quinta-feira

A GAIOLA DAS LOUCAS

 


A GAIOLA DAS LOUCAS (The Birdcage, 1996, United Artists, 117min) Direção: Mike Nichols. Roteiro: Elaine May, original de Francis Veber, Édouard Molinaro, Marcello Danon, Jean Poiret, peça teatral "La cage aux folles", de Jean Poiret. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Arthur Schmidt. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Bo Welch/Cheryl Carasik. Produção executiva: Marcello Danon, Nil Machlis. Produção: Mike Nichols. Elenco: Robin Williams, Nathan Lane, Gene Hackman, Dianne Wiest, Hank Azaria, Christine Baranski, Dan Futterman, Calista Flockhart. Estreia: 08/3/96

Indicado ao Oscar de Direção de Arte/Cenários

Um dos filmes franceses de maior sucesso dentro no normalmente hermético mercado norte-americano, "A gaiola das loucas", lançado em 1978, não apenas conquistou a plateia e a crítica, mas também chegou a ser indicado a três Oscar - incluindo melhor roteiro adaptado e direção (Édouard Molinaro). Não demorou, portanto, para que Hollywood pensasse em uma versão doméstica, sem legendas que afugentassem o público médio e que apresentasse a trama (baseada em uma peça teatral de Jean Poiret) para uma nova audiência. Porém, depois de uma tentativa frustrada ainda nos anos 1980 - que poderia ter sido estrelada pela inusitada dupla Dudley Moore e Frank Sinatra (!!) -, o projeto ficou no limbo até a década seguinte, quando finalmente encontrou o caminho para as telas com um elenco sob medida e um tom moderno que, para surpresa de muitos, corrigiu alguns erros do original (amenizando alguns estereótipos exagerados) e revelou o talento de Nathan Lane, até então relegado a pequenos papéis em filmes nem sempre memoráveis. Indicado ao Golden Globe de melhor ator, Lane consegue o quase impensável: roubar a cena em uma comédia contracenando com o furacão Robin Williams.

Já consagrado no teatro mas sem um grande sucesso para chamar de seu, Nathan Lane agarrou com unhas e dentes a chance oferecida pelo veterano Mike Nichols (incentivado pelo sempre generoso Robin Williams), e só não engole tudo a sua volta porque a seu lado estão nomes como Williams, Gene Hackman e Dianne Wiest, todos conhecidos por seu talento em brilhar não importa o tamanho de seus papéis. Nichols - respeitado por sua capacidade de transitar entre diversos gêneros - dirige a todos com a elegância habitual e extrai o melhor de cada um, criando uma estrutura cômica irresistível, com piadas que fazem rir não apenas o público gay (com referências ao universo homossexual) mas também plateias mais tradicionais. Não à toa, o filme arrecadou mais de 180 milhões de dólares no mercado internacional - um feito e tanto quando se sabe o quão hermético ao tema é o público médio. Em parte devido à presença de Williams, em parte devido ao êxito do filme francês, "A gaiola das loucas" surpreendeu até mesmo o estúdio (a United Artists) - e provou que, nas mãos certas e com respeito ao material original, um remake pode acrescentar camadas antes não percebidas (e eliminar problemas, especialmente para audiências mais suscetíveis).



A trama do filme quase todo mundo já conhece, de uma forma ou outra: Gaiola das Loucas é uma boate de drag queens localizada em South Beach. Seu proprietário é Armand Goldman (Robin Williams), que é casado com a principal atração do local, o transformista Albert (Nathan Lane) - que se apresenta com o nome artístico de Starina e é admirado por todos os frequentadores. A rotina relativamente tranquila do casal (que inclui crises nervosas de Albert a qualquer contrariedade) é abalada quando Val (Dan Futterman) - filho de uma aventura casual de Armand na juventude - surge com a notícia de que irá se casar com a delicada Barbara (Calista Flockhart), filha de um senador cujas posições extremamente conservadoras batem de frente com o estilo de vida de seus futuros sogros. A notícia cai como uma bomba no pouco tradicional lar, mas as coisas ficam ainda piores quando Val pede aos pais que aceitem fingir uma falsa normalidade em um jantar para o encontro das duas famílias. Para isso, Albert precisa sair de cena - e ser substituído pela mãe do rapaz, Katherine (Christine Baranski) - e todos os detalhes da casa considerados "gay demais" (ou seja, todos) precisam ser escondidos, incluindo o empregado, Agador Spartacus (Hank Azaria), que sonha com sua chance na boate dos patrões. A situação, caótica por si própria, se complica quando o Senador Kevin Keeley (Gene Hackman) se vê envolvido involuntariamente em uma polêmica relacionada ao partido e passa a ser perseguido pela imprensa. O jantar - que já prometia ser um desastre - se completa quando, na ausência de Katherine, Albert assume o papel de matriarca da família.

