quinta-feira

BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA


BOY ERASED: UMA VERDADE ANULADA (Boy erased, 2018, Focus Features/Anonymous Content/Perfect World Pictures, 115min) Direção: Joel Edgerton. Roteiro: Joel Edgerton, livro de Garrard Conley. Fotografia: Eduard Grau. Montagem: Jay Rabinowitz. Música: Danny Bensi, Saunder Jurriaans. Figurino: Trish Summerville. Direção de arte/cenários: Chad Keith/Mallorie Coleman, Adam Willis. Produção executiva: Nash Edgerton, Kim Hodgert, Tony Lipp, Ann Ruark, Rebecca Yeldham. Produção: Joel Edgerton, Steve Golin, Kerry Kohansky-Roberts. Elenco: Lucas Hedges, Nicole Kidman, Russell Crowe, Joel Edgerton, Xavier Dolan, Madelyn Cline, Victor McKay, Flea, Cherry Jones. Estreia: 01/9/2018 (Festival de Telluride)

Em 2016, quando o livro "Boy erased" foi lançado, boa parte dos EUA ainda considerava legais as terapias de conversão sexual - conhecidas vulgarmente como "cura gay". Sem qualquer fundamento psicológico ou médico, setores ligados principalmente à religião praticamente torturavam jovens com pensamentos homossexuais (muitas vezes nem era necessário que tivessem passado à prática) com sessões de humilhação, rígidas regras de comportamento e tormento psicológico. Em seu livro de memórias, Garrard Conley narrava, mesmo que de forma quase poética, os tormentos pelos quais passou em seu período em um desses tratamentos. De seus escritos (pessoais e emotivos) nasceu um filme sensível e sóbrio, assinado por um ator/roteirista/diretor que promete grandes voos futuros e estrelado por um elenco nunca aquém de excepcional: apesar do fracasso comercial e de não ter chamado tanta atenção quanto se poderia esperar nas cerimônias de premiação, "Boy erased: uma verdade anulada" é uma pérola, um filme que já nasceu destinado a suscitar discussões e se tornar cult - além de ser um instrumento essencial na luta contra os abusos do conservadorismo criminoso que vem se alastrando perigosamente pelo Ocidente.

Dirigido pelo ator Joel Edgerton, que também escreveu o roteiro - depois que o próprio Conley declinou da oportunidade - e assumiu um dos papéis mais importantes da trama, "Boy erased" é um filme de emoções contidas, que raramente apela para o melodrama fácil. Graças à atuação discreta e introspectiva de Lucas Hedges (que vem se mostrando um dos melhores atores de sua geração) e ao tom suave imposto pela edição que não abusa dos flashbacks (mas os usa de forma eficiente), a produção escapa de ser apenas mais um filme-denúncia e se destaca como uma história de amor, respeito e tolerância - mesmo que, para que isso seja alcançado, tenha-se que se passar por pesadelos inimagináveis. Mesmo que não poupe o espectador de um constante desconforto (em especial quando mostra as sessões da malfadada busca pela "cura"), Edgerton evita pesar a mão em excesso: a fotografia de Eduard Grau (que cuidou do belo visual de "Direito de amar", de 2009) é luminosa em boa parte da narrativa (em contraste com o tema sombrio) e a trilha sonora (jamais invasiva) sublinha a ação de forma delicada, quase como um oásis diante da aridez do tema. E se por vezes o roteiro pode soar um tanto superficial (especialmente no desenho de alguns personagens), a falha é compensada pelo empenho de cada um dos atores selecionados pelo diretor (ele próprio incluído).

Lucas Hedges - já indicado ao Oscar de coadjuvante por "Manchester à beira-mar", de 2006 - encontra o tom ideal para seu Jared Eamons, um adolescente de 18 anos, filho de um pastor batista, aluno dedicado e responsável, que se vê obrigado pelos pais a participar do tal programa de "reabilitação", comandado pelo prepotente Victor Sykes (Joel Edgerton em pessoa, em uma caracterização precisa, que se equilibra com exatidão no limite do desprezível). Enquanto testemunha atrocidades no período em que fica isolado de qualquer contato com seu mundo anterior (como celulares, diários e afins), Jared é obrigado a revisitar seu passado e confrontar sua conflituosa sexualidade (oprimida pelos preceitos familiares, pela religião e pela culpa). A única pessoa que lhe dá apoio durante o processo - e mesmo assim sem saber exatamente como agir, dividida entre o amor pelo filho, a fé em Deus e o respeito pelas crenças do marido - é sua mãe, Nancy (Nicole Kidman, brilhante), que tenta servir como porto seguro às turbulências do rapaz. Kidman é dona de alguns dos melhores momentos do filme - como o clímax, inexistente no livro mas eficaz como cinema - e divide com Russell Crowe a difícil missão de oferecer consistência a personagens que poderiam ter sido melhor desenvolvidos pelo roteiro: Marshall e Nancy Eamons surgem apenas como os pais repressores (ainda que amorosos), sem maiores nuances dramáticas ou camadas extras. O mesmo acontece com Sykes, o teatral líder da clínica Love in Action, cujo desfecho - revelado apenas nos letreiros finais - é a irônica pá de cal nas ideias absurdas que servem de base à todo o conceito de reorientação sexual.

Prestes a ser lançado no Brasil no final de janeiro de 2019, "Boy erased" acabou tendo sua estreia cancelada - a distribuidora alegou como motivos para tal decisão o fraco desempenho do filme nas bilheterias internacionais e a falta das esperadas indicações ao Oscar, mas ficou no ar o cheiro de censura que chegava com o novo governo (para dizer o mínimo) conservador. Tal situação não deixa de ser uma demonstração clara da importância do filme, com suas discussões e seu tema se tornando cada vez mais urgentes e fundamentais. Pode não ser uma obra-prima, mas serve como base para longos e sérios debates - e, como cinema, confirma Joel Edgerton (cuja estreia como diretor, o suspense "O presente", de 2015, já tinha indiscutíveis qualidades) como um cineasta promissor e relevante, capaz de surpreender em um futuro próximo.

quarta-feira

BRINCANDO NOS CAMPOS DO SENHOR

 


BRINCANDO NOS CAMPOS DO SENHOR (At play in the fields of the Lord, 1991, The Saul Zaentz Company, 189min) Direção: Hector Babenco. Roteiro: Jean-Claude Carrière, Hector Babenco, Vincent Patrick, romance de Peter Mathiessen. Fotografia: Lauro Escorel. Montagem: William M. Anderson, Armen Minasian. Música: Zbiniew Preisner. Figurino: Aggie Guerard-Rodgers, Rita Murtinho. Direção de arte/cenários: Clovis Bueno/Dagoberto Assis. Produção executiva: David Nichols, Francisco Ramalho Jr.. Produção: Saul Zaentz. Elenco: Tom Berenger, John Lithgow, Daryl Hannah, Aidan Quinn, Tom Waits, Kathy Bates, Stênio Garcia, Nelson Xavier, José Dumont. Estreia: 06/12/91

Desde que foi publicado, em 1965, o romance "Brincando nos campos do Senhor" esteve na mira do cinema. Fascinado com o belo livro de Peter Mathiessen, que discutia temas relevantes e que estariam em voga no final do milênio, como ecologia, tolerância religiosa e racismo, o produtor Saul Zaentz imediatamente pensou em transportá-lo para as telas - mas chegou tarde demais em sua tentativa de adquirir os direitos de adaptação, comprados pela MGM. Persistente, ele viu o projeto nascer e morrer em diversas ocasiões - sob o comando de nomes fortes, como John Huston e Milos Forman e com estrelas do porte de Marlon Brando, Paul Newman e Richard Gere no elenco - sem nunca desistir de seus planos. Foi somente em 1989, porém, que o sonho se tornou realidade: mediante o pagamento de 1,4 milhão de dólares, Zaentz tinha, em mãos, a possibilidade de apresentar ao público de cinema uma história poderosa, intensa e emocionante como só os maiores épicos conseguem ser. Mal poderia imaginar, no entanto, que apesar das imensas qualidades que seu filme viria a ter, ele não conquistaria a audiência da maneira imaginada: com um custo estimado de 36 milhões de dólares e uma renda mundial de pouco mais de 1 milhão, a versão cinematográfica de "Brincando nos campos do Senhor" foi um dos mais retumbantes fracassos da década de 1990 e colocou a carreira do diretor Hector Babenco - vindo do prestígio de "O beijo da mulher-aranha" (1985) e "Ironweed" (1987) - em um hiato do qual só saiu sete anos mais tarde com "Coração iluminado" (1998).

