À PROVA DE MORTE (Grindhouse: Death proof, 2007, Dimension Films, 113min) Direção, roteiro e fotografia: Quentin Tarantino. Montagem: Sally Menke.Figurino: Nina Proctor. Direção de arte/cenários: Steve Joyner/Jeanette Scott. Produção executiva: Shannon McIntosh, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Elizabeth Avellán, Robert Rodriguez, Erica Steinberg, Quentin Tarantino. Elenco: Kurt Russell, Rosario Dawson, Zoe Bell, Rose McGowan, Quentin Tarantino, Eli Roth, Vanessa Ferlito. Estreia: 15/10/07
Boa parte das características que fizeram de Quentin Tarantino um dos
mais influentes cineastas de sua geração estão presentes em “À prova de morte”:
a ressurreição de um astro esquecido (aqui representado por Kurt Russell), os
longos diálogos recheados de referências à cultura pop, o fetiche declarado aos
pés femininos (sublinhados por inúmeros closes), a violência explícita e a
trilha sonora escolhida a dedo entre clássicos perdidos em algum lugar entre os
anos 60 e 80 são algumas delas. Por uma dessas razões insondáveis, porém, ao
contrário dos bem-sucedidos filmes anteriores do diretor, essa sua incursão
pelos filmes de ação não encontrou seu público à época de sua exibição nos
cinemas americanos – a ponto de sua estreia no Brasil ter acontecido com um
atraso de três anos. Tudo bem que o filme sofre de uma irregularidade por vezes
enfadonha (é, sem dúvida, o trabalho menos interessante de Tarantino), mas a
melhor explicação para seu naufrágio comercial na verdade atende pelo nome de
“Grindhouse”.
“Grindhouse” era um projeto um tanto ambicioso e um tanto arriscado de
Tarantino e de Robert Rodriguez, seu amigo de fé e irmão camarada. Os dois
cineastas – conhecidos pela criatividade, pelo talento e pela coragem de
encarar gêneros tidos como malditos pela indústria de Hollywood – queriam
lançar, no mesmo pacote, dois filmes de estética e temática B, nos moldes dos
programas duplos que faziam a glória dos cinemas-poeira americanos da década de
70, separados apenas por meia-dúzia de trailers fakes de filmes tão bregas quanto – por ironia, um desses trailers
lançou um insuspeito herói de ação chamado Machete. Rodriguez se encarregou de
um filme de terror protagonizado por zumbis asquerosos e violência de ketchup –
o ultra-divertido “Planeta Terror”, com Bruce Willis e Josh Brolin – e
Tarantino aproveitou a oportunidade para brincar de diretor de ação, inspirado
em clássicos onde automóveis eram mais importantes do que os atores. Seu “À
prova de morte” não pouparia sangue, corpos mutilados e atuações pra lá de
amadoras – exatamente como acontecia com suas fontes de inspiração. Acontece
que o filme estreou... e foi praticamente ignorado pelo mal-acostumado público
norte-americano. Tal destino, obviamente, influenciou em sua distribuição
mundial. No final das contas, os dois filmes estrearam no mercado externo como
produtos independentes – o que de certa forma são – e sem o charme extra do
clima decadente que cercava a ideia inicial. Sem essa referência quase imprescindível,
“À prova de morte” (mais ainda do que “Planeta Terror”) acaba por tornar-se
capenga, insuficiente por si próprio. Mas ainda assim – o que mostra que
Tarantino sempre tem cartas na manga – é um filme com grandes momentos de
tensão e é dirigido com uma inteligência visual admirável.
Autor de papéis femininos de extrema
força – vide A Noiva de “Kill Bill” e a protagonista de “Jackie Brown” –
Quentin Tarantino fez de seu “À prova de morte” um filme francamente feminista,
a despeito do que pode fazer pensar sua primeira metade, quando apresenta ao
público um grupo de amigas irritantemente autossuficientes que saem pela noite
de uma pequena cidade do Texas em busca de diversão antes de pegarem a estrada
rumo a um sítio afastado. Na liderança delas está a radialista Jungle Julia
(Sydney Poitier), que pretende encontrar, antes da viagem, o rapaz com quem
está vivendo (ao menos segundo o que ela acha) um romance. Como forma de
diversão, ela desafia sua amiga, ..., que não mora na cidade, a aceitar o desafio
proposto em seu programa de rádio – que oferece ao corajoso espécime masculino
que lhe pagar uma bebida e declamar-lhe o trecho de determinada poesia uma
dança erótica. Quem se aproxima e reivinidica o prêmio é o misterioso Stuntman
Mike (Kurt Russell, apavorante), um dublê de filmes de ação que dirige um
assustador carro negro com uma caveira desenhada no capô. Desafio aceito e
pago, é hora de todos irem embora. Mike oferece carona à ... (Rose McGowan,
também presente em “Planeta Terror”, como a protagonista que tem a perna
substituída por uma metralhadora) e todos partem em direção a seu destino.
Acontece que Mike não é tão gentil quanto sua oferta de carona pode aparentar,
e uma tragédia encerra a primeira metade do filme com uma cena de deixar qualquer
um de queixo caído – poucas vezes o cinema americano foi tão gráfico e
explícito em retratar um acidente automobilístico.
