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quinta-feira

PERDER A RAZÃO

PERDER A RAZÃO (À perdre la raison, 2012, Versus Production/Samsa Film, 111min) Direção: Joachim Lafosse. Roteiro: Matthieu Reynaert, Thomas Bidegain, Joachim Fosse. Fotografia: Jean-François Hensgens. Montagem: Sophie Vercruysse. Figurino: Magdalena Labuz. Direção de arte/cenários: Anna Falguères/Hind Ghazali. Produção: Jacques-Henri Bronckart, Olivier Bronckart. Elenco: Émilie Dequenne, Niels Arestrup, Tahar Rahim, Stéphane Bissot, Redouane Behache. Estreia: 22/5/12 (Festival de Cannes)

O teatro grego, com suas tragédias de alcance universal, ainda servem de base para emocionar e chocar plateias do século XXI, sempre dispostas de verem retratadas nas telas as ampliações de seus dramas e angústias. Com essa ideia na cabeça - fomentada por um caso real ocorrido na Bélgica no ano de 2007 - o jovem (36 anos à época das filmagens) Joachim Fosse construiu, com "Perder a razão" um dos mais potentes dramas de 2012, que foi indicado por seu país a concorrer a uma vaga entre os finalistas para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Não conseguiu atingir o objetivo de disputar a estatueta dourada, mas de forma alguma isso é um demérito ou diminui o impacto e o poder de seu quinto longa-metragem - entre seus trabalhos encontra-se o elogiado "Propriedade privada", estrelado por Isabelle Huppert em 2006. Realizado com uma paixão que salta da tela, "Perder a razão" é daqueles filmes de permanecer na memória do espectador por um bom tempo após o final da sessão. Culpa do roteiro conciso, da direção sóbria e do elenco espetacular que reúne, depois do vencedor "O profeta", de Jacques Audiard, os excelentes Tahar Rahim e Niels Arestrup.

A crítica sócio-política não é o tema central do filme, mas tem importância fundamental na trama, que contrapõe com inteligência o drama pessoal de seus protagonistas à incômoda situação dos imigrantes muçulmanos na Bélgica. É essa tensão latente que empurra seus personagens ao abismo do qual poucos tem força suficiente para sair: o jovem Mounir (Tahar Rahim, em um desempenho discreto mas muito eficiente) foi adotado pelo respeitado médico André Pingent (Niels Arestrup mais uma vez explorando com intensidade sua persona imponente e maquiavélica), que lhe deu oportunidade de trabalho e uma vida relativamente confortável na Bélgica da mesma forma que fez isso com sua irmã mais velha, com quem casou-se apenas no papel para lhe garantir um green card. A gratidão de Mounir em relação ao altruísta Pingent estende-se também ao carinho que ele demonstra pelo resto de sua família, que ainda tenta entrar no país de forma legítima. A relação entre eles, afetuosa e de extremo respeito, sofre um abalo, porém, quando Mounir se apaixona e se casa com a bela Murielle (Émilie Dequenne, genial).


A princípio, nada muda quanto à rotina do jovem, que convence a esposa a morar junto com ele e o experiente doutor em sua espaçosa casa. Porém, conforme a família vai aumentando de forma acelerada, o desejo de Murielle em ter um lar apenas para o marido e as filhas vai se tornando motivo frequente para discussões e conflitos. Sentindo que Pingent exerce um domínio mais que normal sob o marido, ela passa a questionar sua lealdade e inicia um longo processo em relação à depressão e à angústia. Vista de fora, sua família é um exemplo de felicidade e paz - uma falácia percebida apenas de leve pela sogra distante - mas em casa, quando sozinha, a bela e jovem mãe não consegue encontrar uma saída para sua angústia, a quem revela apenas superficialmente à sua médica (que, tristemente, também é ligada ao pai adotivo de seu marido). Sua incapacidade de encontrar uma solução para seu dilema acaba levando-a, então, a uma decisão radical.

