domingo

DIGAM O QUE QUISEREM


DIGAM O QUE QUISEREM (Say anything..., 1989, 20th Century Fox, 100min) Direção e roteiro: Cameron Crowe. Fotografia: Laszlo Kovacs. Montagem: Richard Marks. Música: Anne Dudley, Richard Gibbs. Figurino: Jane Ruhm. Direção de arte/cenários: Mark Mansbridge/Joe Mitchell. Produção executiva: James L. Brooks. Produção: Polly Platt. Elenco: John Cusack, Ione Skye, John Mahoney, Lily Taylor, Pamela Segall, Jason Gould, Loren Dean, Jeremy Piven, Bebe Neuwirth, Eric Stoltz. Estreia: 14/4/89

Comédias românticas adolescentes seguem, via de regra, a mesma equação - especialmente aquelas criadas na década de 1980, quando o gênero floresceu graças ao talento de John Hughes, pai (como diretor, roteirista ou produtor) de clássicos absolutos como "Gatinhas e gatões" e "A garota de rosa-shocking", ambos estrelados pela diva maior da época, Molly Ringwald. Sendo assim, não se poderia esperar muitas ousadias em "Digam o que quiserem" - aparentemente mais um exemplar da série de romances juvenis com regras próprias e ingredientes facilmente reconhecíveis. Porém, regras existem para que possam ser quebradas, e o então jornalista Cameron Crowe, estreando como cineasta, subverteu um tantinho a receita de Hughes e criou uma história de amor que, com o julgamento normalmente sábio do tempo, transformou-se em um cult movie dos mais adorados pelos saudosistas.

Escrito com a mesma inteligência e sensibilidade que fez de Crowe um dos roteiristas mais elogiados da década seguinte - quando entregou ao público pérolas como "Vida de solteiro" (1993), "Jerry Maguire: a grande virada" (1996) e "Quase famosos" (2000), que lhe rendeu o Oscar da categoria -, "Digam o que quiserem" se aproveita das diretrizes mais simples das comédias românticas adolescentes para contar uma história com personagens que fogem dos padrões inalcançáveis de beleza e que agem como pessoas reais. Com diálogos tão naturais quanto frescos (em parte cortesia do preciso elenco) e situações dramáticas verossímeis, o filme envolve o espectador não por criar intrigas melodramáticas e/ou trágicas, mas por proporcionar identificação com problemas mundanos típicos da adolescência  - e até da idade adulta. "Será que ela vai aceitar sair comigo?" "Será que vou conseguir suprir as expectativas do meu pai?" "Será que devo interferir na vida da minha filha de forma tão peremptória?" As questões levantadas por Crowe encontram eco em qualquer época e para qualquer um - daí a perenidade de "Digam o que quiserem" e seu sucesso em manter-se relevante.


Mas não foi sempre assim. Quando estreou, em 1989, "Digam o que quiserem" não empolgou nas bilheterias, e só não chegou a ser um fiasco absoluto porque foi ajudado pela boa vontade de dois dos mais respeitados críticos dos EUA. Entusiasmados com o trabalho de Crowe, os consagrados Roger Ebert e Gene Siskel aplaudiram a produção em suas colunas - Ebert chegou a incluí-lo em um de seus livros sobre grandes filmes - e lhe ofereceram uma segunda chance. Mesmo com o bem-vindo empurrão dos jornalistas, porém, o filme não tornou-se um grande êxito comercial, e viu sua popularidade aumentar com o passar dos anos. Redescoberto, inspirou outros cineastas - e a antológica cena de seu protagonista segurando um aparelho de som sobre a cabeça, em uma moderna serenata, foi recriada com inteligência no divertido "A mentira", que revelou Emma Stone em 2009. E se o encanto do filme se mantém ainda hoje, é a presença de um jovem John Cusack no papel central que aumenta ainda mais seu interesse: em uma atuação natural e encantadora, Cusack rouba a cena até mesmo da colega de cena Ione Skye (filha do cantor Donovan), e faz entender porque foi escolhido pelo diretor, em detrimento de nomes como Christian Slater, Loren Dean, Peter Berg, Todd Field, Brandon Lee e Robert Downey Jr. (todos em começo de carreira).