A segunda parte do filme começa mais de um ano depois dos acontecimentos da primeira. Na cidade de Líbano, no Mississipi, outro grupo de amigas – todas com profissões ligadas ao cinema – aproveitam o dia de folga para procurar, em uma cidade próxima, o proprietário de um carro raro, astro de uma conhecida produção de ação chamado “Corrida contra o destino”. A ideia é de uma dublê que chega da Austrália disposta a refazer, com sua leal amiga, uma cena clássica do filme. Ideia vendida, ideia realizada. Junto com a atriz e modelo Lee (Mary Elizabeth Winstead) e a maquiadora (Rosario Dawson), as duas amigas chegam até o cobiçado veículo e convencem o dono a deixá-las fazer um test-drive. E o que poderia ser um momento da mais pura diversão e adrenalina torna-se um pesadelo quando elas encontram no caminho o psicótico Stuntman Mike – que parece disposto a fazer com elas o mesmo que fez com outras mulheres anteriormente.
É quando começa o embate – violento, tenso, perigoso, angustiante e paradoxalmente empolgante – entre Mike e suas corajosas pretensas vítimas que “À prova de morte” faz esquecer seus longos tempos mortos. Os diálogos intermináveis e (dessa vez) nem sempre interessantes escritos por Tarantino são imediatamente deixados de lado quando sua câmera literalmente joga o espectador em uma perseguição alucinante pelas estradas do Mississipi, sem direito a pausas ou alívio cômico. É como se o diretor estivesse escondendo o jogo para finalmente, em seus vinte minutos finais, resolvesse pôr todas as suas cartas na mesa, ganhando o jogo de virada. Se até então o público já estava saturado das conversas inconsequentes de suas protagonistas – um grupo francamente desagradável e sem carisma – elas tornam-se, num piscar de olhos, as heroínas máximas do filme, desafiando apenas com a coragem uma ameaça das mais aterradoras, uma espécie de alma gêmea do caminhão de “Encurralado” (73, de Steven Spielberg). Brilhantemente editada, essa longa sequência é a salvação do filme, o que acorda o espectador que porventura estivesse bocejando diante dos intermináveis bate-papos de suas personagens.
Exagerando na conversa e
economizando na ação – ao menos até seu explosivo final – “À prova de morte”
parece, na verdade, um filme com sérios problemas de identidade. De um lado, a
tendência quase irrefreável do diretor em criar quilométricos diálogos – o que
funcionou muito bem em outras obras suas mas que aqui soa como uma forma de
preencher tempos mortos; de outro, a vontade de assinar um filme de extrema
violência psicológica e física sem apelar para tiroteios e afins (no que é
extremamente feliz, diga-se de passagem). De um lado, um filme abertamente
feminista no sentido de eleger mulheres como heroínas, mesmo que muitas vezes o
excesso de sensualização do roteiro soe como voyeurismo barato; do outro o
paradoxo de, mesmo com essa escolha de lado, fazer do vilão da história, um
homem, o absurdamente mau Stuntman Mike, o personagem mais interessante e
marcante da trama. Quentin Tarantino é um cineasta inteligente e sabe como
poucos lidar com a dualidade de personagens extremamente idiossincráticos e
pouco convencionais, mas aqui, talvez propositalmente, haja visto o conceito do
projeto, optou por deixar de lado qualquer aprofundamento psicológico. Mesmo
com toda a violência, seu filme é diversão pura e desvinculada de qualquer
seriedade e/ou compromissos com a verdade. Como parte de seu universo
particular – com sua estética frequentemente kitsch e de um sincretismo
cultural à toda prova – é uma obra que exige do espectador uma quase permissão
para fugir à realidade pura e simples. No mundo de Tarantino – e em especial em
“À prova de morte” – a sensualidade prescinde de corpos perfeitos ou cenários
glamourosos, o perigo está à espreita tanto em estacionamentos escuros quanto
em ensolaradas estradas paradisíacas e a virilidade ostensiva está sempre a um
passo de pedir misericórdia ao “sexo frágil”. Tarantino brinca com as
expectativas o tempo todo. Nem sempre acerta, mas quando o faz, atinge em cheio
o alvo.
No final das contas, “À prova de
morte” é um filme nitidamente irregular, que intercala momentos decididamente
chatos entre duas cenas de grande impacto visual e emocional. Mas ainda assim é
um trabalho de personalidade forte e inconfundível – Tarantino e seu cinema
altamente referencial é parte da cultura pop americana e mundial desde sua
estreia, com “Cães de aluguel”, de 1993. Uma pena que algumas das brincadeiras
do filme – como contar com alguns dos mesmos atores e personagens de outros
trabalhos seus e de Rodriguez, incluindo “Planeta Terror” – passe em brancas
nuvens para quem não teve a oportunidade de vê-los conforme o planejado. É,
apesar dos elogiados rasgados da prestigiada “Cahiérs du Cinéma”, que o
considerou como um dos melhores filmes do ano, o trabalho menos feliz de seu
realizador, que ainda assim saiu incólume do fracasso.
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