terça-feira

ÊXODO: DEUSES E REIS


ÊXODO: DEUSES E REIS (Exodus: Gods and Kings, 2014, 20th Century Fox, 150min) Direção: Ridley Scott. Roteiro: Adam Cooper, Bill Collage, Jeffrey Caine, Steven Zaillian. Fotografia: Darius Wolski. Montagem: Billy Rich. Música: Alberto Iglesias. Figurino: Jandy Yates. Direção de arte/cenários: Arthur Max/Cecilia Bobak, Pilar Revuelta. Produção executiva: Hisham Soliman. Produção: Mark Albela, Peter Chernin, Mohamed El Raie, Mark Huffam, Denise O'Dell, Mchael Schaefer, Ridley Scott, Jenno Topping. Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley, John Turturro, Aaron Paul, Ben Mendelsohn, Sigourney Weaver, Hiam Abass, Ewen Bremner. Estreia: 03/12/2014 (Londres)

Houve um tempo em que Hollywood - e as plateias ao redor do mundo - tinham uma indisfarçada fascinação por produções épicas/religiosas. Com a chegada de um novo estilo cinematográfico, mais ágil e moderno (a partir do final dos anos 1960), o gênero saiu de moda, e parecia destinado apenas à nostalgia até que Ridley Scott mostrou que ele ainda tinha espaço, com o sucesso de público, de crítica e de Oscars de "Gladiador" (2000). A partir daí, estúdios e cineastas voltavam a apostar em filmes grandiosos, de orçamentos generosos e narrativas pomposas - desta vez com o apoio de efeitos visuais caprichados e astros de primeira grandeza. Nem todos deram certo, e nem mesmo o próprio Scott escapou de tropeços, como "Cruzada" (2005) e "Robin Hood" (2010). Em um meio termo entre o sucesso e o fracasso absoluto, o cineasta inglês tampouco foi exatamente feliz com sua visão da conhecida história de Moisés e sua luta para libertar o povo judeu da escravidão. "Êxodo: deuses e reis" não foi um êxito comercial - em parte consequência do orçamento milionário de 140 milhões de dólares - e falhou em conquistar a crítica como em seus melhores trabalhos. Lançado no mesmo ano em que Darren Aronofsky estreou seu "Noé" - igualmente controverso e também mais calcado na realidade do que no tom místico normalmente encontrados nos clássicos religiosos -, o filme de Scott esbarrou basicamente em sua indecisão entre ser uma jornada épica de ação ou uma discussão sobre Deus e seus desígnios. Sofrendo com um ritmo lento que faz a trama engrenar só depois da metade da projeção, "Êxodo: deuses e reis" acabou desperdiçando a chance de unir o melhor do passado - uma história à moda antiga - com o presente - efeitos especiais de última geração, algo que somente muito dinheiro pode comprar - e resultou em um filme apenas morno.

Christian Bale, que também era a primeira escolha de Aronofsky para interpretar seu Noé - que ficou com Russell Crowe - quase perdeu o papel de Moisés, por causa do excesso de peso adquirido para "Trapaça" (2013), mas acabou acrescentando outro herói a uma galeria que inclui nada menos que o homem-morcego na trilogia capitaneada por Christopher Nolan. Bale entrega uma atuação forte, mas tropeça em um roteiro que evita a emoção a todo custo - e em um personagem arrogante e pouco simpático, o que dificulta a empatia do público. Sorte sua que o Ramsés de Joel Edgerton é ainda pior, com ares de vilão cartunesco mas ainda assim dentro da proposta de Scott. Agnóstico assumido, o cineasta narra sua história sob um ponto de vista calcado em possibilidades reais - as sete pragas do Egito, por exemplo, encontram explicações científicas que as obras anteriores de Cecil B. de Mille jamais buscariam: são sequências muito interessantes, criadas com o bom gosto de quem já criou obras indeléveis como "Alien: o oitavo passageiro" (1979) e "Blade Runner: o caçador de androides" (1982), mas é pouco para seduzir uma plateia acostumada a ação incessante. E nesse ponto a produção peca - e muito.

 

Demora quase meia-hora para que "Êxodo: deuses e reis" comece realmente a contar sua história. Antes que Moisés descubra suas origens hebraicas - o que dá o pontapé inicial para seu declínio junto ao Faraó Seti (John Turturro) e posterior redenção junto a seu povo, que o escolhe como líder contra as tiranias impostas pelo novo governante, o cruel Ramsés. Até que finalmente Moisés resolva desafiar seu antigo "irmão", o filme desfila uma série de diálogos lentos e quase desnecessários, que testam a paciência do espectador mesmo diante da opulência da direção de arte e da fotografia deslumbrante de Darius Wolski. Sigourney Weaver - parceria constante de Scott - aparece pouco, depois de ter boa parte de suas cenas cortadas na edição final, e Ben Kingsley, apesar do papel de importância crucial, é subaproveitado, assim como Aaron Paul, em alta pela série "Breaking bad", que mal aparece, com um personagem aleatório e sem força narrativa. É paradoxal que o roteiro tente fazer do filme mais do que simplesmente um épico de imagens fortes e ao mesmo tempo falhe consistentemente em aprofundar as relações entre os personagens e até mesmo suas personalidades. Apenas a rivalidade de Moisés e Ramsés é desenvolvida - e mesmo assim sem maior densidade - e o casamento do protagonista com Nefertari (Golshifeth Farahani) ocupa lugar periférico na trama, servindo apenas como (mais) um ponto de ruptura entre as duas vidas de Moisés. E não deixa de ser frustrante assistir-se a duas horas de filme para que ele tenha um final tão anti-climático quanto o proposto pelos roteiristas, dentre os quais os previamente indicados ao Oscar Jeffrey Caine e Steven Zaillian - que chegou a levar uma estatueta para casa pelo sensível "A lista de Schindler" (1993).

Mas afinal de contas, "Èxodo: deuses e reis" é totalmente ruim? Jamais. O visual, como já afirmado, é impressionante, desde o design de produção até os efeitos visuais - ainda que nem mesmo eles desafiem o inesquecível "Os dez mandamentos" (1956) -, e Joel Edgerton deita e rola como Ramsés (assumindo um papel recusado por Javier Bardem e Oscar Isaac). Christian Bale tem a potência necessária para viver um Moisés inesquecível, e mesmo que sua criação seja um tanto arrogante demais para despertar a torcida do público, seu talento impede que o filme caia nos clichês do gênero. Além disso, algumas soluções criadas para uma versão menos religiosa e mais política são fascinantes, como fazer de Deus uma criança mimada (o que incomodou os mais ortodoxos) e dar explicações racionais (ou o mais perto possível disso) às pestes que assolam o Egito. São momentos como esses que quase salvam o filme de Scott - que, com uma edição mais enxuta e um trabalho melhor no desenvolvimento de seus personagens poderia ter facilmente alcançado um lugar de honra entre as grandes produções épicas de seu tempo. Como está é um filme bem realizado mas sem alma. Muito visual para pouco conteúdo. Uma pena!

sábado

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?


O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (O que é isso, companheiro?, 1997, Columbia Pictures/Luiz Carlos Barreto Produções, 110min) Direção: Bruno Barreto. Roteiro: Leopoldo Serran, livro de Fernando Gabeira. Fotografia: Félix Monti. Montagem: Isabelle Rathery. Música: Stewart Copeland. Figurino: Emilia Duncan. Direção de arte/cenários: Marcos Flaksman, Alexandre Meyer/Carlos Eduardo Mallet. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto. Elenco: Alan Arkin, Pedro Cardoso, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Matheus Nachtergaele, Luiz Fernando Guimarães, Caio Junqueira, Selton Mello, Marco Ricca, Alessandra Negrini, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Luiz Armando Queiroz, Nelson Dantas, Maurício Gonçalves, Milton Gonçalves, Eduardo Moscovis, Othon Bastos. Estreia: 19/4/97

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Publicado em 1979 e logo alçado ao posto de um clássico contemporâneo, "O que é isso, companheiro?" narrava, em primeira pessoa, as experiências de Fernando Gabeira na luta armada contra a ditadura militar brasileira, sua participação no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sua prisão e seu exílio na Europa. Com mais de 250 mil exemplares vendidos, o livro foi peça fundamental na consolidação da carreira política do autor e uma das obras seminais a respeito de um dos períodos mais sombrios da história do país. Cinco anos depois de servir como uma das bases da minissérie global "Anos rebeldes" - um sucesso estrondoso que voltou a colocar os anos de chumbo em evidência - e quase duas décadas depois de seu lançamento, as memórias de Gabeira voltaram à tona com sua adaptação para o cinema. Com produção de Lucy e Luiz Carlos Barreto, direção de Bruno Barreto - já com carreira internacional consolidada - e coprodução da Columbia Pictures, a versão para as telas do infame sequestro de Elbrick ganhou a simpatia do público, da crítica e da Academia de Hollywood, que lhe indicou ao Oscar de melhor filme estrangeiro: não chegou a sair como vencedor - teve os planos atrapalhados pelo holandês "Caráter" -, mas foi um passo adiante do cinema brasileiro em direção ao respeito mundial.

O roteiro do experiente Leopoldo Serran - responsável pela adaptação de "O quatrilho", outra produção dos Barreto a ter concorrido ao Oscar, em 1996 - não abarca todo o livro de Gabeira, concentrando-se exclusivamente em seu elemento mais cinematográfico: sua entrada para o temido Movimento Revolucionário 8 de outubro (ou MR-8) e sua participação naquele que se tornaria um dos momentos mais emblemáticos da luta armada do final dos anos 1960. O próprio autor admite que sua personificação no filme (na pele do ótimo Pedro Cardoso) tem mais importância do que ele teve na realidade, mas a licença poética é plenamente compreensível em termos dramáticos: como elemento narrativo, é muito mais interessante um personagem como Fernando - um jovem sem experiência na luta que se vê no olho de um furacão e assume papel fundamental em um episódio muito maior que ele - do que um espectador passivo, servindo apenas de testemunha da história. Fernando é um homem de letras, de propensões intelectuais, e não alguém cuja índole previa pegar em armas e participar de assaltos (ou expropriações) e sequestros. É assim, graças a tal personalidade pacífica, que Fernando se aproxima do público, que se identifica com sua (falta de) vocação para a guerrilha ao mesmo tempo em que sabe que ela é a (talvez) única solução imediata. Ajuda, é claro, o talento de Pedro Cardoso em transmitir a insegurança de seu personagem e seu tom quase cômico mesmo em situações perigosas - e o grande elenco, tão incrível que pode se dar ao luxo de contar com Fernanda Montenegro em uma participação mínima mas crucial.