Mesmo que a primeira cena dê uma pista do cruel desfecho bolado pelo roteiro - do qual o diretor é também um dos autores - o ideal é que não se tente adivinhá-lo, para que a sensação de desamparo e choque seja mais eficiente. Conduzindo sua trama com sutileza e sensibilidade únicas até o final devastador, Joachim Fosse se mostra um cineasta de olhar atento às dores do ser humano, evitando sempre que possível carregar nas tintas de seus personagens, por mais que eles permitam tal atitude. A dubiedade de André Pingent (manipulada por maestria por Niels Arestrup), a passividade de Mounir (enfatizada pela serenidade constante de Tahar Rahim em cena) e o desespero de Murielle (sublinhado por uma sequência arrepiante de uma crise de choro no carro) vão sendo mostrados aos poucos, como ingredientes que são percebidos somente quando se experimenta o prato pronto. "Perder a razão" é definitivamente triste. Mas é também um filme dos mais interessantes a surgir no cinema europeu de sua época e que revela um diretor muito promissor. Que venham os próximos, monsieur Fosse.

sábado

CAVALO DE GUERRA

CAVALO DE GUERRA (War horse, 2011, DreamWorks SKG/Reliance Entertainment, 146min) Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Lee Hall, Richard Curtis, romance de Michael Morpurgo, peça teatral de Nick Stafford. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michael Kahn. Música: John Williams. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Rick Carter/Lee Sandales. Produção executiva: Revel Guest, Frank Marshall. Produção: Kathleen Kennedy, Steven Spielberg. Elenco: Jeremy Irvine, Emily Watson, Peter Mullan, Niels Arestrup, David Thewlis, Tom Hiddleston, Benedict Cumberbatch, David Kross, Celine Buckens, Eddie Marsan. Estreia: 04/12/11

6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Fotografia, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som, Mixagem de Som

Se existe uma qualidade que não pode ser negada ao cineasta Steven Spielberg – dentre dezenas de outras óbvias para qualquer um que tenha acompanhado sua vasta e vitoriosa carreira dentro da indústria hollywoodiana – é sua capacidade de utilizar a linguagem clássica do cinema de massa (consagrada desde tempos imemoriais e frequentemente descartada pelas novas gerações como obsoleta e cafona) para, vez ou outra, pegar todo mundo de surpresa com um filme, que nadando contra a corrente dos efeitos visuais milionários e protagonistas com poderes sobre-humanos, fala direto ao coração utilizando-se apenas de uma boa história e seu talento irrepreensível de narrador. É o que ele faz com “Cavalo de guerra”, um épico à moda antiga, tanto em valores morais e éticos – retidão, honestidade, amor puro e ingênuo entre homem e animal - quanto no visual arrebatador – repleto de crepúsculos deslumbrantes e de cores vibrantes como o mais autêntico faroeste em Technicolor. Indicado a seis Oscar (incluindo Melhor Filme) no ano em que a Academia lançou um carinhoso olhar para o passado da sétima arte (com obras como “O artista”, que homenageava os filmes mudos, e “A invenção de Hugo Cabret”, que tinha o pioneiro Georges Mèlies como personagem), a adaptação do romance de Michael Morpurgo – posteriormente transformada em peça de teatro pelas mãos de Nick Stafford – serviu como material ideal para que Spielberg brincasse de John Ford. Poucas vezes em sua carreira ele foi tão feliz em transportar para as telas um sentimento de nostalgia.
Uma nostalgia lacrimosa, por certo, quase sentimentaloide em alguns momentos (uma característica inarredável do estilo spielberguiano de fazer cinema), mas ainda assim brilhantemente executada e capaz de emocionar, sem muito esforço, a plateias que há muito tempo substituíram a compaixão pela apatia. É preciso embarcar no mundo proposto pelo cineasta sem a bagagem pesada do individualismo e do cinismo que vem caracterizando a humanidade desde as últimas décadas do século XX. Para melhor compreender as entranhas da narrativa do diretor – linear, simples, a um passo do maniqueísmo que o aproxima com tanta facilidade do coração do espectador – é imprescindível que, junto com a disponibilidade de tempo (como todo épico o filme é bastante longo, com duas horas e meia de duração), haja a disposição de abandonar a realidade dura e fria: em “Cavalo de guerra” o mundo é visto através dos olhos de um contador de histórias cujo otimismo é ainda maior que sua conta bancária e sua estante de prêmios e nem mesmo a crueldade inerente ao tema à primeira vista sangrento é capaz de fazer frente à poesia impressa em cada fragmento de celuloide.
 “Cavalo de guerra” começa em Devon, uma pequena cidade rural da Inglaterra, onde vive a família Narracot, que mantém, a muito custo, uma pequena propriedade agrária sempre em vias de passar às mãos de seu impiedoso senhorio (David Thewliss). É nesse cenário – bucólico, de vastas pradarias fotografadas com um colorido quase irreal pelo brilhante Janusz Kaminski – que nasce o protagonista do filme, o potro puro-sangue Joey, que, a despeito de suas patentes dificuldades de ser utilizado como animal de fazenda, torna-se a obsessão do filho único do fazendeiro, o jovem Albert (Jeremy Irvine), que faz dele seu melhor amigo. Sem a pressa habitual do cinema comercial americano, Spielberg leva quarenta minutos para estabelecer a relação de lealdade e paixão entre Albie e Joey, que sofre um abalo inesperado com a entrada da Inglaterra na I Guerra Mundial. Impossibilitado pela pouca idade de juntar-se às tropas do país, a Albert não resta alternativa senão deixar que seu companheiro seja incorporado ao Exército – com a promessa do compreensivo Comandante (Tom Hiddleston) de que será tratado com todo o respeito possível.