Filmado inteiramente na Amazônia, entre junho e dezembro de 1990, o filme tomou quase dois anos da vida de Babenco antes mesmo do começo das filmagens. Ocupado em escolher locações e escrever o roteiro ao lado do experiente Jean-Claude Carrière - colaborador habitual de Buñuel -, o cineasta argentino/brasileiro ainda teria maus momentos pela frente. Da desistência de Laura Dern - que recusou-se a mergulhar em um rio com águas não exatamente limpas - às reclamações de parte da equipe, trabalhando em situação quase insalubre, a produção enfrentou problemas constantes que em nada ajudavam a amenizar o clima de constante insatisfação. Babenco, tenso e ciente da responsabilidade de comandar um projeto tão ambicioso e arriscado, orquestrava uma sinfonia das mais complicadas, com astros hollywoodianos misturados a atores brasileiros, extras locais e condições climáticas que impediam qualquer planejamento a longo prazo. Diante de tantos percalços, portanto, não apenas é notável que o filme tenha sido lançado, como que tenha resultado em um produto tão bom. A despeito de seu fiasco comercial - talvez explicável pelo teor controverso da trama -, "Brincando nos campos do Senhor" é o melhor filme da carreira do cineasta, e uma das produções mais subestimadas da década de 1990.


Em um breve resumo - que apenas dá as coordenadas para uma trama com desdobramentos complexos e surpreendentes -, o filme de Babenco conta a história de dois casais de missionários evangélicos que chegam à Amazônia com o objetivo de converter os índios locais, depois do violento fracasso de seus predecessores católicos. O líder do grupo é o ambicioso Leslie Huben (John Lithgow), que se preocupa mais em disputar os nativos com os rivais católicos do que exatamente salvar suas almas, e é ele quem recebe a família Quarrier, formada pelo idealista Martin (Aidan Quinn), pela fanática Hazel (Kathy Bates) e pelo pequeno Billy (Niilo Kivirinta) - que não demora a encantar-se com a liberdade dos indígenas, para desespero de sua mãe. O embate entre missionários e nativos deixa claro o choque entre culturas quase irreconciliáveis, especialmente quando fica claro que interesses financeiros estão por trás da chegada dos religiosos, que sem o saber, estão colaborando com empresários dispostos a dizimar tribos inteiras para ter acesso a minerais valiosos. Complicando ainda mais a situação, o piloto americano Lewis Moon (Tom Berenger) resolve se deixar seduzir por suas origens indígenas e se junta a seus ancestrais - o que não o impede de ser irremediavelmente atraído pela bela Andy (Daryl Hannah), esposa de Leslie.

A princípio a longa duração do filme - mais de três horas - pode assustar ao espectador menos paciente. Porém, tão logo as belas imagens de Lauro Escorel surjam na tela, fica claro que uma metragem menor prejudicaria consideravelmente a coerência interna e a solidez da história. Não há nenhuma cena desnecessária no filme de Babenco, e cada sequência empurra a trama em direção ao clímax - triste, chocante, infelizmente realista. Cuidadosamente produzido - seja em termos de composição visual, sonora e de construção de personagens -, o filme envolve justamente por não se deixar seduzir pelos caminhos narrativos mais fáceis. O roteiro, fluido, dá o tempo necessário a cada um de seus vários personagens, deixando claro ao espectador cada motivação e sentimento - o que, em muitos casos no cinemão hollywoodiano, é algo raro. E se em "O beijo da mulher-aranha" a mescla de atores brasileiros e estrangeiros deixava tudo um tanto caótico, o mesmo não se repete aqui: todos os atores estão em excelente momento, especialmente Kathy Bates (dona de alguns dos momentos mais catárticos) e Tom Berenger (cuja atuação é, sem favor, uma das melhores de sua carreira, apesar da opinião contrária do próprio Babenco). As caracterizações - outro ponto sensível em produções do gênero - são fascinantes e verossímeis (responsabilidade de especialistas no assunto), e a opção de colocar a Amazônia como um personagem a mais e não apenas um cenário passivo é um golpe de mestre - talvez pressionado pela própria natureza do local, mas mesmo assim brilhante.

Por fim, não é difícil entender os motivos que levaram "Brincando nos campos do Senhor" ao fracasso comercial. Não apenas o filme de Babenco foi lançado em um período complicado - final do ano, quando os estúdios mostram suas maiores armas para a temporada de premiações - como apresenta um tema bastante indigesto para o público médio frequentador de salas de exibição. É difícil imaginar famílias indo ao cinema assistir a uma produção que bate tão violentamente contra a colonização anglo-saxã e que discute com seriedade assuntos que só viriam a se tornar prementes algum tempo mais tarde. "Brincando" é um filme sério demais, feito com respeito demais para plateias acostumadas a blockbusters - ironia das ironias, o filme de Babenco é uma das maiores inspirações de James Cameron na sua concepção de "Avatar" (2010), o suprassumo do cinemão comercial feito em Hollywood. Que um dia a obra-prima do cineasta seja descoberta e avaliada como merece!

terça-feira

BERENICE PROCURA

 


BERENICE PROCURA (Berenice procura, 2017, EH Filmes, 90min) Direção: Allan Fiterman. Roteiro: Flávia Guimarães, romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Fotografia: Azul Serra. Montagem: Fábio Jordão. Música: João Paulo Mendonça. Figurino: Tatiana Rodrigues. Produção: Elisa Tolomelli. Elenco: Cláudia Abreu, Eduardo Moscovis, Emílio Dantas, Vera Holtz, Caio Manhente, Valentina Sampaio. Estreia: 07/10/2017

O psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza só estreou na literatura aos 60 anos de idade, quando seu "O silêncio da chuva" foi lançado, em 2006. A partir de então, tornou-se um dos nomes mais populares entre os leitores de romances policiais - um gênero que, no Brasil, consagrou Rubem Fonseca e Patrícia Melo. Dez anos depois, outro livro seu, "Achados e perdidos", foi adaptado para o cinema por José Joffily, com Antonio Fagundes no papel principal - e encontrou outro público, disposto a acompanhar audiovisualmente um gênero clássico da sétima arte mesclado com elementos de identidade nacional. Tal característica da obra do escritor - utilizar os cânones das histórias policiais em um universo tipicamente brasileiro (carioca, mais exatamente) - está nítida e assumida em "Berenice procura", segundo livro seu a fazer a transposição das páginas para as telas. Assinado por Allan Fiterman - conhecido diretor de telenovelas globais fazendo sua estreia como cineasta - e estrelado pela sempre competente Cláudia Abreu, o filme acerta em cheio ao jogar luz em um tema controverso e relevante (a violência contra os LGBTQ+) mas escorrega em um quesito que volta e meia atormenta o cinema nacional: o roteiro.

