O MENSAGEIRO DO DIABO (The night of the hunter, 1955, Paul Gregory
Productions, 92min) Direção: Charles Laughton. Roteiro: James Agee,
romance de Davis Grubb. Fotografia: Stanley Cortez. Montagem: Robert
Golden. Música: Walter Schumann. Direção de arte/cenários: Hilyard
Brown/Al Spencer. Produção: Paul Gregory. Elenco: Robert Mitchum,
Shelley Winters, Lilian Gish, James Gleason, Evelyn Varden, Peter
Graves. Estreia: 26/7/55
O ator Charles Laughton qualquer fã de cinema de verdade conhece. Astro de
produções clássicas como “Testemunha de acusação” (57) e “O corcunda de Notre
Dame” (36), ele ganhou o Oscar por seu desempenho em “Os amores de Henrique
VIII” (32) e foi um dos mais respeitados intérpretes dos palcos britânicos. O
cineasta Charles Laughton, no entanto, não é tão conhecido pelo grande público,
e por um motivo muito simples: seu primeiro e único filme como diretor, “O
mensageiro do diabo”, lançado em 1955, foi um grande fracasso de crítica e
bilheteria, interrompendo uma segunda carreira que, a julgar por sua estreia,
tinha tudo para ser tão brilhante quanto a primeira. Visualmente ousado e
tematicamente à frente do seu tempo, “O mensageiro do diabo” é um intrigante
estudo sobre o bem e o mal, além de explorar corajosamente a sexualidade
feminina e a hipocrisia religiosa – tudo envolto em um inusitado tom de conto
de fadas e uma fotografia expressionista criada por Stanley Cortez que valoriza
cada cena com sua atmosfera sombria e mórbida.
Localizada temporalmente durante a Grande Depressão Americana, “O mensageiro
do diabo” tem como protagonista o amoral, hipócrita e ambicioso Harry Powell
(Robert Mitchum em atuação poderosa e hipnotizante), que se faz passar por
reverendo para conquistar a simpatia e a confiança da jovem viúva Willa Harper
(Shelley Winters) e seus dois filhos pequenos, John (Billy Chapin) e Pearl
(Sally Jane Bruce). Religiosa e solitária, Willa é incentivada por toda a
pequena cidade onde mora a casar-se com Powell, que demonstra desde sua chegada
um caráter irrepreensível e uma simpatia à toda prova por seus filhos. O que
Willa nem de longe desconfia é que o alvo de seu pretendente é o dinheiro
roubado por seu falecido marido, Ben (Peter Graves) – companheiro de cela do
assaltante, Powell sabe a respeito do produto do crime, mas precisa ganhar a
confiança da família para botar as mãos na grana. Só quem sabe onde está o
relativo prêmio são as duas crianças – a quem o sinistro novo membro da família
passa a dedicar toda a sua atenção.
Conhecido e louvado diretor de teatro, Laughton levou para os sets de
filmagens toda a sua dedicação extrema a cada aspecto do projeto, desde sua
concepção geral até cada detalhe nos cenários e nas atuações de seu elenco – o que
foi, em diversos momentos, algo bastante atribulado. Não exatamente fã de
crianças, o veterano ator frequentemente perdia a paciência com seus atores
mirins (a pequena Sally Jane Bruce, por exemplo, teve seu choro desolado depois
de uma bronca do diretor filmado e inserido no filme), cabendo à Robert
Mitchum, bem mais afável, a direção dos pequenos. Isso de forma alguma diminui
a importância do trabalho de Laughton, principalmente quando se testemunha no
Reverendo Harry Powell a melhor interpretação da carreira de Mitchum – e isso
que ele chegou a trabalhar em alguns momentos sob o efeito de álcool e nem foi
a primeira escolha para o papel.
Interessadíssimo no papel que poderia dar um novo gás à sua carreira,
Mitchum teve de esperar a recusa de Gary Cooper – primeira opção de Laughton
para viver o maléfico protagonista – e, posteriormente, de John Carradine e
Laurence Olivier, ambos cotados pelos produtores. Finalmente com a chance em
suas mãos, o ator a agarrou com unhas e dentes, explorando cada nuance de seu diabólico
personagem com a avidez de um iniciante. Dono dos melhores diálogos do filme –
e um impressionante dueto cantado com a veterana Lillian Gish, tirada da
semi-aposentadoria pela insistência do cineasta – Mitchum engole cada cena em
que aparece, com um visual impressionante e uma composição minuciosa de corpo,
voz e uma vasta gama de nuances. Seja na cena em que ilustra o duelo entre o
bem e o mal com uma queda de braço consigo mesmo – ele traz tatuadas nos nós
dos dedos as palavras amor e ódio – ou quando engrena uma corte
repleta de cinismo com a ingênua Willa, o ator ilustra com exatidão todo o universo
dicotômico da trama, com suas dualidades explicitadas a cada momento, seja nos
diálogos brilhantes ou nas sequências aterrorizantes em que a fotografia de
Stanley Cortez (responsável também pelo clássico “Soberba”, dirigido por Orson
Welles em 1942) acompanha os personagens por cenários dignos de pesadelos.
Realizando com maestria a transição entre seu trabalho como diretor teatral
para cineasta – equilibrando com toques de gênio a força das palavras e o poder
da imagem – Charles Laughton tinha tudo para tornar-se um dos maiores autores
do cinema americano. Com sua ajuda, o crítico James Agee conseguiu resumir seu
longo roteiro de 293 páginas em um bem mais palatável produto comercial, infelizmente
não reconhecido pelo público – e nem pela crítica, surpreendentemente – à época
de sua estreia. O britânico pode até ter afirmado que o fim precoce de sua
carreira de cineasta tinha mais a ver com sua intimidade maior com o palco do
que com as câmeras, mas é inegável que o fracasso de bilheteria de “O
mensageiro do diabo” colaborou (e muito) para sua decisão lamentável de ser o
diretor de um único filme. Sorte dos cinéfilos que esse único filme é um excepcional
exemplar do melhor que pode ser feito em Hollywood – mesmo que de forma
independente.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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