Uma comédia de erros das mais felizes, "A gaiola das loucas" versão americana se beneficia do calor das praias de South Beach para acrescentar uma energia solar que talvez falte no original francês. Se Nathan Lane dá seu show particular em cada aparição - a sequência em que tenta caminhar de modo viril, como John Wayne, é um primor -, seu parceiro de cena também não decepciona: ao optar por viver o menos espalhafatoso Armand (que a princípio seria interpretado por Steve Martin), um dos atores mais populares de sua geração (e também dos mais ocupados na metade da década de 1990) abre espaço para o brilho de seus colegas de cena e mesmo assim chama a atenção com um desempenho que explora seu dom para o humor popular. Gene Hackman, por sua vez, surpreende ao entregar uma atuação que rompe com sua persona sisuda e consagrada junto ao grande público - sua última cena é, sem dúvida, um dos grandes momentos da comédia americana moderna. Ao atualizar e melhorar um clássico contemporâneo (sem perder sua essência e seu senso de humor sagaz e irônico), o filme de Mike Nichols mereceu o enorme sucesso de bilheteria - e, caso raro em se tratando de remakes, conquistou inclusive a crítica, sendo indicado aos Golden Globes de melhor comédia e melhor ator e saindo vencedor de melhor elenco na cerimônia do Screen Actors Guild, batendo nada menos que "O paciente inglês", grande vencedor do Oscar em sua temporada. Não é pouca coisa!

quarta-feira

O ÂNCORA: A LENDA DE RON BURGUNDY

 


O ÂNCORA: A LENDA DE RON BURGUNDY (Anchorman: the legend of Ron Burgundy, 2004, DreamWorks Pictures/Apatow Productions, 94min) Direção: Adam McKay. Roteiro: Adam McKay, Will Ferrell. Fotografia: Thomas E. Ackerman. Montagem: Brent White. Música: Alex Wurman. Figurino: Debra McGuire. Direção de arte/cenários: Clayton R. Hartley/Jan Pascale. Produção executiva: Shauna Robertson, David O. Russell. Produção: Judd Apatow. Elenco: Will Ferrell, Christina Applegate, Paul Rudd, Steve Carell, David Koechner, Fred Willard, Seth Rogen, Vince Vaughn, Ben Stiller, Owen Wilson, Kathryn Hahn, Jack Black, Tim Robbins. Estreia: 28/6/2004

Na segunda metade da década de 1970 nenhum jornalista era mais importante e prestigiado em San Diego do que Ron Burgundy, âncora do programa de maior audiência da televisão regional, admirado pelo público e desejado pelas mulheres. Em uma emissora dominada por uma mentalidade machista, ele era o símbolo máximo de uma sociedade ainda impermeável às conquistas profissionais femininas. Porém, seu poder considerado definitivo sofreu um baque violento com a chegada de Veronica Corningstone, uma repórter dedicada e ambiciosa da Carolina do Norte, decidida a buscar seu lugar ao sol como o primeiro nome do telejornal. A disputa entre os dois - e o inesperado romance entre eles - movimentou os bastidores do telejornalismo da época, e precipitou a ascensão das mulheres no mercado de notícias televisivas. Uma história empolgante - mas que existiu apenas nas mentes dos roteiristas Will Ferrell e Adam McKay, responsáveis por "O âncora: a lenda de Ron Burgundy", uma comédia despretensiosa que, depois de ter sido esnobada diversas vezes pelo estúdio (a DreamWorks), surpreendeu ao ultrapassar a marca de 80 milhões de dólares de arrecadação somente no mercado doméstico (EUA e Canadá) e tornar-se cult por parte do público a ponto de render uma continuação, lançada mais dez anos depois. Com um humor que beira o ofensivo e flerta abertamente com a estupidez, o filme é ideal para quem gosta de rir sem precisar ligar o cérebro - mas, paradoxalmente, faz um crítica sagaz ao machismo e à indústria do jornalismo televisivo.

