4 indicações ao Oscar: Atriz Coadjuvante (Penelope Cruz), Figurino, Direção de Arte/Cenários, Canção ("Take it all")
Tinha tudo para ser um espetáculo irretocável. Na direção, o
homem responsável por carimbar o passaporte dos filmes musicais em direção às
boas graças definitivas da crítica, do público e da Academia com o genial
“Chicago”. Na liderança do elenco, um dos mais prestigiados e admirados atores
de sua geração, Daniel Day-Lewis. Como as mulheres que o rodeiam desde a
infância, uma seleção das melhores e mais importantes atrizes em atividade
(desde as veteranas Judi Dench e Sophia Loren até a cantora pop Fergie,
passando pelas oscarizadas Nicole Kidman, Penélope Cruz e Marion Cottilard).
Como cenário, a velha Itália dos anos 60, em especial a antológica Cinecittá –
palco dos maiores clássicos cinematográficos do país. E como trama, a adaptação
de um sucesso da Broadway que homenageia um dos filmes mais aplaudidos do
incensado Federico Fellini, o autobiográfico “8 ½”. Por que, então, com todos
esses elementos infalíveis à disposição, o esperado “Nine” resultou tão morno?
Tido como um dos favoritos ao Oscar 2010 antes mesmo de sua estreia, o filme de
Rob Marshall – que fez barba, cabelo e bigode com seu “Chicago”, na cerimônia
de 2003 – acabou decepcionando ao ficar de fora da lista nas categorias
principais e, pior ainda, nem de longe repetir o êxito do musical anterior de
seu diretor. Quando se assiste ao filme, porém, é impossível não perceber seu
calcanhar de Aquiles. Apesar de plasticamente deslumbrante, “Nine” falha
justamente no ponto central de um musical: suas canções.
Sem o
deboche e a ironia que inundavam cada número musical de “Chicago”, Rob Marshall
segue o caminho consagrado pelos palcos da Broadway e imprime a “Nine” um tom
de seriedade nostálgica e auto-penitente que, não estivessem presentes em um
musical, poderiam fazer do filme uma obra-prima. O problema é que, sempre que
alguém começa a cantar – mesmo quando é Penélope Cruz exalando sensualidade ou
Marion Cottilard injetando profundidade e angústia em uma personagem pouco
desenvolvida por um roteiro que também peca pela superficialidade – o ritmo é
seriamente comprometido. A edição – precisa em alguns momentos e seriamente
equivocada em outros, quando desvaloriza algumas coreografias que precisavam
ser mostradas na íntegra como forma de encantar a audiência – não dá conta em
costurar todos os retalhos de memória de seu protagonista, truncando a
agilidade da narrativa ao invés de empurrá-la para a frente. Diante disso, nem
mesmo a brilhante direção de arte e os figurinos luxuosos (ambos merecidamente
lembrados pela Academia) conseguem disfarçar a sensação de monotonia que
percorre boa parte da projeção – a despeito de seu elenco empolgante e
esforçado.
Daniel
Day-Lewis, por exemplo, está mais uma vez estupendo. Ele vive Guido Contini, um
cineasta consagrado que, em vias de começar seu novo trabalho – o nono junto
com seu fiel produtor, daí o título original – se vê diante de uma situação até
então inédita para ele: um colossal bloqueio criativo. Seu filme já tem título
definido – “Itália” – uma protagonista escolhida – a bela e popular Claudia
Jenssen (Nicole Kidman) – e uma equipe técnica pronta a começar os trabalhos,
mas Guido, pressionado pelos executivos da indústria, pela amante casada ,
Claudia (Penélope Cruz) e pela esposa amorosa, Luisa (Marion Cottilard), não
consegue nem ao menos começar a escrever o roteiro ou pensar em uma trama. Seu
dilema – o mesmo que o personagem de Marcello Mastroianni vivia em “8 ½” –
acaba por levá-lo a uma viagem inconsciente para dentro de suas memórias, o que
fatalmente o põe diante de personagens femininas fortes e formadoras de sua
personalidade, como a prostituta Saraghina (Fergie) – que encantava seus dias
de criança – e sua calorosa mãe (Sophia Loren).