Acaba, então, o primeiro ato do filme, e junto com ele, desaparece da narrativa os tons róseos e leves de seu começo – em que Spielberg encontra espaço até mesmo para uma breve sequência de humor desnecessária mas fiel a seu estilo “família”. A guerra surge em cena, mas, coerente, o cineasta não faz dela um espetáculo de vísceras, suor e lágrimas, como em seu fabuloso “O resgate do soldado Ryan”. Mais sugerindo do que mostrando, a câmera de Spielberg conduz o espectador pelo conflito sem exigir dele o mergulho incondicional e quase desagradável de seu filme de guerra mais famoso. A primeira batalha de Joey não tem um resultado dos mais felizes, mas o público fica ciente disso sem que seja preciso sair respingado de sangue. E é partir daí que entra em cena outro personagem crucial na trajetória do herói equino: o jovem soldado alemão Gunter Schroeder (David Kross, o jovem amante de Kate Winslet em “O leitor”), que, para proteger o irmão caçula conforme prometido ao pai, deserta da guerra apenas para encontrar um final trágico e deixar Joey no caminho da frágil Emilie Bonnart (Celine Buckens), uma órfã que vê no belo animal uma forma de felicidade que ela desconhece desde sempre.
A entrada de Joey na vida de Emilie acontece em uma sequência de puro lirismo e inventividade: é através dos olhos do cavalo que primeiro a plateia tem contato com a menina, que vive em uma pequena fazenda com o avô (Niels Arestrup), que vive do comércio de geleias. Portadora de uma doença que a impede de viver uma infância comum, Emilie se apega a Joey com a paixão de que somente as crianças são capazes, mas mais uma vez a face negra da guerra não permite o final feliz. O cavalo é reivindicado pelo exército alemão e novamente o público é conduzido ao campo de batalha – onde Joey, dotado de um heroísmo que falta a muitos humanos à sua volta, se mostrará indispensável. E, ao mesmo tempo em que a plateia se encanta com as belas sequências em que Joey consegue fugir da morte certa e torna-se objeto de disputa entre um soldado inglês e um alemão – que deixam de lado a inimizade bélica para soltá-lo do arame farpado onde prendeu-se em sua fuga – seu verdadeiro dono está mais perto dele do que ambos poderiam esperar: já mais velho, Albie está no front, e tem ainda viva a esperança de encontrar seu mais querido amigo.
Tudo é grandiloquente e poderoso em “Cavalo de guerra”: a fotografia de Kaminski se intercala entre um colorido de ferir os olhos e que homenageia os crepúsculos de filmes como “...E o vento levou” e um tom sóbrio e cinzento que retrata as batalhas com o teor apropriado de dor e pessimismo. A trilha sonora de John Williams igualmente brinca entre o grandioso e o minimalista (com uma preferência óbvia para o gigantesco). Ambos foram indicados para o Oscar. Steven Spielberg sabe cercar-se de gente que entende sua visão de cinema como escapismo – da mesma forma que também o acompanham quando ele fala com mais seriedade e angústia. Em “Cavalo de guerra” ele atinge o ápice de seu estilo sentimental/familiar/heroico. Os detratores podem encontrar nele inúmeras razões para críticas a respeito de seu estilo adocicado – que nem mesmo em “A lista de Schindler”, com toda a sua crueza, ficou de fora. Da mesma forma, os entusiastas não terão dificuldades em ver em sua obra tudo aquilo que fez de Hollywood a fábrica de sonhos que tanto ofereceu ao cinema mundial. É um tanto piegas? Sim, sem dúvida. É talvez ingênuo demais? Certamente. Mas é, também, um filme tecnicamente impecável, que carrega a nobreza de sentimentos em cada cena. De vez em quando todo mundo precisa de uma boa dose de poesia e sensibilidade.

