão, preferindo contar sua história de maneira menos lúdica e mais seca. A fotografia ultra-colorida que é característica de seu cinema, por exemplo, inexiste, sendo substituída por um visual seco e quase sóbrio, que reflete com precisão a atmosfera quase sombria de sua narração. Mesmo quando brinca com referências quase desconexas - citando "Carrie, a estranha" na personagem da menina maltratada pela mãe que mora no mesmo prédio que Gloria - o cineasta não perde o foco de sua trama, construindo a partir da relação de sua protagonista com outras pessoas uma família menos disfuncional que a sua mesma. E terço final do filme, que assume ares de trama policial, conduz a um desfecho agridoce e sensível.
"O que fiz eu para merecer isto?" é quase uma obra atípica de Almodovar. Mas apresenta o mesmo carinho com que o diretor sempre tratou seus personagens, mesmo que de maneira tortuosa. É uma prova de seu amadurecimento, que o levaria a ser um dos maiores cineastas de seu tempo.
Em seu quarto longa-metragem, Pedro Almodovar deixou de lado o deboche característico de seus primeiros trabalhos para falar sério. Quer dizer, mais ou menos. Ao contar a triste e melancólica história de uma mulher presa a uma vida sem esperanças, o cineasta espanhol mais popular da Espanha não abdicou de um certo humor negro, unindo a ele uma visão crítica sobre a sociedade de seu país, mais precisamente sobre a parcela menos favorecida economicamente. Tendo como protagonista a excelente Carmen Maura - que transmite em sua atuação a seriedade proposta mesmo diante dos absurdos característicos da obra do diretor - "O que fiz eu para merecer isto?" é, justamente por esse desvio de rota na trajetória almodovariana de fazer rir, seu filme menos popular. Mas sempre é hora de corrigir essa injustiça.
Gloria, a protagonista interpretada por Maura em sua terceira colaboração com Almodovar, é uma faxineira que vive em um prédio pouco luxuoso de Madri com o marido taxista, Antonio (Angel de Andrés-Lopez) - que se gaba de saber falsificar assinaturas e caligrafias - a sogra (Chus Lampreave), que vende víveres à própria família, e os dois filhos adolescentes - um trafica drogas e o outro ela mesma entrega a seu dentista pedófilo como forma de dar-lhe uma vida melhor. Sua vida triste e solitária - apesar do constante movimento em seu apartamento minúsculo - só é alterada quando ela encontra com sua vizinha, a garota de programa Cristal (Veronica Forqué) e faz faxinas na casa do escritor Lucas Villalba (Gonzalo Suaréz), que deseja escrever uma falsa biografia de Hitler e quer a ajuda das fraudes de Antonio.
Almodovar não deixa de brincar com o espectador, com seu costumeiro humor debochado, mas dessa vez ele segura a mão, preferindo contar sua história de maneira menos lúdica e mais seca. A fotografia ultra-colorida que é característica de seu cinema, por exemplo, inexiste, sendo substituída por um visual seco e quase sóbrio, que reflete com precisão a atmosfera quase sombria de sua narração. Mesmo quando brinca com referências quase desconexas - citando "Carrie, a estranha" na personagem da menina maltratada pela mãe que mora no mesmo prédio que Gloria - o cineasta não perde o foco de sua trama, construindo a partir da relação de sua protagonista com outras pessoas uma família menos disfuncional que a sua mesma. E terço final do filme, que assume ares de trama policial, conduz a um desfecho agridoce e sensível.
"O que fiz eu para merecer isto?" é quase uma obra atípica de Almodovar. Mas apresenta o mesmo carinho com que o diretor sempre tratou seus personagens, mesmo que de maneira tortuosa. É uma prova de seu amadurecimento, que o levaria a ser um dos maiores cineastas de seu tempo.
quinta-feira
LABIRINTO DE PAIXÕES
LABIRINTO DE PAIXÕES (Laberinto de pasiones, 1982, Alphaville SA, 100min) Direção e roteiro: Pedro Almodovar. Fotografia: Ángel Luis Fernández. Montagem: Miguel Fernández, Pablo Mínguez, José Salcedo. Música: Bernardo Bonezzi, Fany McNamara. Figurino: Alfredo Caral, Marina Rodríguez. Direção de arte: Pedro Almodovar, Andrés Santana. Produção: Pedro Almodovar. Elenco: Cecilia Roth, Imanol Arías, Helga Liné, Marta Fernández Muro, Fernando Vivanco, Antonio Banderas. Estreia: 29/9/82
Depois do sucesso marginal de seu primeiro filme, "Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão", Pedro Almodovar tornou-se mais ambicioso. Seu segundo longa, a comédia "Labirinto de paixões" buscou influências nas produções ligeiras feitas em Hollywood nos anos 30 e, unindo-as com seu próprio arsenal de ideias extravagantes e personagens nonsense, criou uma desvairada e anárquica comédia, com mais substância narrativa do que seu primeiro trabalho e que agradou em cheio o público underground a que se destinava em primeira instância - a ponto de ficar em cartaz por dez anos em um cinema espanhol, sempre na sessão da meia-noite.
Enquanto "Pepi, Luci, Bom" focava-se basicamente em sua heroína desnorteada, cercada de amigos e conhecidos tão perdidos quanto ela, "Labirinto de paixões" expande o número de situações cômicas ao eleger como protagonistas uma dupla capaz de transitar pelos mais variados cenários, envolvendo todos os demais personagens em uma comédia de erros que mistura terrorismo, traumas de infância, homossexualidade, música e bebês de proveta. Nas mãos alucinadas de Almodovar, esses ingredientes aparentemente tão díspares transformam-se no coquetel de risadas absurdas.
Sexília (Cecilia Roth), como o nome sugere, é uma jovem ninfomaníaca que é também a vocalista de uma banda formada por mulheres que abandonaram os namorados - que são também músicos e tocam em outro grupo. Filha de um médico especialista em inseminações artificiais e genética, ela sofre de um trauma de infância que a faz temer a luz do sol, mas suas consultas terapêuticas não causam muito efeito, porque sua médica quer apenas seduzir seu pai. Um dia, Sexília conhece e se apaixona por Johnny (Imanol Arías), que assumiu o posto de vocalista da banda de seu ex-namorado. Acontece que Johnny é, na verdade, Riza Niro, o filho do imperador do Tirão que está na Espanha fugido de seu país. Homossexual, Riza encontra em Sexília um outro tipo de relação - não calcada unicamente em sexo - e resolve fugir com ela, justamente quando um grupo de terroristas está em seu encalço. Um dos integrantes do grupo é Sadec (Antonio Banderas), com quem ele teve uma noite de sexo, que tem um olfato altamente desenvolvido e está obcecado em encontrá-lo. Junta-se a eles todos a ex-imperatriz do Tirão (Helga Liné), que quer ter um filho com Riza e Queti (Marta Fernández Muro), uma jovem que deseja livrar-se do pai que a estupra constantemente, confundindo-a com sua mãe.
Jogando com sua própria forma de construir seus roteiros, Almodovar encontra, em "Labirinto de paixões", uma estrutura que se assemelha a um de seus maiores sucessos, o posterior "Mulheres à beira de um ataque de nervos", onde vários personagens confluem para um clímax em um aeroporto. Perceptivelmente feito com menos dinheiro e menos experiência, porém, "Labirinto" se aproveita do charme de um período de grande efervescência cultural na Espanha pós-Franco para brincar, debochar e fugir das amarras de um cinema bem-comportado - características que o cineasta iria refinar em suas obras-primas mais conhecidas e louvadas. Cecilia Roth - que estrelaria seu "Tudo sobre minha mãe" quase duas décadas mais tarde - combina com perfeição a doçura de uma mulher apaixonada com o fervor de uma jovem ninfomaníaca, entregando-se com divertimento às loucuras do diretor, assim como Antonio Banderas - que se tornaria seu alter-ego e alçaria grandes voos no cinema internacional graças a isso - em sua primeira colaboração com ele. E é impossível também não rir da aparição do próprio Almodovar em duas sequências: dirigindo uma fotonovela com McNamara - músico célebre no underground madrilenho da época - e depois, em dueto com ele, cantando a improvável "Suck it to me".
"Labirinto de paixões" ainda faz parte do cinema marginal de Pedro Almodovar, aquele celebrado pelos fãs mais fieis e olhado com curiosidade mórbida pelos mais conservadores. Mantém seu charme tosco e pobre de orçamento, mas deixa vislumbrar nitidamente todas as qualidades que seu diretor viria a mostrar em seus deslumbrantes filmes a partir da década de 90.
Depois do sucesso marginal de seu primeiro filme, "Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão", Pedro Almodovar tornou-se mais ambicioso. Seu segundo longa, a comédia "Labirinto de paixões" buscou influências nas produções ligeiras feitas em Hollywood nos anos 30 e, unindo-as com seu próprio arsenal de ideias extravagantes e personagens nonsense, criou uma desvairada e anárquica comédia, com mais substância narrativa do que seu primeiro trabalho e que agradou em cheio o público underground a que se destinava em primeira instância - a ponto de ficar em cartaz por dez anos em um cinema espanhol, sempre na sessão da meia-noite.
Enquanto "Pepi, Luci, Bom" focava-se basicamente em sua heroína desnorteada, cercada de amigos e conhecidos tão perdidos quanto ela, "Labirinto de paixões" expande o número de situações cômicas ao eleger como protagonistas uma dupla capaz de transitar pelos mais variados cenários, envolvendo todos os demais personagens em uma comédia de erros que mistura terrorismo, traumas de infância, homossexualidade, música e bebês de proveta. Nas mãos alucinadas de Almodovar, esses ingredientes aparentemente tão díspares transformam-se no coquetel de risadas absurdas.
Sexília (Cecilia Roth), como o nome sugere, é uma jovem ninfomaníaca que é também a vocalista de uma banda formada por mulheres que abandonaram os namorados - que são também músicos e tocam em outro grupo. Filha de um médico especialista em inseminações artificiais e genética, ela sofre de um trauma de infância que a faz temer a luz do sol, mas suas consultas terapêuticas não causam muito efeito, porque sua médica quer apenas seduzir seu pai. Um dia, Sexília conhece e se apaixona por Johnny (Imanol Arías), que assumiu o posto de vocalista da banda de seu ex-namorado. Acontece que Johnny é, na verdade, Riza Niro, o filho do imperador do Tirão que está na Espanha fugido de seu país. Homossexual, Riza encontra em Sexília um outro tipo de relação - não calcada unicamente em sexo - e resolve fugir com ela, justamente quando um grupo de terroristas está em seu encalço. Um dos integrantes do grupo é Sadec (Antonio Banderas), com quem ele teve uma noite de sexo, que tem um olfato altamente desenvolvido e está obcecado em encontrá-lo. Junta-se a eles todos a ex-imperatriz do Tirão (Helga Liné), que quer ter um filho com Riza e Queti (Marta Fernández Muro), uma jovem que deseja livrar-se do pai que a estupra constantemente, confundindo-a com sua mãe.
Jogando com sua própria forma de construir seus roteiros, Almodovar encontra, em "Labirinto de paixões", uma estrutura que se assemelha a um de seus maiores sucessos, o posterior "Mulheres à beira de um ataque de nervos", onde vários personagens confluem para um clímax em um aeroporto. Perceptivelmente feito com menos dinheiro e menos experiência, porém, "Labirinto" se aproveita do charme de um período de grande efervescência cultural na Espanha pós-Franco para brincar, debochar e fugir das amarras de um cinema bem-comportado - características que o cineasta iria refinar em suas obras-primas mais conhecidas e louvadas. Cecilia Roth - que estrelaria seu "Tudo sobre minha mãe" quase duas décadas mais tarde - combina com perfeição a doçura de uma mulher apaixonada com o fervor de uma jovem ninfomaníaca, entregando-se com divertimento às loucuras do diretor, assim como Antonio Banderas - que se tornaria seu alter-ego e alçaria grandes voos no cinema internacional graças a isso - em sua primeira colaboração com ele. E é impossível também não rir da aparição do próprio Almodovar em duas sequências: dirigindo uma fotonovela com McNamara - músico célebre no underground madrilenho da época - e depois, em dueto com ele, cantando a improvável "Suck it to me".
"Labirinto de paixões" ainda faz parte do cinema marginal de Pedro Almodovar, aquele celebrado pelos fãs mais fieis e olhado com curiosidade mórbida pelos mais conservadores. Mantém seu charme tosco e pobre de orçamento, mas deixa vislumbrar nitidamente todas as qualidades que seu diretor viria a mostrar em seus deslumbrantes filmes a partir da década de 90.
quarta-feira
PEPI, LUCI, BOM E OUTRAS GAROTAS DE MONTÃO
PEPI, LUCI, BOM E OUTRAS GAROTAS DE MONTÃO (Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, 1980, Figaro Films, 82min) Direção e roteiro: Pedro Almodovar. Fotografia: Paco Femenia. Montagem: José Salcedo. Figurino: Manuela Camacho. Produção executiva: Félix Rotaeta. Produção: Pepón Coromina, Pastora Delgado, Ester Rambal. Elenco: Carmen Maura, Eva Siva, Alaska, Félix Rotaeta, Cecilia Roth, Julieta Serrano. Estreia: 27/10/80
Antes de tornar-se o cineasta espanhol mais respeitado de seu tempo, já tendo conquistado, até agora, dois Oscar - filme estrangeiro por "Tudo sobre minha mãe" e roteiro original por "Fale com ela" - Pedro Almodovar construiu uma carreira admirável na Madrid underground. Trabalhando como diretor de filmes em super-oito nos momentos de folga de uma companhia telefônica, ele também dividia seu tempo escrevendo quadrinhos e fotonovelas cômicas e obscenas. Não demorou muito, visto esse currículo que apontava claramente para seu talento de contador de histórias, para que ele finalmente chegasse ao cinema propriamente dito. Seu primeiro filme - feito com a ajuda de amigos, entre os quais a protagonista Carmen Maura - reflete claramente a época em que foi realizado e ao mesmo tempo define o estilo que faria dele um nome reconhecível no mundo inteiro.
"Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão" é um filme para fãs de Almodovar em particular e de trashs bem-humorados em geral. Filmado no período de dois anos, nos dias de folgas dos atores e técnicos, é uma comédia transgressora em quase todos os níveis: o visual é sujo e desprovido de glamour, o humor é corrosivo e obsceno, os atores são quase todos amadores, existe erros de enquadramento e os personagens são mais estereótipos do que seres humanos. Mesmo assim, é divertido e tosco na medida exata para tornar-se cult. Narrado de forma quase convencional - apesar da trama bizarra e dos cartões explicativos que imediatamente traem a origem fotonovelesca de seu criador - o primeiro filme de Almodovar não se presta a análises psicológicas ou estéticas: é simplesmente a forma de expressão mais apropriada a um narrador em ebulição.
Pepi (Carmen Maura) é uma jovem que mora sozinho em um subúrbio de Madri, sendo sustentada pelos pais. Ela tenciona ganhar dinheiro vendendo sua virginidade, mas acaba sendo estuprada pelo policial (Felix Rotaeta) que mora no prédio em frente ao seu. Em busca de vingança, ela pede a um grupo de músicos underground de seu círculo que o espanquem, mas quem acaba sendo vítima da revanche é seu irmão gêmeo. Frustrada em suas intenções, Pepi aproxima-se da mulher do policial, Luci (Eva Siva), uma mulher reprimida e infeliz no casamento que acaba se apaixonando por Bom (Alaska), vocalista do grupo musical que espancou seu cunhado. A relação entre Luci e Bom vai adiante, para desgosto do policial, que não desiste da intenção de reconquistar a esposa. Enquanto isso, as três amigas divertem-se na noite madrilenha, frequentando as mais estranhas festas e convivendo com tipos dos mais esquisitos - como a mulher barbada casada com um homossexual enrustido e os criadores de um concurso de ereções.
O universo de Pedro Almodovar é retratado com precisão em "Pepi, Luci, Bom". O mundo noturno underground de Madri é o pano de fundo para uma história sobre a liberdade, o desejo e a amizade feminina - temas que serão tratados com mais delicadeza e profundidade na sua obra posterior. Mesmo que seu final seja um tanto agridoce - e a forma com que a liberdade de uma personagem é praticamente inaceitável para outras seja alheia aos dogmas posteriores de sua filmografia - ele reitera, como poucos, a maneira distorcida do cineasta em criar personagens que fogem ao padrão comercial. Mesmo que esteja muito distante da excelência de seus filmes mais refinados, seu primeiro trabalho é o pontapé inicial de uma obra única e indispensável.
Antes de tornar-se o cineasta espanhol mais respeitado de seu tempo, já tendo conquistado, até agora, dois Oscar - filme estrangeiro por "Tudo sobre minha mãe" e roteiro original por "Fale com ela" - Pedro Almodovar construiu uma carreira admirável na Madrid underground. Trabalhando como diretor de filmes em super-oito nos momentos de folga de uma companhia telefônica, ele também dividia seu tempo escrevendo quadrinhos e fotonovelas cômicas e obscenas. Não demorou muito, visto esse currículo que apontava claramente para seu talento de contador de histórias, para que ele finalmente chegasse ao cinema propriamente dito. Seu primeiro filme - feito com a ajuda de amigos, entre os quais a protagonista Carmen Maura - reflete claramente a época em que foi realizado e ao mesmo tempo define o estilo que faria dele um nome reconhecível no mundo inteiro.
"Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão" é um filme para fãs de Almodovar em particular e de trashs bem-humorados em geral. Filmado no período de dois anos, nos dias de folgas dos atores e técnicos, é uma comédia transgressora em quase todos os níveis: o visual é sujo e desprovido de glamour, o humor é corrosivo e obsceno, os atores são quase todos amadores, existe erros de enquadramento e os personagens são mais estereótipos do que seres humanos. Mesmo assim, é divertido e tosco na medida exata para tornar-se cult. Narrado de forma quase convencional - apesar da trama bizarra e dos cartões explicativos que imediatamente traem a origem fotonovelesca de seu criador - o primeiro filme de Almodovar não se presta a análises psicológicas ou estéticas: é simplesmente a forma de expressão mais apropriada a um narrador em ebulição.
Pepi (Carmen Maura) é uma jovem que mora sozinho em um subúrbio de Madri, sendo sustentada pelos pais. Ela tenciona ganhar dinheiro vendendo sua virginidade, mas acaba sendo estuprada pelo policial (Felix Rotaeta) que mora no prédio em frente ao seu. Em busca de vingança, ela pede a um grupo de músicos underground de seu círculo que o espanquem, mas quem acaba sendo vítima da revanche é seu irmão gêmeo. Frustrada em suas intenções, Pepi aproxima-se da mulher do policial, Luci (Eva Siva), uma mulher reprimida e infeliz no casamento que acaba se apaixonando por Bom (Alaska), vocalista do grupo musical que espancou seu cunhado. A relação entre Luci e Bom vai adiante, para desgosto do policial, que não desiste da intenção de reconquistar a esposa. Enquanto isso, as três amigas divertem-se na noite madrilenha, frequentando as mais estranhas festas e convivendo com tipos dos mais esquisitos - como a mulher barbada casada com um homossexual enrustido e os criadores de um concurso de ereções.
O universo de Pedro Almodovar é retratado com precisão em "Pepi, Luci, Bom". O mundo noturno underground de Madri é o pano de fundo para uma história sobre a liberdade, o desejo e a amizade feminina - temas que serão tratados com mais delicadeza e profundidade na sua obra posterior. Mesmo que seu final seja um tanto agridoce - e a forma com que a liberdade de uma personagem é praticamente inaceitável para outras seja alheia aos dogmas posteriores de sua filmografia - ele reitera, como poucos, a maneira distorcida do cineasta em criar personagens que fogem ao padrão comercial. Mesmo que esteja muito distante da excelência de seus filmes mais refinados, seu primeiro trabalho é o pontapé inicial de uma obra única e indispensável.
terça-feira
CHINATOWN
CHINATOWN (Chinatown, 1974, Paramount Pictures, 130min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Robert Towne. Fotografia: John A. Alonzo. Montagem: Sam O'Steen. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Anthea Sylbert. Direção de arte/cenários: Richard Sylbert/Ruby Levitt. Produção: Robert Evans. Elenco: Jack Nicholson, Faye Dunaway, John Huston, Diane Ladd. Estreia: 20/6/74
11 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Roman Polanski), Ator (Jack Nicholson), Atriz (Faye Dunaway), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som
Vencedor do Oscar de Roteiro Original
Vencedor de 4 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Diretor (Roman Polanski), Ator/Drama (Jack Nicholson), Roteiro
Um detetive incorruptível com seu próprio código de honra. Uma femme fatale glamourosa. Uma trama intrincada com ramificações muito além das aparências. Reviravoltas inesperadas e chocantes. Todos os elementos que fizeram a glória do cinema noir americano dos anos 40 estão presentes em "Chinatown", o charmoso e incensado último filme do cineasta Roman Polanski antes de sua fuga dos EUA, após ter mantido relações sexuais com uma menor de idade. Emulando os clássicos policiais da época em que se passa a história - 1937 - e tendo como influência os romances de Dashiel Hammet e Raymond Chandler, o roteirista Robert Towne construiu um dos mais elogiados scripts da história, vencedor do Oscar e exemplo em qualquer curso de roteiro - ainda que seu final, amargo e marcante, tenha sido escrito pelo diretor.
Para o público acostumado à rapidez dos filmes policiais pós- anos 80 - quando a violência e a ação incessante substituíram o cérebro e a sutileza - talvez seja complicado entrar no jogo de "Chinatown". É preciso quase uma hora de projeção para que a trama de Towne realmente comece a empolgar - até então o que mais chama a atenção é a preciosa reconstituição de época e a excelência da atuação de Jack Nicholson, amigo do roteirista e para quem o protagonista foi especialmente criado. A trama, que seguindo os padrões do cinema noir é quase uma desculpa para um exercício de estilo e tensão, só começa a delinear-se quando as peças do quebra-cabeça finalmente parecem fazer sentido - e é aí que o público percebe, juntamente com o detetive vivido por Nicholson, que estava seguindo um caminho totalmente equivocado e o que parecia importante passa a segundo plano.
Tudo começa quando o detetive particular J.J. Gittes (Nicholson) é procurado por uma mulher, Evelyn Mulwray (Diane Ladd), que desconfia estar sendo traída por seu marido, Hollis Mulwray (Darrell Zerling) diretor-chefe do Departamento de Água de Los Angeles. Ele aceita o caso, mas logo em seguida descobre que foi enganado e que a verdadeira Evelyn (Faye Dunaway) está em vias de processá-lo. Quando Hollis é encontrado morto, Gittes se vê envolvido em uma trama que mistura corrupção, adultério e incesto - e se descobre apaixonado por Evelyn, que parece esconder muito mais do que revela.
A atmosfera de "Chinatown" e a forma inteligente de conduzir o roteiro preciso de Towne - em que cada detalhe tem suma importância para o desfecho - é responsabilidade de Roman Polanski, que, muito provavelmente devido à sua trágica história de vida, não é exatamente um entusiasta do ser humano. Sua direção é seca, sem espaço para floreios românticos e até mesmo as cenas de amor entre Gittes e Evelyn são cercadas de uma aura trágica. A química entre Nicholson e Dunaway (que ficou com o papel depois que Ali McGraw separou-se do produtor Robert Evans e Jane Fonda o recusou) é precisa, em boa parte graças ao talento da dupla. O uso econômico da trilha sonora e até mesmo a opção por uma paleta de cores neutras também dão ao filme a elegância que contrasta com a imundície que se esconde por trás das descobertas de Gittes.
"Chinatown" talvez seja superestimado em excesso. Mas é, inegavelmente, um filme de personalidade, inteligência e charme, qualidades essas cada vez mais raras no cinemão americano.
11 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Roman Polanski), Ator (Jack Nicholson), Atriz (Faye Dunaway), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som
Vencedor do Oscar de Roteiro Original
Vencedor de 4 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Diretor (Roman Polanski), Ator/Drama (Jack Nicholson), Roteiro
Um detetive incorruptível com seu próprio código de honra. Uma femme fatale glamourosa. Uma trama intrincada com ramificações muito além das aparências. Reviravoltas inesperadas e chocantes. Todos os elementos que fizeram a glória do cinema noir americano dos anos 40 estão presentes em "Chinatown", o charmoso e incensado último filme do cineasta Roman Polanski antes de sua fuga dos EUA, após ter mantido relações sexuais com uma menor de idade. Emulando os clássicos policiais da época em que se passa a história - 1937 - e tendo como influência os romances de Dashiel Hammet e Raymond Chandler, o roteirista Robert Towne construiu um dos mais elogiados scripts da história, vencedor do Oscar e exemplo em qualquer curso de roteiro - ainda que seu final, amargo e marcante, tenha sido escrito pelo diretor.
Para o público acostumado à rapidez dos filmes policiais pós- anos 80 - quando a violência e a ação incessante substituíram o cérebro e a sutileza - talvez seja complicado entrar no jogo de "Chinatown". É preciso quase uma hora de projeção para que a trama de Towne realmente comece a empolgar - até então o que mais chama a atenção é a preciosa reconstituição de época e a excelência da atuação de Jack Nicholson, amigo do roteirista e para quem o protagonista foi especialmente criado. A trama, que seguindo os padrões do cinema noir é quase uma desculpa para um exercício de estilo e tensão, só começa a delinear-se quando as peças do quebra-cabeça finalmente parecem fazer sentido - e é aí que o público percebe, juntamente com o detetive vivido por Nicholson, que estava seguindo um caminho totalmente equivocado e o que parecia importante passa a segundo plano.
Tudo começa quando o detetive particular J.J. Gittes (Nicholson) é procurado por uma mulher, Evelyn Mulwray (Diane Ladd), que desconfia estar sendo traída por seu marido, Hollis Mulwray (Darrell Zerling) diretor-chefe do Departamento de Água de Los Angeles. Ele aceita o caso, mas logo em seguida descobre que foi enganado e que a verdadeira Evelyn (Faye Dunaway) está em vias de processá-lo. Quando Hollis é encontrado morto, Gittes se vê envolvido em uma trama que mistura corrupção, adultério e incesto - e se descobre apaixonado por Evelyn, que parece esconder muito mais do que revela.
A atmosfera de "Chinatown" e a forma inteligente de conduzir o roteiro preciso de Towne - em que cada detalhe tem suma importância para o desfecho - é responsabilidade de Roman Polanski, que, muito provavelmente devido à sua trágica história de vida, não é exatamente um entusiasta do ser humano. Sua direção é seca, sem espaço para floreios românticos e até mesmo as cenas de amor entre Gittes e Evelyn são cercadas de uma aura trágica. A química entre Nicholson e Dunaway (que ficou com o papel depois que Ali McGraw separou-se do produtor Robert Evans e Jane Fonda o recusou) é precisa, em boa parte graças ao talento da dupla. O uso econômico da trilha sonora e até mesmo a opção por uma paleta de cores neutras também dão ao filme a elegância que contrasta com a imundície que se esconde por trás das descobertas de Gittes.