A trama criada por Garcia-Roza é repleta de personagens dúbios, pistas falsas, hipocrisias morais e meandros da vida noturna de Copacabana. São elementos que, em um romance, podem ser desenvolvidos sem pressa. Em um roteiro cinematográfico, porém, é crucial que tais ingredientes sejam inseridos de maneira orgânica, como forma de envolver o espectador sem que as engrenagens da trama soem óbvias. Não é o que acontece em "Berenice procura": a roteirista Flávia Guimarães peca em simplesmente jogar as informações diante do público, sem aprofundá-las ou dar a elas a devida importância. É preciso fazer um exercício mental para descobrir as relações entre alguns personagens - e até mesmo para compreender algumas subtramas de extrema importância para o desenvolvimento da história. A intenção pode até ser confundir (afinal, trata-se de um jogo de detetive), mas somado à edição irregular de Fábio Jordão, o roteiro peca por não oferecer à plateia (e até mesmo aos atores envolvidos no projeto) uma base mais sólida: cenas fortes são diluídas em um excesso de cortes e um distanciamento estilístico que impede uma maior empatia pelos personagens - um erro fatal em um enredo cuja maior força é justamente a emoção primordial.

O filme começa muito bem, com uma sequência belamente fotografada e que emula os melhores momentos do cinema de David Lynch: a câmera passeia pelo amanhecer na praia de Copacabana até dar de cara com o cadáver de uma bela mulher, encostado em uma árvore. Quem descobre o corpo é um menino acompanhado da babá, e logo o crime é notícia nacional - a cobertura local é feita pelo repórter Domingos (Eduardo Moscovis), misógino, preconceituoso e casado com Berenice (Cláudia Abreu), que dirige um táxi para ganhar o próprio dinheiro e não depender do marido, com quem vive uma relação apenas formal. O casal tem um filho adolescente, Thiago (Caio Manhente), que vive em seu mundo particular, longe dos olhos dos pais - e perto demais do universo da vítima do crime, a transexual Isabelle (a bela Valentina Sampaio, atriz trans que demonstra grande potencial). Em flashback, o filme mostra os últimos dias de Isabelle, desejada pelos clientes da boate dirigida pela rígida Greta (Vera Holtz), e que sonha em abandonar a prostituição - no que é apoiada pela mãe adotiva, Brigitte (Brigitte de Búzios) e pelo irmão, Russo (Emílio Dantas), um contraventor envolvido em uma série de pequenos roubos e que passa a ser acusado pelo homicídio. Através de Thiago, inconsolável pela morte da amiga, Berenice acaba se envolvendo na investigação do crime - uma decisão que a conduz a um mundo diametralmente oposto à sua rotina doméstica de classe média.

Muita coisa em "Berenice procura" parece capenga: o envolvimento da protagonista na investigação soa gratuito demais, a relação entre Thiago e Isabelle nunca fica exatamente clara, o desfecho é abrupto e anticlimático, alguns personagens coadjuvantes são simplesmente subaproveitados e o romance entre Berenice e Russo não convence (mais por problemas de roteiro do que pelo talento de Cláudia Abreu e Emílio Dantas). Porém, esses equívocos - que comprometem bastante a narrativa - são amenizados por algumas qualidades redentoras. Allan Fiterman acerta em boa parte das sequências na boate, com shows produzidos com bom gosto e com uma atmosfera bastante realista; o tratamento dado à transexualidade é respeitoso (todo preconceito vem de personagens de caráter duvidoso) e o elenco é um espetáculo à parte - principalmente Vera Holtz (tirando o máximo de uma personagem unidimensional) e Eduardo Moscovis (sempre ótimo em papéis duros). Mas o destaque é mesmo a bela Valentina Sampaio, que estreia no cinema com o pé direito - a cena com a avassaladora "Amor marginal", de Johnny Hooker, é deslumbrante e coloca o filme definitivamente no rol das mais importantes produções LGBTQ+ da história do cinema nacional. É um marco - mas que poderia estar em um filme menos apressado e genérico.

segunda-feira

AVA

 


AVA (Ava, 2020, Voltage Pictures/Freckle Films/Leeding Media, 96min) Direção: Tate Taylor. Roteiro: Matthew Newton. Fotografia: Stephen Goldblatt. Montagem: Zach Staenberg. Música: Bear McCreary. Figurino: Megan Coates. Direção de arte/cenários: Molly Hughes/Leslie E. Rollins. Produção executiva: Jonathan Deckter, William A. Earon, Erika Hampson, John Norris. Produção: Kelly Carmichael, Nicolas Chartier, Jessica Chastain, Dominic Rustam. Elenco: Jessica Chastain, John Malkovich, Colin Farrell, Common, Geena Davis, Jess Weixler, Ioan Gruffud, Joan Chen. Estreia: 02/7/2020 (Hungria)

Foi-se o tempo em que apenas homens monopolizavam o cinema de ação. Com o passar dos anos e a mudança nos hábitos do público, personagens femininas deixaram de ser apenas espectadoras passivas de sequências de adrenalina em profusão para se tornarem protagonistas de suas próprias aventuras. Agentes secretas, espiãs, matadoras de aluguel ou simplesmente defensoras do lar e da família, as mulheres passaram a donas do próprio destino - e atrizes como Angelina Jolie, Charlize Theron, Linda Hamilton, Jennifer Lawrence e Sigourney Weaver foram promovidas a estrelas de um gênero antes dominado por Stallone, Schwarzenegger, Van-Damme, Vin Diesel e Mel Gibson. Uma das mais recentes aquisições do estilo é Jessica Chastain. Linda, sexy e de constituição física aparentemente frágil, Chastain - mais conhecida por seus desempenhos dramáticos e por uma vitoriosa carreira nos palcos - assume, em "Ava", seu lado mais radical, e embarca sem receio em uma produção que aposta nos clichês como forma de segurar o espectador. Sem novidades e sem se aprofundar nos dramas pessoais de seus personagens centrais, o filme dirigido por Tate Taylor acabou por decepcionar os mais exigentes, mas consegue agradar aos entusiastas - da atriz e do gênero.

A produção de "Ava" não foi isenta de problemas. A mudança em seu nome original - "Eve" foi deixado de lado para que não houvesse confusão com a série "Killing Eve", também sobre matadoras de aluguel - foi o menor dos percalços. O principal deles, para preocupação dos produtores (Chastain incluída), foi a polêmica envolvendo o nome do roteirista Matthew Newton, também contratado como diretor: julgado em 2007 por violência doméstica contra a namorada (e absolvido sob a desculpa de sofrer de distúrbios psiquiátricos), Newton voltou a ser acusado por outras mulheres, desta vez de assédio sexual e abuso. A pressão das redes sociais foi pesada - Chastain chegou a ser questionada sobre o assunto, uma vez que é tida como uma das porta-vozes do movimento MeToo - e a cadeira de diretor não demorou a ficar vaga. Quem acabou assumindo o posto foi Tate Taylor - um cineasta competente mas nunca brilhante -, o nome responsável pelo oscarizado "Histórias cruzadas" (2011) e pelo sucesso "A garota no trem" (2016). Com Taylor no comando, "Ava" ficou nas mãos de um operário e não de um artista conhecido pela ousadia. A má notícia: não há quase nada no resultado final que não tenha sido visto em outras produções similares. A boa notícia: Taylor é um eficiente diretor de atores, e extrai interpretações primorosas de seu talentoso elenco mesmo sem ter um grande material em mãos.


O roteiro de Matthew Newton não se preocupa em aprofundar a psicologia ou o drama de seus personagens, preferindo centrar seu foco em uma trama um tanto quanto confusa sobre traição e lealdade no mundo dos matadores de aluguel. É assim que surge a história de Ava (Jessica Chastain, excelente tanto no drama como na porrada), uma bem-sucedida e talentosa assassina por contrato. Protegida pelo veterano Duke (John Malkovich) - que é, ao mesmo tempo, um mentor e uma figura paterna -, Ava se diferencia dos demais profissionais por sempre fugir dos rígidos protocolos da profissão ao buscar um mínimo de conexão com suas vítimas. Tal característica - e um atentado frustrado - acabam por colocá-la na mira de um dos líderes do grupo, Simon (Colin Farrell), que encomenda sua morte apesar dos clamores de Duke. Sem saber que está condenada pelos próprios  colegas, Ava se reaproxima da família de quem esteve afastada por oito anos, lutando contra o alcoolismo e o vício em drogas. Seu reencontro com o antigo namorado, Michael (Common), a põe em rota de colisão com a irmã, Judy (Jess Weixler), atual noiva do rapaz, e reacende os problemas com a mãe, Bobbi (Geena Davis).

