6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Fotografia, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som, Mixagem de Som
Se existe uma qualidade que não pode
ser negada ao cineasta Steven Spielberg – dentre dezenas de outras óbvias para
qualquer um que tenha acompanhado sua vasta e vitoriosa carreira dentro da
indústria hollywoodiana – é sua capacidade de utilizar a linguagem clássica do
cinema de massa (consagrada desde tempos imemoriais e frequentemente descartada
pelas novas gerações como obsoleta e cafona) para, vez ou outra, pegar todo
mundo de surpresa com um filme, que nadando contra a corrente dos efeitos
visuais milionários e protagonistas com poderes sobre-humanos, fala direto ao
coração utilizando-se apenas de uma boa história e seu talento irrepreensível
de narrador. É o que ele faz com “Cavalo de guerra”, um épico à moda antiga,
tanto em valores morais e éticos – retidão, honestidade, amor puro e ingênuo entre
homem e animal - quanto no visual arrebatador – repleto de crepúsculos
deslumbrantes e de cores vibrantes como o mais autêntico faroeste em
Technicolor. Indicado a seis Oscar (incluindo Melhor Filme) no ano em que a
Academia lançou um carinhoso olhar para o passado da sétima arte (com obras
como “O artista”, que homenageava os filmes mudos, e “A invenção de Hugo
Cabret”, que tinha o pioneiro Georges Mèlies como personagem), a adaptação do
romance de Michael Morpurgo – posteriormente transformada em peça de teatro
pelas mãos de Nick Stafford – serviu como material ideal para que Spielberg
brincasse de John Ford. Poucas vezes em sua carreira ele foi tão feliz em
transportar para as telas um sentimento de nostalgia.
Uma nostalgia lacrimosa, por certo,
quase sentimentaloide em alguns momentos (uma característica inarredável do
estilo spielberguiano de fazer cinema), mas ainda assim brilhantemente
executada e capaz de emocionar, sem muito esforço, a plateias que há muito
tempo substituíram a compaixão pela apatia. É preciso embarcar no mundo
proposto pelo cineasta sem a bagagem pesada do individualismo e do cinismo que
vem caracterizando a humanidade desde as últimas décadas do século XX. Para
melhor compreender as entranhas da narrativa do diretor – linear, simples, a um
passo do maniqueísmo que o aproxima com tanta facilidade do coração do
espectador – é imprescindível que, junto com a disponibilidade de tempo (como
todo épico o filme é bastante longo, com duas horas e meia de duração), haja a
disposição de abandonar a realidade dura e fria: em “Cavalo de guerra” o mundo
é visto através dos olhos de um contador de histórias cujo otimismo é ainda
maior que sua conta bancária e sua estante de prêmios e nem mesmo a crueldade
inerente ao tema à primeira vista sangrento é capaz de fazer frente à poesia
impressa em cada fragmento de celuloide.
“Cavalo de guerra” começa em Devon,
uma pequena cidade rural da Inglaterra, onde vive a família Narracot, que
mantém, a muito custo, uma pequena propriedade agrária sempre em vias de passar
às mãos de seu impiedoso senhorio (David Thewliss). É nesse cenário – bucólico,
de vastas pradarias fotografadas com um colorido quase irreal pelo brilhante
Janusz Kaminski – que nasce o protagonista do filme, o potro puro-sangue Joey,
que, a despeito de suas patentes dificuldades de ser utilizado como animal de
fazenda, torna-se a obsessão do filho único do fazendeiro, o jovem Albert
(Jeremy Irvine), que faz dele seu melhor amigo. Sem a pressa habitual do cinema
comercial americano, Spielberg leva quarenta minutos para estabelecer a relação
de lealdade e paixão entre Albie e Joey, que sofre um abalo inesperado com a
entrada da Inglaterra na I Guerra Mundial. Impossibilitado pela pouca idade de
juntar-se às tropas do país, a Albert não resta alternativa senão deixar que
seu companheiro seja incorporado ao Exército – com a promessa do compreensivo
Comandante (Tom Hiddleston) de que será tratado com todo o respeito possível.