"Chinatown" talvez seja superestimado em excesso. Mas é, inegavelmente, um filme de personalidade, inteligência e charme, qualidades essas cada vez mais raras no cinemão americano.
segunda-feira
O ÚLTIMO TANGO EM PARIS
O ÚLTIMO TANGO EM PARIS (Ultimo tango a Parigi, 1972, United Artists, 136min) Direção: Bernardo Bertolucci. Roteiro: Franco Arcalli, Bernardo Bertolucci, ideia de Bernardo Bertolucci. Fotografia: Vittorio Storaro. Montagem: Franco Arcalli, Roberto Perpignani. Música: Gato Barbieri. Figurino: Gitt Magrini. Direção de arte/cenários: Philippe Turlure. Produção: Alberto Grimaldi. Elenco: Marlon Brando, Maria Schneider, Jean-Pierre Léaud. Estreia: 14/10/72
2 indicações ao Oscar: Diretor (Bernardo Bertolucci), Ator (Marlon Brando)
Como um filme idealizado como uma história de amor e obessão entre um casal homossexual e posteriormente alterado para um casal hetero, repleto de cenas de sexo cruas e quase desagradáveis e com um roteiro composto por alguns diálogos francamente pobres pode ter se transformado em um dos mais famosos filmes da história do cinema? A resposta é uma só: Marlon Brando. Um dos atores mais admirados de sua geração, Brando deu ao polêmico filme de Bernardo Bertolucci uma aura de arte que, não fosse por sua propalada presença, ele jamais teria. Violentamente atacado pela Igreja e por censores de toda a parte do mundo - inclusive do Brasil, onde foi manteve-se proibido por vários anos - como "pornográfico", "O último tango em Paris" também foi a bandeira levantada por todos que lutavam por liberdade de expressão nos difíceis anos 70. Uma pena, porém, que a luta tivesse uma bandeira tão chamativa mas ao mesmo tempo tão oca. Chocante o filme é, mas pelas razões erradas.
Dizer que o "O último tango em Paris" é pornográfico é exagero. Qualquer um que já tenha assistido a uma produção de sexo explícito sabe que as pretensas cenas quentes do filme de Bertolucci são quase pudicas. Tirando o fato de apresentar inúmeras sequências de nudez frontal de Schneider e os diálogos fortes não há nada de muito transgressor ou excitante - talvez a ideia de um encontro sexual anônimo em um apartamento vazio, mas só. A famigerada "cena da manteiga" ou o momento em que Paul - personagem de Brando - pede à amante que lhe enfie o dedo no ânus não são capazes de habitar os sonhos lúbricos de quem quer que seja, servindo apenas para reiterar o nível de degradação crescente dos personagens que, aliás, nunca ultrapassam o nível de superficialidade psicológica, ao contrário das centenas de admiradores.
Assim como Adrian Lyne fez 14 anos depois com seu "9 1/2 semanas de amor", Bertolucci não oferece a seu público maiores informações sobre seus protagonistas: sobre Paul, sabe-se apenas que é um americano quarentão que é proprietário de um hotel decadente e que acaba de ficar viúvo, depois do suicídio da mulher. A respeito de Jeanne o que se depreende é que ela é uma jovem em busca de um apartamento para morar com o namorado, o cineasta Tom (Jean-Pierre Léaud, o ator-fetiche de François Truffaut encarnando um diretor da nouvelle vague com os mesmos cacoetes de seu descobridor, na melhor sacada do filme). Os dois, Paul e Jeanne, se encontram fortuitamente em um apartamento para alugar e, sem maiores motivos do que simplesmente um tesão instantâneo e irrefreável, iniciam um relacionamento tórrido e desprovido de quaisquer outras intenções. Sem conhecimento de nada sobre a vida um do outro, eles passam a se encontrar regularmente.
E é só isso. Bertolucci conta com uma fotografia inspirada de Vittorio Storaro - influenciada pela obra de Francis Bacon - para ilustrar suas ideias, mas justamente o que falta são ideias. Brando, que improvisou boa parte de suas falas, fica zanzando pelos cenários declamando textos desconexos - que os babadores de ovo profissionais consideraram profundos e densos - quando não simplesmente ofensivos. À Schneider - atriz sem grande carisma que teve uma carreira irregular e não teve a sorte de cair nas graças da crítica - resta ser eclipsada pela atuação de seu célebre colega de cena, que desfila a interminável fila de vícios adquiridos no Actor's Studio como forma de disfarçar o fato de que seu personagem é desagradável e chato com seus discursos onde tenta desconstruir o amor, a família, a Igreja e todo e qualquer pilar da civilização organizada.
É engraçado perceber como os fãs de "O último tango em Paris" conseguem encontrar desculpas esfarrapadas até mesmo para seus erros técnicos - a equipe do filme refletida no vidro de um prédio, por exemplo, significa "mais um elemento de inquietação subliminar". É difícil assumir que - excetuando-se o fato de sua importância transgressora em uma época de sufocante opressão - o filme de Bertolucci não tem muito mais onde se apoiar a não ser em sua aura de escândalo. É importante? Talvez. Mas é bom? Apenas quando se tende a gostar do que foi convencionado chamar de "filme de arte".
2 indicações ao Oscar: Diretor (Bernardo Bertolucci), Ator (Marlon Brando)
Como um filme idealizado como uma história de amor e obessão entre um casal homossexual e posteriormente alterado para um casal hetero, repleto de cenas de sexo cruas e quase desagradáveis e com um roteiro composto por alguns diálogos francamente pobres pode ter se transformado em um dos mais famosos filmes da história do cinema? A resposta é uma só: Marlon Brando. Um dos atores mais admirados de sua geração, Brando deu ao polêmico filme de Bernardo Bertolucci uma aura de arte que, não fosse por sua propalada presença, ele jamais teria. Violentamente atacado pela Igreja e por censores de toda a parte do mundo - inclusive do Brasil, onde foi manteve-se proibido por vários anos - como "pornográfico", "O último tango em Paris" também foi a bandeira levantada por todos que lutavam por liberdade de expressão nos difíceis anos 70. Uma pena, porém, que a luta tivesse uma bandeira tão chamativa mas ao mesmo tempo tão oca. Chocante o filme é, mas pelas razões erradas.
Dizer que o "O último tango em Paris" é pornográfico é exagero. Qualquer um que já tenha assistido a uma produção de sexo explícito sabe que as pretensas cenas quentes do filme de Bertolucci são quase pudicas. Tirando o fato de apresentar inúmeras sequências de nudez frontal de Schneider e os diálogos fortes não há nada de muito transgressor ou excitante - talvez a ideia de um encontro sexual anônimo em um apartamento vazio, mas só. A famigerada "cena da manteiga" ou o momento em que Paul - personagem de Brando - pede à amante que lhe enfie o dedo no ânus não são capazes de habitar os sonhos lúbricos de quem quer que seja, servindo apenas para reiterar o nível de degradação crescente dos personagens que, aliás, nunca ultrapassam o nível de superficialidade psicológica, ao contrário das centenas de admiradores.
Assim como Adrian Lyne fez 14 anos depois com seu "9 1/2 semanas de amor", Bertolucci não oferece a seu público maiores informações sobre seus protagonistas: sobre Paul, sabe-se apenas que é um americano quarentão que é proprietário de um hotel decadente e que acaba de ficar viúvo, depois do suicídio da mulher. A respeito de Jeanne o que se depreende é que ela é uma jovem em busca de um apartamento para morar com o namorado, o cineasta Tom (Jean-Pierre Léaud, o ator-fetiche de François Truffaut encarnando um diretor da nouvelle vague com os mesmos cacoetes de seu descobridor, na melhor sacada do filme). Os dois, Paul e Jeanne, se encontram fortuitamente em um apartamento para alugar e, sem maiores motivos do que simplesmente um tesão instantâneo e irrefreável, iniciam um relacionamento tórrido e desprovido de quaisquer outras intenções. Sem conhecimento de nada sobre a vida um do outro, eles passam a se encontrar regularmente.
E é só isso. Bertolucci conta com uma fotografia inspirada de Vittorio Storaro - influenciada pela obra de Francis Bacon - para ilustrar suas ideias, mas justamente o que falta são ideias. Brando, que improvisou boa parte de suas falas, fica zanzando pelos cenários declamando textos desconexos - que os babadores de ovo profissionais consideraram profundos e densos - quando não simplesmente ofensivos. À Schneider - atriz sem grande carisma que teve uma carreira irregular e não teve a sorte de cair nas graças da crítica - resta ser eclipsada pela atuação de seu célebre colega de cena, que desfila a interminável fila de vícios adquiridos no Actor's Studio como forma de disfarçar o fato de que seu personagem é desagradável e chato com seus discursos onde tenta desconstruir o amor, a família, a Igreja e todo e qualquer pilar da civilização organizada.
É engraçado perceber como os fãs de "O último tango em Paris" conseguem encontrar desculpas esfarrapadas até mesmo para seus erros técnicos - a equipe do filme refletida no vidro de um prédio, por exemplo, significa "mais um elemento de inquietação subliminar". É difícil assumir que - excetuando-se o fato de sua importância transgressora em uma época de sufocante opressão - o filme de Bertolucci não tem muito mais onde se apoiar a não ser em sua aura de escândalo. É importante? Talvez. Mas é bom? Apenas quando se tende a gostar do que foi convencionado chamar de "filme de arte".
sexta-feira
MORTE EM VENEZA
MORTE EM VENEZA (Morte a Venezia, 1971, Alfa Cinematografica, 130min) Direção: Luchino Visconti. Roteiro: Luchino Visconti, Nicola Baudalucco, romance de Thomas Mann. Fotografia: Pasquale Di Santis. Montagem: Ruggero Mastroianni. Figurino: Piero Tosi. Direção de arte/cenários: Ferdinando Scarfiotti. Produção executiva: Mario Gallo. Produção: Luchino Visconti. Elenco: Dirk Bogarde, Bjorn Andresen, Silvana Mangano, Marisa Berenson, Romolo Valli. Estreia: 01/3/71
Indicado ao Oscar de Figurino
A sequência inicial, ao som de Gustav Mahler, já dá o tom melancólico do que virá pela frente. "Morte em Veneza", adaptação do clássico romance de Thomas Mann, encontrou em Luchino Visconti o diretor ideal. Esteta por natureza e provavelmente o cineasta europeu que melhor soube retratar a decadência da aristocracia - sempre de forma sutil e elegante - o autor de obras-primas como "O leopardo" e "Rocco e seus irmãos" (quando ainda flertava com o neorrealismo italiano) fez da história criada por Mann um estudo visual e sensorial sobre a beleza, a arte e a juventude que, se requer do espectador uma paciência rara nos dias que seguem, oferece em troca um espetáculo de sensibilidade e delicadeza.
Provavelmente a maior e mais significativa alteração do filme em relação ao livro é a mudança da profissão de seu protagonista, Gustav von Aschenbach, de escritor para compositor, o que de certa forma traduz com mais consistência sua busca pelo esteticamente perfeito, pela arte suprema, pela beleza primal. Ao passar um período de férias em Veneza - depois da trágica morte da filha, da falência de seu relacionamento e da incompreensão em relação à sua última obra - Aschenbach encontra em Tadzio (Bjorn Andresen) a encarnação absoluta de tudo em que acredita: o adolescente, que está na cidade acompanhado da numerosa família, representa para o compositor, com seus traços andróginos e placidez serena, todo o frescor da juventude que ele vê aos poucos esvaindo de si mesmo. Obcecado pelo rapaz, a quem persegue de longe, ele mal se dá conta de uma epidemia de cólera que vai tomando conta da cidade onde está hospedado.
Contando sua intimista história com um mínimo de diálogos - quase todos em flashbacks que mostram ao público os caminhos que levaram o protagonista à sua situação de desilusão pela vida - Visconti prefere, acertadamente, deixar que suas poderosas imagens falem mais do que as palavras. Ao som da belíssima trilha sonora que faz uso exemplar de Mahler, Aschenbach desfila sua pungente tristeza pelas ruas fotografadas com perfeição pelo mestre Pasquali De Santis, perseguindo não apenas Tadzio, mas o ideal de pureza que ele transmite. Atraído cada vez mais pelo jovem - que simultaneamente o encoraja com olhares dúbios e o afasta com sua frieza - o músico acaba deixando-se levar pela obsessão, mesmo vendo sua saúde debilitar-se a cada dia.
"Morte em Veneza" pode ser compreendido de várias maneiras, e provavelmente todas elas estarão corretas - o que certamente eleva um produto à categoria de arte. Tanto pode ser visto como a história de um artista frente à frente com a beleza extrema - e sua incapacidade de lidar com maturidade diante dela - quanto como a obsessão de um homem mais velho por um adolescente - o que é mais polêmico, mais desconcertante e impactante, principalmente porque tanto Mann quanto Visconti tratam seu protagonista com respeito e sinceridade. Retratar Aschenbach no cinema politicamente correto de hoje seria detonar uma bomba de consequências imprevisíveis - o que não deixa de deixar a todos curiosos com a possibilidade de um remake sob as mãos de Peter Greenaway. O desejo de Aschenbach por Tadzio tem diversas camadas, tanto sexuais quanto estéticas, tanto amorosas quanto ideológicas e é justamente essa complexidade de seu tratamento que o faz, ainda nesses tempos cínicos, uma obra provocadora e instigante.
Interpretado com coragem por Dick Borgarde, Gustav von Aschenbach encontra no filme de Visconti uma encarnação excepcional. Com seu olhar tímido e seus modos acanhados, que vão transformando-se aos poucos em coragem e enlevo absoluto, Bogarde exprime, quase sem falar, uma infinidade de sentimentos. A metamorfose de seu personagem - que vai do quase recluso e discreto hóspede a um pouco sutil e apaixonado homem de meia-idade mergulhado na obsessão - é tratado com delicadeza e as lentes de Visconti apenas acompanham a transformação, assim como ele acompanha Tadzio pelas ruas de Veneza em longas sequências de beleza ímpar. E, se para o público atual a beleza quase feminina de Tadzio não justifica tanta paixão por parte de Aschenbach, é inegável que a beleza do filme mantém-se inacta mesmo depois de quatro décadas.
"Morte em Veneza" é cinema-arte. É um ensaio sobre a beleza, sobre a juventude, sobre a obsessão, sobre a velhice, sobre o amor. Mas é, sobretudo, uma obra-prima inquestionável.
