Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz Comédia/Musical (Amy Adams)
O diretor Tim Burton tem,
aparentemente, algumas obsessões que fazem de seu cinema algo único dentro de
uma indústria cada vez menos afeita a riscos financeiros desnecessários. Sua
filmografia, coerente e por vezes quase previsível, começou a conquistar fãs
com o humor negro de “Os fantasmas se divertem” (88) – a história de um casal
de ectoplasmas tentando livrar-se dos novos proprietários de sua casa
recém-comprada – e atingiu o ápice com a sua visão sombria pero no mucho do homem-morcego em “Batman” (89) e “Batman, o
retorno” (92). Depois disso, com o bolso cheio de dólares e a liberdade
artística que somente o dinheiro pode comprar em Hollywood, começou uma
carreira repleta de altos e baixos, onde sucessos de crítica ignorados pelo
público – “Ed Wood” (94) – e êxitos comerciais massacrados pela imprensa –
“Alice no País das Maravilhas” (10) – tinham em comum apenas sua predileção por
personagens exóticos e pelo visual criativo (além da participação frequente de
seus parceiros habituais Johnny Depp e Helena Bonham Carter). O fim do
casamento com Carter e o fracasso de seu “Sombras da noite” (12), porém, o
empurraram em direção a uma obra que, a rigor, difere muito de sua filmografia.
Baseado em fatos reais e isento dos excessos que frequentemente eclipsavam
outros aspectos de seus filmes, “Olhos grandes” é um Tim Burton quase atípico –
algo assim como o foram “História real” na carreira de David Lynch e “Kundun”
na trajetória de Martin Scorsese.
Dialogando muito mais com a
melancolia carinhosa de “Ed Wood” – sintomaticamente escrito pelos mesmos Larry
Alexander e Scott Karaszewski – do que com a histeria quase infantil de “A
fantástica fábrica de chocolates” (05), “Olhos grandes” revela em Burton um
cineasta plenamente capaz de extrair emoção e interesse de histórias comuns,
protagonizada por gente de carne e osso cujas preocupações não são evitar
invasões alienígenas – como no horroroso “Marte ataca” (96) – ou vingar-se
sanguinariamente dos algozes de seus familiares – caso de “Sweeney Todd: o
barbeiro demoníaco da Rua Fleet” (08) – mas simplesmente sobreviver em um mundo
tão glamouroso quanto cruel: o das artes plásticas. Visualmente o mais sutil de
seus filmes, “Olhos grandes” concentra sua atenção basicamente na história de
Margaret Keane, a autora de uma série de quadros que, sempre apresentando
crianças com olhos tristes e desproporcionalmente grandes, tornou-se coqueluche
nos EUA dos anos 60. Sem recorrer a fantásticas reconstituições de época e/ou
criar mundos imaginários – artifícios que fizeram com que “A lenda do Cavaleiro
Sem Cabeça”, “Sweeney Todd” e “Alice no País das Maravilhas” fossem premiados
com o Oscar de melhor direção de arte – Burton apresenta ao público um filme
simples e encantador.
Interpretada por uma sensacional Amy Adams – vencedora do Golden Globe e injustamente esnobada pela Academia – a protagonista Margaret é introduzida ao público em 1958, quando, demonstrando uma coragem admirável para a época, abandona o marido abusivo e parte com a filha pequena para São Francisco, disposta a ganhar a vida sem depender da bondade alheia. Ao salário ganho em uma fábrica de móveis ela tenta adicionar uma grana extra pintando retratos de eventuais clientes em uma feira de rua – já imprimindo nas telas a sua assinatura pessoal. É nessa feira que ela trava conhecimento com Walter Keane (Christoph Waltz), também pintor e que, depois de uma temporada em Paris, usa suas memórias afetivas como temática de sua obra. Em pouco tempo os dois acabam se casando – como forma de proteger a guarda da menina, ameaçada pelo ex-marido – e não demora muito para que Keane comece a perceber que o trabalho de sua mulher chama muito mais a atenção do que o seu. Astuciosamente – e com a ajuda do jornalista Dick Nolan (Danny Huston), que narra a história em off – ele toma para si a autoria dos quadros e passa a administrar o êxito financeiro que vem deles. Dono de uma ambição tão grande quanto seu mau-caráter e seu senso de marketing pessoal, o medíocre Keane se torna um sucesso comercial incontestável: ainda que rechaçados pela crítica séria, representada pelo inclemente John Canaday (Terence Stamp), os quadros de Keane (na verdade a incansável e inconsolável Margaret) são cobiçados até por gente influente como as atrizes Natalie Wood e Joan Crawford e o empresário italiano Dino Olivetti.
Quando Margaret resolve dar um basta
na farsa – que a impediu por anos de obter seu próprio lugar ao sol mesmo
fugindo de seu estilo clássico – “Olhos grandes” muda de registro. O tom quase
ingênuo mostrado até então dá lugar a um viés mais sombrio, transformando
definitivamente Walter Keane no vilão cuja maldade se disfarçava através de um
verniz de simpatia e sorrisos constantes. Um gigantesco painel oferecido à
Unicef serve como pomo da discórdia e, mais uma vez fugitiva de um casamento
fracassado, a protagonista põe as cartas na mesa, revelando as mentiras
contadas ao povo americano por anos. Uma batalha nos tribunais – com marido e
mulher tentando provar, cada um à sua maneira, a autoria das pinturas – dá início
ao terceiro e final ato, em que ficam evidentes dois pontos: o carisma delicado
de Adams e o histrionismo às raias do patético de Christoph Waltz. Merecido
vencedor de seu primeiro Oscar de coadjuvante, por “Bastardos inglórios” – mas
nem tanto pelo segundo, por “Django livre” – o ator austríaco repete
perigosamente os trejeitos de seus trabalhos anteriores, tornando a cena em que
Keane assume simultaneamente os papéis de advogado de defesa e testemunha um
deslize que quase compromete o filme como um todo. Mesmo que o caráter bufão de
Keane justifique o abuso do ator de caretas e um pretenso humor, a sequência
destoa nitidamente do restante da narrativa proposta pelo diretor, de um
naturalismo que só cede ao lúdico quando Margaret passa a ver em todas as
pessoas os olhos grandes de seus quadros. Felizmente, a cena é rápida o
bastante para que não esconda do público as outras (muitas) qualidades do
filme.
Bem distante de sua zona de conforto,
Tim Burton acertou em cheio em dar um bem-vindo respiro de normalidade à sua
carreira tão excêntrica. Assim como ele, a figurinista Colleen Atwood e o
músico Danny Elfman – parte de seu leal time de colaboradores – apresentam
trabalhos discretos e eficientes que mostram outro lado de seu talento. Todos
estão em estado de graça, apelando para a beleza quase invisível da
simplicidade – que, afinal de contas, era o maior encanto das crianças de
Margaret Keane. Um belo e emocionante filme sobre o amor à arte e aos ideais
estéticos acima das convenções da moda e do sucesso comercial. No fundo, um
filme sobre a carreira do próprio Tim Burton.
Um comentário:
Gostei muito desse filme.
Postar um comentário