Simpático como sempre, Cusack dá vida a Lloyd Dobler, um jovem estudante que acaba de terminar o ensino médio em uma escola de Seattle (cenário também de "Vida de solteiro"). Sem nenhum talento óbvio ou qualquer tipo de brilhantismo acadêmico, ele sabe apenas que é apaixonado por Diane Court (Ione Skye), uma colega que mal sabe quem ele é até que aceita, num arroubo de espontaneidade, ir com ele a uma das festas de formatura. A noite mostra a Diane as maiores qualidades de Lloyd - mas mesmo assim, sua prioridade é dedicar-se ao futuro, na forma de uma faculdade na Inglaterra, e à relação com o pai, Jim (John Mahoney em papel oferecido a Richard Dreyfuss), dono de um asilo e divorciado. De certa forma encantada com Lloyd - que vive com a irmã, Constance (Joan Cusack), e o sobrinho pequeno -, Diane aceita passar com ele as semanas que faltam para que embarque para a Europa, e logicamente se apaixona. Porém, suas dúvidas acerca das possibilidades de um relacionamento mais sério com alguém tão indeciso a fazem hesitar. E é com essa trama simples mas eficiente que Crowe fez sua auspiciosa estreia como diretor - bancada pelo produtor James L. Brooks e transformada, com o passar dos anos, em uma deliciosa máquina do tempo, capaz de levar a plateia de volta aos felizes anos 1980.

quinta-feira

DE OLHOS BEM FECHADOS


DE OLHOS BEM FECHADOS (Eyes wide shut, 1999, Warner Bros, 159min) Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael, novela "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler. Fotografia: Larry Smith. Montagem: Nigel Galt. Música: Jocelyn Pook. Figurino: Marit Allen. Direção de arte/cenários: Les Tomkins, Roy Walker/Lisa Leone, Terry Wells Sr.. Produção executiva: Jan Harlan. Produção: Stanley Kubrick. Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sidney Pollack, Todd Field, Sky du Mont, Marie Richardson, Thomas Gibson, Julienne Davis, Vinessa Shaw, Leelee Sobieski, Rade Serbedzija. Estreia: 13/7/99

O tempo é um elemento do qual não se é possível fugir ao se falar sobre "De olhos bem fechados", o último filme do celebrado e mítico Stanley Kubrick. Foi em 1960 que o cineasta conheceu o livro "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler - durante as sessões de terapia a que foi submetido em conjunto com Kirk Douglas para que resolvessem seus problemas de relacionamento nas filmagens de "Spartacus". Foi em 1971 que o presidente da Warner Bros, John Calley, anunciou que a adaptação da obra seria o próximo trabalho do diretor - uma informação que não revelou-se verdade, uma vez que a honra de suceder "Laranja mecânica" (1971) ficou com "Barry Lyndon" (1975). Foi no começo dos anos 1990 que o lendário homem por trás de "2001: uma odisseia no espaço" (1968) resolveu voltar a seu projeto de estimação quando Steven Spielberg anunciou "A lista de Schindler" (1993) - com tema bastante similar a "Aryan papers", cuja produção estava disposto a começar. Foi em novembro de 1996 que finalmente começaram as filmagens que se estenderiam por 400 dias - um recorde registrado no Guinnes Book, que nem considerou a pós-produção de quase um ano. E foi apenas quatro dias depois de mostrar sua versão do filme aos executivos do estúdio (ainda não completamente finalizada) que o mundo foi pego de surpresa com a notícia de sua inesperada morte - quatro meses antes da estreia oficial de uma mais esperadas produções cinematográficas da década.