Como era de se esperar, "Ava" tem nas sequências de ação o seu maior trunfo. Mesmo que o resultado esteja a anos-luz de distância da icônica trilogia Jason Bourne - só para citar um dos exemplares mais famosos do gênero - e a edição deixe a desejar, com um excesso de cortes que impede de aproveitar por inteiro as longas coreografias de luta, o filme de Taylor não decepciona por completo. Boa parte de sua qualidade está na escolha de um elenco que dá dignidade e consistência a uma trama frágil - e por vezes incompreensível. Jessica Chastain brilha como sempre, oferecendo nuances várias a uma personagem que em mãos erradas poderia ser apenas incoerente. Colin Farrell e John Malkovich protagonizam cenas de grande tensão com a tranquilidade de veteranos e até mesmo Geena Davis ressurge, em uma participação pequena mas emocionante - vale lembrar que Davis foi uma das pioneiras em tentar elevar as mulheres à protagonização de filmes de ação, com os malfadados "A ilha da garganta cortada" (1995) e " Despertar de um pesadelo" (1996). Divertido mas esquecível, "Ava" fica em um razoável meio-termo: agrada aos fãs do estilo mas dificilmente conquista novos adeptos.

terça-feira

ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (2017)


ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (Murder on the Orient Express, 2017, 20th Century Fox, 114min) Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Michael Green, romance de Agatha Christie. Fotografia: Haris Zambarloukos. Montagem: Mick Audsley. Música: Patrick Doyle. Figurino: Alexandra Byrne. Direção de arte/cenários: Jim Clay/Rebecca Alleway, Caroline Smith. Produção executiva: Matthew Jenkins, Dillon Kilvo, James Prichard, Aditya Sood, Hilary Strong. Produção: Kenneth Branagh, Mark Gordon, Judy Hofflund, Simon Kinberg, Michael Schaefer, Ridley Scott. Elenco: Kenneth Branagh, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Penelope Cruz, Johnny Depp, Leslie Odom Jr., Derek Jacobi, Josh Gad, Olivia Colman, Willem Dafoe. Estreia: 03/11/2017

Publicado em 1934 e considerado por leitores e críticos como um dos maiores romances policiais de todos os tempos, "Assassinato no Expresso do Oriente" não apenas consagrou definitivamente a inglesa Agatha Christie como "a rainha do crime" como também se mantém no inconsciente coletivo há quase um século. Sua trama, repleta de pistas falsas, ritmo ágil e um desenvolvimento intrigante, mostra o detetive Hercule Poirot no auge de sua perspicácia e apresenta um desfecho antológico - dos mais surpreendentes da prolífica carreira da escritora. Clássico absoluto do gênero, o livro ganhou uma adaptação caprichada em 1974 - quarenta anos após seu lançamento -, sob a direção de Sidney Lumet e um elenco internacional recheado de astros - de Albert Finney como Poirot a uma verdadeira constelação que incluía Lauren Bacall, Sean Connery, Jacqueline Bissett, Anthony Perkins, Maggie Smith e Ingrid Bergman, premiada com um Oscar de atriz coadjuvante. Em 2010, chegou à televisão em um episódio da série britânica "Poirot" - com o famoso investigador interpretado por David Suchet e nomes como Jessica Chastain, Barbara Hershey e Toby Jones emprestando credibilidade ao resultado final. E é de se perguntar por que, mesmo diante de duas versões aplaudidas e fiéis à fonte original, o irlandês Kenneth Branagh considerou necessária uma nova releitura. Pior ainda: em que momento o outrora celebrado cineasta achou cabíveis as alterações criminosas que seu filme - lançado no final de 2017 - fez na história concebida pela mente genial de Christie?

Os (inúmeros) fãs da escritora ficaram revoltados com as liberdades que o roteiro de Michael Green tomou em relação à obra original - tanto em termos da história em si (com personagens amalgamados) quanto pela descaracterização radical do protagonista Hercule Poirot. Retratado nos romances como um senhor de idade avançada, de modos finos e radicalmente contra qualquer tipo de violência - além de privilegiar o cérebro em detrimento de embates físicos -, Poirot viu sua versão cinematográfica rejuvenescer, emagrecer, ter um amor do passado (mostrado apenas em fotografia) e, pior do que tudo, se envolver em lutas, tiroteios e perseguições. É de lamentar que Kenneth Branagh - um ator de talento e sensibilidade o suficientes para que fosse uma espécie de embaixador de Shakespeare na Hollywood dos anos 1990 - tenha se deixado levar pelo ego, a ponto de fazer de seu detetive um super-herói que muito pouco lembra o ídolo dos leitores do gênero. Enquanto no livro Poirot ia aos poucos desvendando todos os meandros que levaram a um misterioso homicídio ocorrido em um dos meios de transporte mais sofisticados do mundo, no filme as conclusões são jogadas, quase como se o personagem tivesse dons paranormais. E se Poirot era, antes de qualquer coisa, um cavalheiro, no filme de Branagh ele não hesita em levantar a voz quando necessário - mesmo que isso destoe radicalmente de sua real personalidade. Não é preciso dizer que, mesmo sendo um bom ator, o ex-marido de Emma Thompson erra violentamente em sua composição.

E não é apenas isso. Como forma de agradar à patrulha do politicamente correto de Hollywood, o roteiro consegue a proeza (negativa) de transformar o coronel Arbuthnot em um médico negro (em uma fusão com outro personagem do livro, Constantine): por mais que se saiba a necessidade atual de inserir representatividade na mídia, é no mínimo equivocada a ideia de que um homem negro pudesse ser o passageiro do Expresso do Oriente em 1934. A inclusão de Leslie Odom Jr. no elenco pode ter tido boas intenções, mas o tiro acabou saindo pela culatra: a novidade soa deslocada, inverossímil e, pior ainda, constrangedora em sua tentativa de soar atual. Também não deu certo substituir as nacionalidades de outros personagens cruciais: a sueca Greta Ohlsson (vivida por Ingrid Bergman em 1974) virou Pilar Estravados na nova adaptação (e ficou com o rosto de Penélope Cruz, subaproveitada como todo o elenco), e o italiano Hardman transmutou-se no espanhol Biniamino Marquez (para ser interpretado por Manuel Garcia-Rulfo). São diferenças que em nada acrescentam ao material original e apenas enfatizam a vontade quase imatura de forçar uma identidade - um desejo que se estende também ao visual estilizado, que compreende a fotografia cinza-azulada de Haris Zambarloukos (que funciona apenas em parte) e os ângulos inusitados de câmera (que evitam o convencional a todo custo e cansam em diversos momentos). A direção de arte e o figurinos são deslumbrantes, mas é pouco diante de tantos erros - que enfraquecem as boas ideias de Branagh, como utilizar-se de espelhos para ilustrar a dubiedade dos personagens/suspeitos.

A trama em si é conhecida por quase todo mundo (ao menos os fãs do gênero a conhecem de longa data): durante uma viagem no tradicional Expresso do Oriente, o misterioso e pouco simpático Edward Ratchett (Johnny Depp forçado como sempre) é violentamente assassinado a facadas. O crime é ainda mais intrigante quando se descobre que as facadas são de tamanhos e intensidades diferentes, e outras pistas incoerentes deixam o trabalho do famoso detetive particular Hercule Poirot (um passageiro de última hora) ainda mais complicado. Os suspeitos - um grupo variado de passageiros em determinado vagão - parecem não ter nada em comum e aparentemente todos tem álibis indestrutíveis. A ideia inicial - de que o homicídio foi resultado de uma vingança relacionada à máfia - é deixada de lado, no entanto, quando Poirot descobre que Ratchett é, na verdade, o responsável pelo sequestro e assassinato de um bebê, alguns anos antes: resta, então, descobrir quem, dentre os passageiros, também está mentindo quanto à sua identidade.