Indicado ao Oscar de Figurino
A sequência inicial, ao som de Gustav Mahler, já dá o tom melancólico do que virá pela frente. "Morte em Veneza", adaptação do clássico romance de Thomas Mann, encontrou em Luchino Visconti o diretor ideal. Esteta por natureza e provavelmente o cineasta europeu que melhor soube retratar a decadência da aristocracia - sempre de forma sutil e elegante - o autor de obras-primas como "O leopardo" e "Rocco e seus irmãos" (quando ainda flertava com o neorrealismo italiano) fez da história criada por Mann um estudo visual e sensorial sobre a beleza, a arte e a juventude que, se requer do espectador uma paciência rara nos dias que seguem, oferece em troca um espetáculo de sensibilidade e delicadeza.
Provavelmente a maior e mais significativa alteração do filme em relação ao livro é a mudança da profissão de seu protagonista, Gustav von Aschenbach, de escritor para compositor, o que de certa forma traduz com mais consistência sua busca pelo esteticamente perfeito, pela arte suprema, pela beleza primal. Ao passar um período de férias em Veneza - depois da trágica morte da filha, da falência de seu relacionamento e da incompreensão em relação à sua última obra - Aschenbach encontra em Tadzio (Bjorn Andresen) a encarnação absoluta de tudo em que acredita: o adolescente, que está na cidade acompanhado da numerosa família, representa para o compositor, com seus traços andróginos e placidez serena, todo o frescor da juventude que ele vê aos poucos esvaindo de si mesmo. Obcecado pelo rapaz, a quem persegue de longe, ele mal se dá conta de uma epidemia de cólera que vai tomando conta da cidade onde está hospedado.
Contando sua intimista história com um mínimo de diálogos - quase todos em flashbacks que mostram ao público os caminhos que levaram o protagonista à sua situação de desilusão pela vida - Visconti prefere, acertadamente, deixar que suas poderosas imagens falem mais do que as palavras. Ao som da belíssima trilha sonora que faz uso exemplar de Mahler, Aschenbach desfila sua pungente tristeza pelas ruas fotografadas com perfeição pelo mestre Pasquali De Santis, perseguindo não apenas Tadzio, mas o ideal de pureza que ele transmite. Atraído cada vez mais pelo jovem - que simultaneamente o encoraja com olhares dúbios e o afasta com sua frieza - o músico acaba deixando-se levar pela obsessão, mesmo vendo sua saúde debilitar-se a cada dia.
"Morte em Veneza" pode ser compreendido de várias maneiras, e provavelmente todas elas estarão corretas - o que certamente eleva um produto à categoria de arte. Tanto pode ser visto como a história de um artista frente à frente com a beleza extrema - e sua incapacidade de lidar com maturidade diante dela - quanto como a obsessão de um homem mais velho por um adolescente - o que é mais polêmico, mais desconcertante e impactante, principalmente porque tanto Mann quanto Visconti tratam seu protagonista com respeito e sinceridade. Retratar Aschenbach no cinema politicamente correto de hoje seria detonar uma bomba de consequências imprevisíveis - o que não deixa de deixar a todos curiosos com a possibilidade de um remake sob as mãos de Peter Greenaway. O desejo de Aschenbach por Tadzio tem diversas camadas, tanto sexuais quanto estéticas, tanto amorosas quanto ideológicas e é justamente essa complexidade de seu tratamento que o faz, ainda nesses tempos cínicos, uma obra provocadora e instigante.
Interpretado com coragem por Dick Borgarde, Gustav von Aschenbach encontra no filme de Visconti uma encarnação excepcional. Com seu olhar tímido e seus modos acanhados, que vão transformando-se aos poucos em coragem e enlevo absoluto, Bogarde exprime, quase sem falar, uma infinidade de sentimentos. A metamorfose de seu personagem - que vai do quase recluso e discreto hóspede a um pouco sutil e apaixonado homem de meia-idade mergulhado na obsessão - é tratado com delicadeza e as lentes de Visconti apenas acompanham a transformação, assim como ele acompanha Tadzio pelas ruas de Veneza em longas sequências de beleza ímpar. E, se para o público atual a beleza quase feminina de Tadzio não justifica tanta paixão por parte de Aschenbach, é inegável que a beleza do filme mantém-se inacta mesmo depois de quatro décadas.
"Morte em Veneza" é cinema-arte. É um ensaio sobre a beleza, sobre a juventude, sobre a obsessão, sobre a velhice, sobre o amor. Mas é, sobretudo, uma obra-prima inquestionável.
quinta-feira
OS GIRASSÓIS DA RÚSSIA
OS GIRASSÓIS DA RÚSSIA (Il girasoli, 1970, AVCO Embassy Pictures, 107min) Direção: Vittorio De Sica. Roteiro: Antonio Guerra, Cesare Zavattini. Fotografia: Giuseppe Rottuno. Montagem: Adriana Novelli. Música: Henry Mancini. Figurino: Enrico Sabbatini. Direção de arte/cenários: Piero Poletto/Giantito Burchiellaro. Produção executiva: Joseph E. Levine. Produção: Arthur Cohn, Carlo Ponti. Elenco: Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Lyudmila Saveleva. Estreia: 14/3/70
Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original
Os brutos também amam. O título do clássico western de George Stevens serve como perfeito exemplo para ilustrar "Os girassóis da Rússia", dirigido por Vittorio De Sica em 1970. Um dos maiores expoentes do neorrealismo italiano com o incensado "Ladrões de bicicleta", lançado em 1948, no auge do movimento, De Sica demonstra, em sua terceira colaboração com a dupla Sophia Loren/Marcello Mastroianni, que a crueza poética de seu filme mais ilustre poderia ceder lugar à delicadeza de uma história de amor, por mais devastadora que ela seja. Produzido por Carlo Ponti, marido de Loren, o filme foi um dos maiores sucessos da carreira do diretor justamente por apelar para um gênero popular e fugir das polêmicas nas quais a filmografia de seu país natal estava envolvida, ao tratar de temas pesados como terrorismo e política. Uma história de amor à moda antiga, "Os girassóis da Rússia" consegue emocionar ao mesmo tempo em que revela também os horrores da guerra - afinal de contas, ninguém é revelado no neorrealismo à toa.
Assim como a protagonista vivida por Audrey Tautou em "Eterno amor", realizado mais de três décadas depois por Jean-Pierre Jeunet, a Giovanna interpretada por Sophia Loren é uma mulher obcecada e decidida que, munida da certeza mais que absoluta de que seu grande amor não morreu na guerra e está impedido de voltar ao lar, parte em sua busca, sendo exposta às trágicas consequências do conflito. Casada há poucos dias com o hesitante Antonio (Marcello Mastroianni) quando ele partiu para lutar na Rússia, ela passa anos esperando seu retorno ao lar, acompanhada apenas da sogra. Cansada de esperar por notícias, ela toma uma atitude temerária e viaja para o exterior, sabendo, em seu coração, que irá reencontrá-lo, mas não tendo nenhuma certeza das circunstâncias em que isso acontecerá.
O roteiro, co-escrito pelo colaborador habitual de Sica, Cesare Zavattini, usa e abusa dos elementos clássicos do melodrama popular, intercalando com a busca de Giovanna flashbacks do início de seu relacionamento com Antonio e dotando-a da força inerente às heroínas trágicas, capazes de sacrifícios em prol do homem amado. Enquanto procura pelo marido, ela ouve relatos dolorosos da campanha italiana no exterior, filmados com extrema competência pelas lentes do experiente Giuseppe Rottuno, que mescla a frieza da neve com a dourada luz do sol que ilumina os girassóis - metáfora para a falta de controle do ser humano diante do destino. A trilha sonora melodiosa de Henry Mancini - indicada ao Oscar - completa o cenário, emoldurando liricamente uma história sobre renúncia, dor e amores desesperados.
Dirigido com sofisticação e delicadeza, "Os girassóis da Rússia" não tenciona ser um comentário social e político sobre a guerra, mas sim uma singela e comovente história de amor. E para isso, conta com um par central acima de qualquer crítica. Sophia Loren, já premiada com um Oscar e sem precisar provar nada pra ninguém, tem uma atuação primorosa, convencendo nas três fases de sua Giovanna: como a jovem calorosa, a esposa desesperada e a serena mulher convencida de seu destino, ela demonstra que, além de ser um dos mais duradouros símbolos sexuais da Itália, é também uma atriz de primeira. A Marcello Mastroianni resta pontuar com extrema correção o show de Loren.
Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original
Os brutos também amam. O título do clássico western de George Stevens serve como perfeito exemplo para ilustrar "Os girassóis da Rússia", dirigido por Vittorio De Sica em 1970. Um dos maiores expoentes do neorrealismo italiano com o incensado "Ladrões de bicicleta", lançado em 1948, no auge do movimento, De Sica demonstra, em sua terceira colaboração com a dupla Sophia Loren/Marcello Mastroianni, que a crueza poética de seu filme mais ilustre poderia ceder lugar à delicadeza de uma história de amor, por mais devastadora que ela seja. Produzido por Carlo Ponti, marido de Loren, o filme foi um dos maiores sucessos da carreira do diretor justamente por apelar para um gênero popular e fugir das polêmicas nas quais a filmografia de seu país natal estava envolvida, ao tratar de temas pesados como terrorismo e política. Uma história de amor à moda antiga, "Os girassóis da Rússia" consegue emocionar ao mesmo tempo em que revela também os horrores da guerra - afinal de contas, ninguém é revelado no neorrealismo à toa.
Assim como a protagonista vivida por Audrey Tautou em "Eterno amor", realizado mais de três décadas depois por Jean-Pierre Jeunet, a Giovanna interpretada por Sophia Loren é uma mulher obcecada e decidida que, munida da certeza mais que absoluta de que seu grande amor não morreu na guerra e está impedido de voltar ao lar, parte em sua busca, sendo exposta às trágicas consequências do conflito. Casada há poucos dias com o hesitante Antonio (Marcello Mastroianni) quando ele partiu para lutar na Rússia, ela passa anos esperando seu retorno ao lar, acompanhada apenas da sogra. Cansada de esperar por notícias, ela toma uma atitude temerária e viaja para o exterior, sabendo, em seu coração, que irá reencontrá-lo, mas não tendo nenhuma certeza das circunstâncias em que isso acontecerá.
O roteiro, co-escrito pelo colaborador habitual de Sica, Cesare Zavattini, usa e abusa dos elementos clássicos do melodrama popular, intercalando com a busca de Giovanna flashbacks do início de seu relacionamento com Antonio e dotando-a da força inerente às heroínas trágicas, capazes de sacrifícios em prol do homem amado. Enquanto procura pelo marido, ela ouve relatos dolorosos da campanha italiana no exterior, filmados com extrema competência pelas lentes do experiente Giuseppe Rottuno, que mescla a frieza da neve com a dourada luz do sol que ilumina os girassóis - metáfora para a falta de controle do ser humano diante do destino. A trilha sonora melodiosa de Henry Mancini - indicada ao Oscar - completa o cenário, emoldurando liricamente uma história sobre renúncia, dor e amores desesperados.
Dirigido com sofisticação e delicadeza, "Os girassóis da Rússia" não tenciona ser um comentário social e político sobre a guerra, mas sim uma singela e comovente história de amor. E para isso, conta com um par central acima de qualquer crítica. Sophia Loren, já premiada com um Oscar e sem precisar provar nada pra ninguém, tem uma atuação primorosa, convencendo nas três fases de sua Giovanna: como a jovem calorosa, a esposa desesperada e a serena mulher convencida de seu destino, ela demonstra que, além de ser um dos mais duradouros símbolos sexuais da Itália, é também uma atriz de primeira. A Marcello Mastroianni resta pontuar com extrema correção o show de Loren.
quarta-feira
QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?
QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF? (Who's afraid of Virginia Woolf?, 1966, Warner Bros, 131min) Direção: Mike Nichols. Roteiro: Ernest Lehman, peça teatral de Edward Albee. Fotografia: Haskel Wexler. Montagem: Sam O'Steen. Música: Alex North. Figurino: Irene Sharaff. Direção de Arte/Cenários: Richard Sylbert/George James Hopkins. Produção: Ernest Lehman. Elenco: Elizabeth Taylor, Richard Burton, George Segal, Sandy Dennis. Estreia: 21/6/66
13 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Mike Nichols), Ator (Richard Burton), Atriz (Elizabeth Taylor), Ator Coadjuvante (George Segal), Atriz Coadjuvante (Sandy Dennis), Roteiro Adaptado, Fotografia em P&B, Montagem,Trilha Sonora Original, Figurino em P&B, Direção em Arte/Cenários em P&B, Som
Vencedor de 5 Oscar: Melhor Atriz (Elizabeth Taylor), Atriz Coadjuvante (Sandy Dennis), Fotografia em P&B, Figurino em P&B, Direção de Arte/Cenários em P&B
Quando se diz que um filme arrebatou 13 indicações ao Oscar a primeira imagem que vem à cabeça é de uma superprodução épica, ao estilo "Lawrence da Arábia" e "...E o vento levou", com centenas de figurantes, efeitos visuais revolucionários e histórias maiores que a vida. Uma prova da falácia desse pensamento é "Quem tem medo de Virginia Woolf?", adaptação da peça teatral de Edward Albee que chegou à cerimônia de entrega do Oscar aos melhores de 1966 cheio de moral e repleto de possibilidades de vitória. Intimista e preocupado exclusivamente com a psicologia dos personagens, o filme de estreia de Mike Nichols quebrou paradigmas sociais e até mesmo de classificação etária junto ao público norte-americano: foi ele quem inaugurou o que posteriormente o selo NC-17, que estipula que menores de 17 anos só podem entrar nas salas de exibição acompanhados de um responsável.
Exagero? Talvez hoje em dia, estando o público acostumado com uma dieta de produções onde a vulgaridade é moeda corrente. Em 1966, porém, a história era bem outra. Ainda sofrendo com as restrições temáticas impostas pelo famigerado Código Hayes, o cinema americano raramente tratava de assuntos considerados tabus, como adultério - principalmente quando o tema era tratado de forma tão rude e agressiva quanto no texto de Albee, que usa e abusa de termos chulos e apresenta como protagonistas um casal de meia-idade a anos-luz de distância do que se convencionava no cinemão de então. Interpretados pelo então casal de verdade Elizabeth Taylor e Richard Burton em seu quarto trabalho juntos, Martha e George são assustadoramente reais e o retrato mais chocante de uma relação doentia.