Com um elenco que é praticamente um quem é quem do humor norte-americano do começo dos anos 2000 - incluindo um Steve Carrel pré-estrelato - e participações especiais de nomes como Tim Robbins, Jack Black e Ben Stiller, "O âncora" parte de uma estrutura clássica narrativa para permitir a seus atores todo tipo de improviso, ampliando consideravelmente seu tom debochado e anárquico. Will Ferrell - também um dos autores do roteiro - deita e rola com um personagem sob medida para seu humor histriônico, que a tantos agrada e a muitos outros repele, e encontra no carisma de Christina Applegate um equilíbrio muito bem-vindo. Juntos em cena, os dois ilustram com perfeição o casamento entre a comédia rasgada e um romantismo que, por mais distorcido que seja, ameniza os exageros de uma produção que não tem medo de ir fundo na palhaçada e não poupa nada nem ninguém. Adam McKay - que pouco mais de uma década depois levaria um Oscar de roteiro por "A grande aposta" (2015), que também lhe renderia uma indicação à estatueta de direção - demonstra segurança ao comandar o que poderia facilmente transformar-se em um absoluto caos: com atores craques no improviso, ele mantém uma surpreendente coesão no desenvolvimento da narrativa mesmo diante de situações propensas ao bizarro.



Se Ron Burgundy é o retrato perfeito do líder de um universo falocêntrico e egoísta, seu séquito de colaboradores/admiradores/amigos não fica atrás - e é um grande mérito que seus intérpretes tenham sido tão bem escalados. Paul Rudd vive Brian Fantana, um repórter de campo mulherengo e que considera irresistíveis suas qualidades físicas e suas táticas amorosas; Steve Carell dá vida a Brick Tamland, o responsável pela divulgação da previsão de tempo e com o raciocínio lento além da conta; e David Koechner é o ator ideal para criar Champion Kind, especialista em esportes e dono de um talento natural para a grosseria. Agindo como uma gangue de adolescentes rebeldes, o grupo não apenas é uma metralhadora giratória de absurdos verbais como também volta e meia se envolve em brigas físicas com o time da emissora rival, liderado por Wes Mantooth (Vince Vaughn), cuja principal ameaça é fisgar o primeiro lugar na audiência. Quando Veronica entra em cena, conquistá-la (e impedi-la de chegar à bancada do telejornal) passa a ser o objetivo principal de todos - e nem mesmo a aparentemente dócil forasteira parece imune a tal desejo. A forma com que McKay e Ferrell demonstram tais anseios (através de momentos que brincam até mesmo com filmes musicais e melodramas) é o que faz de "O âncora" uma pérola: é difícil não se deixar conquistar por pelo menos uma das táticas do roteiro, que abrange todos os tipos de comédia sem cair na falta de foco ou ritmo.

Apesar de ser engraçadíssimo e apresentar um elenco impecável, "O âncora" não chega a ser uma unanimidade. Seu humor pouco sutil pode não agradar a quem busca comédias sofisticadas ou menos explícitas - apesar de o roteiro apresentar nuances raras no típico besteirol americano -, e Will Ferrell, apesar de seu talento cômico preciso, não é exatamente um astro muito popular fora dos Estados Unidos. Mas o filme de McKay é a demonstração, além de qualquer dúvida, de que é possível fazer rir equilibrando inteligência, sarcasmo e um pouquinho de escatologia. Pena que demorou dez anos para que ganhasse um segundo - e igualmente divertido - segundo capítulo.

terça-feira

INOCÊNCIA


INOCÊNCIA (Inocência, 1983, Embrafilme/Luis Carlos Barreto Produções Cinematográficas, 118min) Direção: Walter Lima Jr.. Roteiro: Walter Lima Jr., adaptação de Lima Barreto, romance de Visconde de Taunay. Fotografia: Pedro Farkas. Montagem: Raimundo Higino. Música: Wagner Tiso. Figurino: Diana Eichbauer. Direção de arte/cenários: Carlos Liuzzi. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto. Elenco: Fernanda Torres, Edson Celulari, Sebastião Vasconcellos, Ricardo Zambelli, Fernando Torres, Rainer Rudolph, Chico Diaz, Chica Xavier, Jorge Fino. Estreia: 23/6/83

Publicado em 1872 como parte do Regionalismo brasileiro - uma escola literária posterior ao Romantismo e anterior ao Naturalismo -, o romance "Inocência" interessou ao cinema nacional desde o começo do século XX, com uma versão muda (dirigida pelo ítalo-brasileiro Vittorio Capellaro). Em 1949 ganhou uma nova adaptação, sob a direção de Luiz e Fernando de Barros (estrelada por Maria Della Costa e Sadi Cabral), mas foi somente em 1983 que o livro, escrito pelo Visconde de Taunay, parece ter encontrado sua forma cinematográfica definitiva. Com o lirismo do diretor Walter Lima Jr. a serviço de uma história de amor trágica e delicada, uma bela trilha sonora de Wagner Tiso e a escolha certeira de Fernanda Torres para o papel-título (em sua estreia no cinema), "Inocência" acabou por tornar-se uma das produções nacionais mais elogiadas dos anos 1980, saindo do Festival de Brasília com dois prêmios (direção e ator coadjuvante) e conquistando fãs por seu capricho técnico e artístico. Com base em uma adaptação feita pelo cineasta Lima Barreto, o roteiro de Lima Jr. encontra na fidelidade à obra original o caminho para o coração do espectador.

