quarta-feira

O FESTIVAL DO AMOR


O FESTIVAL DO AMOR (Rifkin's Festival, 2020, Gravier Productions/Wildside/Orange, 88min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Vittorio Storaro. Montagem: Alisa Lepselter. Música: Stephane Wrembel. Figurino: Sonia Grande. Direção de arte/cenários: Alain Bainée/Mariona Ferrer. Produção executiva: Lorenzo Gargarossa, Mario Gianani, Lorenzo Mieli, Javier Méndez, Adam B. Stern. Produção: Erika Aronson, Letty Aronson, Jaume Rouers. Elenco: Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrell, Christoph Waltz, Sergi Lopez, Elena Anaya, Steve Guttenberg. Estreia: 18/9/2020 (Donostia-San Sebastian Film Festival)

Uma das críticas mais frequentes à obra cinematográfica de Woody Allen diz respeito à sua pretensa intelectualidade – uma falácia, como se percebe facilmente diante de alguns de seus melhores trabalhos, que vão da comédia rasgada de “Um assaltante bem trapalhão” (1969) ao drama nostálgico de “A era do rádio” (1987) – passando pelo suspense de “Match point: ponto final” (2005), a comédia romântica atípica de “Noivo neurótico, noiva nervosa” (1977) e o agridoce suspense de “Crimes e pecados” (1989). Seu novo filme, “O festival do amor”, dá munição bastante aos detratores que o acusam de autorreferente, mas, ao mesmo tempo, oferece aos fãs uma dose a mais do charme, da inteligência e do bom humor sofisticado que Allen já havia apresentado em “Meia-noite em Paris” (2011), seu último grande filme (premiado com o Oscar de roteiro original). Se em sua incursão pela capital francesa durante a década de 1920 – quando ela abrigava uma efervescência cultural das mais férteis do século XX – o diretor apresentava nomes como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Picasso, Cole Porter, Salvador Dalí e Gertrude Stein convivendo pacificamente com um escritor nascido quarenta anos mais tarde, dessa vez ele volta seus olhos ao cinema clássico europeu –berço de alguns de seus maiores ídolos.

Fã confesso de Ingmar Bergman e Federico Fellini, Woody Allen já havia feito citações a suas obras – de forma mais ou menos explícita. “Memórias” (1980) flertava com o estilo surreal do cineasta italiano e “Interiores” (1978) emulava claramente a filmografia do diretor sueco. Em “O festival do amor” a obsessão vai ainda mais longe – mas compartilhada com sua paixão por Godard, Truffaut, Orson Welles e Luís Buñuel. Pode soar hermético a um público menos afeito à nostalgia e a produções menos comerciais, mas é uma festa aos olhos e ao coração dos cinéfilos. Fotografado com excelência pelo veterano Vittorio Storaro – que aproveita cada cantinho dos deslumbrantes cenários naturais de San Sebástian para emoldurar uma história repleta das neuroses típicas do cineasta -, “O festival do amor” tem o cinema em seu cerne: a sétima arte não é apenas o ganha-pão de seus protagonistas, mas é também seu referencial, a régua pela qual suas próprias vidas são medidas. Mort Rifkin (Wallace Shawn finalmente assumindo um papel principal em uma produção do amigo Allen) é um professor de cinema, apaixonado por clássicos, que aceita acompanhar a esposa mais jovem, Sue (Gina Gershon), uma publicista, a um festival de cinema na Espanha, onde ela será responsável pela assessoria de imprensa de um novo talento do cinema francês, Philippe (Louis Garrell) – cujo próximo filme, segundo ele mesmo, terá a solução para a crise no Oriente Médio. Enquanto Sue não abandona seu cliente – para ciúme de Rifkin -, ele se vê irremediavelmente atraído pela bela Jo (Elena Anaya), a médica que lhe atende em uma emergência.


Algumas situações da trama lembram outros trabalhos de Allen – incluindo aí a eterna paixão de um homem mais velho por uma mulher mais nova, situação dramática que tantos problemas causou ao cineasta em sua vida pessoal – e Rifkin apresenta muitas das características dos personagens criados pelo diretor ao longo de sua carreira. Longe de ser um problema, tal opção permite ao roteiro levar seu protagonista a devaneios que passeiam por “Acossado” (1960), “Jules & Jim: uma mulher para dois” (1962), “Morangos silvestres” (1957), “8 ½” (1963), “Um homem, uma mulher” (1966), “Cidadão Kane” (1941), “O anjo exterminador” (1962), “Quando duas mulheres pecam” (1966) e “O sétimo selo” (1957) – uma sequência genial com a participação especialíssima de Christoph Waltz. E se Mort Rifkin é um personagem típico da filmografia de seu criador, o desempenho de Wallace Shawn é exemplar: sem tentar ser maior que o filme em si, o ator serve como um mestre de cerimônias ao “festival” de citações cinematográficas, se apropriando com segurança de diálogos ferinos (“Francamente, eu preferiria não morrer por motivo nenhum. Nem por doença, nem por velhice e nem engasgado com um bagel....”) e fugindo da imitação óbvia de Allen (o que, de certa forma, atrapalhou Kenneth Branagh em “Celebridades”, de 1999). Seu interesse romântico, a espanhola Elena Anaya (de “A pele que habito”) já não tem muito a fazer senão enfeitar a tela – enquanto Gina Gershon e Louis Garrel parecem se divertir a cada cena.

E se a sétima arte é a razão de ser de “O festival do amor”, um dos maiores prazeres em se assistí-lo é tentar reconhecer suas referências e relembrar grandes momentos do cinema europeu – uma viagem simpática que demonstra claramente que, a despeito de suas dificuldades recentes em conseguir financiamento e distribuição nos EUA, Woody Allen ainda tem muito a oferecer a seus fãs – e àqueles que não abrem mão de inteligência quando procuram por uma boa diversão.

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