Desperdiçando um elenco excepcional - que inclui os veteranos Judi Dench e Derek Jacobi, os consagrados Willem Dafoe, Penélope Cruz e Michelle Pfeiffer - e apostando na modernização de uma trama que já nasceu clássica, Kenneth Branagh simplesmente destruiu a obra original, destroçando inclusive a revelação sobre o nome do assassino em uma sequência morna e com um desfecho sofrível. Em pensar que ele continuará sua missão em estragar outras obras de Christie - "Morte sobre o Nilo" é o próximo da lista e sua menção nos últimos minutos do primeiro filme já aponta para mais distorções imperdoáveis - chega a dar calafrios. Matar uma obra dessa forma deveria ser crime!

ARIZONA NUNCA MAIS


ARIZONA NUNCA MAIS (Raising Arizona, 1987, 20th Century Fox/Circle Films, 94min) Direção: Joel Coen. Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Barry Sonnenfeld. Montagem: Michael R. Miller. Música: Carter Burwell. Figurino: Richard Hornug. Direção de arte/cenários: Jane Musky/Robert Kracik. Produção executiva: James Jacks. Produção: Ethan Coen. Elenco: Nicolas Cage, Holly Hunter, John Goodman, William Forsythe, Frances McDormand, Trey Wilson, Randall "Tex" Cobb. Estreia: 06/3/87

O que fazer depois que seu filme de estreia - uma produção independente barata e sem astros hollywoodianos - se torna queridinho da crítica e coloca seu nome dentre as maiores promessas do novo cinema norte-americano? Se a pergunta fosse feita a Joel e Ethan Coen, os irmãos responsáveis pela direção, roteiro e produção do desconcertante "Gosto de sangue" (1984), a resposta certamente revelaria seu desejo de realizar o oposto de seu primeiro filme. Muito mais leve, solar e otimista do que seu antecessor - mas ainda com generosas doses de um humor todo particular -, "Arizona nunca mais" pegou crítica e público de surpresa quando estreou e apresentou, sem nenhum traço de pudor, uma história de amor doce, engraçada e familiar - e que, para deixar tudo ainda mais alto-astral, com um risonho e louro bebê fazendo as vezes de catalisador da ação. Diferindo radicalmente do suspense pesado e violento que marcou sua impactante chegada ao mundo do cinema, "Arizona nunca mais" demonstrou, para quem estivesse disposto a ver e ouvir, que os irmãos Coen não tinham se beneficiado da famigerada sorte de principiante - e que tinham muito, mas muito talento e criatividade a oferecer.

Escrito em três meses e meio (depois que o projeto de "Na roda da fortuna" foi adiado indefinidamente devido a seu orçamento milionário), o roteiro de "Arizona nunca mais" surgiu, segundo os próprios diretores, da vontade de ambos em escrever um bom papel para Holly Hunter, então começando o que viria a ser uma carreira vitoriosa. Desse desejo nasceu Edwina (ou Ed), uma policial dedicada e sensível que sonha em casar e ter uma família - mesmo que seja com alguém tão disfuncional quanto Herbert McDunnough (ou H.I.), um bandido pé-de-chinelo que se apaixona por ela quando é preso pelo assalto a uma loja de conveniências. Seduzida pela atenção que lhe é dispensada por H.I. - que lhe enche de gentilezas a cada vez que é capturado pela polícia -, Ed aceita seu pedido de casamento. Sua nova vida, em um trailer no deserto do Arizona, só não é completa pela falta de um filho - um problema aparentemente insolúvel depois que Ed se descobre estéril e o casal percebe que, graças à extensa ficha criminal de H.I., adoção tampouco é uma opção. A luz no fim do túnel que reacende a esperança de felicidade dos ansiosos pais de família surge em uma notícia de jornal: e se o casal roubasse um dos recém-nascidos quintulos do milionário Nathan Arizona (Trey Wilson)? Afinal de contas, segundo o raciocínio de H.I. e Ed, o magnata e sua esposa "tem mais do que podem cuidar".


O sequestro do pequeno Nathan Jr., logicamente, não é visto com tranquilidade por Arizona, que divulga uma recompensa de 10 mil dólares a quem lhe ajudar a recuperar o filho - um desdobramento que, no entanto, não afeta a consciência do novo núcleo familiar. Encantados com a nova rotina, Ed e H.I. tentam levar uma vida normal, socializando com outros casais (Sam MacMurray e uma impagável Frances McDormand) e fugindo de seu passado - algo complicado, especialmente quando recebem a visita de dois ex-colegas de crime de H.I, os pouco sutis Gale (John Goodman) e Evelle (William Forsythe), que não demoram a descobrir a identidade do bebê e se sentem bastante tentados pela recompensa oferecida. Não bastasse tantas ameaças à felicidade familiar, o apavorante Leonard Smalls (Randal "Tex" Cobb) surge como uma bomba no caminho dos protagonistas: a bordo de sua potente moto e com uma aparência assustadora, o imenso mercenário decide que, se não conseguir convencer Arizona a lhe pagar cinco vezes mais do que a recompensa oferecida, irá recuperar o sorridente e simpático bebê e vender no mercado negro. Como se não bastasse tantos problemas, H.I. é demitido - depois de recusar uma troca de casais com o patrão - e recomeça a flertar com o crime.

Em um papel feito sob medida para seu histrionismo por vezes exagerado - e para o qual Kevin Costner foi testado três vezes -, Nicolas Cage está na medida certa. Com seu cabelo rebelde - que fica mais e mais arrepiado conforme o nível de estresse de seu personagem vai aumentando - e o eterno olhar descrente diante de tanta confusão em uma vida que sonhava fácil, o ator (que mais tarde seria conhecido tanto por seu Oscar por "Despedida em Las Vegas", de 1995, quanto por suas incursões no cinema de ação) faz o contraponto perfeito à atuação quase meiga de Holly Hunter - que, no entanto, apresenta um timing cômico impecável. Com movimentos de câmera criativos (herança dos tempos em que Joel Coen foi assistente de direção de Sam Raimi em seu clássico trash "Uma noite alucinante: a morte do demônio", de 1981) e personagens no limite do surreal, "Arizona nunca mais" parece um desenho animado em live action: suas sequências de ação brincam com o público de forma a enfatizar a falta de compromisso com a realidade. Exatamente como desejavam - fugir de qualquer comparação com "Gosto de sangue" -, os irmãos Coen fizeram de sua primeira comédia um marco e uma influência no cinema independente norte-americano. Um feito e tanto para quem ainda precisava chegar aos sets com storyboards completos como forma de economizar o orçamento tímido de apenas cinco milhões de dólares. Definitivamente talento não tem preço!

quinta-feira

ALL THAT JAZZ: O SHOW DEVE CONTINUAR


ALL THAT JAZZ: O SHOW DEVE CONTINUAR (All that jazz, 1979, 20th Century Fox/Columbia Pictures, 123min) Direção: Bob Fosse. Roteiro: Bob Fosse, Robert Alan Aurthur. Fotografia: Giuseppe Rottuno. Montagem: Alan Heim. Figurino: Albert Wolsky. Direção de arte/cenários: Philip Rosenberg/Gary J. Brink, David Stewart. Produção executiva: Daniel Melnick. Produção: Robert Alan Aurthur. Elenco: Roy Scheider, Jessica Lange, Ann Reinking, Leland Palmer, Cliff Gorman, Ben Vereen. Estreia: 16/12/79