 

Em uma tentativa bem-sucedida de aproximar seu filme do público consumidor de programas de televisão, Bruno Barreto escolheu seu elenco a dedo. Dos consagrados Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães ao então novato Matheus Nachtergaele - passando por uma Cláudia Abreu no auge da popularidade e pelo norte-americano Alan Arkin -, a lista de créditos de "O que é isso, companheiro?" é admirável , com espaço até mesmo para pontas do cantor Lulu Santos como um militar. Se é questionável o fato de lotar o elenco de globais como forma de buscar o sucesso comercial - ainda que todos estejam excelentes em cena, independentemente de suas personas artísticas mais conhecidas -, o resultado foi bastante favorável. Além de dialogar com a audiência com mais facilidade, tal opção deu visibilidade o bastante ao filme em sua trajetória rumo a uma indicação ao Oscar - um objetivo para o qual contou também o nome de Bruno Barreto no exterior. Já bem instalado em Hollywood - principalmente graças ao êxito internacional de "Dona Flor e seus dois maridos" (1976) e produções de prestígio como "Assassinato sob duas bandeiras" (1990), estrelado por Amy Irving, com quem foi casado até 2005 -, Barreto nunca abandonou completamente suas raízes, e assim como seu irmão Fábio dois anos antes, chegou à corrida da estatueta com o apoio de nomes poderosos da indústria americana, como Steven Spielberg e a máquina de marketing da Columbia Pictures internacional. Não foi suficiente para arrebatar o prêmio - mas voltou a colocar o cinema brasileiro no mapa e jogar luz sobre um tema nunca desgastado.

Apesar de se passar durante a ditadura militar brasileira e contar uma de suas histórias mais emblemáticas, "O que é isso, companheiro?" dificilmente pode ser considerado um filme político. Longe dos questionamentos da filmografia de um Costa-Gavras, por exemplo - cujo "Z" (1969) é um cânone do gênero - e sem maior aprofundamentos do contexto histórico, o roteiro de Serran prefere focar-se na interrelação entre seus personagens, pressionados pela máquina governamental e diante da possibilidade de um fracasso que pode levá-los à morte. Boa parte da trama se passa durante o período do cativeiro do embaixador, interpretado com excelência por Alan Arkin - daí o título internacional, "Four days in September" - e são os vínculos entre os personagens que interessam a Serran e Barreto, mais do que os desdobramentos sociais e políticos de sua aventura. Tal escolha é válida, mas esbarra em alguns momentos um tanto quanto desconcertantes - como as crises de consciência do torturador a que Marco Ricca dá vida: Ricca é um ótimo ator e transmite verdade em suas cenas, mas é pouco crível que pessoas que ganham a vida com tal violência sejam tão suscetíveis a remorsos (em especial no calor do momento). Detalhes assim enfraquecem o filme como um todo - é uma tentativa não feliz em evitar o maniqueísmo - e o impedem de ter a potência que poderia. É uma produção caprichada - bem dirigida, com uma edição ágil e uma trilha sonora adequada - mas longe da obra-prima que se poderia esperar. Ainda assim, um belo produto do cinema nacional em sua fase de mesclar sucesso financeiro e prestígio internacional.

quinta-feira

ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD


ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD (Once upon a time in... Hollywood, 2019, Sony Pictures, 161min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Fred Raskin. Figurino: Arianne Phillips. Direção de arte/cenários: Barbara Ling/Nancy Haigh. Produção executiva: Jeffrey Chan, Georgia Kacandes, Yu Dong. Produção: David Heyman, Shannon McIntosh, Quentin Tarantino. Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Dakota Fanning, Bruce Dern, Al Pacino, Luke Perry, Costa Ronin, Lena Dunham, Kurt Russell, Rafal Zawierucha, Damon Herriman. Estreia: 21/5/2019 (Festival de Cannes)

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Quentin Tarantino), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários. Edição de Som, Mixagem de Som

Vencedor de 2 Oscar: Ator (Brad Pitt), Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 3 Golden Globe Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro

Foi na madrugada de 6 de agosto de 1969 que um crime - violento e chocante em sua gratuidade - acabou, segundo a escritora Joan Didion, com o movimento hippie, a era do amor livre e a atmosfera dos anos 60 como um todo. Um grupo de seguidores do messiânico Charles Manson invadiu a casa da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses do cineasta Roman Polanski (em alta com o sucesso de seu "O bebê de Rosemary", lançado no ano anterior) e a assassinou, juntamente com um grupo de amigos, deixando no local uma série de detalhes macabros que alimentaram as manchetes dos jornais por meses a fio. A investigação do crime, a prisão dos responsáveis e o julgamento midiático ocuparam a mente do mundo - e em especial dos EUA - por anos a fio e ainda permanecem como uma lembrança trágica de uma época encerrada abruptamente com um banho de sangue. O trauma foi tanto que demorou meio século para que um grande estúdio de Hollywood finalmente rompesse o silêncio a respeito do assunto - e mesmo assim somente com o aval de um nome de prestígio, com coragem o suficiente para mexer em um vespeiro mantido sob uma redoma de respeito pelos envolvidos e pelo medo de um fracasso de bilheteria. Foi somente quando Quentin Tarantino anunciou que seu filme seguinte ao western "Os oito odiados" (2016) teria Sharon Tate como uma de suas personagens principais que a história (até então contada mal e porcamente em documentários e telefilmes de pouca repercussão) voltou a povoar o imaginário mundial - e despertar uma curiosidade que só fez aumentar conforme chegava a data de estreia.

Pensando em marcar a estreia de "Era uma vez em... Hollywood" para 6 de agosto de 2019, data em que o crime completaria 50 anos, Tarantino foi voto vencido quando a Sony Pictures - que ganhou os direitos de distribuição em uma disputa acirradíssima com a Warner, a Universal, a Paramount, a Lionsgate e Annapurna Pictures - preferiu adiantar a data para 26 de julho, pouco mais de dois meses depois do lançamento da produção no Festival de Cannes. Até que tal evento acontecesse, porém, muito foi dito, inventado, polemizado e misteriosamente escondido a respeito do filme. Com um roteiro secreto (lido apenas por parte da equipe de filmagem, como forma de evitar os dissabores que quase cancelaram "Os oito odiados" depois do vazamento de seu script) e notícias que chegavam aos poucos, "Era uma vez em... Hollywood" já era, muito antes de chegar às telas, uma das produções mais comentadas e esperadas da temporada - por inúmeras razões. Além do marketing espontâneo que qualquer trabalho de Tarantino gera, não era nada mal ter Brad Pitt e Leonardo DiCaprio nos papéis principais em uma trama que misturava, da forma como apenas o cineasta consegue fazer sem soar prolixo, a trajetória de Sharon Tate, a desilusão de um astro da antiga indústria com os novos tempos, a decadência de um gênero específico (o western), bastidores do cinema pelos olhos de um dublê e diálogos preciosos. Tido por Tarantino como seu filme mais pessoal - algo como "Roma" foi em relação a Alfonso Cuarón - e escrito em um período de cinco anos (nos quais o cineasta também o transformou em um romance, lançado em seguida à estreia), "Era uma vez em... Hollywood" provou que a espera valeu a pena, tanto em termos artísticos quanto comerciais. Com uma renda internacional que ultrapassou os 370 milhões de dólares, dez indicações ao Oscar (e duas categorias no bolso), o filme pode até não ter agradado a todo mundo - algo corriqueiro na filmografia de Tarantino -, mas é, inegavelmente, uma das obras cinematográficas mais importantes de seu tempo.


 Com um título inspirado em Sergio Leone e seus "Era uma vez no Oeste" (1968) e "Era uma vez na América" (1984), o nono filme de Tarantino - se as duas partes de "Kill Bill" forem consideradas apenas um único projeto - quase foi realizado em preto-e-branco e poderia ter estreado com uma duração de 4 horas e 20 minutos. Mas cinema é uma arte de concessões e do jeito que está, o filme é uma pequena obra-prima (mais uma na carreira do Tarantino diretor ). Tudo funciona perfeitamente - até mesmo o que parece gratuito tem ressonâncias bem mais profundas do que aparenta. Por trás dos longos diálogos (característica inconfundível do Tarantino roteirista) e das referências que podem soar como grego ao público médio, a trama é uma pérola de nostalgia, melancolia e pitadas generosas de uma ironia tão fina que pode até passar despercebida - ao menos até o clímax, tão inesperado e surpreendente que foi objeto de um pedido especial dos realizadores para que não fosse comentado pela imprensa ou pela plateia. Justificável: assim como em "Bastardos inglórios" (2009), Tarantino rege seu próprio universo, manda em seus próprios domínios, subverte as próprias regras e a história, se for preciso. Longe de desagradar aos puristas, encontra uma maneira de fazer com que a magia do cinema sempre se sobressaia - e sublinhe seu talento em encantar e decepcionar com a mesma intensidade.

O filme se passa em 1969, quando a Era de Ouro de Hollywood está em seus estertores. Longe de ainda ter a relevância que tinha na década de 1950, quando estrelava populares séries de western na televisão, Rick Dalton (vivido por Leonardo DiCaprio) paira sob uma Los Angeles a que mal reconhece, tentando encontrar uma maneira de manter uma carreira já tida como acabada. Vizinho do cineasta Roman Polanski (praticamente um símbolo de uma nova indústria, moderna e jovem), Dalton luta contra o próprio instinto de autodestruição enquanto relembra seus melhores momentos, ao lado de grandes atores e cercado de respeito e adulação. Invariavelmente acompanhado de seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt, vencedor do Oscar de ator coadjuvante) - bem mais confortável com as novas regras do jogo, a ponto de quase deixar-se envolver com um grupo de hippies bem mais jovens -, o ex-astro vê, aos poucos, uma nova Hollywood surgir diante de seus olhos. Enquanto isso, sua deslumbrante vizinha, Sharon Tate (Margot Robbie), começa a sentir o gostinho da fama e vislumbrar um brilhante futuro, tanto na carreira quanto na vida doméstica. Com visões distintas de sua época e de sua profissão, Dalton e Tate terão suas vidas cruzadas de forma totalmente inesperada e violenta.