Depois de uma reunião social em um sábado à noite, o casal Martha e George recebe, em sua casa, os jovens Nick (George Segal em papel recusado por Robert Redford) e Honey (Sandy Dennis). Nick é um ambicioso professor de Biologia por quem Martha nutre uma forte atração e aos poucos começa a perceber que seus anfitriões tem uma maneira muito particular de convivência: professor de História na universidade onde o pai de Martha é reitor, George mantém com ela uma relação que alterna momentos de enfado com outros de extrema agressividade verbal. Conforme a noite avança e todos vão ficando mais e mais calibrados de álcool, acusações de todos os lados começam a surgir, acompanhadas de ressentimentos e revelações vexaminosas. Quando o filho adolescente do casal torna-se o assunto, então, a truculência atinge seu mais alto grau.
É preciso paciência com "Quem tem medo de Virginia Woolf?". Centrado quase que unicamente nos diálogos fortes e cadenciados de Edward Albee, o filme de Nichols tem um ritmo próprio, intercalando momentos de alta combustão com cenas mais tranquilas, fotografadas em exuberante preto-e-branco por Haskel Wexler que exploram a melancolia de seus personagens. O texto da peça - seguido à risca pelo cineasta, que creditou Ernest Lehman como roteirista mas não utilizou sua adaptação - é a força motriz do filme, fato que não passou incólume a seus intérpretes, que dão corpo e alma em suas atuações. Enquanto Burton está em seu melhor momento da carreira e George Segal constrói seu Nick com a sutileza apropriada, porém, Sandy Dennis força a caricatura com sua Honey, que frequentemente parece carregar nas tintas - não deixa de ser irônico que Dennis tenha levado o Oscar de coadjuvante, enquanto os intérpretes masculinos tenham ficado apenas com indicações.
Mas, se "Virginia Woolf" tem uma cara, ela é Elizabeth Taylor. Mais gorda que o habitual e desprovida da vaidade que a marcaram como uma das mais belas atrizes de Hollywood, ela calou de vez a boca dos detratores - que debitaram seu Oscar por "Disque Butterfiel 8" a seus problemas de saúde - com uma atuação fabulosa como a amarga e bêbada Martha, que não hesita em trair o marido diante de seus olhos e tem como combustível a virulência e a crueldade verbal. Merecedora vencedora do Oscar de melhor atriz Taylor - que recebeu mais de 1 milhão de dólares por seu trabalho - mostrou que, por trás de todas as polêmicas que cercavam sua vida pessoal, ela era uma atriz de primeira grandeza.
13 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Mike Nichols), Ator (Richard Burton), Atriz (Elizabeth Taylor), Ator Coadjuvante (George Segal), Atriz Coadjuvante (Sandy Dennis), Roteiro Adaptado, Fotografia em P&B, Montagem,Trilha Sonora Original, Figurino em P&B, Direção em Arte/Cenários em P&B, Som
Vencedor de 5 Oscar: Melhor Atriz (Elizabeth Taylor), Atriz Coadjuvante (Sandy Dennis), Fotografia em P&B, Figurino em P&B, Direção de Arte/Cenários em P&B
Quando se diz que um filme arrebatou 13 indicações ao Oscar a primeira imagem que vem à cabeça é de uma superprodução épica, ao estilo "Lawrence da Arábia" e "...E o vento levou", com centenas de figurantes, efeitos visuais revolucionários e histórias maiores que a vida. Uma prova da falácia desse pensamento é "Quem tem medo de Virginia Woolf?", adaptação da peça teatral de Edward Albee que chegou à cerimônia de entrega do Oscar aos melhores de 1966 cheio de moral e repleto de possibilidades de vitória. Intimista e preocupado exclusivamente com a psicologia dos personagens, o filme de estreia de Mike Nichols quebrou paradigmas sociais e até mesmo de classificação etária junto ao público norte-americano: foi ele quem inaugurou o que posteriormente o selo NC-17, que estipula que menores de 17 anos só podem entrar nas salas de exibição acompanhados de um responsável.
Exagero? Talvez hoje em dia, estando o público acostumado com uma dieta de produções onde a vulgaridade é moeda corrente. Em 1966, porém, a história era bem outra. Ainda sofrendo com as restrições temáticas impostas pelo famigerado Código Hayes, o cinema americano raramente tratava de assuntos considerados tabus, como adultério - principalmente quando o tema era tratado de forma tão rude e agressiva quanto no texto de Albee, que usa e abusa de termos chulos e apresenta como protagonistas um casal de meia-idade a anos-luz de distância do que se convencionava no cinemão de então. Interpretados pelo então casal de verdade Elizabeth Taylor e Richard Burton em seu quarto trabalho juntos, Martha e George são assustadoramente reais e o retrato mais chocante de uma relação doentia.
Depois de uma reunião social em um sábado à noite, o casal Martha e George recebe, em sua casa, os jovens Nick (George Segal em papel recusado por Robert Redford) e Honey (Sandy Dennis). Nick é um ambicioso professor de Biologia por quem Martha nutre uma forte atração e aos poucos começa a perceber que seus anfitriões tem uma maneira muito particular de convivência: professor de História na universidade onde o pai de Martha é reitor, George mantém com ela uma relação que alterna momentos de enfado com outros de extrema agressividade verbal. Conforme a noite avança e todos vão ficando mais e mais calibrados de álcool, acusações de todos os lados começam a surgir, acompanhadas de ressentimentos e revelações vexaminosas. Quando o filho adolescente do casal torna-se o assunto, então, a truculência atinge seu mais alto grau.
É preciso paciência com "Quem tem medo de Virginia Woolf?". Centrado quase que unicamente nos diálogos fortes e cadenciados de Edward Albee, o filme de Nichols tem um ritmo próprio, intercalando momentos de alta combustão com cenas mais tranquilas, fotografadas em exuberante preto-e-branco por Haskel Wexler que exploram a melancolia de seus personagens. O texto da peça - seguido à risca pelo cineasta, que creditou Ernest Lehman como roteirista mas não utilizou sua adaptação - é a força motriz do filme, fato que não passou incólume a seus intérpretes, que dão corpo e alma em suas atuações. Enquanto Burton está em seu melhor momento da carreira e George Segal constrói seu Nick com a sutileza apropriada, porém, Sandy Dennis força a caricatura com sua Honey, que frequentemente parece carregar nas tintas - não deixa de ser irônico que Dennis tenha levado o Oscar de coadjuvante, enquanto os intérpretes masculinos tenham ficado apenas com indicações.
Mas, se "Virginia Woolf" tem uma cara, ela é Elizabeth Taylor. Mais gorda que o habitual e desprovida da vaidade que a marcaram como uma das mais belas atrizes de Hollywood, ela calou de vez a boca dos detratores - que debitaram seu Oscar por "Disque Butterfiel 8" a seus problemas de saúde - com uma atuação fabulosa como a amarga e bêbada Martha, que não hesita em trair o marido diante de seus olhos e tem como combustível a virulência e a crueldade verbal. Merecedora vencedora do Oscar de melhor atriz Taylor - que recebeu mais de 1 milhão de dólares por seu trabalho - mostrou que, por trás de todas as polêmicas que cercavam sua vida pessoal, ela era uma atriz de primeira grandeza.
terça-feira
CLEÓPATRA
CLEOPATRA (Cleopatra, 1963, 20th Century Fox, 192min) Direção: Joseph L. Mankiewicz. Roteiro: Joseph L. Mankiewicz, Ranald MacDougall, Sidney Buchman, livro "The life and times of Cleopatra", de C.M. Franzero, estórias de Plutarco, Suetônio e Appian. Fotografia: Leon Shamroy. Montagem: Dorothy Spencer. Música: Alex North. Figurino: Vittorio Nino Novarese, Renié. Direção de arte/cenários: John De Cuir/Paul S. Fox, Ray Moyer, Walter M. Scott. Produção: Walter Wanger. Elenco: Elizabeth Taylor, Richard Burton, Rex Harrison, Hume Cronyn, Cesare Danova, Martin Landau, Roddy McDowall. Estreia: 12/6/63
9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Rex Harrison), Fotografia em Cores, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som, Efeitos Visuais
Vencedor de 4 Oscar: Fotografia em Cores, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais
Para se falar sobre "Cleopatra", o filme estrelado por Elizabeth Taylor é imprescindível que se afogue em números: 129.800 dólares somente para o figurino de Taylor, que troca de roupa 65 vezes durante a projeção; 44 milhões de dólares de orçamento (em números atuais cerca de 300); salário de 1 milhão de dólares para sua estrela (que, atualizados, chegam a 30 milhões); dez pessoas premiadas com o Oscar de direção de arte; 79 cenários construídos; 26.000 figurinos criados; quase três anos de filmagens; seis horas em sua primeira montagem. A superprodução que quase levou a 20th Century-Fox à falência é hoje mais lembrada por suas fofocas de bastidores do que exatamente pelo filme que é. Culpa dos excessos de todos os tipos que circundaram suas filmagens, desde o estouro do orçamento até as crises pessoais de seus intérpretes (Taylor entrou em coma depois de uma cirurgia durante as filmagens, além de ter se envolvido com seu co-astro Richard Burton). No entanto, apesar de todos os problemas, "Cleopatra" foi um dos maiores sucessos de bilheteria dos anos 60 e, se jogou seu estúdio na mais grave crise de sua história - da qual só saiu em 1965 com o êxito de "A noviça rebelde" - é porque seu orçamento extrapolou as mais ambiciosas previsões.
Tudo começou no final dos anos 50, quando a Fox, já em problemas financeiros, resolveu refilmar algum de seus êxitos mais antigos como forma de economia. O filme escolhido - "Cleopatra" - era o remake de um clássico de 1917 estrelado por Theda Bara. A ideia inicial era fazer do filme um veículo para a atriz Joan Collins, com um custo de 2 milhões de dólares, mas a saída de Collins do projeto, devido a adiamentos frequentes da produção, mudou tudo. Quando Elizabeth Taylor finalmente entrou no barco, a coisa começou a sair do controle: com um cachê de 1 milhão de dólares, a atriz tornou-se imediatamente a mais bem paga estrela de Hollywood. Para piorar - ou melhorar, dependendo do ponto de vista - ela voltou a encontrar-se com Richard Burton, com quem não havia simpatizado em uma primeira ocasião. Dessa vez, Burton, que viveria Marco Antonio, a segunda paixão da rainha do Egito, foi visto com mais simpatia por Taylor, com quem iniciou um tórrido romance que alterou até mesmo a ideia central do diretor Joseph L. Mankiewicz quanto ao lançamento do filme.
Mankiewicz - o mesmo cineasta que levou uma cusparada da indignada Katharine Hepburn ao final das filmagens de "De repente, no último verão" - chegou às filmagens de "Cleopatra" depois que o primeiro diretor, Rouben Mamoulian, abandonou o projeto. Quando assumiu as rédeas do filme, Mankiewicz tinha nas mãos um produto 5 milhões acima do orçamento inicial e nenhuma cena pronta. Teve, então, a ideia de fazer dois filmes com três horas de duração cada: "Cesar e Cleopatra" e "Antonio e Cleopatra". A princípio aceita, a ideia logo foi descartada por Darryl F. Zanuck, presidente do estúdio, que, querendo capitalizar em cima do notório romance entre Taylor e Burton, previu que a primeira metade - que tratava da relação entre Cleopatra e Julio Cesar (Rex Harrison) - seria um fracasso de público, uma vez que as atenções já estavam voltadas para o relacionamento entre dois de seus atores principais - que iniciariam ali um romance polêmico e cheio de idas e vindas. Rumores dizem, porém, que duas horas inéditas de filme ainda existem em algum lugar - e os fãs mal podem esperar para assistí-las.
Mas, afinal de contas, "Cleopatra" é um bom filme? Logicamente é uma produção caprichada, bem cuidada e visualmente impressionante, especialmente se for levado em consideração o fato de que é um produto pré-CGI. Porém, em sua ambição de ser esteticamente inesquecível, acaba deixando de lado o roteiro e concentrando-se no visual. Seu roteiro é repleto de cenas dispensáveis, que prejudicam fatalmente o ritmo. Sempre que Taylor - deslumbrante - e Burton estão em cena o filme cresce, mas enquanto isso não acontece, a audiência sofre com longuíssimos discursos sobre política e geografia que, ao invés de ajudar a compreender a história, apenas confundem. Fosse menos megalomaníaco e mais pessoal certamente teria maior sucesso em conquistar a simpatia do espectador, que, apesar disso, pode encantar-se com a opulência do resultado final. Como está, é um filmão - no sentido literal - mas um tanto oco e aborrecido. Vale por Liz Taylor no auge da beleza e sensualidade.
9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Rex Harrison), Fotografia em Cores, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Som, Efeitos Visuais
Vencedor de 4 Oscar: Fotografia em Cores, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais
Para se falar sobre "Cleopatra", o filme estrelado por Elizabeth Taylor é imprescindível que se afogue em números: 129.800 dólares somente para o figurino de Taylor, que troca de roupa 65 vezes durante a projeção; 44 milhões de dólares de orçamento (em números atuais cerca de 300); salário de 1 milhão de dólares para sua estrela (que, atualizados, chegam a 30 milhões); dez pessoas premiadas com o Oscar de direção de arte; 79 cenários construídos; 26.000 figurinos criados; quase três anos de filmagens; seis horas em sua primeira montagem. A superprodução que quase levou a 20th Century-Fox à falência é hoje mais lembrada por suas fofocas de bastidores do que exatamente pelo filme que é. Culpa dos excessos de todos os tipos que circundaram suas filmagens, desde o estouro do orçamento até as crises pessoais de seus intérpretes (Taylor entrou em coma depois de uma cirurgia durante as filmagens, além de ter se envolvido com seu co-astro Richard Burton). No entanto, apesar de todos os problemas, "Cleopatra" foi um dos maiores sucessos de bilheteria dos anos 60 e, se jogou seu estúdio na mais grave crise de sua história - da qual só saiu em 1965 com o êxito de "A noviça rebelde" - é porque seu orçamento extrapolou as mais ambiciosas previsões.
