Ao público
contemporâneo, para quem filmes de horror precisam obrigatoriamente de sangue
aos borbotões, assassinos mascarados e um susto a cada cinco minutos, uma obra
como “O gabinete do Dr. Caligari” pode parecer uma comédia grotesca – e
provavelmente sem muita graça. Mas em 1920, quando estreou na Alemanha, o filme
de Robert Wiene – hoje um cineasta esquecido pelos compêndios de cinema –
causou uma revolução estética das mais importantes na história da sétima arte. A
partir dele – uma história fantástica que mistura assassinatos misteriosos,
hipnotismo e loucura – teve início no cinema mundial uma série de obras de
grande impacto visual e temático cuja herança pode ser sentida, em maior ou
menor grau, em boa parte dos filmes do gênero lançados a partir de então – com
influência extrema principalmente nos clássicos “filmes de monstro” da
Universal Pictures, como “Drácula”, de Tod Browning e “Frankenstein”, de James
Whale, ambos realizados mais de uma década depois.
Frequentemente ligado ao expressionismo
alemão, “O gabinete do Dr. Caligari” na verdade vai além do movimento artístico
nascido na Munique de 1912 ao extrapolar os limites do teatro e das artes
plásticas e imaginar um universo particular na linguagem cinematográfica. Tendo
como principal base o trabalho do pioneiro Georges Méliès – que fugia do
realismo com suas criações altamente estilizadas e claramente fantasiosas – o
filme de Wiene não se furta a recorrer a artifícios visuais que então soavam
como altas inovações e que ainda hoje impressionam pela criatividade e ousadia.
Não à toa, muitos críticos da época passaram a chamar a influência do filme em
produções posteriores de “caligarismo” – em outras palavras, um expressionismo
próprio do cinema.
Não deixa de ser irônico, porém, que
as melhores ideias para a realização do filme não tenham sido de seu diretor –
que assumiu a condução do projeto depois que Fritz Lang, que faria o clássico
de ficção científica “Metrópolis” oito anos depois, recusou a oferta – mas sim
de seu produtor, E. Pommer, que foi quem encomendou os cenários (inclinados, em
escala fora de proporção e nitidamente criados para ressaltarem o efeito
onírico da narrativa) aos expressionistas Hermann Warm, Walter Roehrig e Walter
Reimann e quem impôs o final quase convencional – que, de certa forma, vai
contra toda a rebeldia visual da história e que serve apenas para encerrar de
forma menos heterodoxa um conto sombrio e perturbador que remetia ao
autoritarismo prussiano da I Guerra Mundial (mais um toque do produtor Pommer)
e antevia assustadoramente o destino da nação alemã sob o comando de Adolf
Hitler. Talvez possa parecer exagero, mas a trama criada pelo roteirista Carl
Mayer – a de um homem levado ao homicídio pelo controle mental que sofre de um
mestre todo-poderoso – se encaixa perfeitamente como metáfora da lavagem
cerebral orquestrada pelo nazismo.
A trama é, levando-se em
consideração todas as surpresas visuais, bastante simples: em conversa com um
senhor de idade que se diz crente em entidades sobrenaturais, o jovem Francis
(Friedrich Feher) conta os assustadores eventos que testemunhou um tempo antes,
em companhia do melhor amigo, Alan (Hans Heinrich von Twardowski), na pequena
cidade de Holstenwall. Visitada por uma feira de variedades, a localidade
sente-se atraída pela presença do misterioso Dr. Caligari (Werner Krauss), que
se apresenta como o mestre do vidente sonâmbulo Cesar (Conrad Veidt, tornado
famoso por sua interpretação antológica). Segundo o veterano cientista, Cesar
está dormindo há 26 anos ininterruptos, e só acorda para prever mortes (que
realmente ocorrem logo em seguida). Uma das vítimas de tais premonições é o
próprio Alan, mas Francis nem de longe desconfia de que o assassino é o próprio
Cesar, cumprindo, inconscientemente, ordens de Caligari. Quando os dois
sequestram Jane (Lil Dagover), sua namorada, cabe a ele resgatá-la e
desmascarar Caligari.
O roteiro de Mayer é enxuto e dono
de uma concisão admirável: em pouco mais de uma hora de duração, “O gabinete do
Dr. Caligari” apresenta os personagens, expõe os conflitos, cria o suspense,
atinge o clímax (quando Cesar carrega Jane por telhados com perspectivas
visuais que sublinham a aura de pesadelo da história) e surpreende o espectador
com um final que mostra claramente o objetivo do produtor em equilibrar os
conceitos de filme de arte e cinema comercial. As atuações a um passo da
caricatura encaixam-se perfeitamente no tom excessivo e teatral da proposta,
que estabeleceu de forma inteligente os parâmetros que viriam a ser seguidos
desde então. Não é um filme para ser visto com olhos de hoje, mas sim como uma
das obras fundamentais dos primórdios do cinema de horror. Como tal, é
imprescindível.
Um comentário:
Outra boa história. Vou procurar no OLDFLIX.
Não tenho medo de filmes de terror.
Mas precisa que a história tenha um sentido real.
Postar um comentário