Lançado no mesmo Festival de Cannes que 25 anos antes deu a Tarantino a Palma de Ouro e o aval necessário para que se tornasse um dos autores mais prestigiados do cinema norte-americano, "Era uma vez em... Hollywood" não saiu ileso a críticas e polêmicas. Se Debra Tate, irmã de Sharon, viu sua resistência ao projeto ruir ao encontrar Margot Robbie e reconhecer nela qualidades que a faziam lembrar da saudosa atriz, o mesmo não pode ser dito em relação às queixas de Shannon Lee, filha do ator Bruce Lee que não achou graça nenhuma na forma como o roteiro retratou seu pai - bastou uma única sequência para que Shannon considerasse tudo um insulto à memória do ator. Também foi alvo de críticas as liberdades artísticas tomadas pelo cineasta em relação à uma trama crucial para o roteiro: ao criar personagens novos na famigerada Família Manson (ou mesclar personagens reais com fictícios), Tarantino incomodou os puristas que esperavam uma descrição real dos crueis fatos de 6 de agosto de 1969 - que não tiveram interesse em perceber as reais intenções do diretor ao unir a realidade (ainda que alterada) com a fantasia: "Era uma vez em... Hollywood" não é um documentário sobre os assassinatos cometidos naquela fatídica noite - é uma comédia dramática sobre a união de dois mundos, sobre os meandros do destino e sobre a inexorabilidade do tempo até mesmo dentro de um universo que vende fantasia. É um filme com a cara de seu diretor - para o bem ou para o mal - e uma inteligente homenagem a uma atriz cujo futuro foi interrompido pela força do fanatismo. Como qualquer filme de Tarantino, não é para todos os públicos. Mas é sensacional!

segunda-feira

DO JEITO QUE ELAS QUEREM


DO JEITO QUE ELAS QUEREM (Book club, 2018, June Pictures/Apartment Story/Endeavor Content, 104min) Direção: Bill Holderman. Roteiro: Bill Holderman, Erin Simms. Fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Priscilla Nedd-Friendly. Música: Peter Nashel. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Rachel O'Toole/Dena Roth. Produção executiva: Alan Blomquist, Ted Deiker. Produção: Andrew Duncan, Bill Holderman, Alex Saks, Erin Simms. Elenco: Diane Keaton, Jane Fonda, Candice Bergen, Mary Steenburgen, Andy Garcia, Craig T. Nelson, Don Johnson, Ed Begley Jr., Richard Dreyfuss, Wallace Shawn, Alicia Silverstone. Estreia: 17/5/2018

Em uma era que as aparências, a juventude e a popularidade nas redes sociais valem mais do que talento, é um alento perceber que ainda existe a possibilidade de se nadar contra a corrente mesmo na pouco ousada indústria de cinema de Hollywood. "Do jeito que elas querem" pode até não ter mudado a história da sétima arte ou a forma dos executivos enxergarem mulheres maduras como algo indesejável comercialmente, mas sua bilheteria internacional acima dos 100 milhões de dólares certamente demonstrou que, a despeito do pensamento comum, ainda existe espaço para filmes protagonizados por gente acima dos 60 anos de idade - principalmente quando esta gente é do calibre de Diane Keaton, Jane Fonda, Candice Bergen e Mary Steenburgen. São elas, do alto de seu carisma e de sua capacidade de extrair o melhor até mesmo de um roteiro bobo e quase superficial, o principal atrativo do filme de Bill Holderman - uma produção leve, divertida e que não tem medo de falar de um assunto tabu (sexo na maturidade) com a naturalidade de uma comédia adolescente. Pode até soar inverossímil em alguns momentos, mas é difícil não simpatizar com um elenco tão sensacional - que conta com participações luxuosas de Richard Dreyfuss, Andy Garcia e Don Johnson.

Filme de estreia de Holderman como diretor - como produtor seu currículo conta com obras que valorizam atores veteranos, como "O velho e a arma", que deu a Robert Redford, em 2018, um dos melhores papeis de sua carreira -, "Do jeito que elas querem" é, nitidamente, um veículo para o brilho cômico de suas estrelas, todas brilhantes e extremamente à vontade ao assumir a idade e seus efeitos colaterais na vida sexual. Tudo bem que todas são ricas (ou ao menos de classe média alta), sem problemas maiores a resolver e relativamente bem-sucedidas, mas isso não impede o público de rir de suas desventuras amorosas - e, dependendo do espectador (ou espectadora), atéomesmo identificar-se com algumas delas. Ao centrar sua trama em quatro personagens principais, o roteiro abarca diferentes tipos de relacionamentos e personalidades, e mesmo que não tente se aprofundar em nenhuma delas apresenta à plateia, de forma agradável e esteticamente sofisticada, um interessante painel sobre o amor na terceira idade.

Vivian (Jane Fonda) é uma empresária do ramo da hotelaria que tem uma vida sexual razoavelmente ativa mas que é incapaz de assumir um relacionamento sério - simplesmente não consegue dormir ao lado de um homem depois do sexo - até que reencontra um amor do passado, o músico Arthur (Don Johnson). Diane (Diane Keaton) ficou viúva recentemente e é pressionada pelas filhas casadas (uma delas vivida por Alicia Silverstone, musa dos anos 1990) para mudar de cidade e morar perto delas - sua preocupação é com sua segurança e sua saúde, como se ela fosse uma idosa inválida -, mas que se vê surpresa quando o charmoso piloto de avião Mitchell (Andy Garcia) se demonstra muito mais interessado nela do que se poderia imaginar. Sharon (Candice Bergen) é uma poderosa juíza que atravessa um período difícil depois da separação e do novo amor juvenil do ex-marido - e descobre que os sites de relacionamento podem esconder boas chances de realização sexual. E Carol (Mary Steenburgen) é uma dona-de-casa que tenta reacender a faísca amorosa do marido aposentado, Bruce (Craig T. Nelson). As quatro, amigas há décadas, se reúnem frequentemente em um Clube do Livro, onde falam de suas vidas e discutem literatura, embaladas por boas doses de vinho. Quando a obra escolhida é o polêmico "50 tons de cinza", todas elas se deixam influenciar pelo alto teor erótico da história e buscar dentro de si o melhor caminho para a felicidade a dois.


 Que não se espere maiores elocubrações intelectuais do roteiro, coescrito por Holderman e Erin Simms - atriz pouco conhecida e produtora do romântico "Nossas noites" (2017), que reuniu Jane Fonda e Robert Redford: a trama se contenta em aproveitar o talento de seu elenco para fazer rir enquanto derruba todo tipo de preconceito etário, mas jamais ambiciona discutir com seriedade o assunto. Seu objetivo é divertir o público com diálogos de duplo sentido, sequências de humor visual (o encontro de Craig T. Nelson com uma guarda de trânsito enquanto sofre os efeitos do Viagra é hilário), algum romantismo e momentos de pura comédia (o embate entre Candice Bergen e Richard Dreyfuss é delicioso). Não há a sofisticação de um Woody Allen. parceiro constante de Diane Keaton nos anos 1970, ou o engajamento dos filmes estrelados por Jane Fonda na mesma época, mas em compensação há a química precisa entre suas atrizes e a coragem da produção em apostar na experiência de seus intérpretes mesmo quando o senso comum da indústria privilegia efeitos visuais e orçamentos milionários. Além do mais, não tem preço rever o sempre ótimo Richard Dreyfuss - ainda que em um papel menor que seu talento - e testemunhar uma história que não relega mulheres com mais de 60 anos a tipos dramáticos e sofredores. 

Longe de problemas típicos de personagens de tal faixa etária - como o desprezo dos filhos, a deteriorização da saúde, a falta de oportunidades profissionais e a baixa autoestima -, as protagonistas de "Do jeito que elas querem" são festivas, alegres, independentes e donas do próprio nariz (e a mudança de tal status é o que move a personagem de Diane Keaton). Nada de lágrimas sofridas, reclamações doídas ou medo da morte. O roteiro brinca com a idade de suas heroínas de forma a envolver o espectador e fazê-lo rir de situações que, em mãos menos sutis, poderiam facilmente descambar para a vulgaridade e o mau gosto. Nenhuma atuação é digna de um Oscar e é pouco provável que o filme entre na lista dos preferidos da crítica, mas quem disse que só de obras-primas é feita a história do cinema? Se visto sem preconceitos - afinal é um "filme de mulher" -, "Do jeito que elas querem" é um programa dos mais divertidos.

sexta-feira

ENCONTRO ÀS ESCURAS


ENCONTRO ÀS ESCURAS (Blind date, 1987, TriStar Pictures, 95min) Direção: Blake Edwards. Roteiro: Dale Launer. Fotografia: Harry Stradling. Montagem: Robert Pergament. Música: Henry Mancini. Figurino: Tracy Tynan. Direção de arte/cenários: Rodger Maus/Carl Biddiscombe. Produção executiva: Gary Hendler, Jonathan D. Krane. Produção: Tony Adams. Elenco: Bruce Willis, Kim Basinger, John Larroquette, William Daniels. Estreia: 24/3/87

Em maio de 1986, quando começaram as filmagens de "Encontro às escuras", Bruce Willis ainda não era o astro de Hollywood que se tornou após a estreia e o estrondo de "Duro de matar" (1988), mas já tinha a seu favor a popularidade adquirida com o êxito de audiência da telessérie "A gata e o rato", que coestrelava com Cybil Sheppard e que lhe deu visibilidade o bastante para que arriscasse uma carreira no cinema. No entanto, mesmo que seu futuro na tela grande ainda fosse uma incógnita, sua escolha para o papel principal em um filme do festejado Blake Edwards foi uma aposta certeira do estúdio (TriStar Pictures): por mais que a sensualidade de Kim Basinger fosse um atrativo dos maiores (leia-se "9 1/2 semanas de amor"), é certo que o carisma de Willis foi um dos fatores preponderantes para o razoável sucesso da produção, uma comédia romântica despretensiosa que arrecadou perto de 40 milhões de dólares - apesar do pouco caso com que foi recebida pela crítica. Mesmo sendo dirigido por um veterano tão celebrado quanto Edwards (ou talvez justamente por isso), "Encontro às escuras" acabou decepcionando e hoje é mais lembrado por ter sido a estreia de Willis no cinema do que por suas qualidades cômicas - mas, visto sem grandes expectativas, é um filme leve, divertido e simpático, com um sabor delicioso de nostalgia.

A trama até lembra um pouco o sensacional "Depois de horas" (1984), de Martin Scorsese, ao colocar seu protagonista no centro de um furacão provocado pelo desejo por uma mulher - um inferno de tempo limitado (boa parte do filme se passa em uma única noite) e consequências imprevisíveis, com a violência sempre à espreita, ainda que retratada de forma cínica e irônica. No caso do filme de Edwards a vítima é Walter David, um típico yuppie dos anos 1980, um ambicioso executivo perto de ver seu sonho de promoção chegar a suas mãos. Justamente para agradar ao patrão conservador, Walter resolve não aparecer sozinho em um jantar de negócios - e aceita encontrar uma amiga da cunhada mesmo sem saber absolutamente nada a seu respeito (exceto o fato de que a beldade não pode beber "para não sair de si.") Assim como seu irmão, Walter entende equivocadamente a dica e só vai descobrir isso tarde demais. Encantado pela beleza e pelo charme de Nadia Gates (Kim Basinger, morena e com surpreendente timing cômico), Walter insiste em que ela beba alguns goles de champagne antes do compromisso formal com seu chefe. Para seu desespero, porém, o aviso da cunhada se revela um eufemismo, e a tímida Nadia, sob o efeito do álcool, libera uma personalidade tão festiva quanto irresponsável, capaz de destruir a imagem cuidadosamente construída por Walter diante de seus colegas de trabalho. Não bastasse isso, seu ex-noivo, David (John Larroquette), não parece disposto a aceitar tranquilamente o rompimento - e surge como uma sombra no caminho do novo casal.