Tudo começou no final dos anos 50, quando a Fox, já em problemas financeiros, resolveu refilmar algum de seus êxitos mais antigos como forma de economia. O filme escolhido - "Cleopatra" - era o remake de um clássico de 1917 estrelado por Theda Bara. A ideia inicial era fazer do filme um veículo para a atriz Joan Collins, com um custo de 2 milhões de dólares, mas a saída de Collins do projeto, devido a adiamentos frequentes da produção, mudou tudo. Quando Elizabeth Taylor finalmente entrou no barco, a coisa começou a sair do controle: com um cachê de 1 milhão de dólares, a atriz tornou-se imediatamente a mais bem paga estrela de Hollywood. Para piorar - ou melhorar, dependendo do ponto de vista - ela voltou a encontrar-se com Richard Burton, com quem não havia simpatizado em uma primeira ocasião. Dessa vez, Burton, que viveria Marco Antonio, a segunda paixão da rainha do Egito, foi visto com mais simpatia por Taylor, com quem iniciou um tórrido romance que alterou até mesmo a ideia central do diretor Joseph L. Mankiewicz quanto ao lançamento do filme.
Mankiewicz - o mesmo cineasta que levou uma cusparada da indignada Katharine Hepburn ao final das filmagens de "De repente, no último verão" - chegou às filmagens de "Cleopatra" depois que o primeiro diretor, Rouben Mamoulian, abandonou o projeto. Quando assumiu as rédeas do filme, Mankiewicz tinha nas mãos um produto 5 milhões acima do orçamento inicial e nenhuma cena pronta. Teve, então, a ideia de fazer dois filmes com três horas de duração cada: "Cesar e Cleopatra" e "Antonio e Cleopatra". A princípio aceita, a ideia logo foi descartada por Darryl F. Zanuck, presidente do estúdio, que, querendo capitalizar em cima do notório romance entre Taylor e Burton, previu que a primeira metade - que tratava da relação entre Cleopatra e Julio Cesar (Rex Harrison) - seria um fracasso de público, uma vez que as atenções já estavam voltadas para o relacionamento entre dois de seus atores principais - que iniciariam ali um romance polêmico e cheio de idas e vindas. Rumores dizem, porém, que duas horas inéditas de filme ainda existem em algum lugar - e os fãs mal podem esperar para assistí-las.
Mas, afinal de contas, "Cleopatra" é um bom filme? Logicamente é uma produção caprichada, bem cuidada e visualmente impressionante, especialmente se for levado em consideração o fato de que é um produto pré-CGI. Porém, em sua ambição de ser esteticamente inesquecível, acaba deixando de lado o roteiro e concentrando-se no visual. Seu roteiro é repleto de cenas dispensáveis, que prejudicam fatalmente o ritmo. Sempre que Taylor - deslumbrante - e Burton estão em cena o filme cresce, mas enquanto isso não acontece, a audiência sofre com longuíssimos discursos sobre política e geografia que, ao invés de ajudar a compreender a história, apenas confundem. Fosse menos megalomaníaco e mais pessoal certamente teria maior sucesso em conquistar a simpatia do espectador, que, apesar disso, pode encantar-se com a opulência do resultado final. Como está, é um filmão - no sentido literal - mas um tanto oco e aborrecido. Vale por Liz Taylor no auge da beleza e sensualidade.
segunda-feira
ROCCO E SEUS IRMÃOS
ROCCO E SEUS IRMÃOS (Rocco e i suoi fratelli, 1960, Titanus, 177min) Direção: Luchino Visconti. Roteiro: Suso Checchi D'Amico, Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa, Enrico Medioli, Luchino Visconti. Fotografia: Giuseppe Rottuno. Montagem: Mario Serandrei. Música: Nino Rota. Figurino: Piero Tosi. Direção de arte: Mario Garbuglia. Produção: Goffredo Lombardo. Elenco: Alain Delon, Renato Salvatori, Annie Girardot, Katina Paxinou, Alessandra Panaro, Rocco Vidolazzi, Claudia Cardinale. Estreia: 06/9/60 (Festival de Veneza)
"Roma, cidade aberta", de Roberto Rossellini pode ter sido o marco inicial do neorrealismo italiano, com sua filmagem semidocumental e a preocupação sócio-política. "A doce vida", de Federico Fellini, talvez seja a imagem mais marcante da desilusão pós-guerra da Itália. Mas é "Rocco e seus irmãos", de Luchino Visconti, o mais perfeito equilíbrio entre o melodrama clássico e as questões sociais do cinema italiano dos anos 50/60. Mesmo já estando afastado do movimento liderado por Rossellini - mais por questões estéticas do que por motivos mais nobres - Visconti ainda mantinha dentro de si o desconforto de pertencer a uma família aristocrática diante da imensa desigualdade social de seu país, o que é nítido na maneira com que mescla a intelectualidade sensível e visual de sua obra com questionamentos radicais a respeito do capitalismo - selvagem a ponto de desmembrar uma família de imigrantes do sul da Itália que chegam à Milão repletos das ilusões que o mundo, moinho que é, irá reduzir a pó.
A viúva Rosaria Parondi (vivida pela grega Katina Paxinou) chega à Milão junto com seus quatro filhos caçulas para encontrar o mais velho, Vincenzo (Spiros Focas), que está noivo e com a vida relativamente organizada. O objetivo de Rosaria - fugir da pobreza de sua cidade - logo se mostra muito mais difícil de atingir do que o pensado inicialmente, quando ela percebe as dificuldades de arrumar trabalho em um país ainda sofrendo as consequências da guerra. Enquanto um dos rapazes, Ciro (Max Cartier) logo encontra emprego em uma montadora de automóveis, porém, Simone (Renato Salvatori) ingressa no mundo do boxe e da criminalidade. Envolvido com gente do submundo, ele se apaixona pela prostituta Nadia (Annie Girardot), que posteriormente cai de amores por Rocco (Alain Delon), que tenta vencer na vida honestamente. O triângulo amoroso logo descamba para a tragédia quando Rocco percebe que seu irmão está se degradando cada vez mais - roubando e apelando para a prostituição.
O roteiro de "Rocco e seus irmãos" é dividido em capítulos, dando protagonização a cada um dos irmãos, o que evita a superficialização dos personagens e seus dramas. Dessa forma, Visconti permite a seus atores a entrega total a seus papéis, de maneira a extrair de cada um atuações fortes e marcantes. Enquanto Katina Paxinou desenha com o exagero exato sua mãe Coragem - lutando desesperadamente para manter a união da família - o show acaba sendo mesmo dos protagonistas da trágica e violenta história de amor desenhada sobre o pano de fundo social criado pela trama. Alain Delon, com seu rosto delicado e semblante pacífico, dá a Rocco a figura ideal, de um homem sensível jogado no meio de um furacão e que tenta, com todas as suas forças, impedir a decadência absoluta do irmão. Annie Girardot está na medida certa com sua Nadia, mesclando sensualidade com carinho e agressividade. E Renato Salvatori deslumbra a todos com sua interpretação inesquecível do perdido Simone, alternado entre o homem raivoso que não sabe onde colocar o desejo e o filho pródigo que busca o entendimento familiar de maneira equivocada.
Repleto de cenas fascinantes e dirigidas com o apelo visual que se tornaria marca registrada na filmografia de Visconti, "Rocco e seus irmãos" é uma obra-prima inquestionável, atemporal e tão chocante hoje quanto à época de seu lançamento. Para ver e rever sempre!
"Roma, cidade aberta", de Roberto Rossellini pode ter sido o marco inicial do neorrealismo italiano, com sua filmagem semidocumental e a preocupação sócio-política. "A doce vida", de Federico Fellini, talvez seja a imagem mais marcante da desilusão pós-guerra da Itália. Mas é "Rocco e seus irmãos", de Luchino Visconti, o mais perfeito equilíbrio entre o melodrama clássico e as questões sociais do cinema italiano dos anos 50/60. Mesmo já estando afastado do movimento liderado por Rossellini - mais por questões estéticas do que por motivos mais nobres - Visconti ainda mantinha dentro de si o desconforto de pertencer a uma família aristocrática diante da imensa desigualdade social de seu país, o que é nítido na maneira com que mescla a intelectualidade sensível e visual de sua obra com questionamentos radicais a respeito do capitalismo - selvagem a ponto de desmembrar uma família de imigrantes do sul da Itália que chegam à Milão repletos das ilusões que o mundo, moinho que é, irá reduzir a pó.
A viúva Rosaria Parondi (vivida pela grega Katina Paxinou) chega à Milão junto com seus quatro filhos caçulas para encontrar o mais velho, Vincenzo (Spiros Focas), que está noivo e com a vida relativamente organizada. O objetivo de Rosaria - fugir da pobreza de sua cidade - logo se mostra muito mais difícil de atingir do que o pensado inicialmente, quando ela percebe as dificuldades de arrumar trabalho em um país ainda sofrendo as consequências da guerra. Enquanto um dos rapazes, Ciro (Max Cartier) logo encontra emprego em uma montadora de automóveis, porém, Simone (Renato Salvatori) ingressa no mundo do boxe e da criminalidade. Envolvido com gente do submundo, ele se apaixona pela prostituta Nadia (Annie Girardot), que posteriormente cai de amores por Rocco (Alain Delon), que tenta vencer na vida honestamente. O triângulo amoroso logo descamba para a tragédia quando Rocco percebe que seu irmão está se degradando cada vez mais - roubando e apelando para a prostituição.
O roteiro de "Rocco e seus irmãos" é dividido em capítulos, dando protagonização a cada um dos irmãos, o que evita a superficialização dos personagens e seus dramas. Dessa forma, Visconti permite a seus atores a entrega total a seus papéis, de maneira a extrair de cada um atuações fortes e marcantes. Enquanto Katina Paxinou desenha com o exagero exato sua mãe Coragem - lutando desesperadamente para manter a união da família - o show acaba sendo mesmo dos protagonistas da trágica e violenta história de amor desenhada sobre o pano de fundo social criado pela trama. Alain Delon, com seu rosto delicado e semblante pacífico, dá a Rocco a figura ideal, de um homem sensível jogado no meio de um furacão e que tenta, com todas as suas forças, impedir a decadência absoluta do irmão. Annie Girardot está na medida certa com sua Nadia, mesclando sensualidade com carinho e agressividade. E Renato Salvatori deslumbra a todos com sua interpretação inesquecível do perdido Simone, alternado entre o homem raivoso que não sabe onde colocar o desejo e o filho pródigo que busca o entendimento familiar de maneira equivocada.
Repleto de cenas fascinantes e dirigidas com o apelo visual que se tornaria marca registrada na filmografia de Visconti, "Rocco e seus irmãos" é uma obra-prima inquestionável, atemporal e tão chocante hoje quanto à época de seu lançamento. Para ver e rever sempre!
sexta-feira
A DOCE VIDA
A DOCE VIDA (La dolce vita, 1960, Riama Film, 174min) Direção: Federico Fellini. Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli. Fotografia: Otello Martelli. Montagem: Leo Catozzo. Música: Nino Rota. Figurino e direção de arte: Piero Gherardi. Produção executiva: Franco Magli. Produção: Giuseppe Amato, Angelo Rizzoli. Elenco: Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Anita Ekberg, Yvonne Furneaux, Walter Santesso, Alain Cuny. Estreia: 03/02/60
4 indicações ao Oscar: Diretor (Federico Fellini), Roteiro Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Oscar de Figurino
Vencedor da Palma de Ouro de Melhor Filme (Festival de Cannes)
Ninguém em sã consciência pode subestimar a importância de Federico Fellini para o cinema mundial e para o italiano em particular. Em uma carreira de cineasta que abarcou quarenta anos de filmes adorados pela crítica, pelo público e pela Academia de Hollywood, que lhe concedeu quatro Oscar de filme estrangeiro, Fellini deixou sua marca inconfundível, a ponto de tornar-se um adjetivo: quando se fala que determinada produção tem um estilo felliniano, todo mundo já sabe que assistirá um filme com extremo cuidado visual e uma linguagem própria, que beira o surreal e o poético.
4 indicações ao Oscar: Diretor (Federico Fellini), Roteiro Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Oscar de Figurino
Vencedor da Palma de Ouro de Melhor Filme (Festival de Cannes)
Ninguém em sã consciência pode subestimar a importância de Federico Fellini para o cinema mundial e para o italiano em particular. Em uma carreira de cineasta que abarcou quarenta anos de filmes adorados pela crítica, pelo público e pela Academia de Hollywood, que lhe concedeu quatro Oscar de filme estrangeiro, Fellini deixou sua marca inconfundível, a ponto de tornar-se um adjetivo: quando se fala que determinada produção tem um estilo felliniano, todo mundo já sabe que assistirá um filme com extremo cuidado visual e uma linguagem própria, que beira o surreal e o poético.
Apesar de muitas de suas mais famosas obras seguirem o viés onírico de
trabalhos como "Oito e meio" e, talvez o mais representativo de seus
filmes seja justamente um dos mais calcados na realidade de seu país natal.
"A doce vida", com seu olhar amargo e quase cruel sobre a sociedade
italiana do final dos anos 50/início dos 60 é, até hoje um dos mais memoráveis
retratos da geração fútil e perdida pós-guerra - e , nem é preciso ter
doutorado em sociologia para reconhecer, em seus personagens, um reflexo
chocante de um mundo que ainda hoje não se curou da ressaca que assolou a todos
após o conflito.