Estrelado pelo então casal real de Hollywood - Tom Cruise e Nicole Kidman - e cercado por expectativas estratosféricas (assim como por um mistério que se estendeu até o lançamento), "De olhos bem fechados"se beneficiou do hype em torno do nome do diretor e do reencontro dos protagonistas sete anos depois do esquecível "Um sonho distante": mesmo sem muitas pistas a respeito da trama e das intenções comerciais do filme (nem mesmo o famoso trailer ao som de Chris Isaack entregava qualquer dica), o público correu às salas de exibição para conferir o resultado das cansativas e controversas filmagens que mantiveram Cruise e  Kidman presos na Inglaterra por mais de um ano - a ponto de atrasar outras produções da dupla, como "Da magia à sedução" e"Missão: impossível II" (finalmente lançado em 2000). Primeiro filme de Kubrick a estrear em primeiro lugar nas bilheterias dos EUA, "De olhos bem fechados" terminou sua carreira internacional com mais de 160 milhões de dólares em caixa - nada mal para uma produção adulta e com um tema tão controverso quanto... sexo.

Sim, sexo está na base e na origem de "De olhos bem fechados". Já adaptada anteriormente (para a televisão austríaca, em 1969, e em um filme italiano chamado "Ad un pas dall'aurora"), a novela de Schnitzler - discípulo de Freud - acompanha a obsessiva jornada de um médico, William Harford (Tom Cruise), por uma aventura sexual que o faça esquecer (ao menos momentaneamente) a confissão da bela esposa, Alice (Nicole Kidman), de que quase o traiu em uma viagem romântica. Cego de decepção - afinal sua vida matrimonial parecia sólida e imune a qualquer tipo de traição -, Harford busca um encontro casual, mas acaba envolvido (como penetra) em uma misteriosa orgia com participantes mascarados, senhas e uma atmosfera de perigo constante. Perseguido pela paranoia, ele refaz os passos da noite, o que inclui encontros com uma jovem prostituta e com uma adolescente envolvida com dois homens mais velhos. Nesse meio tempo, passa a desconfiar que está correndo o risco de ser vítima da violência dos organizadores da orgia - como aconteceu com um amigo músico e com uma bela mulher que tentou alertá-lo sobre os perigos da festa.


 A trama de Schnitzler, seguida com razoável fidelidade pelo roteiro do diretor e Frederic Raphael, não é das mais empolgantes em termos de ação. Porém, é fascinante como o cineasta é capaz de cobrir o enredo com uma atmosfera de pesadelo, sublinhada pela trilha sonora de Jocelyn Pook (indicada ao Globo de Ouro) e pela edição quase contemplativa de Nigel Galt. Se Tom Cruise não é um grande ator nem mesmo sob o comando de alguém exigente como Kubrick, o mesmo não pode ser dito de Nicole Kidman - em um de seus papéis mais importantes antes do divórcio do galã, a atriz mostra que beleza e talento podem tranquilamente caminhar juntos, e mesmo sem muita participação na segunda metade do filme, rouba a cena sem cerimônia na primeira parte (cujo desfecho é a cena em que confessa o adultério cogitado). Kubrick - que considerava "De olhos bem fechados" seu melhor filme - conduz seu último trabalho como um maestro, enfatizando aqui e acolá a complexidade de seus personagens com a sutileza de um veterano. É surpreendente que, antes que chegasse à conclusão sobre sua própria visão do enredo, tenha tido ideias tão excêntricas quanto a de tratá-lo como uma comédia.

A ideia de Kubrick de tratar o material de Schnitzler como uma comédia talvez tenha sido a mais inusitada de sua carreira - especialmente quando se pensa que o cineasta desejava ter Woody Allen no papel principal. Depois de Allen, Kubrick pensou em Steve Martin - até que deixou de lado a ousadia de brincar com o sisudo texto original e voltou a cogitar atores mais sérios, como Harrison Ford e Johnny Depp. Depois de conceber a ideia de ter um casal real na pela dos protagonistas, Kubrick chegou a Alec Baldwin e Kim Basinger - mas somente até que Tom Cruise e Nicole Kidman visitaram sua propriedade na Inglaterra (onde Kidman filmava "Retrato de uma mulher") e foram oficialmente convidados para tomar parte em seu ambicioso projeto. A opção por um dos casais mais famosos do mundo agradou aos executivos da Warner - que sugeriam ao diretor a escalação de nomes populares para agradar ao mercado - e deu início a uma série de fofocas de bastidores, que iam de especulações a respeito da trama (eles realmente seriam terapeutas que se envolviam com pacientes?) até substituições no meio das filmagens (Harvey Keitel e Jennifer Jason Leigh chegaram a filmar várias cenas, antes que compromissos os impedissem de voltar ao set para novas gravações e os fizessem perder os papéis para Sidney Pollack e Marie Richardson). O trabalho estendeu-se indefinidamente a ponto de dar uma úlcera a Tom Cruise - que, dizem, teve que fazer 95 takes de uma cena em que tinha que simplesmente atravessar o batente de uma porta -, mas valeu a pena. Com um roteiro que lança mais perguntas que respostas, "De olhos bem fechados" é a obra-prima imperfeita de Kubrick é seu belo canto do cisne - e uma produção digna de figurar em uma filmografia tão ímpar e cultuada.

