quinta-feira

MAIS QUE AMIGOS


MAIS QUE AMIGOS (Bros, 2022, Universal Pictures, 115min) Direção: Nicholas Stoller. Roteiro: Billy Eichner, Nicholas Stoller. Fotografia: Brandon Trost. Montagem: Daniel Gabbe. Música: Marc Shaiman. Figurino: Tom Broecker. Direção de arte/cenários: Lisa Myers/Nicki Ritchie. Produção executiva: Billy Eichner, Karl Frankenfield. Produção: Judd Apatow, Josh Church, Nicholas Stoller. Elenco: Billy Eichner, Luke Macfarlane, Guy Branum, Harvey Fierstein, Miss Lawrence, Debra Messing. Estreia: 09/9/2022 (Festival de Toronto)

Primeiro, uma opinião polêmica: filmes de temática LGBTQIA+ que fogem do tradicional drama feito para ganhar Oscar dificilmente encontrarão, em um futuro próximo, público suficiente para fazer deles campeões de bilheteria. Por se tratar de um nicho (ainda) marginalizado dentro da indústria, produções que tentam desviar das tragédias e/ou biografias históricas gays fatalmente fracassam comercialmente. É difícil imaginar, por exemplo, heterossexuais saindo de casa e pagando um ingresso para assistir à comédia romântica "Mais que amigos" - primeiro filme do gênero com elenco principal formado por atores homossexuais a ser lançado por um grande estúdio de Hollywood (no caso, a Universal Pictures). Apesar dos elogios entusiasmados da crítica e de suas inegáveis qualidades, a produção dirigida por Nicholas Stoller ficou bem aquém das expectativas, em termos financeiros - o que provavelmente irá desencorajar outros estúdios a tentar a sorte nesta seara (ainda) espinhosa. A boa notícia é que, apesar da bilheteria decepcionante, o filme de Stoller é divertido para qualquer um que se proponha a deixar o preconceito de lado.

Logicamente, o público LGBTQIA+ encontrará muito mais razões para rir, uma vez que boa parte das referências pop que permeiam o roteiro diz respeito a seu universo todo próprio. Mas, ao contrário do que se poderia supor, a trama criada pelo diretor e pelo ator principal, Billy Eichner, sobrevive muito bem sem as piadas sobre "Queer eye for the straight guy" ou "Will & Grace", por exemplo. Na verdade, é uma comédia romântica simples, sobre um par aparentemente incompatível que descobre que, para viver um grande amor, é preciso aceitar as diferenças e as pressões sociais - nada de muito diferente de produções estreladas por Meg Ryan nos anos 1990, Katherine Heigl nos anos 2000 e Jennifer Aniston nos anos 2010, mas dessa vez com dois homens estampando o cartaz e buscando a torcida da plateia.



Billy Eichner dá vida a Bobby, um homossexual de trinta e poucos anos, conhecido por um podcast ácido e que está correndo atrás de um patrocínio para o lançamento do primeiro museu de história queer dos EUA - que, entre suas ousadias, quer provar a bissexualidade de Abraham Lincoln. Solteiro, ele deve boa parte de sua solidão à sua própria dificuldade de aprofundar-se em relações amorosas. Cansado de buscar parceiros em aplicativos de relacionamentos, ele conhece, em uma balada, o advogado Aaron (Luke Macfarlane), que considera além de suas possibilidades de conquista: sarado, popular, bonito e afeito a transas casuais, Aaron se aproxima de Bobby como amigo, mas não demora a  perceber que entre eles existe algo mais do que uma simples amizade. Avesso a compromissos, porém, propões ao escolado novo amigo uma relação aberta. Bobby aceita, a princípio, mas logo passa a ver que está (ao menos em sua perspectiva) em grande desvantagem. O conflito nasce - e aumenta até proporções que os impede de (ainda) ficarem juntos.

Repleto de diálogos espirituosos e inteligentes, "Mais que amigos" brinca com todos os clichês das comédias românticas e os estereótipos do mundo gay, sem medo de ofender suscetibilidades ou afugentar plateias mais puritanas. Não se priva de cenas de sexo (ousadas, mas ainda muito aquém do que é mostrado no cinema comercial heterossexual), não foge do sentimentalismo, quando necessário, e tampouco evita tocar em assuntos que povoam o universo LGBTQIA+ - a apologia ao corpo perfeito, o amor incondicional por divas pop, o preconceito dentro da própria bolha, o sexo casual como subterfúgio à solidão. Mas faz tudo com tanta leveza, tanto bom humor, tanta propriedade, que é difícil não se deixar levar e dar boas risadas. Billy Eichner brilha como o azedo e desiludido Bobby, que esconde, por trás de uma fachada cáustica, sérios problemas de autoestima, e Luke Macfarlane (conhecido pela série "Brothers & Sisters") é o contraponto perfeito a seu mau-humor quase encantador. Contando ainda com uma participação impagável de Debra Messing (de "Will & Grace") como ela mesma, "Mais que amigos" é um programa ideal para quem procura um passatempo inofensivo - e, apesar do fracasso comercial, tem tudo para virar cult. Basta mergulhar sem medo e se preparar para torcer para um casal (ainda) atípico.

