TERRA ESTRANGEIRA (Terra estrangeira, 1996, Videofilmes, 100min) Direção: Walter Salles, Daniela Thomas. Roteiro: Marcos Bernstein, Millôr Fernandes, Walter Salles, Daniela Thomas. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Felipe Lacerda, Walter Salles. Música: José Miguel Wisnik. Figurino: Cristina Camargo. Direção de arte: Daniela Thomas. Produção: Antonio da Cunha Telles, Flávio R. Tambellini. Elenco: Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Alexandre Borges, Luis Mello, Laura Cardoso, Tcheky Karyo. Estreia: 05/9/96
Um bom par de anos antes de consagrar-se com o emocionante "Central do Brasil", o cineasta Walter Salles já havia mostrado aos fãs de bom cinema que não era um principiante sortudo. Apesar de seu filme de estreia, "A grande arte", baseado em um romance de Rubem Fonseca não ter sido tão bom quanto poderia, seu segundo trabalho superou toda e qualquer expectativa. "Terra estrangeira" é o primeiro filme da chamada "retomada do cinema nacional" que merece o adjetivo de filmaço! Forte, tocante e tecnicamente impecável, o filme co-dirigido por Daniela Thomas é um filme com cara de europeu, mas com uma preocupação temática absolutamente brasileira - ou, melhor ainda... universal.
Utilizando uma trama policial como pano de fundo para uma história de solidão e inadequação geográfica e cultural, "Terra estrangeira" se passa em 1990, quando o pacote econômico da então ministra Zélia Cardoso de Mello pegou milhares de brasileiros de surpresa ao confiscar suas cadernetas de poupança. Uma das vítimas fatais do plano é Maria Eizaguirre (Laura Cardoso) que morre de um enfarte logo após ouvir a notícia. Sua morte desespera seu filho único, o jovem Paco (Fernando Alves Pinto), um rapaz perdido que, com a morte da mãe, fica ainda mais desnorteado. Sem absolutamente rumo nenhum na vida, ele recebe uma proposta aparentemente irrecusável do misterioso Igor (Luis Mello), que lhe oferece dinheiro - e a possibilidade de conhecer a terra de sua mãe - para que ele passe com um violino para Lisboa. O que Paco nem sequer desconfia é que dentro do violino está uma pequena fortuna em diamantes. Quando chega em Portugal, Paco descobre que o receptador da mercadoria, Miguel (Alexandre Borges) foi assassinado e, com a ajuda hesitante da namorada dele, a também brasileira Alex (Fernanda Torres), tenta resolver a situação da melhor maneira, se envolvendo com um perigoso time de contrabandistas internacionais.
Fotografado por Walter Carvalho em um deslumbrante preto-e-branco, "Terra estrangeira" é uma obra-prima visual. Cada plano milimetricamente estudado pelos cineastas tem uma função específica dentro da história e enche os olhos com paisagens absurdas e enquadramentos geniais. Cada sequência parece uma pintura, mas ao contrário de muitos filmes que se dedicam ao visual e esquecem da história, aqui nada é por acaso, com a intenção única de seduzir o espectador pelo sentido da visão. A trama criada pelos roteiristas - cujo time inclui até mesmo o genial Millôr Fernandes - é digna dos melhores policiais americanos, ainda que seu ritmo e sua cadência lembrem bem mais o cinema europeu, por sua naturalidade e poesia mesmo nos momentos mais violentos. Não é um típico noir americano - ainda que muitas de suas cenas sejam envoltas em brumas - nem tampouco um chato exercício de estilo à la Wim Wenders. É um filme com identidade própia, que credenciou Salles como um dos mais promissores cineastas brasileiros da década de 90, uma promessa que se cumpriu com louvor. Além de ser um esteta acima de qualquer crítica, Salles é também um excelente e cuidadoso diretor de atores, como a indicação ao Oscar de Fernanda Montenegro por "Central do Brasil" comprovou.
Em "Terra estrangeira" é Fernandinha Torres quem lidera um elenco impecável. Na pele da desesperançada Alex, Fernanda tem uma atuação visceral, tensa e angustiada que desmente a teoria de que é uma atriz puramente cômica. Seu olhar triste encontra uma espécie de espelho às avessas em Fernando Alves Pinto - filho do escritor Ziraldo - que encarna um Paco juvenil e que, mesmo em uma passagem dramática de sua vida, ainda parece querer entender e conquistar o mundo. Atuando ao lado de veteranos como Laura Cardoso e Luis Mello - além de uma participação especial de Tcheky Karyo - o casal de protagonistas encanta pela naturalidade com que enfrenta os obstáculos que não param de surgir à sua frente. Mas nem a fotografia espetacular, nem a trilha delicada de José Miguel Wisnik e nem mesmo as atuações brilhantes fazem frente ao melhor que "Terra estrangeira" tem a oferecer: seu tema subjacente.
Realizado em uma época em que sair do Brasil parecia ser a solução mais eficaz para deixar para trás todos os problemas, "Terra estrangeira" retrata, em seu roteiro, uma faixa da população que até então não havia sido sequer percebida pela nossa filmografia. Alex e Miguel são brasileiros que vivem na Europa em busca de uma vida melhor, mesmo sentindo-se deslocados, sofrendo preconceitos e sendo totalmente infelizes. Paco sai de São Paulo em direção à San Sebastian de sua mãe tentando encontrar uma saída para sua vida apática. A Lisboa de "Terra estrangeira" pode ser lindamente fotografada, mas é um caldeirão de culturas díspares que, ao contrário de Nova York, não é exatamente hospitaleiro a forasteiros. Como diz auma de suas personagens, Lisboa é o lugar ideal para perder alguém ou perder-se de si mesmo.
É emblemática a mais famosa cena do filme, com Alex e Paco abraçados frente a um navio encalhado. Assim como o barco, eles estão presos a uma constante busca pelo lugar a que pertencem, sem jamais parecer pertencer a qualquer parte do mundo. Não é à toa que Alex, em determinado momento, diz nem ao mesmo saber onde é sua casa... Ao voltar seus olhos à essa geração perdida, desolada e sem destino, Salles criou uma pérola do cinema brazuca que merece ser conhecida ou reencontrada. E nem mesmo seu final em aberto consegue estragar a sensação de absoluto deleite que é assistir a "Terra estrangeira".
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
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2 comentários:
Concordo em tudo: "é um filme com cara de europeu, mas com uma preocupação temática absolutamente brasileira", perfeito.
Além disso, a ótima fotografia é realmente deslumbrante.
Filme mágico.
Olha Clênio, fiquei tão interessado neste que até pulei partes do texto. Só de saber que é nacional e é bom, já me deixou muuuuuuuito curioso! Vou procurá-lo ainda hoje. Me deseje sorte! rs
[]s
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