9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Bob Fosse), Ator (Roy Scheider), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Adaptada, Figurino, Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 4 Oscar: Montagem, Trilha Sonora Adaptada, Figurino, Direção de Arte/Cenários

Palma de Ouro de Melhor Diretor no Festival de Cannes

Joe Gideon é workaholic, fumante compulsivo, mulherengo inveterado, ávido consumidor de álcool e usuário habitual de substâncias químicas que o ajudam a manter um ritmo insano de vida. Joe Gideon é diretor de musicais, coreógrafo, dançarino e cineasta. Joe Gideon trabalha escalando o elenco de seu novo espetáculo na Broadway, trabalha na edição de um novo longa-metragem e trabalha formas de equilibrar as mulheres da sua vida - a ex-esposa, a atual namorada e a filha adolescente. Joe Gideon é um artista mas precisa lidar com a burocracia e a insensibilidade de seus investidores - mais apaixonados por dinheiro do que por integridade artística. E além de tudo, Joe Gideon é um ser humano - propenso, portanto, a ver seu organismo cobrar por tanta pressão. Então, durante o processo de ser Joe Gideon por 24 horas por dia, ele sofre um severo ataque cardíaco - e enquanto vê sua posição como diretor ser ameaçada por interesses financeiros, apela para sua fértil imaginação e cria, em seus momentos inconscientes, um novo show, onde realidade e fantasia se misturam com pessoas reais, alucinações,  médicos, procedimentos cirúrgicos e seus constantes excessos profissionais e amorosos: como todo artista obcecado com sua arte, ele faz de sua doença a inspiração para mais um grande evento. Joe Gideon é o protagonista do filme "All that jazz: o show deve continuar". E, como não há o menor espaço para dúvida, Joe Gideon É Bob Fosse, seu criador.

Um dos maiores nomes do teatro musical norte-americano, Fosse tornou-se também um cineasta respeitado quando, pela versão cinematográfica de "Cabaret" (1972), arrebatou o Oscar de melhor diretor, batendo Francis Ford Coppola (de "O poderoso chefão"). A partir daí, levou seu estilo moderno, feérico e elegante para as telas, da mesma forma como fazia nos palcos. Em 1974 causou polêmica com "Lenny", cinebiografia do comediante de stand-up Lenny Bruce - e voltou a concorrer à estatueta da Academia. E, como prova de criatividade (e autoironia), aproveitou-se de um problema de saúde real (um enfarte), para realizar mais uma obra-prima - que lhe valeu a Palma de Ouro de melhor diretor no Festival de Cannes. "All that jazz: o show deve continuar" é a versão musicada e anfetamínica de um período conturbado da existência de Fosse - mas, como visto na tela, é uma celebração da arte, da dança e da vida, repleta de um colorido e de uma energia que deixou muita gente atônita (e outros tantos espectadores extasiados). Indicado a nove Oscar (incluindo melhor filme e direção), "All that jazz" foi considerado corajoso por parte da crítica - mas tampouco deixou de incomodar àqueles que o julgaram macabro e de péssimo gosto. Seja como for, o filme fez um relativo sucesso de bilheteria (rendeu três vezes mais o seu custo), levou 4 Oscar (figurino, direção de arte, trilha sonora adaptada e edição) e ficou marcado como mais um triunfo do talento inesgotável de seu criador.

Segundo Shirley MacLaine, foi ela quem sugeriu a Fosse que transformasse seu ataque cardíaco em um musical sobre a morte. Se é verdade ou não, a questão é que o cineasta/coreógrafo acatou a ideia e chegou a oferecer um dos principais papéis femininos à amiga - com quem trabalhou em "Charity, meu amor" (1969), sua estreia como cineasta. No entanto, quem ficou com o papel de Audrey Paris - ex-mulher de Gideon e sua parceira artística constante, assim como o era Gwen Verdon com o próprio Fosse - foi Leland Palmer, em seu último trabalho no cinema. A escolha de Palmer no lugar de MacLaine, no entanto, foi a menos difícil e traumática do elenco. Complicado mesmo foi chegar a um consenso quanto ao intérprete do protagonista, um dos alter-egos mais brilhantes da história do cinema. Fosse chegou a pensar em si mesmo para o papel - mais foi demovido da ideia pelo produtor Daniel Melnick, que não acreditava que ele sobrevivesse às filmagens se acumulasse as funções de diretor e ator. A partir daí, nomes os mais variados surgiam e eram descartados - por um motivo ou outro. Warren Beatty se interessou pelo projeto - e era aprovadíssimo pela Columbia Pictures, confiante em seu potencial de grande astro -, mas foi deixado de lado depois de exigir que o final fosse alterado. Richard Dreyfuss chegou a ser escalado, mas abandonou o barco na fase de ensaios por não acreditar no projeto - uma decisão da qual se confessa arrependido. Paul Newman nem chegou a ler o roteiro por não sentir-se confortável em interpretar um dançarino. Jack Lemmon foi considerado, mas Fosse chegou à conclusão de que era velho demais para o papel. Gente como Jack Nicholson, Gene Hackman, Elliot Gould, George Segal e Alan Alda foram cogitados - e Jon Voight chegou até a fazer um teste, mas é difícil, hoje em dia, à luz do resultado final, imaginar outro ator que não Roy Scheider na pele do sedutor Joe Gideon.

Scheider foi escolhido por Fosse em pessoa - que bancou sua decisão corajosamente. Apesar de participações em filmes de sucesso, como "Operação França" (1971) e "Tubarão" (1975), Scheider não era exatamente a opção mais óbvia para viver um coreógrafo don juan - especialmente em um musical que lhe exigiria sequências de canto e dança. Scheider, no entanto, honrou a ousadia do cineasta com uma performance arrebatadora que lhe garantiu lugar entre os indicados ao Oscar de melhor ator do ano (que perdeu para Dustin Hoffman, por "Kramer vs Kramer"): arrogante e autoconfiante, o Joe Gideon construído por Scheider escapa da antipatia justamente pelo carisma do ator, que escapa magistralmente das constantes armadilhas do roteiro, co-escrito por Fosse e pelo produtor Robert Alan Aurthur - que morreu em novembro de 1978, durante a produção do filme, e foi indicado postumamente ao Oscar. Liderando um elenco impecável e sem grandes astros (reparem em John Lithgow no começo de carreira, em papel pequeno), Scheider sublinha todos os acertos do filme e apaga os problemas pré-lançamento: o estouro do orçamento (que pulou de 6,5 milhões para 10 milhões e só foi aprovado depois de uma sessão especial aos presidente da Fox), o extenso cronograma de pós-produção (oito meses contra os 101 dias de filmagens) e as dúvidas a respeito de como o resultado final seria recebido pela crítica e pelo público.