Não há nada de errado na forma como a trama intercala a
realidade de Guido (um personagem torturado pela culpa católica e ao mesmo
tempo incapaz de resistir às tentações libidinosas que cruzam seu caminho) com sua
imaginação delirante – a atuação de Daniel Day-Lewis, aliás, é formidável,
arriscando-se mais uma vez em um gênero até então inédito em sua carreira – nem
mesmo o médico mulherengo de “A insustentável leveza do ser” (1988) era capaz
de esconder, por medo da danação religiosa, o crucifixo de uma pensão barata na
hora de transar com a amante. Porém, não há, no repertório do filme, nenhuma
canção forte o bastante para empolgar a plateia, como havia, por exemplo, em
“Chicago”. Marshall mantém seu extremo bom-gosto na ambientação de seu trabalho
– a fotografia de Dion Beebe é um desbunde, sempre surpreendendo o público com
ângulos e iluminações sofisticadas e classudas – mas frequentemente perde a mão
no ritmo que impõe à sua narrativa. Mais uma vez ele recorre ao artifício
(inteligente e eficaz) de situar os números musicais dentro da mente do
protagonista – e como aqui trata-se de um cineasta, nada mais natural que ele
veja tudo com luxo e glamour – mas dessa vez não há a ironia marota com que
Roxy Hart enxergava as coisas em “Chicago”. E isso faz uma tremenda falta,
ainda que a proposta de “Nine” seja, a rigor, bastante distinta de seu irmão
mais velho.
Mas seria
injusto falar em “Nine” sem destacar suas (muitas) qualidades. Mesmo que o
elemento principal (a música) seja um tanto quanto enfadonho, o visual
elaborado por Marshall e seus colaboradores é espantoso. Filmado na própria
Cinecittá, “Nine” tem, em seu visual e seu espírito, a elegância e a sutileza
do cinema europeu do período que retrata, seja no guarda-roupa detalhista ou
nos cenários meticulosos capazes de encher os olhos da mais descolada plateia. Todos
as apresentações musicais (aquelas mesmas que a edição por vezes picota para
imprimir agilidade e acaba por enfraquecer) são bem coreografadas e
interpretadas por atrizes tão talentosas que extraem o melhor de cada
personagem para apresenta-las ao público como figuras interessantes (até a
veneranda Judi Dench canta e dança, na pele de Lily, figurinista e confidente
de Guido). Nicole Kidman – cujos dotes vocais já foram vistos e aprovados
anteriormente em “Moulin rouge: o amor em vermelho” – está linda e delicada
como a atriz desejada pelo diretor. Penélope Cruz quase rouba a cena como a
amante sexy que dança lençóis de seda e tenta o suicídio (foi indicada ao Oscar
de coadjuvante). Kate Hudson (na única personagem um tanto avulsa da trama) tem
o número mais animado do filme, “Cinema italiano”. E Fergie usa e abusa de seus
dotes de cantora pop para fazer das cenas de sua amante profissional um
espetáculo energético e de extrema competência visual. Mas é Marion Cottilard
quem dá o que falta a boa parte do vistoso filme de Rob Marshall: alma.
Dona de
olhos expressivos e uma beleza delicada, a francesa Cottilard – que se
transfigurou na cantora Edith Piaf e ganhou um Oscar merecidíssimo de melhor
atriz por isso – serve como o contraponto romântico e pé no chão a seu
artístico marido. Na pele de uma mulher que abandonou a carreira de atriz para
viver para um marido pouco afeito à fidelidade conjugal, ela é dona de dois
números musicais (uma das canções, “Take it all”, feita especialmente para o
filme, concorreu ao Oscar) e de alguns dos diálogos mais fortes do filme –
“Obrigada por me fazer ver que não sou especial!”, ela vomita ao perceber que
nem mesmo os gestos românticos do início da relação entre eles eram exclusivos
dela. Cottilard dá substância e emoção real à “Nine”, lembrando ao espectador
que, mesmo por baixo da suntuosidade e da pompa criada pelo cinema, os
sentimentos ainda são a melhor matéria-prima para uma boa história.
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