quarta-feira

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA (Le escaphandre et le papillon, 2007, Pathé Renn Productions, 112min) Direção: Julian Schnabel. Roteiro: Ronald Harwood, livro de Jean-Dominique Bauby. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Juliette Welfling. Música: Paul Cantelon. Figurino: Olivier Bériot. Direção de arte/cenários: Michel Eric, Laurent Ott. Produção executiva: Pierre Grunstein, Jim Lemley. Produção: Kathleen Kennedy, Jon Kilik. Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie Josée Croze, Anne Consigny, Niels Arestrup, Jean-Pierre Cassell, Max Von Sydow. Estreia: 22/5/07 (Festival de Cannes)

4 indicações ao Oscar: Diretor (Julian Schnabel), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem

É de se imaginar a reação do executivo do estúdio (no caso, o Pathé, de Paris) ao ser informado do projeto de "O escafandro e a borboleta": a história de um homem vítima de um derrame que, incapaz de mover um único membro do corpo exceto o olho esquerdo, revê sua vida e seus relacionamentos enquanto escreve suas memórias através de uma técnica nova, desenvolvida por sua fonoaudióloga. O roteiro, baseado no livro autobiográfico do personagem central, previa ainda que os quarenta minutos iniciais do filme fossem totalmente através do seu ponto de vista (ou seja, sem que ele interagisse ativamente com os demais personagens) e o diretor escolhido para o projeto, Julian Schnabel - que havia sido elogiado pela cinebiografia do escritor cubano Reinaldo Arenas, "Antes de anoitecer" - não estava interessado em astros de Hollywood para liderar o elenco, ainda que Johnny Depp e Gary Oldman tivessem sido cogitados para tal. Não é de admirar, portanto que, devido a tais particularidades, a adaptação de Ronald Harwood do livro de Jean-Dominique Bauby corresse o sério risco de manter-se na lista dos "melhores roteiros não filmados" da história. Mas Schnabel pode ser acusado de tudo, menos de desapaixonado: nascido no Brooklyn, aprendeu francês e convenceu o estúdio a mudar o idioma original do script para a língua original do protagonista - que ficou nas mãos do excelente mas pouco "comercial" Mathieu Amalric. Resultado: críticas unanimemente elogiosas e quatro importantes (e merecidíssimas) indicações ao Oscar: diretor, roteiro, fotografia e edição.