Em uma estrada do interior do Mato Grosso do século XIX, o jovem médico Cirino (Edson Celulari) se encontra com o fazendeiro Martinho Pereira (Sebastião Vasconcelos) e se oferece para, com seus conhecimentos profissionais, tratar da malária da filha do novo amigo. Inocência (Fernanda Torres) está há dias enferma, e assim que começa a melhorar - graças ao tratamento do desconhecido - chama a atenção do visitante, encantado por sua beleza e pela pureza de seus modos. Educada com rigidez pelo pai e prometida em casamento a Manecão (Ricardo Zambelli), amigo da família, Inocência é tida como uma princesa presa em uma redoma, a única mulher (além da empregada da casa) em um universo masculino e patriarcal, onde honra manchada se lava com sangue e as regras são todas ditadas pelos homens. O amor nascente entre ela e Cirino, portanto, surge como um potencial desafio ao status quo - já abalado por outra presença masculina, a do zoólogo alemão Meyer (Rainer Rudolph), deslumbrado pela adolescente.


 

Considerado um marco do Regionalismo, o livro de Taunay retrata com fidelidade os costumes típicos do mundo rural e as idiossincrasias de seu universo, apesar de contar com elementos também do Romantismo e do Realismo. O roteiro do diretor não abre mão de tais detalhes, utilizando-os como matéria-prima para uma trama que não se concentra apenas em uma história de amor proibido mas também como o desenho de uma época e de uma mentalidade próprias. Se Inocência parece servir apenas como um objeto - de desejo, de posse, de admiração platônica, de representação simbólica de um estado de coisas que não deve ser alterado -, a masculinidade tóxica a seu redor se desdobra em tentar, por quaisquer meios, impor sua pretensa superioridade. Não é surpresa que Inocência, criada em meio a um ambiente hostil no qual ela só tinha a opção de aceitar o que lhe era forçado, se apaixone por Cirino, um homem estudado, gentil e de modos delicados que contrastam com a bestialidade do pai, do noivo e até do anão mudo que lhe vigia dia e noite. Também não chega a surpreender que sua rebeldia romântica seja o gatilho de sua tragédia - filmada com a sutileza característica de Walter Lima Jr., sem pressa e repleta da poesia visual da câmera de Pedro Farkas, que explora a beleza juvenil e pálida de Fernanda Torres como se fosse uma estátua grega, inalcançável e fadada à desgraça. 

E Fernanda, no auge da juventude - 17 anos à época da estreia do filme - já demonstra, em seu primeiro papel no cinema, a potência dramática que faria dela uma das maiores atrizes de sua geração. Ainda que quase silenciosa, sua Inocência é força motriz do filme, a catalisadora da trama - e seu trabalho encontra apoio no ótimo desempenho de Sebastião Vasconcelos e na elegância de Edson Celulari, dois extremos que sintetizam com eficiência a dicotomia crucial do romance de Taunay. Mesmo sem ousar na forma - a narrativa é simples e linear -, "Inocência" cumpre o que promete e entrega ao espectador uma história de amor à moda antiga, que respeita o material original e o engrandece com escolhas artísticas certeiras.

segunda-feira

ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO

 


ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO (Before the devil knows you're dead, 2007,  Capitol Films/Funky Buddha Productions/Unity Productions, 117min) Direção: Sidney Lumet. Roteiro: Kelly Masterson. Fotografia: Ron Fortunato. Montagem: Tom Swartwout. Música: Carter Burwell. Figurino: Tina Nigro. Direção de arte/cenários: Christopher Nowak/Diane Lederman. Produção executiva: Belle Avery, Jane Barclay, David Bergstein, J. J. Hoffman, Eli Klein, Hannah Leader, Jeffry Melnick, Sam Zaharis. Produção: Michael Cerenzie, William S. Gilmore, Brian Linse, Paul Parmar. Elenco: Phillip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Marisa Tomei, Albert Finney, Rosemary Harris, Amy Ryan, Michael Shannon. Estreia: 07/9/2007 (Deauville Festival of American Cinema)