 

Apostando tanto no humor visual (que tanto deu certo em seus filmes com Peter Sellers) quanto na tentativa de evocar uma atmosfera de pesadelo (mas sem o tom sinistro de uma produção de suspense), Blake Edwards demonstra uma irregularidade incômoda: não apenas a história demora a começar como sofre de uma queda brusca de ritmo no terço final. O roteiro de Dale Launer sofreu diversas alterações até chegar às telas, e o próprio roteirista rejeitou o produto final, que se mostra um cruzamento nem sempre bem-sucedido entre o já citado "Depois de horas", o nonsense "Totalmente selvagem", de Jonathan Demme (lançado em 1986) e as comédias românticas estreladas por Katharine Hepburn e Spencer Tracy. A química entre Bruce Willis e Kim Basinger é precisa, mas nem sempre é aproveitada a contento - a ponto de o casal ser separado por quase todo o último ato. Quando funciona, "Encontro às escuras" faz lembrar os melhores momentos de Blake Edwards. Quando não acontece, deixa um sentimento de frustração que explica a má recepção do filme junto à crítica. Não se pode deixar de perceber a falha do cineasta em manter um ritmo consistente ou construir um mínimo de profundidade em seus personagens, que agem sempre de forma imatura e inconsequente - ok, é uma comédia, mas até mesmo dentro das regras de um gênero específico é possível criar coerência e complexidade.

No início de sua produção, "Encontro às escuras" teria Madonna como atriz principal - na época em que a cantora estava flertando fortemente com o cinema, estrelando filmes divertidos como "Procura-se Susan desesperadamente" (1985) e "Quem é esta garota?" (1987). A substituição por Kim Basinger se deu quando a polêmica estrela pop descobriu que Bruce Willis já havia sido contratado como o astro do filme, o que a impediria de impor seu então marido Sean Penn no papel central. Não que Penn precisasse - hoje é um dos melhores atores em atividade em Hollywood -, mas o projeto em conjunto do casal talvez apagasse o fiasco de "Surpresa de Shangai", que fizeram em 1986 e pelo qual haviam sido apedrejados pela crítica e ignorados pelo público. É difícil dizer se o resultado seria melhor ou pior do que a versão estrelada por Bruce Willis e Kim Basinger - mas, a julgar por boa parte das produções lideradas por Madonna em suas incursões na tela grande, não teria sido um ponto alto de sua carreira. Para Willis, no entanto, foi um belo pontapé inicial de uma trajetória admirável que inclui sucessos acachapantes de bilheteria ("O sexto sentido", de 1999) e produções de extremo prestígio ("Pulp fiction: tempo de violência", de 1994).

 

O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS



O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The beguiled, 1971, Universal Pictures/The Malpaso Company, 105min) Direção: Donald Siegel. Roteiro: John B. Sherry, Grimes Grice, romance de Thomas Cullinan. Fotografia: Bruce Surtees. Montagem: Carl Pingitore. Música: Lalo Schifrin. Figurino: Helen Colvig. Direção de arte/cenários: Ted Haworth/John Austin. Produção executiva: Jenninge Lang. Produção: Donald Siegel. Elenco: Clint Eastwood, Geraldine Page, Elizabeth Hartman, Jo Ann Harris, Darleen Carr, Mae Mercer, Pamelyn Ferdin, Melody Thomas. Estreia: 23/01/71 (Itália)

Quando "O estranho que nós amamos" estreou, em 1971, o nome de Clint Eastwood nos cartazes já era o suficiente para atrair multidões às salas de exibição: já fazia alguns anos que os filmes que havia feito com Sergio Leone na Itália haviam chegado aos EUA e o transformado em ídolo, frequentemente fazendo papéis de durão misterioso e monossilábico em produções repletas de testosterona, como "Meu nome é Coogan" (1968) e "Os abutres tem fome" (1970). Daí o choque diante do filme de Donald Siegel: de narrativa lenta e psicológica, com personagens complexos e um protagonista dúbio, a adaptação do romance de Thomas Cullinan, publicado em 1966, desagradou profundamente aos fãs mais ardorosos do ator e deu à Universal Pictures um inesperado fracasso de bilheteria. A culpa, no entanto, não foi nem de Eastwood nem de Siegel - ambos em excelentes momentos da carreira -, e sim do próprio estúdio, que vendeu a produção como mais um filme de ação típico do astro. Porém, se em seu lançamento "O estranho que nós amamos" decepcionou em termos financeiros, o tempo lhe fez justiça: aclamado pela crítica e tornado cult por excelência, o filme é hoje reconhecido como uma pequena obra-prima - e permaneceu na mente de seus fãs a tal ponto de render um remake, realizado por Sofia Coppola em 2017. Tocante, forte e ousado, é também um dos pontos altos da filmografia de um ator cuja trajetória é das mais respeitáveis de Hollywood.

Assim como "...E o vento levou", a trama de Cullinan se passa durante a Guerra de Secessão norte-americana, e também como no livro de Margareth Mitchell, é um tanto problemático que a ação retrate o norte abolicionista como vilão e o sul escravagista como vítima. No entanto, esta é a menor das questões, diante de um enredo que não tem medo em flertar com temas pesados, como pedofilia, incesto e estupro - e de certa forma envernizando-os com uma dose generosa de poesia. Pontuada pela bela trilha sonora de Lalo Schifrin, a história de "O estranho que nós amamos" é narrada com insuspeita elegância por Siegel - cujo currículo apontava mais para filmes policiais bem pouco sutis: em rápidos flashbacks ou pensamentos em off, o cineasta expõe seus personagens em todas as suas idiossincrasias, traumas e desejos mais profundos sem nunca deixar de prestar atenção no ritmo e no clima de tensão sexual constante. Envolvente e claustrofóbico, o roteiro foge dos clichês e do previsível - e surpreende ainda mais no clímax, violento e que obrigou diretor e ator principal a baterem de frente com os todo-poderosos do estúdio, pouco confortáveis em dar sinal verde para um desfecho tão radical (ainda que coerente e dramaticamente satisfatório).

 

O protagonista do filme é o soldado ianque John McBurney (Clint Eastwood), que, encontrado ferido em uma floresta da Louisiana, é levado por uma curiosa pré-adolescente até a escola de moças onde ela estuda. A escola, comandada com rigidez pela proprietária, Martha Farnsworth (Geraldine Page), é isolada e apenas ocasionalmente é visitada por tropas amigas, e a chegada de um inimigo, ainda que em péssimas condições de saúde, deixa todas as alunas, a professora Edwina (Elizabeth Hartman) e a escrava Hallie (Mae Mercer) em estado de permanente tensão. Sedutor, McBurney logo descobre que a única forma de sair ileso da situação é usar de seu charme e inteligência, manipulando as moradoras do local através de suas carências físicas e emocionais. Assim, envolve Martha em sua lábia, seduz uma aluna mais velha, Carol (Jo Ann Harris), faz promessas românticas a Edwina e mantém todas ignorando sua estratégia. Não demora, no entanto, para que o ambiente carregado de tensão sexual exploda de forma inesperada e violenta.

A atmosfera encharcada de tesão é, talvez, o principal elemento narrativo de "O estranho que nós amamos": Siegel não tem medo de fazer de McBurney uma espécie de anjo exterminador, capaz de destruir a aparente tranquilidade da escola feminina sem que seja preciso muito esforço. Sua presença, quase sempre silenciosa mas dotada de grande força, é o catalisador de um furacão de ressentimentos, inveja, ciúmes e mentiras, das quais ninguém (ou quase) sai impune. O roteiro não se furta a fazer de cada um de seus personagens peças fundamentais em explorar os desejos mais recônditos do ser humano - a severa diretora, por exemplo, esconde um proibido romance do passado e não demora em se render aos mais desvairados pensamentos em relação ao (a princípio) indesejado hóspede e não hesita em ser a mão vingadora do grupo, em uma sequência que certamente deve ter deixado os executivos da Universal Pictures de cabelo em pé. Em uma grande atuação de Geraldine Page - em um papel pensado para a musa francesa Jeanne Moureau (ideia vetada pelo presidente do estúdio, Lew Wasserman) -, Martha Farnsworth é o leme de um navio aparentemente sólido que escapa por pouco de um trágico naufrágio. Corajoso, poético e surpreendente, "O estranho que nós amamos" não é o filme preferido de Don Siegel dentre todos os seus trabalhos à toa. É uma produção de orgulhar qualquer cineasta e um dos clássicos do cinema hollywoodiano da década de 1970 e de quebra pode ser considerado o responsável pela estreia de Clint Eastwood como diretor - além de protagonista, Eastwood realizou um documentário sobre as filmagens, chamado "The beguiled: the storyteller", o começo de sua vitoriosa carreira também atrás das câmeras.

quarta-feira

DOGMA

DOGMA (Dogma, 1999, Miramax Pictures, 130min) Direção e roteiro: Kevin Smith. Fotografia: Robert Yeoman. Montagem: Scott Mosier, Kevin Smith. Música: Howard Shore. Figurino: Abigail Murray. Direção de arte/cenários: Robert Holtzman/Diana Stoughton. Produção executiva: Jonathan Gordon. Produção: Scott Mosier. Elenco: Ben Affleck, Matt Damon, Linda Fiorentino, Chris Rock, Alan Rickman, Salma Hayek, Janeane Garofalo, Jason Lee, Jason Mewes, Kevin Smith, Alanis Morissette. Estreia: 21/5/99 (Festival de Cannes)

Em 1998, o diretor/ator/roteirista Kevin Smith descobriu na pele, algo que o veterano Martin Scorsese já sabia no mínimo há dez anos, quando lançou seu "A última tentação de Cristo: poucos temas são tão espinhosos e capazes de exaltar ânimos quanto a religião - especialmente a católica. Antes mesmo da estreia de "Dogma" - adiada por seis meses justamente devido a celeumas relativas a seu conteúdo -, o filme de Smith já era alvo de virulentas manifestações, campanhas negativas, ameaças de boicote e todo tipo de controvérsia. O motivo era um só: falar de Deus e religião em uma comédia iconoclasta que misturava anjos renegados, uma descendente de Cristo que trabalhava em uma clínica de aborto, questionamentos a respeito da interferência da Igreja na manutenção de uma mitologia que dá margens a tanto, e algumas ousadias "imperdoáveis", como mostrar um apóstolo negro e Deus na forma feminina. Baseados em uma das várias versões do roteiro - vazada de forma anônima pela Internet -, grupos religiosos ergueram a voz contra a produção a ponto de assustar até mesmo suas distribuidoras: sorte da pequena Lions Gate, que herdando o filme da Disney (cujo histórico de filmes familiares não condizia com o tom do filme) e da então toda-poderosa Miramax (que preferiu não arriscar seu prestígio mesmo acreditando no projeto), lançou aquele que seria seu produto mais rentável até o advento do oscarizado "Crash: no limite" (2004): apesar (ou por causa) das acaloradas discussões, "Dogma" rendeu mais de 30 milhões de dólares - três vezes o seu custo estimado e um êxito surpreendente para os padrões de Smith.