Realmente, a experiência de assistir a "O escafandro e a borboleta" não é das mais fáceis, uma vez que a obra de Schnabel foge do habitual festival de clichês que inunda os filmes do gênero e exige do espectador um mergulho sem reservas no universo restrito do protagonista. No entanto, sua inteligência e sensibilidade, somados à criatividade em transformar palavras e sentimentos abstratos em imagens de extrema poesia, fazem com que, ao final da sessão, o público sinta-se banhado de uma beleza de que somente o cinema europeu - livre das amarras financeiras da indústria hollywoodiana - é capaz. Anos-luz distante dos dramalhões sobre doenças e superação, a história de Bauby - editor da revista Elle francesa - é sobretudo coberta de humanidade, ao eleger como protagonista um homem comum, com defeitos reais e qualidades verossímeis, que tem sua existência transformada radicalmente de uma hora para outra e se vê obrigado a encarar pensamentos dos quais fugiu a vida inteira. Com a ajuda da atuação brilhante de Mathieu Amalric - que não precisa nem mesmo falar pela maior parte do filme - essa viagem por sua consciência é pontuada por cenas de uma poesia melancólica e nostálgica, valorizadas pela fotografia do oscarizado Janusz Kaminski ("A lista de Schindler" e "O resgate do soldado Ryan"), que consegue revestir a claustrofobia inerente à situação da trama com um verniz de delicadeza e uma atmosfera de sonho.


Já começando o roteiro com a internação de Bauby - sem deixar tempo para o espectador acostumar-se com a nova situação, assim como ele - "O escafandro e a borboleta" o acompanha pelo calvário de exames, visitas, especulações e procedimentos hospitalares tendo apenas seus pensamentos e memórias como vínculos com seu cotidiano pré-derrame. Sofrendo de uma condição chamada "Síndrome de Encarceramento" - consequência de um AVC que o deixou em coma por várias semanas - Bauby tem plena consciência do que se passa à sua volta, mas é incapaz de mover qualquer parte do corpo, com exceção do olho esquerdo, com o qual consegue enxergar as pessoas que passam a fazer parte de sua rotina, como a fonoaudióloga Henriette (Marie Josée-Croze) - que irá ajudar-lhe em sua comunicação com o mundo e até escrever um livro - e sua ex-mulher, Céline (Emmanuelle Seigner, sra. Roman Polanski), que releva a separação dolorosa para manter-se a seu lado com os três filhos pequenos. Além disso, Bauby repassa em sua mente também a relação carinhosa que mantém com o pai (Max Von Sydow).

Equilibrando com maestria cenas tocantes e diálogos inteligentes com sequências feéricas que exploram o turbilhão sensorial de seu protagonista sem nunca cair no sentimentalismo - com direito até a um inesperado senso de humor em determinados momentos - "O escafandro e a borboleta" é uma soma de qualidades que faz dele um filme imperdível e inesquecível. Além da fotografia inspirada de Kaminski e do roteiro perfeito em sua mistura entre drama, poesia e delicadeza narrativa, a direção de Schnabel (merecidamente indicado ao Oscar por seu trabalho) consegue ultrapassar os limites de um gênero ingrato e elevar seu filme a uma pequena obra-prima.

O PROFETA


O PROFETA (Un prophète, 2009, Why Not Productions, 155min) Direção: Jacques Audiard. Roteiro: Thomas Bidegain, Jacques Audiard, roteiro original de Abdel Raouf Dafri, Nicolas Peufaillit. Fotografia: Stéphane Fontaine. Montagem: Juliette Wellfling. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Virginie Montel. Direção de arte/cenários: Michel Barthélémy/Boris Piot. Produção: Lauranne Bourrachot, Martine Cassinelli, Pascal Caucheteux, Marco Cherqui. Elenco: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif, Reda Kateb. Estreia: 16/5/09 (Festival de Cannes)


Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2009

A expressão "obra-prima" não costuma ser muito usada quando se refere ao cinema dos últimos anos, onde a criatividade e a ousadia parecem ingredientes cada vez mais raros. Sintomaticamente, são produções off-Hollywood - ou que pelo menos fogem do padrão idiotizado que o cinema americano vem adotando como regra há um bom tempo - que vem merecendo com mais entusiasmo o cobiçado adjetivo. Uma dessas pérolas é "O profeta", filme que representou a França na luta pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2010, ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e faturou nada menos que 9 Cesar (o Oscar francês), além de ter concorrido em outras 4 categorias. Poucas vezes o cinema recente foi capaz de mostrar um filme tão consistente e surpreendente quanto ele, que, a despeito de suas duas horas e meia mantém o interesse da plateia aceso do seu início avassalador até seu final sutil e extremamente inteligente.