quarta-feira

LENDA URBANA


LENDA URBANA (Urban legend, 1998, TriStar Pictures, 99min) Direção: Jamie Blanks. Roteiro: Silvio Horta. Fotografia: James Chressanthis. Montagem: Jay Cassidy. Música: Christopher Young. Figurino: Mary Claire Hannan. Direção de arte/cenários: Charles Breen/Carolyn 'Cal' Loucks. Produção executiva: Brad Luff. Produção: Gina Matthews, Michael McDonnell, Neal H. Moritz. Elenco: Jared Leto, Alicia Witt, Rebecca Gayheart, Joshua Jackson, Michael Rosenbaum, Tara Reid, Robert Englund, Brad Dourif, Loretta DeVine, John Neville. Estreia: 25/9/98

O sucesso estrondoso de "Pânico" (1996) não apenas ressuscitou o prestígio de Wes Craven ou catapultou a carreira de Neve Campbell: seu êxito comercial deflagrou uma onda de slasher movies juvenis que raramente conseguiram atingir o mesmo nível de inteligência e frescor do original. Produções como "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" (1997) mostraram que, apesar do forte apelo popular, a fórmula assassinatos violentos/personagens ingênuos/humor sombrio era perigosamente frágil e propensa a inevitáveis armadilhas. Foi o que ocorreu com "Lenda urbana": se utilizando de todos os ingredientes reaproveitados por Craven (mas consagrados desde os cultuados "Halloween" e "Sexta-feira 13"), o filme de Jamie Blanks conquistou uma respeitável bilheteria internacional (mais de 70 milhões de dólares contra um orçamento tímido de aproximadamente 14 milhões), rendeu continuações e agradou aos fãs menos exigentes do gênero, mas esbarrou na reprovação generalizada da crítica, pouco entusiasmada com o excesso de clichês e furos do roteiro, escrito pelo mesmo Silvio Horta que estaria por trás da série "Ugly Betty" (2006).

Dirigido por Jamie Blanks (também compositor de trilhas sonoras e editor, e que voltou ao suspense com "O dia do terror", de 2001), "Lenda urbana" se aproveita de um tema bastante interessante para contar uma história que, apesar de apresentar alguns momentos de tensão genuína, escorrega constantemente na inverossimilhança e falha ao criar personagens capazes de despertar a simpatia do espectador - culpa talvez da apatia de Alicia Witt, escolhida pelos produtores depois da recusa de Jennifer Love Hewitt (que tentava escapar do rótulo de heroína do gênero, depois de "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado") e Reese Witherspoon (antes da fama e da consagração que viria poucos anos depois). Insossa e sem carisma, Witt ainda teve o azar de ficar com uma personagem igualmente sem graça - e até um pouco irritante, como toda boa protagonista de um filme de terror. Sua Natalie Simon é uma jovem introvertida e misteriosa que se envolve, junto com um grupo de colegas de uma universidade da Nova Inglaterra, em uma apavorante caçada humana, onde um violento assassino faz suas vítimas de acordo com histórias contadas através das gerações. Enquanto cadáveres se acumulam, ela se vê apaixonada por Paul Gardener (Jared Leto), repórter do jornal universitário e objeto do desejo de sua melhor amiga, Brenda (Rebecca Gayheart). Com um passado que tenta esconder a todo custo, Natalie não demora a tornar-se alvo do carniceiro - ou não será ela mesma uma suspeita?