Acostumado com seu status de cineasta cult, com filmes de orçamento baixo e repercussão restrita, Kevin Smith viu-se, graças à "Dogma", no olho de um furacão. A controvérsia ao redor do filme (somada à presença de Ben Affleck e Matt Damon no começo de sua ascensão popular), ajudou a alçá-lo a um patamar nunca antes experimentado - "O balconista" (1994), "Barrados no shopping" (1995) e "Procura-se Amy" (1997), suas produções anteriores, eram conhecidas e aclamadas por uma parcela específica de cinéfilos, fãs de cinema independente e/ou alternativo. Com "Dogma" e seu elenco recheado de nomes conhecidos, seus efeitos visuais e o marketing espontâneo oferecido pela Liga Católica norte-americana, seu alcance tornou-se internacional - um alento para aqueles que não conheciam sua filmografia, repleta de um humor tão inteligente quanto chulo, tão sofisticado quanto popular (leia-se nerd). E não deixa de ser irônico que, mesmo demonizado pelos fieis mais agressivos, Smith tenha se declarado, à época do lançamento do seu polêmico filme, um católico - da mesma forma que Scorsese, apedrejado sem piedade por sua adaptação do livro de Nikos Kazantzakis mesmo tendo passado por um seminário.

 

Smith escreveu o primeiro tratamento de "Dogma" antes mesmo de "O balconista", seu primeiro longa, lançado em 1994. E quando finalmente acreditou que já estava na hora de transformar o script em realidade, quase terceirizou a produção: felizmente o cineasta Robert Rodriguez - queridinho do cinema independente desde sua estreia com o baratíssimo "El mariachi", de 1991 - percebeu que o projeto de "Dogma" era pessoal demais para que outra pessoa que não Smith assumisse a direção. Começava então uma odisseia de trocas, substituições e possibilidades que poderiam ter tornado o filme em algo completamente diferente. Para o principal papel feminino, Bethany, a última descendente de Cristo na Terra, Smith pensou inicialmente em Gillian Anderson - em alta com o sucesso da série "Arquivo X". Nomes como Shannen Doherty e Joey Lauren Adams, antigas colaboradoras do cineasta, também surgiram - até que a cantora Alanis Morissette foi escolhida e posteriormente descartada: por problemas de agenda com a turnê de seu novo álbum, Morissette acabou ficando com um papel menor, mas de importância fundamental (para o qual foram seriamente cotadas Holly Hunter e Emma Thompson). Linda Fiorentino - tornada estrela por filmes como "O poder da sedução" (1994) e "MIB: Homens de preto" (1997) - foi a escolha definitiva para o elenco, para desgosto do próprio Smith, que se arrependeu amargamente da decisão: os dois não se deram nada bem durante as filmagens, a ponto do diretor declarar em entrevistas que teria sido melhor escalar a coadjuvante Janeane Garofalo como protagonista (uma situação delicada que só foi resolvida anos mais tarde). Além disso, outros nomes de Hollywood foram cogitados para papéis cruciais: Matt Damon só entrou no elenco para viver Loki, o anjo da morte, porque o ator inicialmente escalado, Jason Lee, não estava disponível para filmagens longas (o que fez com que interpretasse Azrael, consideravelmente menor para o qual também foram considerados Bill Murray, John Travolta e Adam Sandler). Samuel L. Jackson e Will Smith foram pensados para viver Rufus, o apóstolo negro que revela histórias inéditas da vida de Cristo - antes que Chris Rock fosse contratado. E Alan Rickman - provavelmente o ator de maior prestígio do elenco - surpreendeu ao aceitar viver Megatron depois de confessar ser fã de "Procura-se Amy".

A trama de "Dogma" é um primor de criatividade e nonsense. Dois anjos renegados, Loki (Matt Damon) e Bartleby (Ben Affleck) querem forçar sua reentrada no céu ao atravessar o portal de uma igreja em Nova Jersey: com a bênção do Papa, todos que o fizerem terão seus pecados perdoados automaticamente. Tal situação é um perigo, segundo Metatron (Alan Rickman), pois acabará com a ideia da infalibilidade de Deus e consequentemente acabará com a humanidade. Para isso, o mensageiro divino procura Bethany (Linda Fiorentino), funcionária de uma clínica de abortos que passa por uma séria crise de fé e que, sem que ela mesma saiba, é a última descendente de Cristo - e portanto a única pessoa capaz de impedir que os anjos atinjam seu objetivo. Para ajudá-la, Bethany contará com a ajuda de dois "profetas", Jay (Jason Mewes) e Silent Bob (Kevin Smith) - personagens recorrentes na filmografia do diretor -, um apóstolo cuja existência foi apagada da Bíblia por racismo, Rufus (Chris Rock), e a stripper Serendipity (Salma Hayek) - também conhecida como Musa. Contra Bethany e seu grupo não estão apenas Loki e Bartleby: o demônio Azrael (Jason Lee), que tem seus próprios motivos para chegar até Nova Jersey e desafiar o poder do Criador.

Mas, afinal, "Dogma" é blasfemo ou ofensivo? Depende. Se o espectador é daqueles que se ofende facilmente e não desliga o senso crítico diante de uma produção com a missão nítida de fazer rir, logicamente é possível que acabe a sessão furioso - Smith não poupa nada de suas piadas, e equilibra-se entre tiradas inteligentes e surpreendentes e momentos de puro constrangimento (é uma característica sua falar de flatulências e outras escatologias). Porém, se existe a consciência de que tudo é uma grande brincadeira (e no final das contas bastante reverente), é certo de que a produção rende boas e várias gargalhadas. Alguns diálogos fazem pensar - será que foi isso que incomodou tanto? - e a mensagem final, de que Deus é amor e compaixão, deixa claro que, mesmo com tantas bobagens saídas de sua mente, Kevin Smith ainda é o menino católico praticante que foi na infância. Se alguém tem dúvidas que escute a bela "Still", composta e interpretada por Alanis Morissette nos créditos finais.

domingo

DIGAM O QUE QUISEREM


DIGAM O QUE QUISEREM (Say anything..., 1989, 20th Century Fox, 100min) Direção e roteiro: Cameron Crowe. Fotografia: Laszlo Kovacs. Montagem: Richard Marks. Música: Anne Dudley, Richard Gibbs. Figurino: Jane Ruhm. Direção de arte/cenários: Mark Mansbridge/Joe Mitchell. Produção executiva: James L. Brooks. Produção: Polly Platt. Elenco: John Cusack, Ione Skye, John Mahoney, Lily Taylor, Pamela Segall, Jason Gould, Loren Dean, Jeremy Piven, Bebe Neuwirth, Eric Stoltz. Estreia: 14/4/89

Comédias românticas adolescentes seguem, via de regra, a mesma equação - especialmente aquelas criadas na década de 1980, quando o gênero floresceu graças ao talento de John Hughes, pai (como diretor, roteirista ou produtor) de clássicos absolutos como "Gatinhas e gatões" e "A garota de rosa-shocking", ambos estrelados pela diva maior da época, Molly Ringwald. Sendo assim, não se poderia esperar muitas ousadias em "Digam o que quiserem" - aparentemente mais um exemplar da série de romances juvenis com regras próprias e ingredientes facilmente reconhecíveis. Porém, regras existem para que possam ser quebradas, e o então jornalista Cameron Crowe, estreando como cineasta, subverteu um tantinho a receita de Hughes e criou uma história de amor que, com o julgamento normalmente sábio do tempo, transformou-se em um cult movie dos mais adorados pelos saudosistas.

Escrito com a mesma inteligência e sensibilidade que fez de Crowe um dos roteiristas mais elogiados da década seguinte - quando entregou ao público pérolas como "Vida de solteiro" (1993), "Jerry Maguire: a grande virada" (1996) e "Quase famosos" (2000), que lhe rendeu o Oscar da categoria -, "Digam o que quiserem" se aproveita das diretrizes mais simples das comédias românticas adolescentes para contar uma história com personagens que fogem dos padrões inalcançáveis de beleza e que agem como pessoas reais. Com diálogos tão naturais quanto frescos (em parte cortesia do preciso elenco) e situações dramáticas verossímeis, o filme envolve o espectador não por criar intrigas melodramáticas e/ou trágicas, mas por proporcionar identificação com problemas mundanos típicos da adolescência  - e até da idade adulta. "Será que ela vai aceitar sair comigo?" "Será que vou conseguir suprir as expectativas do meu pai?" "Será que devo interferir na vida da minha filha de forma tão peremptória?" As questões levantadas por Crowe encontram eco em qualquer época e para qualquer um - daí a perenidade de "Digam o que quiserem" e seu sucesso em manter-se relevante.


Mas não foi sempre assim. Quando estreou, em 1989, "Digam o que quiserem" não empolgou nas bilheterias, e só não chegou a ser um fiasco absoluto porque foi ajudado pela boa vontade de dois dos mais respeitados críticos dos EUA. Entusiasmados com o trabalho de Crowe, os consagrados Roger Ebert e Gene Siskel aplaudiram a produção em suas colunas - Ebert chegou a incluí-lo em um de seus livros sobre grandes filmes - e lhe ofereceram uma segunda chance. Mesmo com o bem-vindo empurrão dos jornalistas, porém, o filme não tornou-se um grande êxito comercial, e viu sua popularidade aumentar com o passar dos anos. Redescoberto, inspirou outros cineastas - e a antológica cena de seu protagonista segurando um aparelho de som sobre a cabeça, em uma moderna serenata, foi recriada com inteligência no divertido "A mentira", que revelou Emma Stone em 2009. E se o encanto do filme se mantém ainda hoje, é a presença de um jovem John Cusack no papel central que aumenta ainda mais seu interesse: em uma atuação natural e encantadora, Cusack rouba a cena até mesmo da colega de cena Ione Skye (filha do cantor Donovan), e faz entender porque foi escolhido pelo diretor, em detrimento de nomes como Christian Slater, Loren Dean, Peter Berg, Todd Field, Brandon Lee e Robert Downey Jr. (todos em começo de carreira).