Essa última preocupação provou-se exagerada. Mesmo com algumas (poucas) reclamações por parte da imprensa, "All that jazz" já estreou vencedor. Sucesso comercial e premiado profusamente, o filme de Fosse chegou a receber um elogio inesperado e definitivo de ninguém menos que Stanley Kubrick, que classificou-o como "o melhor filme que já vi." Nada mal para uma ousada criação que mistura dança, morte, sexo, obsessões e generosas doses de autobiografia. Uma obra-prima que confirma o gênio de Bob Fosse!

terça-feira

ESTAREMOS SEMPRE JUNTOS


ESTAREMOS SEMPRE JUNTOS (Nous finirons ensemble, 2019, Trésor Films/Caneo Films/EuropaCorp, 134min) Direção: Guillaume Canet. Roteiro: Guillaume Canet, Rodolphe Lauga. Fotografia: Christophe Offenstein. Montagem: Hervé de Luze. Direção de arte/cenários: Philippe Chiffre/Fabien Georges. Produção executiva: Xavier Amblard. Produção: Alain Attal. Elenco: François Cluzet, Marion Cottilard, Benoit Magimel, Gilles Lelouche, Laurent Lafitte, Pascale Arbilot, Clémentine Baert. Estreia: 11/4/2019

Em 2010, o ator e cineasta Guillaume Canet lançou "Até a eternidade", uma comédia dramática que tornou-se um dos maiores sucessos do cinema francês daquele ano, com mais de cinco milhões de ingressos vendidos e elogios rasgados. Seu retrato carinhoso e um tanto melancólico de um grupo de amigos obrigados a enfrentar as verdades por trás de suas vidas aparentemente tranquilas tinha no elenco nomes conhecidos do cinema europeu - como o veterano François Cluzet - e vencedores do Oscar - Marion Cottilard e Jean Dujardin, este em uma participação especial - e nítidas influências de "O reencontro", clássico oitentista do norte-americano Lawrence Kasdan. Com personagens bem construídos, excelente senso de ritmo e um equilíbrio invejável de humor e sentimentalismo, seu roteiro deixava margem para uma continuação que, depois de nove anos, finalmente viu a luz dos projetores. "Estaremos sempre juntos", que volta a encontrar o grupo de amigos, dessa vez com suas vidas alteradas pelo tempo e por novos dramas, estreou na França em 2019 e, apesar de não obter a mesma repercussão do original - e não ter sido exatamente aprovado pela crítica -, mantém algumas de suas maiores qualidades e aposta na identificação da plateia com seus personagens, agora mais velhos e desiludidos.

Enquanto o primeiro filme as férias de verão do grupo de amigos protagonistas acontecia sob a sombra do acidente que deixou um deles no hospital, em "Estaremos sempre juntos" o drama principal gira em torno de Max (François Cluzet), o mais bem-sucedido financeiramente do grupo, que está passando por um inferno astral: separado da mulher, Véro (Valerie Bonneton), vê sua fortuna escapar por entre os dedos, sofre de uma grave crise de meia-idade (apesar do relacionamento carinhoso com a nova esposa) e, apesar de esconder de todos, está vendendo a casa de praia onde tantas vezes recebeu (com indisfarçável orgulho) sua turma. Em depressão e ainda mais taciturno e mau-humorado, Max se surpreende quando todos aparecem na propriedade sem avisar, como forma de comemorar seu aniversário com uma festa surpresa. Já faz algum tempo que seu relacionamento com o grupo está estremecido (principalmente depois de uma briga com Eric (Gilles Lellouche)), e o reencontro, como se poderia esperar, irá reviver conflitos e forçar confrontos que todos gostariam de evitar. Sete anos depois da tragédia que os fez repensar a vida, eles novamente são postos diante de situações decisivas.

Marie (Marion Cottilard) talvez seja, dentre todos, a que mais mudou: mãe solteira de um menino, ela não é mais a mulher disposta a mudar o mundo que era em seus dias mais jovens, e não perde a oportunidade de demonstrar sua má-vontade com o mundo em geral. Vincent (Benoit Magimel) também mudou radicalmente de vida, depois de assumir um relacionamento homossexual e separar-se de Isabelle (Pascale Arbillot) - que, por sua vez, redescobriu sua sensualidade a ponto de chamar a atenção de Antoine (Laurent Lafitte), agora trabalhando como assistente de Eric - que também tornou-se pai e tenta equilibrar sua carreira de ator (em ótima fase) com a vida (quase) familiar. Eric é o único que sabe a verdade sobre a nova situação financeira de Max - e o ajuda a fingir que ele é o responsável por alugar uma nova casa para seu reencontro - um reencontro em que ele tentará manter as aparências enquanto luta desesperadamente com sua sensação de fracasso. Nesse meio-tempo, situações dramáticas e cômicas se acumulam: Vincent se sente atraído pela ex-mulher, Eric tenta convencer Marie a abandonar sua nova e autodestrutiva rotina e a onipresença de uma rígida babá deixa tudo em constante tensão - sem falar nos filhos adolescentes de Vincent e Max, buscando atenção e aprovação paternas.

Assim como em "Até a eternidade", Canet equilibra drama e humor, ilustrando seu roteiro com uma trilha sonora caprichadíssima e um ritmo suave. Porém, ao contrário do que acontecia no primeiro filme, ele não consegue evitar uma queda de interesse em seu terço final, com um clímax pouco atraente - envolvendo as crianças - e um desfecho menos potente do que se poderia imaginar. Tais pecados, no entanto, não apagam o que a produção tem de bom: um elenco acima de qualquer crítica (que consegue lidar com a complexidade de seus personagens), uma sensibilidade emocionante e um carinho indisfarçável pelas relações humanas. Que venha um terceiro capítulo!

quarta-feira

A MARCA DA PANTERA


A MARCA DA PANTERA (Cat people, 1982, RKO Pictures/Universal Pictures, 118min) Direção: Paul Schrader. Roteiro: Alan Ormsby, estória de DeWitt Bodeen. Fotografia: John Bailey. Montagem: Jacqueline Cambas, Jere Huggins, Ned Humphreys. Música: Giorgio Moroder. Figurino: Daniel Paredes. Direção de arte/cenários: Edward Richardson/Bruce Weintraub. Produção executiva: Jerry Bruckheimer. Produção: Charles Fries. Elenco: Nastassja Kinski, Malcolm McDowell, John Heard, Ruby Dee, Ed Begley Jr., Annette O'Toole. Estreia: 02/4/82

No começo dos anos 1980, o produtor Wilbur Stark tinha a intenção de refilmar clássicos de terror da RKO Pictures, apresentá-los a novas gerações de espectadores e, é claro, lucrar em cima de projetos já devidamente testados. Logo em sua primeira tentativa, no entanto, deu com os burros n'água, e viu seu "O enigma do outro mundo" (1982) - remake de "O monstro do Ártico" (1951) - fracassar nas bilheterias mesmo com o nome do diretor John Carpenter estampado nos cartazes. Se tal revés não fosse motivo suficiente para desistir da empreitada, logo em seguida outro fiasco comercial nos mesmos moldes colocaria uma pá de cal em suas intenções: releitura livre de "Sangue de pantera" (1942), o mezzo suspense mezzo erótico "A marca da pantera", dirigido por Paul Schrader, foi praticamente ignorado pelo público, apesar do apelo sensual de sua estrela, Nastassja Kinski, e da canção-tema composta e interpretada por David Bowie. Com um custo estimado de 18 milhões de dólares e uma renda de pouco mais de 7 milhões, a produção enterrou todo e qualquer plano de novas revisões - mas, ao contrário do filme de Carpenter, que caprichava na atmosfera de tensão e expandia as qualidades do original, o filme de Schrader mereceu o fracasso.

Escorado basicamente no magnetismo sexual de Kinski - no auge da beleza e da popularidade -, "A marca da pantera" é uma adaptação livre do filme dirigido por Jacques Tourneur e estrelado pos Simone Simon, e, aproveitando-se basicamente do conceito original da trama, deixa de lado toda e qualquer sutileza para apostar na violência gráfica, em efeitos visuais nem sempre eficientes e na tentativa de explorar ao máximo um erotismo muito em voga à época de seu lançamento - antes que o conservadorismo da era Reagan se estabelecesse avassaladoramente em Hollywood. Sem hesitar em mostrar sua protagonista nua em boa parte do filme e apelar para tabus como o incesto, o roteiro de Alan Ormsby (substancialmente alterado pelo diretor) utiliza o sexo como mola propulsora e centra seu foco na relação doentia entre a bela e inocente Irena Gallier e seu dúbio irmão, Paul (Malcolm McDowell) - uma relação cuja origem remete a uma lenda referente a panteras em forma humana e sacrifícios rituais.