 

O roteiro de Silvio Horta até tenta ser criativo na hora de eliminar seus personagens - algumas mortes fazem jus ao sucesso de bilheteria do filme, e a primeira cena (com a participação não creditada de Brad Dourif e da filha de Natalie Wood e Robert Wagner, Natasha Gregson-Wagner) é potente o suficiente para ganhar a plateia de cara. Porém nem mesmo a direção mais inovadora do mundo seria capaz de evitar o senso de decepção com seu terço final - não apenas a resolução do mistério é pouco crível como o assassino parece se tornar imortal (reflexos de Jason, Freddy Kruger e Michael Meyers) sem nenhuma explicação aparente. O elenco também não ajuda: se Alicia Witt não tem a força necessária para assumir o posto de scream queen, seus colegas também não se saem melhor, especialmente Rebecca Gayheart, cujo exagero em cena é mais assustador que os crimes mostrados diante do espectador. Jared Leto tem pouco a fazer como o galã do momento, e Joshua Jackson volta a interpretar o amigo simpático e metido a conquistador (algo que faz com extrema naturalidade desde a série "Dawson's Creek", que, aliás, é lembrada sutilmente na única boa piada do roteiro). Tara Reid, por sua vez, protagoniza uma das melhores sequências do filme (substituindo Sarah Michelle Gellar, que saiu do projeto por conflitos de agenda com a série "Buffy: a caça-vampiros"). Completando o elenco, nomes consagrados do cinema de terror (Brad Douriff, de "Brinquedo assassino", e Robert Englund, o Freddy Kruger em pessoa) e o veterano John Neville - emprestando seu prestígio a um personagem que, como os demais, é subaproveitado no enredo.

No final das contas, "Lenda urbana" atinge a seus objetivos. Pelo tempo que dura prende a atenção do espectador e dá alguns sustos - que é o que se espera de uma produção do gênero. Também faz uso razoável das lendas urbanas que lhe inspiraram e não tem medo em assumir-se um slasher movie com todas os seus prós e contras. É pouco convincente? Sim. Tem um elenco majoritariamente fraco? Sem dúvida. Mas é pouco provável que os fãs do estilo se importem com tais detalhes enquanto a tela é inundada por sangue e gritos juvenis. Não é, nem de longe, um "Pânico". Mas poucos filmes são.

domingo

O MISTÉRIO DE CANDYMAN


O MISTÉRIO DE CANDYMAN (Candyman, 1992, TriStar Pictures, 99min) Direção: Bernard Rose. Roteiro: Bernard Rose, conto "The forbidden", de Clive Barker. Fotografia: Anthony B. Richmond. Montagem: Dan Rae. Música: Philip Glass. Figurino: Leonard Pollack. Direção de arte/cenários: Jane Ann Stewart/Kathryn Peters. Produção executiva: Clive Barker. Produção: Steve Golin, Alan Poul, Sigurjon Sighvatsson. Elenco: Virginia Madsen, Tony Todd, Xander Berkeley, Vanessa Williams, Kasi Lemmons, DeJuan Guy. Estreia: 11/9/92 (Festival de Toronto)

Quando surgiu, no conto "The forbidden", do britânico Clive Barker, o personagem Candyman tinha características físicas bastante específicas: tinha uma cor amarela sobrenatural e uma barba ruiva. Quando chegou às telas de cinema, em 1992, pelas mãos do cineasta Bernard Rose, porém, não apenas a localização de sua lenda era distinta do original, mas também seu visual: transferido de Liverpool, na Inglaterra, para uma Chicago distante dos pontos turísticos, Candyman transmutou-se em um homem negro, alto e com um passado trágico que afetava diretamente sua mitologia. Com um aspecto quase romântico que remetia a vilões sedutores como Drácula, o protagonista de "O mistério de Candyman" acabou por fazer história também por motivos polêmicos: enquanto muitos louvavam o fato de um ator negro (Tony Todd) assumir um papel até então inédito para afrodescendentes (o protagonista de um slasher movie), muitos outros reclamavam da possibilidade da ideia reforçar estereótipos negativos a respeito de uma minoria frequentemente vista como ameaça. Controvérsias à parte - algumas até mesmo risíveis -, o filme de Rose não fez feio: rendeu quatro vezes o seu custo, entrou na invejada relação de cult movies, rendeu duas continuações (e um reboot lançado em 2021) e aferrou-se no inconsciente coletivo dos fãs do gênero.