O claustrofóbico roteiro co-escrito pelo diretor Jacques Audiard se passa em sua maioria esmagadora dentro de um presidío francês, onde vai parar o jovem Malik El Djebena (Tahar Rahim). Com 19 anos e semi-analfabeto, o rapaz é condenado a seis anos de prisão por agredir um policial. Dentro da cadeia, ele não tarda a perceber que as coisas são bastante parecidas com o que acontece nos reformatórios onde passou boa parte da vida. Procurado pelo italiano Cesar Luciani (Neils Arestrup), ele se vê obrigado a assassinar um desafeto do poderoso manda-chuva do presídio, para assim ficar sob sua proteção. No entanto, devido a sua origem árabe, nunca é visto como mais que um empregadinho, que realiza as tarefas mais insignificantes do grupo de carcamanos. Tudo começa a mudar quando, ao perceber a solidão de Luciani, ele espertamente passa a ser seu braço-direito, utilizando inclusive seu direito à saídas do aprisionamento para resolver os problemas do chefe. Aos poucos, depois de estudar e observar o que acontece à sua volta, Malik começa a fazer suas próprias jogadas, ambicionando um poder que a vida honesta não é capaz de proporcionar-lhe.


O que mais surpreende em "O profeta" é sua total falta de medo em ser violento e amoral. Mesmo sabendo que Malik não é um homem honesto - pelo menos na concepção mais convencional do termo - é impossível à plateia deixar de torcer por ele, talvez porque de certa forma ele é uma espécie de vira-lata, um Davi tentando se impor contra um Golias truculento e impiedoso (que tanto pode ser o italiano quanto a própria sociedade preconceituosa e racista que ele conhece). Há pelo menos duas sequências impressionantes de uma violência quase inacreditável para aqueles acostumados com a sanguinolência de papel que Hollywood oferece a cada semana: o primeiro assassinato cometido por Malik com uma gilete e a quase chacina - perto do final - onde tiros são realmente ouvidos e sentidos como tiros por uma audiência boquiaberta e silenciosa. É mérito do diretor, inclusive, fazer com que Malik não se torne uma máquina assassina fria e sem compaixão no decorrer do filme. Mesmo com toda a violência que o cerca, ele sabe ser carinhoso, leal e amoroso, além de nunca deixar pra trás a lembrança traumática de seu primeiro homicídio.

Mas a genialidade do roteiro, da direção e da edição primorosa seriam inúteis sem a atuação do protagonista Tahar Rahim. Em uma interpretação desconcertante, ele consegue transmitir toda a vasta gama de emoções de sua complexa personagem com uma segurança admirável, dizendo com o olhar muito mais do que dezenas de Bens Afflecks tentam dizer com horas de discursos verborrágicos. Sem medo de entregar-se a cenas angustiantes e chocantes, ele mostra que seu Cesar de melhor ator não foi absolutamente imerecido. Um filme imperdível!

MUNIQUE


MUNIQUE (Munich, 2005, DreamWorks SKG/Universal Pictures/Amblin Entertainment, 164min) Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Tony Kushner, Eric Roth, livro "Vengeance: the true story of an israeli counter-terrorist team", de George Jonas. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michael Kahn. Música: John Williams. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Rick Carter/John Bush. Produção: Kathleen Kennedy, Barry Mendel, Steven Spielberg, Colin Wilson. Elenco: Eric Bana, Geoffrey Rush, Daniel Craig, Matthieu Kassovitz, Ciaran Hinds, Lynn Cohen, Hanns Zischler, Michael Lonsdale, Mathieuu Almaric, Moritz Bleibetreu, Mathieu Amalric, Niels Arestrup. Estreia: 23/12/05