CONCORRÊNCIA OFICIAL


CONCORRÊNCIA OFICIAL (Competencia oficial, 2021, ICAA/Orange/RTVE, 115min) Direção: Mariano Cohn, Gastón Duprat. Roteiro: Andrés Duprat, Gastón Duprat, Mariano Cohn. Fotografia: Arnaud Valls Colomer. Montagem: Alberto del Campo. Figurino: Wanda Morales. Direção de arte/cenários: Alain Bainée/Sara Natividad. Produção executiva: Antonio Banderas, Penélope Cruz, Laura Férnadez Espeso, Oscar Martínez, Javier Méndez, Javier Pons. Produção: Jaume Roures. Elenco: Penélope Cruz, Antonio Banderas, Oscar Martínez, José Luiz Gómez. Estreia: 04/9/2021

O que fazer quando se chega aos 80 anos de idade, tem dinheiro de sobra e sonha em ter o nome para a posteridade? O empresário Humberto Suárez (José Luiz Gómez), depois de pensar em inúmeras possibilidades (como uma ponte, por exemplo) chega à conclusão de que o melhor negócio que pode fazer é financiar um filme. Mas não um filme qualquer, e sim um grande filme, o melhor que o dinheiro pode comprar. E é com esse objetivo que ele contrata a premiada Lola Cuevas (Penélope Cruz) para dirigir a adaptação de um célebre romance que tem todos os ingredientes para transformar-se em sucesso. Dona de uma personalidade bastante excêntrica, Lola embarca no projeto com a condição de contar, no elenco, com dois dos maiores atores do país: o prestigiado Iván Torres (Oscar Martínez) e o popular Félix Rivero (Antonio Banderas). O que nem Humberto nem os tarimbados atores poderiam imaginar é que os métodos de Lola para atingir a perfeição fogem muito do convencional - e transformam os ensaios em um inferno, fazendo emergir ressentimentos, inseguranças e sentimentos pouco nobres de todos os envolvidos no processo.

Dirigido pelos argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, "Concorrência oficial" é um deleite para os fãs de cinema em geral e artistas em particular: ao mergulhar em um universo repleto de egos inflados e talentos superestimados, a dupla de cineastas e roteiristas brinca com o próprio métier sem nunca perder, apesar do tom de deboche, o respeito pelo cinema e seus realizadores. Ao retratar diretores egóicos, atores autocentrados e produtores sem o menor tino artístico, a trama surpreende o espectador com uma narrativa imprevisível e personagens repletos de camadas, reveladas aos poucos, conforme suas barreiras vão sendo demolidas a ferro, fogo e dinâmicas bizarras criadas por Lola - interpretada com perceptível prazer por Penélipe Cruz, uma das produtoras executivas do filme, ao lado de seus colegas de elenco. Com um visual exuberante que lembra seus melhores momentos com o espanhol Pedro Almodóvar - nitidamente uma influência na paleta de cores vivas e na excentricidade dos personagens -, Cruz deita e rola com diálogos saborosos, repletos de absurdos e referências à cultura pop. De maneira inteligente, os diretores conseguem até mesmo uma auto-citação: o romance adaptado por Cuevas, "Rivalidade", é de autoria de Daniel Mantovani, personagem do filme anterior dos realizadores, "Um cidadão ilustre", vivido pelo mesmo Oscar Martínez que interpreta aqui o celebrado Iván Torres.


 

Iván Torres é um ator de métodos clássicos, do tipo que cria um passado para os personagens que irá interpretar e mergulha profundamente em sua criação. A forma como lida com seu ofício bate de frente com a quase irresponsabilidade de Féliz Rivero, seu colega e rival, que leva a profissão bem menos a sério - e, paradoxalmente, é bem mais popular entre o público. O confronto entre dois estilos de atuação é a faísca procurada por Lola, que os escolhe justamente por sua radical diferença, que ela julga apropriada para a história de dois irmãos rivais. Enquanto ensaia cada linha de diálogo do roteiro - para enfado de ambos, cada um por uma razão diferente - e cria dinâmicas quase humilhantes para arrancar deles interpretações viscerais (a ponto de fazê-los ler o roteiro sob uma rocha que pesa toneladas e pode vir a desabar a qualquer momento), a polêmica diretora não percebe que, em determinado momento, torna-se também vítima de suas técnicas quando passa a questionar o que é verdade ou não na relação entre seus astros - o que pode até acarretar uma tragédia inesperada.

É difícil saber o que é mais precioso em "Concorrência oficial". Do roteiro, original e mordaz, à escalação do elenco, absolutamente certeira, tudo no filme de Cohn e Duprat funciona às mil maravilhas. O estranhamento do primeiro ato - quando Lola Cuevas inicia seu processo criativo - dá lugar, gradativamente, a uma trama recheada de ironias, brilhantemente abraçadas por seus atores, todos em estado de graça. Equilibrando-se entre o humor mais fino e o suspense por vezes inesperado, o filme transita com facilidade por diversos gêneros, extraindo o melhor de cada um deles para oferecer à plateia um banquete cuidadosamente preparado. Criticando o culto à celebridade ao mesmo tempo em que não perdoa o exagerado pedantismo de certa parcela da elite artística, a produção faz rir e pensar na mesma intensidade - é um programa inteligente e leve, que mostra, mais uma vez, a inegável qualidade do cinema argentino contemporâneo.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...