Tratado com uma seriedade rara de se encontrar nos filmes de terror dos anos 1990, "O mistério de Candyman" é, na verdade, o encontro de duas ideias que, juntas, acabaram por ser a base de um roteiro que consegue, ao mesmo tempo, fortalecer os cânones do gênero e despertar discussões sociais - bem mais aprofundadas no filme de 2021 mas já com suas sementes lançadas no primeiro capítulo. Ao enredo de Barker, que versava sobre a luta de classes na Inglaterra da década de 1970 por trás de uma história de horror, foram acrescentados, com a mudança geográfica, elementos que davam foco a questões raciais e violência urbana, temas prementes nos EUA à época: vale lembrar que o espancamento de Rodney King, em Los Angeles - o estopim de uma série de distúrbios que sacudiram o país - aconteceu apenas um ano e meio antes da estreia do filme de Rose. Ao transferir a ação da narrativa de Liverpool para um conjunto habitacional nos subúrbios de Chicago, o roteiro não apenas optou por aproximá-la de um cenário mais familiar a este tipo de tensão como também utilizou-se da locação real de um homicídio que abalou a cidade em 1987: uma mulher chamada Ruthie Mae McCoy foi violentamente assassinada em seu apartamento por um homem que entrou em seu banheiro por um buraco atrás do espelho - um crime verdadeiro que não apenas serviu de inspiração como foi incorporado à trama de forma orgânica.

 

Apesar de Candyman ser o protagonista do filme de Rose, ele não aparece em cena antes de 40 minutos de projeção. Quem assume o posto de personagem central até então é Helen Lyle (Virginia Madsen no papel mais popular de sua carreira), uma estudante que, debruçada em suas pesquisas sobre folclore urbano, passa a dedicar-se a investigar a lenda de um homem que, tendo seu nome citado cinco vezes diante do espelho, o atravessa e mata suas vítimas com um gancho que tem no lugar de uma das mãos. A origem de Candyman vem da época da escravidão - mas Helen quer provar, sem espaço para dúvidas, de que tudo não passa mesmo de uma história para ser contada em rodas de acampamento. Com a ajuda de sua amiga, Bernardette (Kasi Lemmons), ela chega até Cabrini-Green, o conjunto habitacional que foi local de um suposto ataque da violenta entidade mística. Ao penetrar em um universo onde a violência e o descaso das autoridades são moedas correntes, Helen se vê envolvida em uma série de assassinatos que aparentemente tem ligação com a lenda que ela pretende desacreditar.

A maior qualidade do filme de Bernard Rose - um cineasta britânico que poucos anos depois assinaria uma biografia romanceada de Beethoven, chamada "Minha amada imortal" (1995) - é se levar a sério. Em uma época em que o cinema de terror frequentemente apostava no humor como elemento indispensável para conquistar plateias cada vez mais jovens, "O mistério de Candyman" aposta em um tom sóbrio, valorizado pela trilha sonora de Philip Glass e pela fotografia de Anthony B. Richmond. A escolha de Tony Todd para viver o personagem central - que quase ficou nas mãos de Eddie Murphy - é outro acerto admirável, a ponto de tornar o ator um dos rostos mais conhecidos do gênero. Também é louvável a intenção do roteiro em discutir (ainda que timidamente) questões raciais - a própria Helen se revolta ao perceber que somente o ataque a uma mulher branca que obriga a polícia a agir positivamente no gueto. Violento e tenso - com sequências bastante sangrentas e um final surpreendente -, "O mistério de Candyman" é uma produção rara, feita com capricho e com intenções de afirmar seu anti-herói no rol dos maiores vilões do gênero. Mesmo sofrendo críticas pesadas à sua opção de transformá-lo em negro - o cineasta Carl Franklin chegou a afirmar que o filme "joga com o medo que a classe média branca sente dos negros" -, Bernard Rose tem o mérito nada desprezível de fazer de um filme de terror um motivo de discussão. Poucos filmes - de quaisquer gêneros - podem se gabar disso.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...