Acaba, então, o primeiro ato do
filme, e junto com ele, desaparece da narrativa os tons róseos e leves de seu
começo – em que Spielberg encontra espaço até mesmo para uma breve sequência de
humor desnecessária mas fiel a seu estilo “família”. A guerra surge em cena,
mas, coerente, o cineasta não faz dela um espetáculo de vísceras, suor e
lágrimas, como em seu fabuloso “O resgate do soldado Ryan”. Mais sugerindo do
que mostrando, a câmera de Spielberg conduz o espectador pelo conflito sem
exigir dele o mergulho incondicional e quase desagradável de seu filme de
guerra mais famoso. A primeira batalha de Joey não tem um resultado dos mais
felizes, mas o público fica ciente disso sem que seja preciso sair respingado
de sangue. E é partir daí que entra em cena outro personagem crucial na
trajetória do herói equino: o jovem soldado alemão Gunter Schroeder (David
Kross, o jovem amante de Kate Winslet em “O leitor”), que, para proteger o
irmão caçula conforme prometido ao pai, deserta da guerra apenas para encontrar
um final trágico e deixar Joey no caminho da frágil Emilie Bonnart (Celine
Buckens), uma órfã que vê no belo animal uma forma de felicidade que ela
desconhece desde sempre.
A entrada de Joey na vida de Emilie
acontece em uma sequência de puro lirismo e inventividade: é através dos olhos
do cavalo que primeiro a plateia tem contato com a menina, que vive em uma
pequena fazenda com o avô (Niels Arestrup), que vive do comércio de geleias.
Portadora de uma doença que a impede de viver uma infância comum, Emilie se
apega a Joey com a paixão de que somente as crianças são capazes, mas mais uma
vez a face negra da guerra não permite o final feliz. O cavalo é reivindicado
pelo exército alemão e novamente o público é conduzido ao campo de batalha –
onde Joey, dotado de um heroísmo que falta a muitos humanos à sua volta, se
mostrará indispensável. E, ao mesmo tempo em que a plateia se encanta com as
belas sequências em que Joey consegue fugir da morte certa e torna-se objeto de
disputa entre um soldado inglês e um alemão – que deixam de lado a inimizade
bélica para soltá-lo do arame farpado onde prendeu-se em sua fuga – seu
verdadeiro dono está mais perto dele do que ambos poderiam esperar: já mais
velho, Albie está no front, e tem ainda viva a esperança de encontrar seu mais
querido amigo.
Tudo é grandiloquente e poderoso em
“Cavalo de guerra”: a fotografia de Kaminski se intercala entre um colorido de
ferir os olhos e que homenageia os crepúsculos de filmes como “...E o vento
levou” e um tom sóbrio e cinzento que retrata as batalhas com o teor apropriado
de dor e pessimismo. A trilha sonora de John Williams igualmente brinca entre o
grandioso e o minimalista (com uma preferência óbvia para o gigantesco). Ambos
foram indicados para o Oscar. Steven Spielberg sabe cercar-se de gente que
entende sua visão de cinema como escapismo – da mesma forma que também o
acompanham quando ele fala com mais seriedade e angústia. Em “Cavalo de guerra”
ele atinge o ápice de seu estilo sentimental/familiar/heroico. Os detratores
podem encontrar nele inúmeras razões para críticas a respeito de seu estilo
adocicado – que nem mesmo em “A lista de Schindler”, com toda a sua crueza,
ficou de fora. Da mesma forma, os entusiastas não terão dificuldades em ver em
sua obra tudo aquilo que fez de Hollywood a fábrica de sonhos que tanto
ofereceu ao cinema mundial. É um tanto piegas? Sim, sem dúvida. É talvez
ingênuo demais? Certamente. Mas é, também, um filme tecnicamente impecável, que
carrega a nobreza de sentimentos em cada cena. De vez em quando todo mundo
precisa de uma boa dose de poesia e sensibilidade.
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