Marcelo Rubini, o protagonista - que o produtor Dino de Laurentiss
queria que fosse vivido por Paul Newman, antes que pulasse fora do projeto - é
um jornalista de celebridades que passa seus dias circulando na alta roda de
Roma, acompanhando socialites, artistas e parasitas em geral. Ao mesmo tempo
desiludido com sua carreira e atraído pelo luxo e glamour que circunda seus
"amigos", ele trata com apatia sua namorada (Yvonne Furneaux) - que
tenta chamar sua atenção com constantes tentativas de suicídio - vive distante
do pai e tem como amigo mais próximo o fotógrafo Paparazzo (personagem que deu
origem ao termo hoje amplamente conhecido). Sedutor, ele não hesita em ir para
a cama com qualquer mulher atraente que lhe cruze o caminho ou passar as noites
em festas excêntricas. Cansado do vazio de sua existência, ele passa a
questionar suas prioridades, mas sente-se incapaz de abandonar um estilo de
vida que não mais lhe agrada.
Contado de forma episódica, tendo apenas a presença de Marcelo como elo
de ligação entre os personagens, "A doce vida" desenha um caminho
repleto de símbolos religiosos, orgias, discursos vazios e um tédio que
acompanha o protagonista onde quer que ele vá. Fotografada com precisão
cirúrgica por Otello Martelli, a jornada de Marcelo rumo ao entendimento de sua
vida - ou ao abandono de seus ideais, forçado pela desilusão - chocou a Igreja
católica, que viu na decadência ilustrada por Fellini uma afronta à sua
ideologia, o que hoje pode soar um exagero consumado. Talvez, porém, os membros
do clero tenham visto no Cristo que sobrevoa a cidade de Roma na primeira cena
do filme algo mais do que simplesmente uma bela sequência visual.
Em sua primeira colaboração com Fellini - de quem tornou-se uma espécie
de alter-ego em várias produções posteriores - Marcello Mastroianni demonstra
compreensão absoluta de seu personagem. Sua expressão de cansaço e tédio
prescinde de muitas palavras, entregando ao espectador uma atuação consagradora
que o acompanhou até seus últimos dias. É difícil esquecer a cena mais famosa
do filme, em que a bela Anita Ekberg se banha na Fontana di Trevi, observada
pelo apaixonado Marcelo, em um dos momentos ícônicos do cinema europeu. Mas,
antes de mais nada, é a tradução, em imagens, da ideia central de Fellini: a
beleza, assim como o prazer, é essencial, mas efêmera e muitas vezes trivial.
quinta-feira
ACOSSADO
ACOSSADO (À bout de souffle, 1960, SNC, 90min) Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard, estória de François Truffaut. Fotografia: Raoul Coutard. Montagem: Cécile Decugis. Música: Martial Solal. Produção: Georges de Beauregard. Elenco: Jean-Paul Belmondo, Jean Seberg. Estreia: 16/3/60
Urso de Prata de Melhor Diretor (Jean-Luc Godard) no Festival de Berlim
Há mais em comum entre "Os incompreendidos", de François Truffaut e "Acossado" - o filme de estreia de Jean-Luc Godard - do que simplesmente serem ambos dirigidos por críticos da renomada revista Cahiers du Cinéma e serem os primeiros estandartes do que viria a ser chamada de Nouvelle Vague francesa. À parte a maneira descompromissada e então moderna de narrar suas histórias, Truffaut e Godard dividem também a proeza de elegerem como protagonistas de seus filmes personagens bem mais próximos à realidade do que aqueles com que Hollywood brindava seus espectadores. Tanto o Antoine Doinel criado por Truffaut quanto o Michel Poiccard inventado por Godard - e incorporado de forma inesquecível por Jean-Paul Belmondo - são, cada um à sua maneira, marginais incapazes de moldar-se a um mundo cujas regras lhes parece obsoleto e careta (mais ou menos o que os próprios cineastas achavam do cinema clássico europeu que tanto criticavam em suas resenhas).
Enquanto Doinel ilustrava sua insatisfação com pequenas mentiras na escola que, de forma crescente acabam por levar-lhe a delitos maiores, Poiccard está mais à sua frente. Vivendo de expedientes, sem moradia fixa e roubando carros por uma Paris filmada de forma seca mas sempre fascinante, ele começa o filme assassinando um policial durante uma fuga, mas, ao contrário do que se poderia esperar, não entra em desespero: procura uma espécie de namorada, a americana Patricia (Jean Seberg, encantadora), que trabalha vendendo o New York Herald Tribune e tenta convencê-la a juntar-se a ele em seu objetivo em sair do país. A jovem, independente e com sonhos de tornar-se jornalista, não compartilha do mesmo entusiasmo do rapaz, o que os acaba levando a um impasse enquanto buscam dinheiro para a deserção.
Levando-se em conta que Godard desprezava o classicismo exagerado das produções francesas de então, não deixa de ser surpreendente que a trama de seu primeiro filme seja tão simples e quase clichê, inspirada nitidamente nos thrillers americanos. O que o separa do corriqueiro, no entanto, não é sua história e sim a maneira anárquica e quase irresponsável como ela é contada. Abdicando quase completamente de luz artificial, usando câmera na mão - o que não era tão comum como é hoje - trabalhando sem um roteiro e apelando para a pós-sincronização do som (o que lhe dá um toque de modernidade ao invés de amador). Sua edição arrojada (que usa e abusa de jump cuts) - e hoje é imitada à exaustão sem que a maior parte da audiência dê a Godard o devido reconhecimento por isso - é outro ponto crucial na tentativa do cineasta de romper com o tradicional, ainda que muito dessa criatividade venha do orçamento irrisório com que realizou seu filme: enquanto frequentemente corta de uma pessoa para ela mesma, Godard também se dá ao luxo de dispender preciosos minutos em uma longa conversa em um quarto de hotel, onde explora a química entre seus dois protagonistas.
Enquanto Jean Seberg exibe sua beleza andrógina, de cabelos bem curtos e sem maquiagem, mas nunca deixando de lado sua fragilidade, Jean-Paul Belmondo exala charme e um cinismo emprestados de Humphrey Bogart - ídolo de seu personagem e uma das inúmeras referências que desfilam pelo filme. Em uma bela sequência, por exemplo, Patricia cita William Faulkner, dizendo "entre a dor e o nada, prefiro a dor", o que acaba sendo uma pista do destino de seus personagens - e a ironia de tudo é o trágico fim da atriz, que suicidou-se em 1979, quando viu sua carreira entrar em declínio.
"Acossado" não é para ser visto com olhos de hoje. É preciso levar-se em consideração sua coragem em quebrar paradigmas visuais e narrativos para melhor compreender sua importância. E tanto ele é muito mais forma que conteúdo que uma refilmagem desnecessária batizada de "A força do amor", estrelada por Richard Gere nos anos 80 foi um fiasco total e absoluto.
Urso de Prata de Melhor Diretor (Jean-Luc Godard) no Festival de Berlim
Há mais em comum entre "Os incompreendidos", de François Truffaut e "Acossado" - o filme de estreia de Jean-Luc Godard - do que simplesmente serem ambos dirigidos por críticos da renomada revista Cahiers du Cinéma e serem os primeiros estandartes do que viria a ser chamada de Nouvelle Vague francesa. À parte a maneira descompromissada e então moderna de narrar suas histórias, Truffaut e Godard dividem também a proeza de elegerem como protagonistas de seus filmes personagens bem mais próximos à realidade do que aqueles com que Hollywood brindava seus espectadores. Tanto o Antoine Doinel criado por Truffaut quanto o Michel Poiccard inventado por Godard - e incorporado de forma inesquecível por Jean-Paul Belmondo - são, cada um à sua maneira, marginais incapazes de moldar-se a um mundo cujas regras lhes parece obsoleto e careta (mais ou menos o que os próprios cineastas achavam do cinema clássico europeu que tanto criticavam em suas resenhas).
Enquanto Doinel ilustrava sua insatisfação com pequenas mentiras na escola que, de forma crescente acabam por levar-lhe a delitos maiores, Poiccard está mais à sua frente. Vivendo de expedientes, sem moradia fixa e roubando carros por uma Paris filmada de forma seca mas sempre fascinante, ele começa o filme assassinando um policial durante uma fuga, mas, ao contrário do que se poderia esperar, não entra em desespero: procura uma espécie de namorada, a americana Patricia (Jean Seberg, encantadora), que trabalha vendendo o New York Herald Tribune e tenta convencê-la a juntar-se a ele em seu objetivo em sair do país. A jovem, independente e com sonhos de tornar-se jornalista, não compartilha do mesmo entusiasmo do rapaz, o que os acaba levando a um impasse enquanto buscam dinheiro para a deserção.
Levando-se em conta que Godard desprezava o classicismo exagerado das produções francesas de então, não deixa de ser surpreendente que a trama de seu primeiro filme seja tão simples e quase clichê, inspirada nitidamente nos thrillers americanos. O que o separa do corriqueiro, no entanto, não é sua história e sim a maneira anárquica e quase irresponsável como ela é contada. Abdicando quase completamente de luz artificial, usando câmera na mão - o que não era tão comum como é hoje - trabalhando sem um roteiro e apelando para a pós-sincronização do som (o que lhe dá um toque de modernidade ao invés de amador). Sua edição arrojada (que usa e abusa de jump cuts) - e hoje é imitada à exaustão sem que a maior parte da audiência dê a Godard o devido reconhecimento por isso - é outro ponto crucial na tentativa do cineasta de romper com o tradicional, ainda que muito dessa criatividade venha do orçamento irrisório com que realizou seu filme: enquanto frequentemente corta de uma pessoa para ela mesma, Godard também se dá ao luxo de dispender preciosos minutos em uma longa conversa em um quarto de hotel, onde explora a química entre seus dois protagonistas.
Enquanto Jean Seberg exibe sua beleza andrógina, de cabelos bem curtos e sem maquiagem, mas nunca deixando de lado sua fragilidade, Jean-Paul Belmondo exala charme e um cinismo emprestados de Humphrey Bogart - ídolo de seu personagem e uma das inúmeras referências que desfilam pelo filme. Em uma bela sequência, por exemplo, Patricia cita William Faulkner, dizendo "entre a dor e o nada, prefiro a dor", o que acaba sendo uma pista do destino de seus personagens - e a ironia de tudo é o trágico fim da atriz, que suicidou-se em 1979, quando viu sua carreira entrar em declínio.
"Acossado" não é para ser visto com olhos de hoje. É preciso levar-se em consideração sua coragem em quebrar paradigmas visuais e narrativos para melhor compreender sua importância. E tanto ele é muito mais forma que conteúdo que uma refilmagem desnecessária batizada de "A força do amor", estrelada por Richard Gere nos anos 80 foi um fiasco total e absoluto.
quarta-feira
DE REPENTE, NO ÚLTIMO VERÃO
DE REPENTE, NO ÚLTIMO VERÃO (Suddenly, last summer, 1959, Columbia Pictures, 114min) Direção: Joseph L. Mankiewicz. Roteiro: Gore Vidal, Tennessee Williams, peça teatral de Tenneessee Williams. Fotografia: Jack Hildyard. Montagem: William Hornbeck, Thomas G. Stanford. Música: Malcolm Arnold, Buxton Orr. Figurino: Oliver Messel. Direção de arte/cenários: Oliver Messel/Scott Slimon. Produção: Sam Spiegel. Elenco: Elizabeth Taylor, Montgomery Clift, Katharine Hepburn. Estreia: 22/12/59
3 indicações ao Oscar: Atriz (Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor), Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz/Drama (Elizabeth Taylor)
Segundo a biografia "Tracy and Hepburn", de Garson Kanin, quando seu trabalho em "De repente, no último verão" chegou ao final, Katharine Hepburn aproximou-se do diretor Joseph L. Mankiewicz e do produtor Sam Spiegel e, furiosa, encheu-os de impropérios e acabou seu discurso cuspindo em seu rosto. Apesar do gênio difícil da atriz, não foi apenas um ato de rebeldia sem causa: seu ato final era a resposta ao modo cruel com que os dois homens haviam tratado o ator Montgomery Clift durante as filmagens. Já na fase posterior a seu acidente de carro em 1956 - que quase o matou e o jogou definitivamente na dependência de remédios que afinal apressaria sua morte dez anos depois - Clift só não foi substituído no papel central masculino graças à sua amiga de longa data Elizabeth Taylor, que ameaçou também abandonar o projeto caso ele fosse demitido. Esse clima pouco amistoso entre diretor, produtor e astro refletia-se na maneira pouco gentil com que o ator era tratado - e que resultou no acesso de raiva de Hepburn.
Baseado em uma peça teatral de um ato escrita pelo sempre polêmico Tennessee Williams - que também assinou "Um bonde chamado desejo" - e roteirizado pelo próprio autor e pelo escritor Gore Vidal, "De repente, no último verão" teve sua história amenizada na transição para o cinema, devido às restrições impostas pela censura, que jamais teria deixado que ficassem explícitos nas telas seus principais temas, que incluíam homossexualidade, incesto, estupro e canibalismo. Ainda assim, foi muito por causa das críticas que repeliam todo o peso do filme que ele acabou fazendo sucesso - por isso e pela reunião, pela primeira e única vez, de três grandes nomes do cinema da época. Taylor e Hepburn acabaram sendo indicadas ao Oscar de melhor atriz, e Liz foi premiada com o Golden Globe por seu desempenho como a complexa Catherine Holly - papel que Patricia Neal havia defendido com garra na montagem da peça em Londres.
Apesar de aparecer somente do primeiro terço de projeção, Catherine, a personagem de Taylor, é a peça-chave da trama de Williams, dirigida com pulso firme por Mankiewicz - famoso por sua tirania e pelo Oscar de diretor pelo inesquecível "A malvada", de 1950. Antes que ela surja em cena, o público é apresentado a ela através da história contada por sua tia, a milionária Violet Venable (Katharine Hepburn), que vive isolada em uma mansão excêntrica, solitária desde a morte de seu único filho, Sebastian, descrito por ela como um poeta sensível e delicado. Segundo Violet, a morte do rapaz, acontecida um ano antes devido a um ataque cardíaco em uma praia da Espanha, causou um grande desequilíbrio em sua sobrinha, que, desde então, vem sofrendo de sérios problemas de desequilíbrio mental. Preocupada, Violet quer que John Crukowicz (Montgomery Clift) - famoso por suas experiências no campo da neurocirurgia - faça uma lobotomia na jovem, acenando com uma generosa doação para seu hospital. Quando conhece Catherine, porém, o médico passa a desconfiar que sua doença tem origem nas lembranças ocultas que ela tem da morte do primo e resolve forçá-la a encarar a tragédia - que não aconteceu conforme narrado por Violet.
Ainda que exagere em muitos pontos em sua trama - inspirada em sua própria irmã, que sofreu uma lobotomia - Williams consegue, em "De repente, no último verão", construir uma tensão crescente, que prende a atenção do público até seus momentos finais. Sem pausa para o humor ou instantes mais leves, o roteiro discorre fluentemente sobre assuntos pouco agradáveis ao gosto médio do público, conforme dito anteriormente. Não há espaço para romantismo - ainda que a atração entre o médico e Catherine seja óbvia - ou para soluções fáceis. Mankiewicz filma o hospital psiquiátrico sem dourar a pílula, mostrando com crueza o estado dos pacientes e não hesita em pesar a mão quando necessário. Infelizmente as restrições da censura - que limou a maioria das cenas que esclareciam a real personalidade de Sebastian - não permitiram que o filme fosse mais a fundo, o que certamente daria à obra uma ressonância ainda maior.
Forte, tenso e interpretado por três dos maiores atores da era dourada de Hollywood, "De repente, no último verão" é uma prova de que, apesar do caráter pouco admirável, Joseph L. Mankiewicz era capaz de prestar grandes serviços à sétima arte.
3 indicações ao Oscar: Atriz (Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor), Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz/Drama (Elizabeth Taylor)
Segundo a biografia "Tracy and Hepburn", de Garson Kanin, quando seu trabalho em "De repente, no último verão" chegou ao final, Katharine Hepburn aproximou-se do diretor Joseph L. Mankiewicz e do produtor Sam Spiegel e, furiosa, encheu-os de impropérios e acabou seu discurso cuspindo em seu rosto. Apesar do gênio difícil da atriz, não foi apenas um ato de rebeldia sem causa: seu ato final era a resposta ao modo cruel com que os dois homens haviam tratado o ator Montgomery Clift durante as filmagens. Já na fase posterior a seu acidente de carro em 1956 - que quase o matou e o jogou definitivamente na dependência de remédios que afinal apressaria sua morte dez anos depois - Clift só não foi substituído no papel central masculino graças à sua amiga de longa data Elizabeth Taylor, que ameaçou também abandonar o projeto caso ele fosse demitido. Esse clima pouco amistoso entre diretor, produtor e astro refletia-se na maneira pouco gentil com que o ator era tratado - e que resultou no acesso de raiva de Hepburn.
Baseado em uma peça teatral de um ato escrita pelo sempre polêmico Tennessee Williams - que também assinou "Um bonde chamado desejo" - e roteirizado pelo próprio autor e pelo escritor Gore Vidal, "De repente, no último verão" teve sua história amenizada na transição para o cinema, devido às restrições impostas pela censura, que jamais teria deixado que ficassem explícitos nas telas seus principais temas, que incluíam homossexualidade, incesto, estupro e canibalismo. Ainda assim, foi muito por causa das críticas que repeliam todo o peso do filme que ele acabou fazendo sucesso - por isso e pela reunião, pela primeira e única vez, de três grandes nomes do cinema da época. Taylor e Hepburn acabaram sendo indicadas ao Oscar de melhor atriz, e Liz foi premiada com o Golden Globe por seu desempenho como a complexa Catherine Holly - papel que Patricia Neal havia defendido com garra na montagem da peça em Londres.
Apesar de aparecer somente do primeiro terço de projeção, Catherine, a personagem de Taylor, é a peça-chave da trama de Williams, dirigida com pulso firme por Mankiewicz - famoso por sua tirania e pelo Oscar de diretor pelo inesquecível "A malvada", de 1950. Antes que ela surja em cena, o público é apresentado a ela através da história contada por sua tia, a milionária Violet Venable (Katharine Hepburn), que vive isolada em uma mansão excêntrica, solitária desde a morte de seu único filho, Sebastian, descrito por ela como um poeta sensível e delicado. Segundo Violet, a morte do rapaz, acontecida um ano antes devido a um ataque cardíaco em uma praia da Espanha, causou um grande desequilíbrio em sua sobrinha, que, desde então, vem sofrendo de sérios problemas de desequilíbrio mental. Preocupada, Violet quer que John Crukowicz (Montgomery Clift) - famoso por suas experiências no campo da neurocirurgia - faça uma lobotomia na jovem, acenando com uma generosa doação para seu hospital. Quando conhece Catherine, porém, o médico passa a desconfiar que sua doença tem origem nas lembranças ocultas que ela tem da morte do primo e resolve forçá-la a encarar a tragédia - que não aconteceu conforme narrado por Violet.
Ainda que exagere em muitos pontos em sua trama - inspirada em sua própria irmã, que sofreu uma lobotomia - Williams consegue, em "De repente, no último verão", construir uma tensão crescente, que prende a atenção do público até seus momentos finais. Sem pausa para o humor ou instantes mais leves, o roteiro discorre fluentemente sobre assuntos pouco agradáveis ao gosto médio do público, conforme dito anteriormente. Não há espaço para romantismo - ainda que a atração entre o médico e Catherine seja óbvia - ou para soluções fáceis. Mankiewicz filma o hospital psiquiátrico sem dourar a pílula, mostrando com crueza o estado dos pacientes e não hesita em pesar a mão quando necessário. Infelizmente as restrições da censura - que limou a maioria das cenas que esclareciam a real personalidade de Sebastian - não permitiram que o filme fosse mais a fundo, o que certamente daria à obra uma ressonância ainda maior.
Forte, tenso e interpretado por três dos maiores atores da era dourada de Hollywood, "De repente, no último verão" é uma prova de que, apesar do caráter pouco admirável, Joseph L. Mankiewicz era capaz de prestar grandes serviços à sétima arte.
terça-feira
UMA CRUZ À BEIRA DO ABISMO
UMA CRUZ À BEIRA DO ABISMO (The nun's story, 1959, Warner Bros, 149min) Direção: Fred Zinnemann. Roteiro: Robert Anderson, livro de Kathryn C. Hulme. Fotografia: Franz Planer. Montagem: Walter Thompson. Música: Franz Waxman. Figurino: Marjorie Best. Direção de arte/cenários: Alexander Trauner/Maurice Barnathan. Produção: Henry Blanke. Elenco: Audrey Hepburn, Peter Finch, Dame Edith Evans, Peggy Ashcroft, Dean Jagger, Mildred Dunnock. Estreia: 18/6/59
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Fred Zinnemann), Atriz (Audrey Hepburn), Roteiro Adaptado, Fotografia em Cores, Montagem, Trilha Sonora Original, Som
Uma princesa em fuga, uma sofisticada filha de chofer particular, uma bibliotecária transformada em modelo... e uma freira. Para quem tinha dúvidas da capacidade de Audrey Hepburn em transmutar-se em personagens diferentes de si mesma, o filme "Uma cruz à beira do abismo" tratou de apagá-las. A anos-luz de distância de suas criações anteriores - que a tornaram uma das atrizes mais queridas e prestigiadas de sua época - a religiosa belga que vai ao Congo para servir de enfermeira aos doentes tropicais lhe deu uma indicação ao Oscar e acabou tornando-se o filme preferido da eterna bonequinha de luxo. Maior sucesso de bilheteria da Warner em 1959, a adaptação do livro de Kathryn C. Hulme, baseada em uma história real, chegou às telas sob o comando do diretor Fred Zinnemann, que constrói seu filme impecavelmente, equilibrando com perfeição os dois atos da trama e proporcionando ao espectador um espetáculo que vale por dois.
A primeira parte de "Uma cruz à beira do abismo" - um título nacional um tanto estranho para o bem mais coeso "The nun's story" - trata da adaptação da jovem Gabrielle van der Mal à sua nova realidade como noviça, em contraste com sua vida anterior como filha de um proeminente cirurgião. Sentindo-se um tanto aprisionada com as rígidas regras do convento, ela mantém-se firme em seu propósito de viajar ao Congo e colaborar no tratamento das doenças tropicais que são objeto de seu estudo. Depois de algumas decepções com a hierarquia e a estrutura religiosa do convento e um período trabalhando em uma instituição para tratamento de doentes mentais, ela finalmente alcança seu objetivo e, com o nome de Irmã Luke, torna-se a enfermeira assistente do ateu dr. Fortunati (Peter Finch), a quem admira profundamente. Sua vida no Congo - onde presencia um estilo de vida que a faz questionar sua fé constantemente - lhe dá forças para transformar-se em uma presença querida, tanto pelos colegas quanto pelos nativos. No entanto, quando a II Guerra explode, ela retorna à Bélgica e fica diante do dilema de manter-se neutra diante da invasão alemã - principalmente quando a morte bate à sua porta.
Ficando com o papel que Ingrid Bergman recusou por considerar-se velha demais, Audrey Hepburn faz uso de sua imagem serena e delicada para transmitir, sem que seja preciso muitas palavras, todos os conflitos de sua irmã Luke. Ela é a sólida base do filme de Zinnemann, que, através dela, comenta o panorama sócio-político do Congo belga na ocasião da Segunda Guerra sem soar panfletário ou paternalista. Sua direção, coesa e direta, é uma das maiores qualidades do filme, fotografado com maestria por Franz Planer, que explora as belas paisagens naturais do país sem torná-las apenas uma propaganda turística. O encontro das culturas entre a católica Irmã Luke e os nativos do Congo, com suas crenças particulares, é uma subtrama fascinante, tratada com respeito e seriedade, mas nunca com excessiva formalidade. E é impossível deixar de notar o excelente elenco coadjuvante, no qual se incluem as damas Peggy Ashcroft e Edith Evans.
"Uma cruz à beira do abismo" é um filme atípico na carreira de Audrey Hepburn. Deixando de lado o charme fashion e elegante de seus trabalhos mais conhecidos - e isso que "Bonequinha de luxo" ainda não havia sido lançado - a obra de Zinnemann é cinema da mais alta qualidade, dotado de ritmo, relevância social e noção de entretenimento. Imperdível!
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Fred Zinnemann), Atriz (Audrey Hepburn), Roteiro Adaptado, Fotografia em Cores, Montagem, Trilha Sonora Original, Som
Uma princesa em fuga, uma sofisticada filha de chofer particular, uma bibliotecária transformada em modelo... e uma freira. Para quem tinha dúvidas da capacidade de Audrey Hepburn em transmutar-se em personagens diferentes de si mesma, o filme "Uma cruz à beira do abismo" tratou de apagá-las. A anos-luz de distância de suas criações anteriores - que a tornaram uma das atrizes mais queridas e prestigiadas de sua época - a religiosa belga que vai ao Congo para servir de enfermeira aos doentes tropicais lhe deu uma indicação ao Oscar e acabou tornando-se o filme preferido da eterna bonequinha de luxo. Maior sucesso de bilheteria da Warner em 1959, a adaptação do livro de Kathryn C. Hulme, baseada em uma história real, chegou às telas sob o comando do diretor Fred Zinnemann, que constrói seu filme impecavelmente, equilibrando com perfeição os dois atos da trama e proporcionando ao espectador um espetáculo que vale por dois.
A primeira parte de "Uma cruz à beira do abismo" - um título nacional um tanto estranho para o bem mais coeso "The nun's story" - trata da adaptação da jovem Gabrielle van der Mal à sua nova realidade como noviça, em contraste com sua vida anterior como filha de um proeminente cirurgião. Sentindo-se um tanto aprisionada com as rígidas regras do convento, ela mantém-se firme em seu propósito de viajar ao Congo e colaborar no tratamento das doenças tropicais que são objeto de seu estudo. Depois de algumas decepções com a hierarquia e a estrutura religiosa do convento e um período trabalhando em uma instituição para tratamento de doentes mentais, ela finalmente alcança seu objetivo e, com o nome de Irmã Luke, torna-se a enfermeira assistente do ateu dr. Fortunati (Peter Finch), a quem admira profundamente. Sua vida no Congo - onde presencia um estilo de vida que a faz questionar sua fé constantemente - lhe dá forças para transformar-se em uma presença querida, tanto pelos colegas quanto pelos nativos. No entanto, quando a II Guerra explode, ela retorna à Bélgica e fica diante do dilema de manter-se neutra diante da invasão alemã - principalmente quando a morte bate à sua porta.
Ficando com o papel que Ingrid Bergman recusou por considerar-se velha demais, Audrey Hepburn faz uso de sua imagem serena e delicada para transmitir, sem que seja preciso muitas palavras, todos os conflitos de sua irmã Luke. Ela é a sólida base do filme de Zinnemann, que, através dela, comenta o panorama sócio-político do Congo belga na ocasião da Segunda Guerra sem soar panfletário ou paternalista. Sua direção, coesa e direta, é uma das maiores qualidades do filme, fotografado com maestria por Franz Planer, que explora as belas paisagens naturais do país sem torná-las apenas uma propaganda turística. O encontro das culturas entre a católica Irmã Luke e os nativos do Congo, com suas crenças particulares, é uma subtrama fascinante, tratada com respeito e seriedade, mas nunca com excessiva formalidade. E é impossível deixar de notar o excelente elenco coadjuvante, no qual se incluem as damas Peggy Ashcroft e Edith Evans.
"Uma cruz à beira do abismo" é um filme atípico na carreira de Audrey Hepburn. Deixando de lado o charme fashion e elegante de seus trabalhos mais conhecidos - e isso que "Bonequinha de luxo" ainda não havia sido lançado - a obra de Zinnemann é cinema da mais alta qualidade, dotado de ritmo, relevância social e noção de entretenimento. Imperdível!
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