Quando se fala em ficção científica,
imediatamente o que se imagina são naves espaciais infestadas de alienígenas
malvados, efeitos visuais de última geração, orçamentos generosos à disposição
de diretores megalomaníacos e tramas que misturam, sem muito critério,
sociedades distópicas com complexas viagens no tempo – impedindo assim, com sua
ação incessante, que o público perceba a vastidão de furos em seus roteiros.
Mas é justamente o caminho oposto o seguido por Mark Romanek em “Não me
abandone jamais”: baseado em um romance de Kazuo Ishiguro (o mesmo de
“Vestígios do dia”, adaptado por James Ivory e estrelado por Anthony Hopkins e
Emma Thompson), o filme de Romanek é uma inusitada história de amor que
utiliza, com delicadeza e criatividade, elementos básicos de dois gêneros
aparentemente antagônicos que se unem harmonicamente em um interessante e
inteligente híbrido.
O roteiro de Alex Garland – escritor
e autor de “A praia”, que também virou filme, com Leonardo DiCaprio e que em
2015 estrearia como cineasta com o elogiado “Ex-machina”, que lhe rendeu uma
indicação ao Oscar – mantém o tom melancólico e quase desconfortável do livro
(em que os detalhes da trama são revelados ao leitor com uma parcimônia que
beira o minimalismo). Oferecendo pistas sobre o destino de seus protagonistas
apenas conforme a história vai avançando, a obra de Romanek - que tem apenas um
filme anterior no currículo, o suspense “Marcas de uma obsessão” (01), com
Robin Williams – envolve a plateia com um equilíbrio sutil de amor, angústia,
conformismo e, por último, mas não menos importante, uma calada esperança que
vai se tornando, a cada cena, o único pilar no qual se pode escorar como forma
de evitar o desespero total. Amparado ainda nas atuações brilhantes de Carey
Mulligan e Andrew Garfield em sua fase pré-Homem-Aranha, “Não me abandone
jamais” é um avassalador estudo sobre a alma humana e sua constante sensação de
finitude.
Contrariando as regras da ficção
científica de situar a trama em um futuro qualquer, a história de “Não me
abandone jamais” tem lugar no passado. Mais precisamente começa em 1978, quando
o público conhece seu trio de protagonistas, crianças que moram em uma escola
especial do interior da Inglaterra. A introvertida Kathy (Isobel Meikle-Small,
excelente), a esperta Ruth (Ella Purnell) e o inconstante Tommy (Charlie Rowe)
são apenas três alunos comuns do lugar, cujo conjunto de regras inclui um
cuidado excessivo com a saúde, criação de obras de arte que podem ou não serem
exibidas em uma nunca vista Galeria, brechós onde se compram objetos usados (e
muitas vezes deteriorados) e muitos segredos, mantidos sob o olhar rígido da
diretora, Sra. Emily (Charlotte Rampling). O que os estudantes não sabem – e
nem o público, até que isso seja revelado pela nova e sensível tutora da quinta
série, Sra. Lucy (Sally Hawkings) – é que eles na verdade são clones, criados
unica e exclusivamente para, quando chegar a hora certa, servirem de doadores
de órgãos a pessoas com condições financeiras de pagar por eles. Para a
romântica Kathy, o choque de tal revelação só não é maior do que o início de um
inesperado romance juvenil entre Ruth e Tommy – por quem ela é apaixonada
secretamente.