Simpático como sempre, Cusack dá vida a Lloyd Dobler, um jovem estudante que acaba de terminar o ensino médio em uma escola de Seattle (cenário também de "Vida de solteiro"). Sem nenhum talento óbvio ou qualquer tipo de brilhantismo acadêmico, ele sabe apenas que é apaixonado por Diane Court (Ione Skye), uma colega que mal sabe quem ele é até que aceita, num arroubo de espontaneidade, ir com ele a uma das festas de formatura. A noite mostra a Diane as maiores qualidades de Lloyd - mas mesmo assim, sua prioridade é dedicar-se ao futuro, na forma de uma faculdade na Inglaterra, e à relação com o pai, Jim (John Mahoney em papel oferecido a Richard Dreyfuss), dono de um asilo e divorciado. De certa forma encantada com Lloyd - que vive com a irmã, Constance (Joan Cusack), e o sobrinho pequeno -, Diane aceita passar com ele as semanas que faltam para que embarque para a Europa, e logicamente se apaixona. Porém, suas dúvidas acerca das possibilidades de um relacionamento mais sério com alguém tão indeciso a fazem hesitar. E é com essa trama simples mas eficiente que Crowe fez sua auspiciosa estreia como diretor - bancada pelo produtor James L. Brooks e transformada, com o passar dos anos, em uma deliciosa máquina do tempo, capaz de levar a plateia de volta aos felizes anos 1980.

quinta-feira

DE OLHOS BEM FECHADOS


DE OLHOS BEM FECHADOS (Eyes wide shut, 1999, Warner Bros, 159min) Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael, novela "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler. Fotografia: Larry Smith. Montagem: Nigel Galt. Música: Jocelyn Pook. Figurino: Marit Allen. Direção de arte/cenários: Les Tomkins, Roy Walker/Lisa Leone, Terry Wells Sr.. Produção executiva: Jan Harlan. Produção: Stanley Kubrick. Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sidney Pollack, Todd Field, Sky du Mont, Marie Richardson, Thomas Gibson, Julienne Davis, Vinessa Shaw, Leelee Sobieski, Rade Serbedzija. Estreia: 13/7/99

O tempo é um elemento do qual não se é possível fugir ao se falar sobre "De olhos bem fechados", o último filme do celebrado e mítico Stanley Kubrick. Foi em 1960 que o cineasta conheceu o livro "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler - durante as sessões de terapia a que foi submetido em conjunto com Kirk Douglas para que resolvessem seus problemas de relacionamento nas filmagens de "Spartacus". Foi em 1971 que o presidente da Warner Bros, John Calley, anunciou que a adaptação da obra seria o próximo trabalho do diretor - uma informação que não revelou-se verdade, uma vez que a honra de suceder "Laranja mecânica" (1971) ficou com "Barry Lyndon" (1975). Foi no começo dos anos 1990 que o lendário homem por trás de "2001: uma odisseia no espaço" (1968) resolveu voltar a seu projeto de estimação quando Steven Spielberg anunciou "A lista de Schindler" (1993) - com tema bastante similar a "Aryan papers", cuja produção estava disposto a começar. Foi em novembro de 1996 que finalmente começaram as filmagens que se estenderiam por 400 dias - um recorde registrado no Guinnes Book, que nem considerou a pós-produção de quase um ano. E foi apenas quatro dias depois de mostrar sua versão do filme aos executivos do estúdio (ainda não completamente finalizada) que o mundo foi pego de surpresa com a notícia de sua inesperada morte - quatro meses antes da estreia oficial de uma mais esperadas produções cinematográficas da década.

Estrelado pelo então casal real de Hollywood - Tom Cruise e Nicole Kidman - e cercado por expectativas estratosféricas (assim como por um mistério que se estendeu até o lançamento), "De olhos bem fechados"se beneficiou do hype em torno do nome do diretor e do reencontro dos protagonistas sete anos depois do esquecível "Um sonho distante": mesmo sem muitas pistas a respeito da trama e das intenções comerciais do filme (nem mesmo o famoso trailer ao som de Chris Isaack entregava qualquer dica), o público correu às salas de exibição para conferir o resultado das cansativas e controversas filmagens que mantiveram Cruise e  Kidman presos na Inglaterra por mais de um ano - a ponto de atrasar outras produções da dupla, como "Da magia à sedução" e"Missão: impossível II" (finalmente lançado em 2000). Primeiro filme de Kubrick a estrear em primeiro lugar nas bilheterias dos EUA, "De olhos bem fechados" terminou sua carreira internacional com mais de 160 milhões de dólares em caixa - nada mal para uma produção adulta e com um tema tão controverso quanto... sexo.

Sim, sexo está na base e na origem de "De olhos bem fechados". Já adaptada anteriormente (para a televisão austríaca, em 1969, e em um filme italiano chamado "Ad un pas dall'aurora"), a novela de Schnitzler - discípulo de Freud - acompanha a obsessiva jornada de um médico, William Harford (Tom Cruise), por uma aventura sexual que o faça esquecer (ao menos momentaneamente) a confissão da bela esposa, Alice (Nicole Kidman), de que quase o traiu em uma viagem romântica. Cego de decepção - afinal sua vida matrimonial parecia sólida e imune a qualquer tipo de traição -, Harford busca um encontro casual, mas acaba envolvido (como penetra) em uma misteriosa orgia com participantes mascarados, senhas e uma atmosfera de perigo constante. Perseguido pela paranoia, ele refaz os passos da noite, o que inclui encontros com uma jovem prostituta e com uma adolescente envolvida com dois homens mais velhos. Nesse meio tempo, passa a desconfiar que está correndo o risco de ser vítima da violência dos organizadores da orgia - como aconteceu com um amigo músico e com uma bela mulher que tentou alertá-lo sobre os perigos da festa.


 A trama de Schnitzler, seguida com razoável fidelidade pelo roteiro do diretor e Frederic Raphael, não é das mais empolgantes em termos de ação. Porém, é fascinante como o cineasta é capaz de cobrir o enredo com uma atmosfera de pesadelo, sublinhada pela trilha sonora de Jocelyn Pook (indicada ao Globo de Ouro) e pela edição quase contemplativa de Nigel Galt. Se Tom Cruise não é um grande ator nem mesmo sob o comando de alguém exigente como Kubrick, o mesmo não pode ser dito de Nicole Kidman - em um de seus papéis mais importantes antes do divórcio do galã, a atriz mostra que beleza e talento podem tranquilamente caminhar juntos, e mesmo sem muita participação na segunda metade do filme, rouba a cena sem cerimônia na primeira parte (cujo desfecho é a cena em que confessa o adultério cogitado). Kubrick - que considerava "De olhos bem fechados" seu melhor filme - conduz seu último trabalho como um maestro, enfatizando aqui e acolá a complexidade de seus personagens com a sutileza de um veterano. É surpreendente que, antes que chegasse à conclusão sobre sua própria visão do enredo, tenha tido ideias tão excêntricas quanto a de tratá-lo como uma comédia.

A ideia de Kubrick de tratar o material de Schnitzler como uma comédia talvez tenha sido a mais inusitada de sua carreira - especialmente quando se pensa que o cineasta desejava ter Woody Allen no papel principal. Depois de Allen, Kubrick pensou em Steve Martin - até que deixou de lado a ousadia de brincar com o sisudo texto original e voltou a cogitar atores mais sérios, como Harrison Ford e Johnny Depp. Depois de conceber a ideia de ter um casal real na pela dos protagonistas, Kubrick chegou a Alec Baldwin e Kim Basinger - mas somente até que Tom Cruise e Nicole Kidman visitaram sua propriedade na Inglaterra (onde Kidman filmava "Retrato de uma mulher") e foram oficialmente convidados para tomar parte em seu ambicioso projeto. A opção por um dos casais mais famosos do mundo agradou aos executivos da Warner - que sugeriam ao diretor a escalação de nomes populares para agradar ao mercado - e deu início a uma série de fofocas de bastidores, que iam de especulações a respeito da trama (eles realmente seriam terapeutas que se envolviam com pacientes?) até substituições no meio das filmagens (Harvey Keitel e Jennifer Jason Leigh chegaram a filmar várias cenas, antes que compromissos os impedissem de voltar ao set para novas gravações e os fizessem perder os papéis para Sidney Pollack e Marie Richardson). O trabalho estendeu-se indefinidamente a ponto de dar uma úlcera a Tom Cruise - que, dizem, teve que fazer 95 takes de uma cena em que tinha que simplesmente atravessar o batente de uma porta -, mas valeu a pena. Com um roteiro que lança mais perguntas que respostas, "De olhos bem fechados" é a obra-prima imperfeita de Kubrick é seu belo canto do cisne - e uma produção digna de figurar em uma filmografia tão ímpar e cultuada.

quarta-feira

LENDA URBANA


LENDA URBANA (Urban legend, 1998, TriStar Pictures, 99min) Direção: Jamie Blanks. Roteiro: Silvio Horta. Fotografia: James Chressanthis. Montagem: Jay Cassidy. Música: Christopher Young. Figurino: Mary Claire Hannan. Direção de arte/cenários: Charles Breen/Carolyn 'Cal' Loucks. Produção executiva: Brad Luff. Produção: Gina Matthews, Michael McDonnell, Neal H. Moritz. Elenco: Jared Leto, Alicia Witt, Rebecca Gayheart, Joshua Jackson, Michael Rosenbaum, Tara Reid, Robert Englund, Brad Dourif, Loretta DeVine, John Neville. Estreia: 25/9/98

O sucesso estrondoso de "Pânico" (1996) não apenas ressuscitou o prestígio de Wes Craven ou catapultou a carreira de Neve Campbell: seu êxito comercial deflagrou uma onda de slasher movies juvenis que raramente conseguiram atingir o mesmo nível de inteligência e frescor do original. Produções como "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" (1997) mostraram que, apesar do forte apelo popular, a fórmula assassinatos violentos/personagens ingênuos/humor sombrio era perigosamente frágil e propensa a inevitáveis armadilhas. Foi o que ocorreu com "Lenda urbana": se utilizando de todos os ingredientes reaproveitados por Craven (mas consagrados desde os cultuados "Halloween" e "Sexta-feira 13"), o filme de Jamie Blanks conquistou uma respeitável bilheteria internacional (mais de 70 milhões de dólares contra um orçamento tímido de aproximadamente 14 milhões), rendeu continuações e agradou aos fãs menos exigentes do gênero, mas esbarrou na reprovação generalizada da crítica, pouco entusiasmada com o excesso de clichês e furos do roteiro, escrito pelo mesmo Silvio Horta que estaria por trás da série "Ugly Betty" (2006).

Dirigido por Jamie Blanks (também compositor de trilhas sonoras e editor, e que voltou ao suspense com "O dia do terror", de 2001), "Lenda urbana" se aproveita de um tema bastante interessante para contar uma história que, apesar de apresentar alguns momentos de tensão genuína, escorrega constantemente na inverossimilhança e falha ao criar personagens capazes de despertar a simpatia do espectador - culpa talvez da apatia de Alicia Witt, escolhida pelos produtores depois da recusa de Jennifer Love Hewitt (que tentava escapar do rótulo de heroína do gênero, depois de "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado") e Reese Witherspoon (antes da fama e da consagração que viria poucos anos depois). Insossa e sem carisma, Witt ainda teve o azar de ficar com uma personagem igualmente sem graça - e até um pouco irritante, como toda boa protagonista de um filme de terror. Sua Natalie Simon é uma jovem introvertida e misteriosa que se envolve, junto com um grupo de colegas de uma universidade da Nova Inglaterra, em uma apavorante caçada humana, onde um violento assassino faz suas vítimas de acordo com histórias contadas através das gerações. Enquanto cadáveres se acumulam, ela se vê apaixonada por Paul Gardener (Jared Leto), repórter do jornal universitário e objeto do desejo de sua melhor amiga, Brenda (Rebecca Gayheart). Com um passado que tenta esconder a todo custo, Natalie não demora a tornar-se alvo do carniceiro - ou não será ela mesma uma suspeita?

 

O roteiro de Silvio Horta até tenta ser criativo na hora de eliminar seus personagens - algumas mortes fazem jus ao sucesso de bilheteria do filme, e a primeira cena (com a participação não creditada de Brad Dourif e da filha de Natalie Wood e Robert Wagner, Natasha Gregson-Wagner) é potente o suficiente para ganhar a plateia de cara. Porém nem mesmo a direção mais inovadora do mundo seria capaz de evitar o senso de decepção com seu terço final - não apenas a resolução do mistério é pouco crível como o assassino parece se tornar imortal (reflexos de Jason, Freddy Kruger e Michael Meyers) sem nenhuma explicação aparente. O elenco também não ajuda: se Alicia Witt não tem a força necessária para assumir o posto de scream queen, seus colegas também não se saem melhor, especialmente Rebecca Gayheart, cujo exagero em cena é mais assustador que os crimes mostrados diante do espectador. Jared Leto tem pouco a fazer como o galã do momento, e Joshua Jackson volta a interpretar o amigo simpático e metido a conquistador (algo que faz com extrema naturalidade desde a série "Dawson's Creek", que, aliás, é lembrada sutilmente na única boa piada do roteiro). Tara Reid, por sua vez, protagoniza uma das melhores sequências do filme (substituindo Sarah Michelle Gellar, que saiu do projeto por conflitos de agenda com a série "Buffy: a caça-vampiros"). Completando o elenco, nomes consagrados do cinema de terror (Brad Douriff, de "Brinquedo assassino", e Robert Englund, o Freddy Kruger em pessoa) e o veterano John Neville - emprestando seu prestígio a um personagem que, como os demais, é subaproveitado no enredo.

No final das contas, "Lenda urbana" atinge a seus objetivos. Pelo tempo que dura prende a atenção do espectador e dá alguns sustos - que é o que se espera de uma produção do gênero. Também faz uso razoável das lendas urbanas que lhe inspiraram e não tem medo em assumir-se um slasher movie com todas os seus prós e contras. É pouco convincente? Sim. Tem um elenco majoritariamente fraco? Sem dúvida. Mas é pouco provável que os fãs do estilo se importem com tais detalhes enquanto a tela é inundada por sangue e gritos juvenis. Não é, nem de longe, um "Pânico". Mas poucos filmes são.

domingo

O MISTÉRIO DE CANDYMAN


O MISTÉRIO DE CANDYMAN (Candyman, 1992, TriStar Pictures, 99min) Direção: Bernard Rose. Roteiro: Bernard Rose, conto "The forbidden", de Clive Barker. Fotografia: Anthony B. Richmond. Montagem: Dan Rae. Música: Philip Glass. Figurino: Leonard Pollack. Direção de arte/cenários: Jane Ann Stewart/Kathryn Peters. Produção executiva: Clive Barker. Produção: Steve Golin, Alan Poul, Sigurjon Sighvatsson. Elenco: Virginia Madsen, Tony Todd, Xander Berkeley, Vanessa Williams, Kasi Lemmons, DeJuan Guy. Estreia: 11/9/92 (Festival de Toronto)

Quando surgiu, no conto "The forbidden", do britânico Clive Barker, o personagem Candyman tinha características físicas bastante específicas: tinha uma cor amarela sobrenatural e uma barba ruiva. Quando chegou às telas de cinema, em 1992, pelas mãos do cineasta Bernard Rose, porém, não apenas a localização de sua lenda era distinta do original, mas também seu visual: transferido de Liverpool, na Inglaterra, para uma Chicago distante dos pontos turísticos, Candyman transmutou-se em um homem negro, alto e com um passado trágico que afetava diretamente sua mitologia. Com um aspecto quase romântico que remetia a vilões sedutores como Drácula, o protagonista de "O mistério de Candyman" acabou por fazer história também por motivos polêmicos: enquanto muitos louvavam o fato de um ator negro (Tony Todd) assumir um papel até então inédito para afrodescendentes (o protagonista de um slasher movie), muitos outros reclamavam da possibilidade da ideia reforçar estereótipos negativos a respeito de uma minoria frequentemente vista como ameaça. Controvérsias à parte - algumas até mesmo risíveis -, o filme de Rose não fez feio: rendeu quatro vezes o seu custo, entrou na invejada relação de cult movies, rendeu duas continuações (e um reboot lançado em 2021) e aferrou-se no inconsciente coletivo dos fãs do gênero.

Tratado com uma seriedade rara de se encontrar nos filmes de terror dos anos 1990, "O mistério de Candyman" é, na verdade, o encontro de duas ideias que, juntas, acabaram por ser a base de um roteiro que consegue, ao mesmo tempo, fortalecer os cânones do gênero e despertar discussões sociais - bem mais aprofundadas no filme de 2021 mas já com suas sementes lançadas no primeiro capítulo. Ao enredo de Barker, que versava sobre a luta de classes na Inglaterra da década de 1970 por trás de uma história de horror, foram acrescentados, com a mudança geográfica, elementos que davam foco a questões raciais e violência urbana, temas prementes nos EUA à época: vale lembrar que o espancamento de Rodney King, em Los Angeles - o estopim de uma série de distúrbios que sacudiram o país - aconteceu apenas um ano e meio antes da estreia do filme de Rose. Ao transferir a ação da narrativa de Liverpool para um conjunto habitacional nos subúrbios de Chicago, o roteiro não apenas optou por aproximá-la de um cenário mais familiar a este tipo de tensão como também utilizou-se da locação real de um homicídio que abalou a cidade em 1987: uma mulher chamada Ruthie Mae McCoy foi violentamente assassinada em seu apartamento por um homem que entrou em seu banheiro por um buraco atrás do espelho - um crime verdadeiro que não apenas serviu de inspiração como foi incorporado à trama de forma orgânica.

 

Apesar de Candyman ser o protagonista do filme de Rose, ele não aparece em cena antes de 40 minutos de projeção. Quem assume o posto de personagem central até então é Helen Lyle (Virginia Madsen no papel mais popular de sua carreira), uma estudante que, debruçada em suas pesquisas sobre folclore urbano, passa a dedicar-se a investigar a lenda de um homem que, tendo seu nome citado cinco vezes diante do espelho, o atravessa e mata suas vítimas com um gancho que tem no lugar de uma das mãos. A origem de Candyman vem da época da escravidão - mas Helen quer provar, sem espaço para dúvidas, de que tudo não passa mesmo de uma história para ser contada em rodas de acampamento. Com a ajuda de sua amiga, Bernardette (Kasi Lemmons), ela chega até Cabrini-Green, o conjunto habitacional que foi local de um suposto ataque da violenta entidade mística. Ao penetrar em um universo onde a violência e o descaso das autoridades são moedas correntes, Helen se vê envolvida em uma série de assassinatos que aparentemente tem ligação com a lenda que ela pretende desacreditar.

A maior qualidade do filme de Bernard Rose - um cineasta britânico que poucos anos depois assinaria uma biografia romanceada de Beethoven, chamada "Minha amada imortal" (1995) - é se levar a sério. Em uma época em que o cinema de terror frequentemente apostava no humor como elemento indispensável para conquistar plateias cada vez mais jovens, "O mistério de Candyman" aposta em um tom sóbrio, valorizado pela trilha sonora de Philip Glass e pela fotografia de Anthony B. Richmond. A escolha de Tony Todd para viver o personagem central - que quase ficou nas mãos de Eddie Murphy - é outro acerto admirável, a ponto de tornar o ator um dos rostos mais conhecidos do gênero. Também é louvável a intenção do roteiro em discutir (ainda que timidamente) questões raciais - a própria Helen se revolta ao perceber que somente o ataque a uma mulher branca que obriga a polícia a agir positivamente no gueto. Violento e tenso - com sequências bastante sangrentas e um final surpreendente -, "O mistério de Candyman" é uma produção rara, feita com capricho e com intenções de afirmar seu anti-herói no rol dos maiores vilões do gênero. Mesmo sofrendo críticas pesadas à sua opção de transformá-lo em negro - o cineasta Carl Franklin chegou a afirmar que o filme "joga com o medo que a classe média branca sente dos negros" -, Bernard Rose tem o mérito nada desprezível de fazer de um filme de terror um motivo de discussão. Poucos filmes - de quaisquer gêneros - podem se gabar disso.

terça-feira

AVALON

 

AVALON (Avalon, 1990, TriStar Pictures, 128min) Direção e roteiro: Barry Levinson. Fotografia: Allen Daviau. Montagem: Stu Linder. Música: Randy Newman. Figurino: Gloria Gresham. Direção de arte/cenários: Norman Reynolds/Linda DeScenna. Produção: Mark Johnson, Barry Levinson. Elenco: Armin Mueller-Stahl, Joan Plowright, Aidan Quinn, Elizabeth Perkins, Kevin Pollack, Elijah Wood. Estreia: 19/10/90

4 indicações ao Oscar: Roteiro Original, Fotografia, Trilha Sonora Original, Figurino

 "Cheguei na América em 1914..." Mais do que a abertura de "Avalon", a frase dita pelo patriarca Sam Krichinsky no filme de Barry Levinson serve como uma espécie de mantra, uma lembrança constantemente repetida através dos anos como forma de reafirmar uma identidade nacional ameaçada pela modernidade e pela imersão em uma cultura estrangeira. Inspirado na trajetória da família do diretor e roteirista, o primeiro filme de Levinson depois da chuva de Oscar por "Rain Man" (1988) é, também, um dos filmes mais pessoais do cineasta, repleto de calor humano, personagens dolorosamente reais e momentos da mais pura magia cinematográfica. Sem apelar para o sentimentalismo barato - ainda que não evite a emoção - e com um elenco preciso, formado por atores (e não astros de ego inflado e atuações excessivas), "Avalon" se destaca na carreira do realizador justamente por nadar contra a corrente e entregar ao espectador uma deliciosa e nostálgica crônica familiar, injustamente esquecida pela Academia de Hollywood em um ano cujo maior sucesso foi o soporífero e superestimado "Dança com lobos": indicado a apenas quatro estatuetas (indicações que sublinham algumas de suas maiores qualidades), o filme é uma joia das mais preciosas, uma carinhosa ode à família e à pátria - mas sem exagero no açúcar ou no ufanismo barato.