O centro de "A marca da pantera" é Irena, uma jovem delicada e sensível que chega a Nova Orleans para morar com o irmão, Paul e sua empregada, Female (Ruby Dee). Virgem e pura, Irena nem sequer desconfia das particularidades de sua linhagem familiar - descendentes de uma mistura de homens e panteras, eles se transformam em animais quando fazem sexo e precisam matar para voltar à forma humana. Tal condição é plenamente conhecida por Paul, que costuma saciar seus desejos sexuais contratando prostitutas - a quem mata sem pestanejar - e deseja convencê-la a manter com ele um relacionamento incestuoso. Irena, por sua vez, foge dos desejos cada vez mais intensos que a aproximam de Oliver Yates (John Heard, em papel oferecido a William Hurt), curador do zoológico da cidade por quem está apaixonada. Ciente de que a entrega a Oliver pode fazer vir à tona seu lado animal (literalmente), a jovem tenta sufocar seus sentimentos - algo cada vez mais difícil, especialmente com a pressão de Paul. Além disso, o ciúme que sente da proximidade de Oliver com sua colega, Alice Perrin (Annette O'Toole), também a empurra em direção a uma situação perigosa em que ela, definitivamente, terá que enfrentar o chamado de seu DNA.

Não deixam de ser interessantes as modificações feitas por Paul Schrader no roteiro original - o clima de sensualidade e mistério misturado ao misticismo e ao suspense muitas vezes casam com perfeição. Porém, é inegável que os muitos furos da história e sua falta de profundidade incomodam muito mais. Nastassja Kinski está linda (a ponto do diretor pensar em casamento ao final das filmagens) e Malcolm McDowell capricha no olhar insano que é sua marca registrada desde "Laranja mecânica" (1971), mas o desenvolvimento capenga da trama e o visual cafona típico dos anos 1980 soam mais alto que suas qualidades. Desde 1978 na mira dos produtores para ganhar uma versão mais moderna, "Sangue de pantera" merecia mais consideração em sua nova roupagem - talvez menos sangue e mais inteligência fossem essenciais para transformar seu remake em algo que se sustentasse além do erotismo e dos fetiches claramente exercitados por Schrader em seu roteiro. É uma produção curiosa, mas muito aquém do que se poderia esperar.

terça-feira

1922


1922 (1922, 2017, Netflix, Lighthouse Pictures/Campfire, 102min) Direção: Zak Hilditch. Roteiro: Zak Hilditch, história de Stephen King. Fotografia: Ben Richardson. Montagem: Merlin Eden. Música: Mike Patton. Figurino: Claudia Da Ponte. Direção de arte/cenários: Page Buckner/Jacquelin Miller. Produção executiva: Ian Bricke, Jamie Goehring, Zak Hilditch, Samantha Housman, Liz Kearney, Kevin Leeson, Shawn Williamson. Produção: Ross M. Dinerstein. Elenco: Thomas Jane, Molly Parker, Dylan Schmid, Kaitlyn Bernard, Neal McDonough, Brian D'Arcy James. Estreia: 23/09/201 (Fantastic Fest)

Levando-se em consideração que seu primeiro romance, "Carrie: a estranha" foi publicado em 1974, é de se admirar a longevidade de Stephen King no imaginário popular - tanto em termos literários quanto cinematográficos. Somente em 2017, nada menos que seis obras de sua autoria foram adaptadas para as telas, em forma de série ou filme. Duas dessas adaptações chegaram ao público pela Netflix - e ao menos uma delas merecia ter tido mais reconhecimento. Baseado na novela de mesmo nome publicada em 2010 no livro "Full dark, no stars", o drama psicológico "1922" está mais perto de obras densas como "Louca obsessão" (1990) e "Eclipse total" (1995) do que para equívocos sanguinolentos como "O apanhador de sonhos" (2003) e "Sonâmbulos" (1992). Segundo filme de Zak Hilditch - que estreou em longa-metragens com "As horas finais" (2013) - e terceiro encontro do ator Thomas Jane com a obra de King, "1922" é um mergulho na culpa, e se não consegue atingir todo o seu potencial, ao menos é uma produção acima da média no gênero - e muito melhor do que se poderia esperar de algo vindo da Netflix.

Com um desenho de produção caprichado e extremo cuidado na direção de atores, Hilditch surpreende ao criar uma atmosfera de tensão desde as primeiras cenas de seu filme, narrado em flashback pelo protagonista, Wilfred James (interpretado com razoável competência por Jane, que ainda não é um grande ator mas ao menos não compromete o resultado final). Em 1930, James, consumido pela culpa e pela solidão, escreve uma carta aberta, onde confessa a morte da esposa e a responsabilidade pelas tragédias que vieram em sua consequência. O roteiro (escrito pelo diretor) volta, então, ao ano de 1922, quando o ambicioso fazendeiro começa sua escalada rumo à loucura e à paranoia. Sonhando em aumentar sua propriedade na área rural do Nebraska, James esbarra na recusa da esposa, Arlette (Molly Parker) em desistir da ideia de vender a terra que herdou da família e tentar a sorte na cidade grande. Ao contrário do marido, Arlette não é feliz com a vida no campo e tem planos de montar uma loja de roupas em Omaha. Inconsolável com tal atitude e tal (segundo seu ponto de vista) egoísmo, James consegue convencer até mesmo o próprio filho adolescente, Henry (Dylan Schmid), a resolver a situação da forma mais cruel e definitiva possível: juntos, os dois tramam e cometem um violento homicídio, e ocultam o corpo no poço da fazenda, declarando à vizinhança que foram abandonados. O que parecia caso resolvido, no entanto, logo se transforma em um problema ainda maior quando Henry, cada vez mais atormentado pelo remorso, descobre que a jovem namorada, Shannon (Kaitlyn Bernard), está grávida - uma situação que acelera uma série de acontecimentos que o colocam em rota de colisão com o pai.


Mesmo que não hesite em apostar no suspense em momentos cruciais, - a sequência do assassinato de Arlette é muito bem dirigida e algumas alucinações de James atingem o tom exato de desespero -, o roteiro de Zak Hilditch se concentra muito mais na introspecção do que no explícito. A música - a cargo de Mike Patton (ex-Faith No More) - sublinha com precisão o tom claustrofóbico imposto pelo diretor, que aposta na tensão crescente como forma de envolver o público. Conforme Wilfred James vai se deixando levar pela culpa - com ratos surgindo diante de seus olhos como forma de lembrá-lo de que seu ato jamais lhe fugirá da memória -, mais e mais a direção de Hilditch se torna opressiva. A forma como o destino de Henry e Shannon se desenrola diante do espectador é um acerto a mais - inspirado em "Bonnie & Clyde: uma rajada de balas" (1967), seu romance marginal/elegante/trágico talvez até merecesse um pouco mais de tempo na tela. E se Thomas Jane cumpre sua missão sem maiores tropeços, a atuação de Molly Parker é digna de figurar na galeria de seus melhores trabalhos - poucos minutos em cena são suficientes para que ela se torne, ao mesmo tempo, uma potencial vilã e uma vítima inocente da ganância do marido, incapaz de conceber o tamanho da violência que lhe aguarda.  Neste embate entre Parker e Jane, o desempenho do jovem Dylan Schmid (da série "Expresso do amanhã") consegue sobressair-se em um misto de ingenuidade e melancolia - é um rapaz com um belo futuro pela frente.

Mesmo que destoe do que se espera de uma obra baseada em Stephen King - leia-se muito mais cerebral que física e sem suas costumeiras características -, "1922" pode ser considerado um filme digno de figurar entre suas adaptações acertadas. O público menos afeito a sutilezas talvez torça o nariz, esperando mais violência e sustos constantes, mas aqueles que se aventurarem certamente estarão diante de uma produção caprichada e, melhor ainda, que se leva a sério. Não é uma das obras mais conhecidas de King - mas pode surpreender por sua inteligência e - por que não? - elegância ao contar uma história tão pesada.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...