O segundo ato do filme começa
quando, já aos 18 anos, o trio de protagonistas abandona Hilsham e vai morar em
um lugar conhecido como Os Chalés. Pela primeira vez na vida eles tem contato
com pessoas de fora de sua escola – e portanto, conhecedoras de fatos da vida
que eles ignoram completamente. É com um misto de fascinação e inferioridade
que Kathy (já interpretada por Carey Mulligan), Tommy (Andrew Garfield) e Ruth
(Keira Knightley) tentam acomodar-se em um novo estilo de vida, que inclui
programas de televisão, lanchonetes e revistas eróticas. Com a sexualidade
despertada, Tommy e Ruth mantém o romance iniciado ainda na infância, para
angústia da centrada Kathy. É nesse período também que eles iniciam – de uma
forma tímida - a busca pelas pessoas que lhes deram suas características (as
chamadas originais) e ficam sabendo de um boato que pode lhes adiar o início
das doações de órgãos – ou, em outras palavras, o início de sua morte. Dois
amigos, esperançosos, lhes informam que, segundo histórias ouvidas, quando um
casal se prova apaixonado, lhes é dado um prazo maior para viverem seu amor sem
a interferência nefasta de um iminente fim. Tal possibilidade não altera a rotina
de Kathy, que, sofrendo de amor, decide afastar-se dos amigos tornando-se
“cuidadora” – ou seja, acompanhante dos pacientes em vias de doar seus órgãos.
Quase dez anos depois, já
estabelecida como uma competente cuidadora, Kathy irá reencontrar seus dois
amigos de infância – não mais juntos, Tommy e Ruth já passaram por várias
cirurgias e finalmente Kathy tem a chance de declarar seu amor ao rapaz e
tentar, desesperadamente, que eles possam ter a grande chance de ter as últimas
doações adiadas para que finalmente possam viver seu amor. E é nesse ato final
que “Não me abandone jamais” consegue, de forma sutil e delicada, unir um
romance de extrema melancolia a um drama avassalador, passando pelos domínios
da ficção científica sem prender-se a eles em excesso. A bela trilha sonora de
Rachel Portman pontua com sensibilidade a trajetória dos personagens rumo a seu
destino inevitável e a fotografia acinzentada de Adam Kimmel transmite com
precisão o clima de desesperança que perpassa toda a trama criada por Ishiguro.
Quando o quadro inteiro está diante do espectador – montado com todas as peças
que foram entregues durante a narrativa – é difícil resistir à tristeza de uma
história que discute, sem parecer pedante ou filosófica, temas pungentes como
os efeitos da clonagem humana e suas questões éticas e humanistas. Ajuda essa
discussão o fato de Romanek ser um diretor sem vícios estilísticos ou
pretensões artísticas que poderiam deformar a simplicidade da trama e roubar
dela sua essência nitidamente romântica.
E romantismo é o que não falta a
“Não me abandone jamais”, especialmente quando o roteiro sai de suas polêmicas
científicas para concentrar-se na sensibilidade de seus protagonistas,
especialmente Kathy e Tommy – Ruth acaba se tornando uma coadjuvante no
decorrer da trama, parte porque sua personagem serve como uma espécie de
obstáculo ao amor puro entre os outros dois jovens, parte porque sua
intérprete, Keira Knightley, mais uma vez demonstra uma intensa fragilidade
dramática, usando e abusando de caras e bocas que contrastam violentamente com
a economia dramática de seus colegas de cena. Carey Mulligan, uma das grandes
atrizes surgidas a partir de 2009 – quando foi indicada ao Oscar por “Educação”
– conquista a simpatia e a solidariedade da plateia sem precisar apelar para
muito mais do que seu carisma delicado e suave e Andrew Garfield surpreende ao
criar um Tommy quase passivo em sua tranquilidade conformada que extravasa em
crises de gritos e agressão toda a impotência de uma vida implacavelmente
criada com o objetivo de ser-lhe tirada no auge da saúde. O que pode parecer
estranho ao espectador – a forma acomodada com que os personagens assumem seu
destino – é explicada através de Mulligan e Garfield, dois jovens atores que
filtram, em seus olhares e expressões delicadas, os tormentos de almas que
sabem de sua missão na Terra e preferem cumprir seu destino a lutar contra ele.
É triste, é melancólico e é quase depressivo. Mas, sob o comando de Mark
Romanek e das palavras de Kasuo Ishiguro e traduzidas por uma bela fotografia e
uma sublime trilha sonora, é também um dos melhores filmes de 2010,
injustamente esquecido pelas cerimônias de premiação que encheram de homenagens
o insosso e clichê “O discurso do rei”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário