Qualquer pessoa minimamente
informada culturalmente sabe das principais histórias ligadas aos Beatles, uma
das mais famosas – senão A mais famosa – bandas da história da música popular
do século XX. De seu nascimento na cidade britânica de Liverpool até sua
dissolução em 1970 – depois de terem causado um furacão sem precedentes na
indústria da música e do entretenimento – os fatos que cercaram a trajetória do
grupo são quase parte de um inconsciente coletivo resultado de uma admiração
que se transmite de geração em geração e que não dá sinais de arrefecer. Porém,
mesmo com toda essa atenção a qualquer detalhe da vida de seus integrantes,
volta e meia o cinema surge com algum filme que joga luz sobre fatos menos
explorados da vida de algum dos ídolos. Foi isso que Ian Softley fez em 1994
com o pulsante “Backbeat, os cinco rapazes de Liverpool” – que acompanhava os
primórdios da banda em sua turnê em Hamburgo e contava a história da relação
entre John Lennon e seu melhor amigo Stu Sutcliffe, que abandonou o grupo para
ficar na Alemanha com a mulher que amava – e é isso que Sam Taylor faz em “O
garoto de Liverpool” (título nacional um tanto óbvio que enfraquece o bem mais
interessante “Nowhere boy” original). Ao narrar um episódio da adolescência de
Lennon imediatamente anterior aos fatos mostrados por Softley – e de importância
crucial para o futuro artístico e emocional do cantor, Taylor conquista o
público por não seguir o caminho óbvio da condescendência e, assim, mostrar a
ele um lado pouco conhecido do protagonista.
Interpretado pelo então estreante
Aaron Johnson – que casou-se com a diretora (anos mais velha) após as filmagens
e posteriormente adotou seu sobrenome – o John Lennon de “O garoto de
Liverpool” não é aquele tornado célebre através das canções que se tornaram
hinos internacionais, dos filmes que lotavam cinemas ou até mesmo das polêmicas
declarações durante e pós sua permanência nos Beatles. O Lennon iluminado pelo
roteiro de Matt Greenhalgh é um adolescente como tantos outros quaisquer que
viviam pelas ruas de sua cidade natal matando aulas, se aventurando no teto de
ônibus, flertando com as colegas e sonhando em ser Elvis Presley. Criado por
sua tia, Mimi (Kristin Scott Thomas, sempre excelente atriz), Lennon
frequentemente se vê em conflito com a vida rígida e regrada que ela lhe impõe,
em especial depois da viuvez. Os confrontos entre a rebeldia adolescente de
John e a sisudez clássica de Mimi acabam por abrir caminho para que o rapaz se
veja diante de uma situação inusitada: o reencontro com sua mãe biológica,
Julia (Anne-Marie Duff), irmã de Mimi, que o abandonou ainda criança, casou-se
novamente e formou uma nova família. Surgindo como um oásis de compreensão e
euforia na vida de John – em um radical contraste com sua rotina com a tia –
Julia (dotada de um temperamento alegre e festivo que volta e meia dava lugar a
crises de violenta depressão) é quem lhe dá o primeiro violão, lhe ensina os
primeiros acordes e o empurra em direção à vida artística. Sua lua-de-mel com a
mãe, porém, tem data de validade – e é a tragédia subsequente a essa história
de redescoberta materna o cerne de “O garoto de Liverpool”.
Quem não conhece os detalhes da
história do reencontro entre Lennon e Julia tem a vantagem de ser surpreendido
pelo desenrolar da trama, repleta de reviravoltas dignas de um melodrama barato
– mas que são tratadas com respeito e sobriedade pela direção correta de
Taylor. Quem já tem conhecimento dessa fase da biografia do cantor, porém, não
precisa sentir-se deixado de lado: o roteiro também encanta ao retratar um John
Lennon bastante falível e dotado de defeitos que deram origem à sua persona
artística (um certo narcisismo, uma rebeldia indomável, uma agressividade
latente). Seu encontro com um jovem Paul McCartney, por exemplo, é repleto de
um sentimento indisfarçável de admiração e inveja – uma mistura que acabou por
levá-los à consagração mundial com uma parceria musical em uma impressionante
coleção de sucessos. Mesmo inexperiente, Aaron Johnson desincumbe-se da
inglória tarefa com maestria: apesar de não ser fisicamente parecido com Lennon,
o jovem ator conquista o espectador em poucos minutos, captando a essência do
protagonista com segurança de veterano.
Sem apelar para o truque barato de
buscar a cumplicidade da plateia utilizando-se dos hits dos Beatles – cujo
nome, aliás, não é citado em momento algum da narrativa – Sam Taylor optou pelo
caminho mais árduo e foi extremamente feliz. Retratando John Lennon como a
pessoa comum que ele era na adolescência e não como o ícone e o ídolo que ele
tornou-se poucos anos depois, ela cria uma identificação imediata entre
personagem e público – que vê, diante de si, um jovem torturado pelo sentimento
de rejeição ao mesmo tempo em que tem seu amor disputado por duas mães (cada
uma, à sua maneira, responsável por moldar partes de sua personalidade). Já
seria um drama interessante se o protagonista fosse alguém normal –
principalmente porque a batalha entre Anne-Marie Duff e Kristin Scott Thomas é
fascinante. Sendo ele um dos maiores músicos da história o resultado fica ainda
mais empolgante. “O garoto de Liverpool” é um filme delicado, simples e
eficiente, que joga luz em um período fundamental da vida de Lennon – e
apresenta, em seus créditos finais, a bela “Mother”, que ilustra com perfeição
toda a história contada em seus 97 minutos anteriores.
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