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Steven Spielberg), Roteiro Adaptado, Montagem, Trilha Sonora Original

Ninguém tem dúvidas de que quando quer Steven Spielberg sabe muito bem como falar sério. Foi assim que ele conquistou seus dois Oscar de melhor diretor, por "A lista de Schindler" (93) e "O resgate do soldado Ryan" (98). E, não fosse Ang Lee e seu belo "O segredo de Brokeback Mountain" talvez o diretor mais bem-sucedido da história tivesse embolsado uma terceira estatueta por aquele que é seu filme  mais polêmico e provavelmente o mais desprovido de sentimentalismos: "Munique", a recriação de uma das vinganças mais chocantes da história política contemporânea. Ao recriar o triste episódio que foi consequência do famigerado "setembro negro", Spielberg deixou de lado a parcialidade e entregou um suspense aterrador, capaz de deixar a plateia roendo as unhas de tensão. E o melhor ainda: conseguiu equilibrar tudo com um roteiro coeso e espaço para discussões e dramas pessoais do protagonista, vivido com garra e emoção pelo ótimo Eric Bana.

Bana - coadjuvante que roubou a cena em "Tróia" e "Falcão negro em perigo" - foi a escolha perfeita de Spielberg para ser o protagonista de "Munique". Na pele de Avner, o jovem recrutado pela primeira-ministra Golda Meir (Lynn Cohen, a Magda da série de TV "Sex and the city" em caracterização excepcional), o ator transmite em igual intensidade medo, raiva, angústia, solidão e desespero, jamais permitindo que sua personagem caia na superficialidade. Ao focar sua trama não apenas nos violentos atos de vingança do governo israelense contra os responsáveis pelo massacre dos atletas judeus nas Olimpíadas de Munique em 1972 mas também nos conflitos éticos e religiosos de seu protagonista, o diretor atinge um ponto alto em sua carreira - que infelizmente não encontrou seu público.



Realizado em tempo recorde e sem maiores alardes, "Munique" se apresenta como um estupendo thriller político, magistralmente fotografado e editado e dono de um roteiro espetacular, baseado no livro do jornalista George Jonas. Ao contrário do que fez em "A lista de Schindler" - onde revestiu a violência com a poética fotografia em preto-e-branco de Janusz Kaminski - e em "O resgate do soldado Ryan" - onde a fotografia granulada jogava o espectador no meio da guerra - Spielberg não teve medo de explicitar a violência em "Munique". Mesmo que sejam visualmente deslumbrantes, as cenas de assassinato do filme são de uma crueza e de uma força jamais vista na obra do cineasta, que não hesita em mostrar a violêmcia como ela é, em especial nas sequências que descrevem as mortes dos atletas - espalhadas pelo filme como uma lembrança do ponto de partida da trama.

Mas se a chacina das Olimpíadas é o empurrão para a trama - afinal é ela que precisa ser vingada por Avner e seus companheiros de missão - não o é para os conflitos que são discutidos veemente durante a projeção. Em um ato de coragem e inteligência, Spielberg não toma partido - como nas ocasiões anteriores - e deixa que suas personagens e seus atos falem por si. É exemplar, por exemplo, a cena em que inimigos se encontram em uma casa abandonada e discutem sobre a situação política e religiosa de seus países: ninguém está certo, ninguém está errado, e o diretor conduz a sequência com uma neutralidade impressionante para quem assinou clássicos da manipulação sentimental como "A cor púrpura" e "Império do sol" (grandes filmes, sem dúvida, mas desprovidos de imparcialidade emocional).

"Munique" é, talvez, o grande filme de Steven Spielberg. Forte, contundente, chocante e tecnicamente perfeito - além de possibilitar grandes voos de interpretação de seu protagonista e de coadjuvantes de peso como Geoffrey Rush, Daniel Craig e Mathieu Kassovitz - é também um de seus mais subestimados trabalhos. Azar de quem perdeu um dos grandes suspenses políticos de todos os tempos.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...