No mínimo desde "12 homens e uma sentença" (1957) - passando por clássicos absolutos como "Serpico" (1973), "Um dia de cão" (1975) e "Rede de intrigas" (1976) -, o cineasta Sidney Lumet acostumou-se a entregar ao público produções que apresentavam personagens dúbios, falíveis e dispostos a correrem riscos em nomes de objetivos quase sempre suicidas. Depois de um longo período de obras menores e/ou sem repercussão popular e de crítica, ele voltou a seu tema preferido em "Antes que o diabo saiba que você está morto", uma poderosa mescla de filme policial e drama familiar que acabou por ser, sem que ele mesmo soubesse disso, seu canto do cisne. Dirigindo com precisão cirúrgica o trágico e surpreendente primeiro roteiro de Kelly Masterson, o veterano Lumet demonstra uma vitalidade rara para um artista octogenário, mantendo o espectador atento a cada reviravolta e cada nuance revelada por seus protagonistas. E é lógico que ajuda muito contar, no elenco, com atores brilhantes como Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke e Albert Finney - em uma de suas últimas aparições nas telas.

Com ecos de Shakespeare em sua trama - imprevisível e pessimista -, "Antes que o diabo saiba que você está morto" apresenta dois irmãos de personalidades opostas que se unem para cometer um crime aparentemente perfeito: o roubo a uma joalheria familiar em uma manhã de pouco movimento. Andy (Philip Seymour Hoffman) está em vias de ter descoberto o desfalque que deu na empresa onde trabalha, enquanto Hank (Ethan Hawke) vive sob a pressão de dever a pensão para a ex-mulher ao mesmo tempo em que se culpa por não conseguir ser o filho que seu pai, Charles (Albert Finney), sonhava ter. Com o fracasso do assalto - que acaba em duas mortes - a vida da família vira do avesso: chantageados pelo irmão de uma das vítimas (que sabe de sua responsabilidade na tragédia), Andy e Hank entram em um caminho de sangue, violência e traições, que envolve Gina (Marisa Tomei) - esposa de um e amante do outro - e o próprio patriarca.

 

Contada de forma não linear, recheada de idas e vindas no tempo que servem para oferecer ao público as peças que formam seu quebra-cabeças, a trama do filme de Lumet se utiliza de tal artifício não como muleta narrativa, mas como parte fundamental de sua estrutura. Conforme novas informações a respeito dos acontecimentos que levaram ao crime - e suas consequências - vão surgindo diante do espectador, mais potentes as camadas vão se revelando, reafirmando o tom fatalista da expressão irlandesa que empresta o nome à produção. As surpresas reservadas a cada capítulo - com uma edição primorosa, que explicita apenas o que é necessário no momento - tornam "Antes que o diabo saiba que você está morto" um drama policial que rompe com as tradicionais engrenagens do gênero, aprofundando as relações interpessoais até o limite da inevitável ruptura. Com três focos distintos - Andy, Hank e Charles - que se intercalam e se completam, o roteiro de Kelly Masterson empolga exatamente por sua capacidade de surpreender e por sua coragem em chegar a desdobramentos que a maioria das produções do gênero evita a todo custo. E não atrapalha em nada que Lumet possa contar com um elenco absolutamente impecável.

Assim como seus personagens, Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke são atores de personalidades distintas, e o experiente cineasta explora com precisão tais diferenças, em cenas de crescente tensão que enfatizam suas qualidades como intérpretes e potencializam cada linha de diálogo. O veterano Albert Finney tampouco fica atrás, com ao menos duas sequências arrepiantes - uma delas encerrando de forma chocante o drama familiar estabelecido nos primeiros minutos. E em um elenco tão incrível, o único senão é o pouco aproveitamento de Rosemary Harris e Amy Ryan - partes femininas de um clã onde apenas Marisa Tomei tem reais chances de brilhar. Forte e coeso, o conjunto de atores (premiado por várias associações de críticos) é a tradução perfeita de um roteiro inteligente, uma direção energética e, o que é mais importante de tudo, uma história envolvente. Um adeus digno da grandeza de seu diretor.

BENNY & JOON: CORAÇÕES EM CONFLITO

  BENNY & JOON: CORAÇÕES EM CONFLITO (Benny & Joon, 1993, Metro Goldwyn Mayer, 98min) Direção: Jeremiah S. Chechik. Roteiro: Barry...