Interpretado por Armin Mueller-Stahl com generosas doses de sensibilidade, Sam Krichinsky não é exatamente o protagonista - ao menos não o único: ao optar por uma narrativa quase episódica, Levinson espalha o protagonismo por vários membros da família, especialmente no filho de Sam, Jules (Aidan Quinn), um jovem ambicioso e empreendedor que se torna, mesmo que de forma não intencional, o responsável pela separação do núcleo familiar. Em busca de independência, Jules rompe simbolicamente com as raízes polonesas (a simplificação do sobrenome é quase um golpe de morte em seu pai) e foge da tradição profissional de gerações ao sonhar (e realizar) um negócio próprio e então inovador. Ao lado do primo, Izzy (Kevin Pollack) - também pouco arraigado a tradições que considera não práticas - e da esposa, Ann (Elizabeth Perkins), Jules representa a chegada do progresso, da tecnologia (a TV surge como catalisador de outras mudanças na rotina da casa) e de uma nova forma de enxergar o mundo e os rituais antes considerados intocáveis. Não à toa, Levinson se utiliza de eventos familiares para sublinhar as profundas transformações (igualmente representativo é o fato de que é o Dia de Ação de Graças, uma data tipicamente norte-americana, o cenário para tais momentos de humor e/ou emoção). O roteiro equilibra com maestria humor e drama - nos dois casos com parcimônia e delicadeza - e consegue, de maneira admirável, valorizar o amor à terra natal e louvar as oportunidades de um novo mundo. É comovente e lindamente fotografada a sequência de abertura, em pleno 4 de julho, quando Sam fica abismado com as luzes e o colorido de seu novo país, como o auspício de um futuro tão brilhante quanto a noite de independência.

 
Terceira parte de uma trilogia informal iniciada por Barry Levinson com "Quando os jovens se tornam adultos" (1982) e continuada com "Os rivais" (1987) - um capítulo a mais foi adicionado com "Ruas da liberdade", de 1999 -, "Avalon" chegou a figurar entre os dez melhores filmes de 1990 pela National Board of Review e foi indicado a três importantes Golden Globes - melhor drama, melhor diretor e melhor trilha sonora original -, mas foi quase esquecido pelo Oscar. Mesmo lembrado na nobre categoria de roteiro original - onde perdeu para "Ghost: do outro lado da vida", adorado pelo público -, não foi celebrado como merecia: concorreu também às estatuetas de fotografia, figurino e música (uma sensível partitura de Randy Newman que ilustra com exatidão toda a vasta gama de emoções que percorre o filme). O trabalho de Mueller-Stahl foi injustamente esnobado (e pensar que Kevin Costner estava no páreo) e a direção discreta mas emotiva de Levinson também foi deixada de lado - talvez por sua vitória ainda recente por "Rain Man". Tal resultado em cerimônias de premiação não reflete todas as suas qualidades, sendo mais um sinal inequívoco do fato de que o Oscar normalmente é um jogo de popularidade: com uma renda internacional de pouco mais de 15 milhões de dólares (que não chegou nem mesmo a pagar seu orçamento relativamente baixo de 20 milhões), era difícil disputar de igual pra igual com produções de bilheteria milionária, como os já citados "Dança com lobos" e "Ghost" e com filmes que já chegavam às telas com prestígio nas alturas, como "Os bons companheiros" e "O poderoso chefão: parte 3". Diante de tantos pesos-pesados, "Avalon" ficou praticamente invisível - para azar de quem não o descobriu a tempo.

É difícil escolher a melhor cena de "Avalon", repleta de momentos tão verdadeiros e emocionantes que soam familiares até mesmo para quem não é de descendência judaica-polonesa. Todos os encontros do clã são recheados de calor humano, humor e verossimilhança. Sam Krichinsky e sua amada Eva (Joan Plowright, excelente) são os avós que todos gostariam de ter - assim como a infância do pequeno Michael (Elijah Wood ainda criança mas já bastante expressivo), inundada de amor e aventuras que beiram o perigo. Levinson conduz o espectador por uma viagem no tempo, enfatizando aqui e ali situações corriqueiras mas que, iluminadas por seu olhar carinhoso, se tornam maiores que a vida. Amor, amizade, vida, morte, alegrias e tristezas são iguais em importância diante do cineasta - que faz, à sua maneira, uma homenagem das mais brilhantes a suas origens familiares. Sem escorregar no sentimentalismo mas investindo com inteligência no que qualquer personagem tem de mais humano, ele criou um dos melhores filmes da década de 1990, infelizmente pouco conhecido do grande público.

sábado

CULPADO POR SUSPEITA


CULPADO POR SUSPEITA (Guilty for suspicion, 1991, Warner Bros, 105min) Direção e roteiro: Irwin Winkler. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Priscilla Nedd. Música: James Newton Howard. Figurino: Richard Bruno. Direção de arte/cenários: Leslie Dilley/Nancy Haigh. Produção executiva: Steven Reuther. Produção: Arnon Milchan. Elenco: Robert DeNiro, Annette Bening, George Wendt, Chris Cooper, Patricia Wettig, Sam Wanamaker, Luke Edwards, Ben Piazza, Martin Scorsese, Tom Sizemore. Estreia: 15/3/91

Levando-se em consideração que o cinema foi um dos ramos mais atingidos pela  famigerada caça às bruxas promovida pelo Senador republicano norte-americano Joseph McCarthy na década de 1950 - que, sob o pretexto de salvar os EUA do comunismo, ceifou carreiras e reputações, arruinando vidas e famílias inteiras - até que demorou para que Hollywood tratasse do assunto com a seriedade merecida. Talvez por medo de tocar em uma ferida ainda dolorida mesmo depois de quarenta anos, os executivos  evitaram, por décadas, ressuscitar um fantasma que havia posto colegas contra colegas e deixado a indústria em tensão constante por um longo e tenebroso período. Foi somente em 1991 que a Warner Bros finalmente rompeu a barreira de silêncio e lançou "Culpado por suspeita" - uma produção classuda, estrelada por um astro de primeira grandeza (Robert DeNiro) e que marcava a estreia na direção de um produtor consagrado - Irwin Winkler, o nome por trás de clássicos contemporâneos, como "Touro indomável" (1980), "Os eleitos" (1983) e "Os bons companheiros" (1990). Tais créditos, no entanto, não impediram que o filme fracassasse nas bilheterias - o que era, de certa forma, esperado, devido à seriedade do tema, pouco atrativo ao público médio - e falhasse na tentativa de arrebatar estatuetas do Oscar - não apenas por ter estreado longe do período mais propício à atenção da Academia mas por sua falta de brilho e personalidade.

 


Morno e quase apático - a despeito do tema explosivo -, "Culpado por suspeita" provavelmente perdeu sua chance de ser a obra definitiva sobre o macartismo (ou ao menos uma produção memorável e relevante artisticamente) logo em sua gênese. Ao assumir o projeto, uma das primeiras coisas que Winkler fez foi trabalhar em alterações no roteiro original de Abraham Polonsky e transformar David Merill, seu personagem principal, de comunista assumido em um menos "perigoso" liberal. Polonsky - ele mesmo uma vítima da lista negra promovida pelas investigações de McCarthy - sentiu-se pessoalmente ofendido com a mudança e não fez a menor questão de esconder a insatisfação com a novidade. Segundo ele - e com razão, a história não era sobre alguém falsamente acusado e sim sobre alguém que tinha plena consciência de suas visões políticas e se recusava a abrir mão de seus ideais. Polonsky se identificava com o protagonista e sua integridade a tal ponto que simplesmente obrigou a retirada de seu nome dos créditos também na função de produtor executivo (o que poderia lhe render dividendos, caso o filme se tornasse um hit). A opção de Winkler em tornar Merrill um liberal teve suas razões comerciais - um filme sobre um cineasta comunista certamente incomodaria muita gente - mas acabou por mostrar-se quase tão covarde quanto àqueles que tenciona criticar em sua trama. Isso e o excesso de didatismo acabaram diminuindo o impacto que o filme poderia ter.

O roteiro de Winkler - depois das alterações feitas para desgosto de Polonsky - tenta ser acessível até mesmo ao público que desconhece detalhes das investigações promovidas pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, mas esbarra em uma profusão de cenas redundantes, que fazem com que o filme, apesar de suas intenções quase louváveis, pareça andar em círculos. Os personagens constantemente repetem o que a plateia já cansou de ouvir - todas as cenas em que Merrill tenta ser convencido a testemunhar diante do comitê, por exemplo, soam incomodamente semelhantes, e nem mesmo o talento superlativo de Robert DeNiro é capaz de disfarçar tamanha falta de criatividade. Aliás, se há algo em que "Culpado por suspeita" se escora com sucesso é em seu elenco: além de DeNiro (que mesmo sem estar em um momento particularmente memorável da carreira ainda é um ator fenomenal), Winkler conta com a estrela (então) em ascensão Annette Bening (no mesmo ano em que estaria no elenco do aclamado "Bugsy", ao lado do marido Warren Beatty), o ainda pouco conhecido Chris Cooper, a ótima Patricia Wettig (que anos mais tarde estaria no elenco da série "Brothers and sisters") e até mesmo Martin Scorsese em um de seus raros trabalhos como ator (na pele de um cineasta perseguido que prefere abandonar os EUA a delatar amigos, uma história que espelha a do veterano Joseph Losey). Com atores tão bons em mãos (além do veterano Sam Wanamaker, que esteve, assim como o roteirista original, Abraham Polonsky, na lista de profissionais impedidos de trabalhar), Winkler tropeça ao apresentar um filme burocrático que somente em seu terço final consegue empolgar - e mesmo assim o faz ao colocar na boca de seu protagonista um discurso real ouvido no Comitê: o do advogado Joseph N. Welch.

A trama de "Culpado por suspeita" acompanha o consagrado cineasta David Merrill (DeNiro), que retorna da Europa aos EUA, no começo dos anos 1950, e encontra Hollywood em polvorosa com a caça aos comunistas promovida pelo Senador Joseph McCarthy. Merrill - citado como provável membro do partido por ter participado de reuniões anos antes - passa a ser pressionado pelo comitê e até mesmo por colegas para testemunhar e, obviamente, listar nomes que possam ser punidos por suas atividades. Impedido de trabalhar até que concorde em fazer parte da lista de delatores, Merril vê sua vida ruir em questão de semanas. Sem emprego, dinheiro ou oportunidades, ele recorre à família como porto seguro: a ex-mulher, Ruth (Annette Bening), e o filho pequeno. Enquanto mantém firme sua integridade, porém, o cineasta fica atônito ao perceber que nem todo mundo tem a mesma força de caráter. Tal constatação o leva a questionar a força devastadora da mentira e do medo - uma reflexão contada de forma muito mais ousada e memorável em "Boa noite, e boa sorte" (2005), filme de George Clooney que retratava o mesmo período histórico mas dentro do universo televisivo, assim como a comédia "Testa-de-ferro por acaso", estrelada por Woody Allen em 1977. Importante apenas por ser o primeiro filme a resgatar o assunto dentro do mundo do cinema, "Culpado por suspeita" é uma produção agradável e interessante - mas jamais ultrapassa os limites que impôs a si mesma. Uma pena.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...