CÁSSIA (Cássia, 2014, Midgal Filmes,120min) Direção e roteiro: Paulo Henrique Fontenelle. Fotografia: Vinícius Brum. Montagem: Paulo Henrique Fontenelle. Música: Cássia Eller. Produção executiva: Alex Sander Silva. Produção: Iafa Britz. Estreia: 19/10/14
A morte da cantora Cássia Eller, no finalzinho de 2001, no auge do sucesso e da popularidade, pegou o Brasil inteiro de surpresa - um choque quase tão brutal quanto o falecimento de Elis Regina, em janeiro de 1982. A comparação não é gratuita: em ambos os casos houve a interrupção de uma carreira brilhante com muito ainda a oferecer, elogios unânimes de crítica e público e o desrespeito por parte da imprensa, que irresponsável e covardemente, buscou no sensacionalismo de uma tragédia o alimento para intermináveis boatos a respeito de suas causas. Sem querer aprofundar-se na morbidez da mídia em relação ao caso e sim celebrar a vida de Eller e seu imenso talento em encantar, transgredir e impressionar positivamente todos que porventura cruzassem seu caminho, o cineasta Paulo Henrique Fontenelle presenteou o público com o documentário "Cássia", um trabalho fascinante, emocionante e verdadeiro sobre uma das artistas mais irreverentes e surpreendentes da música popular brasileira de todos os tempos.
Seguindo uma narrativa cronológica que ajuda a situar a carreira da cantora àqueles que a conheciam apenas por seus trabalhos mais famosos - a saber, os álbuns "Com você... meu mundo ficaria completo" (em que flertava descaradamente com a MPB, em conflito com a alma roqueira dos primeiros discos) e "Acústico MTV" (sua consagração absoluta ao misturar Piaf, Chico Buarque, Nando Reis, Gilberto Gil e Mutantes) - o filme de Fontenelle começa mostrando os primeiros passos de Eller na música, ainda em Brasília, e acompanha, através de depoimentos de amigos, colegas, jornalistas e dela própria (através de imagens de arquivo e de cartas lidas em off pela atriz Malu Mader) sua trajetória rumo ao sucesso profissional. De aparência agressiva e vozeirão potente, Cássia primeiro conquistou um público mais afeito a seu jeito transgressor, assumidamente apaixonado pela forma com que ela mostrava no palco uma personalidade radicalmente distante de sua timidez quase patológica, rompida apenas pela intimidade de seus leais amigos. Aos poucos, foi sofisticando o repertório, variando os estilos musicais a que punha a voz e quando se deu conta já era matéria de revistas e jornais, que invariavelmente a chamavam de uma das maiores revelações da música nacional. Daí para a consagração definitiva foi um pulo. E junto com o sucesso em proporções jamais imaginadas, aquele velho e conhecido problema: a roda-viva da fama.
A leveza com que Cássia levava sua carreira transformou-se, da noite para o dia, em um peso que ela percebeu não ter forças para carregar. Ao mesmo tempo em que era amada desesperadamente pelos fãs - os antigos, os novos e os ocasionais - e vivia uma fase de plena felicidade ao lado da companheira Maria Eugênia e do filho Francisco, a cantora entrava em um esquema pesadíssimo de trabalho, uma rotina que ela tentava quebrar fazendo shows às escondidas em cidades do interior (para desespero de seu empresário). Como acontece com frequência no mundo musical - histórias como as de Kurt Cobain e Amy Winehouse (coincidentemente também tema de documentários feitos à mesma época) - o mundo de Eller, já completo, não soube lidar com a pressão da fama em escala tão gigantesca. E o desfecho que todo mundo acha que conhece é finalmente revelado por pessoas que realmente testemunharam o fim desde o seu princípio. E é aí que reside a maior força do documentário de Fontenelle: dar voz a quem tem algo a dizer e não a quem especula ou quer vender revistas. Pela primeira (e definitiva) vez a história verdadeira sobre o que aconteceu nos últimos dias de Cássia é contada - e, para alívio geral, a narração foge do sensacionalismo barato e do sentimentalismo fácil. É jornalismo puro. Do mais sincero.
Os minutos derradeiros de "Cássia" merecem um capítulo à parte. O documentário mostra a luta de Maria Eugênia pela guarda de Francisco - reivindicada pelo pai da cantora, com quem ela nem mantinha a melhor das relações. Por pura e simples ganância, o avô do menino buscava uma forma de usufruir de seu patrimônio e enfrentou uma batalha judicial contra a companheira de Cássia, que tinha a seu lado a opinião pública, os amigos da artista e o próprio menino - além do desejo expresso de Eller para que sua família se mantivesse unida caso algo lhe acontecesse (um pressentimento funesto, infelizmente tornado realidade). Fontenelle mostra com clareza a forma com que, mesmo sem querer, uma das cantoras mais insubordinadas a surgir no Brasil conseguiu furar o bloqueio do conservadorismo ao abrir um precedente legal para adoção de crianças por pais (e mães) homossexuais. Mais um tapa de sinceridade e espontaneidade na cara de um país que ainda não a mostrava totalmente e foi obrigado a aplaudir uma mulher sem papas na língua, que adorava subir ao palco e desafiar o status quo, que não tinha medo de expor sua alma e seu coração quando cantava e que principalmente uniu vários tipos de público ao misturar samba, rock, mpb, hip hop, Beatles, Nirvana e Zé Ramalho em um mesmo irresistível balaio musical.
"Cássia" é uma belíssima homenagem à sua musa. Sóbrio, respeitoso, honesto e generoso ao mostrar ao grande público a mulher delicada, terna e suave que existia debaixo de uma armadura de irreverência e deboche. Mas é, acima de tudo, um presente inestimável a todos aqueles que ainda se deixam levar por sua inconfundível voz sempre que ela surge, potente e imprevisível. Para ver, rever sempre e, mais do que tudo, ouvir com muita saudade.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
terça-feira
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Um comentário:
Nunca gostei da Cassia Eler.
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