A GAROTA DINAMARQUESA (The Danish girl, 2015, Working Title Films/Focus Features, 119min) Direção: Tom Hooper. Roteiro: Lucinda Coxon, livro de David Ebershoff. Fotografia: Danny Cohen. Montagem: Melanie Ann Oliver. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Paco Delgado. Direção de arte/cenários: Eve Stewart/Michael Standish, Thierry Van Cappelen. Produção executiva: Liza Chasin, Ulf Israel, Kathy Morgan, Linda Reisman. Produção: Tim Bevan, Anne Harrison, Tom Hooper, Gail Mutrux. Elenco: Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Ben Whishaw, Mathias Schonaerts, Amber Head. Estreia: 05/9/15 (Festival de Veneza)
4 indicações ao Oscar: Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino, Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Oscar de Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander)
Praticamente um século antes que discussões a respeito de gênero se tornassem corriqueiras - e que a palavra "transsexual" passasse a fazer parte do vocabulário comum, um artista de Copenhague ousou desafiar as regras e buscar sua realização pessoal mesmo diante de uma sociedade para quem qualquer diferença era o mesmo que um crime. Mesmo não tendo sido a primeira pessoa transgênero da história - e tampouco a primeira a passar por uma cirurgia -, Einar Wegener foi um dos pioneiros na questão e inspirou o livro "The danish girl", de David Ebershoff, que contou, de forma ficcionalizada, sua trajetória rumo à transformação física. Ao alterar elementos cruciais da vida de sua protagonista, o autor contou com mais liberdade criativa - e foi seu livro, mais do que a história real, a inspiração para "A garota dinamarquesa", sua adaptação para o cinema, comandada por Tom Hooper - o mesmo cineasta injustamente premiado com o Oscar por "O discurso do rei" (2010) e que assassinou a versão musical de "Os miseráveis" (2012), que premiou Anne Hathaway como a melhor atriz coadjuvante do ano. Seu terceiro filme, porém, para alívio de todos, é bem superior a suas duas obras anteriores - e, em uma prova de que nem sempre a Academia é coerente, seu filme com menos indicações à estatueta dourada: concorreu a quatro, inclusive melhor ator (Eddie Redmayne), mas ficou de fora da lista dos candidatos a melhor filme.
A batalha para transformar "A garota dinamarquesa" em filme começou quando Nicole Kidman, uma atriz de grande prestígio e já bastante respeitada pela crítica e pela indústria, se apaixonou pelo roteiro. Disposta a produzir, estrelar e até dirigir o filme caso fosse necessário, Kidman pensava em viver a protagonista, com alguma outra grande estrela no papel de Gerda, a esposa de Einar - que, na versão romantizada da história, ficava a seu lado incondicionalmente. Durante o tempo em que o projeto esteve nas mãos de Kidman, atrizes de primeira linha se revezavam ao lado da estrela de "Moulin Rouge: o amor em vermelho" (2001): Charlize Theron, Gwyneth Paltrow, Uma Thurman, Marion Cottilard e Rachel Weisz estiveram, em maior ou menor grau, comprometidas com a produção. As dificuldades, no entanto, fizeram com que Kidman abrisse mão de seus planos, e o roteiro, que Hooper já havia lido em 2008, finalmente encontrou um caminho para as telas quando, em 2012, o cineasta ofereceu o papel principal para Eddie Redmayne, com quem trabalhava em "Os miseráveis". Redmayne, subitamente alçado à condição de astro graças a seu Oscar de melhor ator por seu desempenho como o físico Stephen Hawking em "A teoria de tudo" (2014), assumiu a protagonização do filme ao lado da ascendente Alicia Vikander. Juntos, eles são o corpo e a alma de "A garota dinamarquesa", dois atores cujo trabalho deixam os pequenos defeitos ainda menores.
A trama de "A garota dinamarquesa" se passa na década de 1920 e começa em Copenhagen, onde vive o casal de artistas Einar e Gerda Weigener. Buscando reconhecimento a seu trabalho, frequentam o mundo artístico da cidade enquanto lidam com a frustração de não conseguirem ter um filho. Einar ainda tem um certo sucesso entre os críticos, e, na tentativa de ajudar a esposa com seus retratos, aceita substituir sua modelo e posar para uma tela. Vestido de mulher, o jovem sente que seu espírito é, na verdade, feminino. Assumindo uma nova personalidade chamada Lili, ele conta com o apoio de Gerda para fazer a transição de gênero e buscar auxílio médico para tal, mesmo que tal condição ainda fosse nova até mesmo para a medicina - que em muitos casos julga tratar-se de um problema psicológico. Nessa trajetória, o casal se muda para a França e conta também com a ajuda de Hans (Mathias Schonaerts), amigo de infância de Einar, e Henrik (Ben Whishaw), que sente uma grande atração por Lili. Parte do universo artístico da Dinamarca, Einar/Lili e Gerda ousam desafiar a sociedade e lutar por sua verdade.
O roteiro de Lucinda Coxon - assim como o livro no qual foi inspirado - alterou substancialmente a verdadeira história de Einar e Gerda, ocultando principalmente a homossexualidade de Gerda, que, segundo consta, preferia o lado feminino do marido e que, depois da anulação do casamento, afastou-se dele e passou a viver em Paris, assumindo sua condição de lésbica. O romance - e consequentemente o roteiro - também inventou os personagens Hans e Henrik, assim como simplificou o tratamento físico de Einar, cujo destino no filme é ligeiramente diferente da história original. Tais liberdades artísticas não prejudicam o resultado final - exceto, é claro, se o espectador esperar uma cinebiografia convencional. Tom Hooper - que deixou para trás outros cineastas de renome, como Neil Labute e Lasse Halstrom - acerta em deixar o trabalho mais árduo para seus atores, e possibilita tanto a Redmayne quanto Vikander (premiada com o Oscar de atriz coadjuvante ainda que seja tão protagonista quanto seu parceiro de cena) apresentarem interpretações sutis e emocionantes. Logicamente houve polêmica na escolha de Redmayne, um ator cisgênero, para o papel central, mas a equipe de produção, como uma espécie de redenção, contou, segundo Hooper, com 40 transgêneros, a maioria como extras. Mas, controvérsias à parte, "A garota dinamarquesa" é um filme que homenageia seu protagonista e sua batalha com um olhar sensível e sério, sem apelar para qualquer tipo de humor ou julgamento. Redmayne está perfeito - ainda melhor do que em "A teoria de tudo" - e Alicia Vikander justifica sua estatueta com uma atuação profundamente comovente. A direção de Hooper não atrapalha - como o fez em seus primeiros filmes - e a reconstituição de época é preciosa, refletindo nos cenários e figurinos (também indicados ao Oscar) tanto o espírito dos personagens quanto seu universo artístico. "A garota dinamarquesa" é um filme importante e, a despeito de sua opção em seguir as regras de Hollywood e deixar a sexualidade de lado, uma produção bastante corajosa.
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