O cineasta
inglês James Whale deveria saber muito bem, assim como o protagonista de seu
filme mais famoso, o que significava o sentimento de exclusão e desajuste:
homossexual assumido em uma época cujos conceitos de tolerância às diferenças
eram bem menos elásticos, Whale abandonou a carreira em Hollywood no início da
década de 40 – ou seja, usufruiu por apenas dez anos o prestígio de sua
obra-prima – e morreu, supostamente suicida, em 1957, aos 68 anos de idade
(como mostra o belo “Deuses e monstros”, que Bill Condon lançou em 1998, com
Ian McKellen no papel do diretor). Certamente a fúria interior de Whale e seu
desejo de manifestar a violência da intolerância serviram de força motriz à
potência dramática de “Frankenstein”, adaptação livre do romance gótico de Mary
Shelley que, parte de um pacote de filmes de terror da Universal (que incluía o
também icônico “Drácula”, com Bela Lugosi), sobreviveu ao tempo como um
impressionante retrato de como a humanidade reage em relação às diferenças.
Sem
preocupar-se com exatidão ao livro de Shelley – que deu origem a diversos
outros produtos, seja no cinema, nos palcos e até na televisão, com níveis
diferentes de fidelidade ao material original – o roteiro baseia-se também na
peça teatral de Peggy Webling, o que explica algumas diferenças bastante óbvias
na condução da trama, incluindo-se aí a mudança do nome do protagonista:
enquanto no romance o cientista que brinca de Deus ao criar uma vida em seu
laboratório secreto chama-se Victor Frankenstein, no filme de Whale ele foi
batizado como Henry – em interpretação notável de Colin Clive – e tanto o
prólogo e o epílogo escritos pela jovem autora foram limados (e só voltariam a
fazer parte da história na versão dirigida por Kenneth Branagh em 1994, que
trata com extrema fidelidade o manuscrito original). De tintas bem mais
trágicas do que o filme – que faz milagres em desenvolver toda a trama em meros
71 minutos – o livro capricha em descrever os desastres pessoais pelos quais
passa o cientista antes de finalmente dedicar-se à sua obsessão, mas o filme
passa por cima desses detalhes para ater-se basicamente nas consequências de
tal ato. E visto por esse ângulo, o trabalho de Whale é um triunfo.
Um homem de bom-gosto inquestionável
– quando abandonou o cinema, ele passou a dedicar-se à pintura – Whale cria
cada sequência de seu filme com requinte e beleza, imprimindo um tom de
melancolia e poesia até às cenas mais banais. A bela fotografia em
preto-e-branco sublinha o tom gótico da narrativa e enfatiza os pormenores
daquela que é a sua maior qualidade: a atuação icônica e fascinante de Boris
Karloff, que mesmo sem dizer uma única palavra em todo o filme, traduz com
exatidão as nuances sonhadas pelo cineasta. Ao lado de Jack Pierce, responsável
pela maquiagem antológica da criatura, Whale concebeu um monstro que ainda
hoje, 85 anos depois de sua estreia, povoa a imaginação das plateias. Mesmo que
talvez seja motivo de piada diante de efeitos especiais que praticamente
emburreceram o gênero terror – e de inúmeras imitações, homenagens e paródias –
o visual da criatura é de um êxito impressionante. Não há quem não reconheça a
imagem: um homem com a cabeça achatada, com plugues no pescoço, roupa
esfarrapada, botas pesadas, pálpebras caídas e repleto de cicatrizes entra em
cena de costas, devagar, enquanto a câmera se aproxima e mostra a uma plateia
de respiração suspensa o resultado dos experimentos ensandecidos de um
cientista irresponsável e ambicioso cujo maior objetivo na vida – além de
casar-se com a namorada de infância, Elizabeth (Mae Clark) – é ser capaz de
criar um ser humano a partir das partes de pessoas mortas.
Obviamente as consequências de tal
ambição não serão nada agradáveis, e uma trilha de sangue e morte é deixada
conforme a criatura – foragida depois de assassinar o cruel assistente de
Frankenstein, Fritz (Dwight Frye), personagem inexistente no livro e que acabou
por tornar-se parte do inconsciente coletivo graças à comédia “O jovem
Frankenstein” (74), de Mel Brooks, quando recebeu o nome de Igor e foi vivido
por Marty Feldman – parte atrás de seu criador. No caminho, até mesmo suas
tentativas de adaptação a um mundo hostil e intolerante a quem foge dos padrões
acabam em tragédia. James Whale não tem medo de chegar até o fim em sua missão
de impactar o espectador, e nem mesmo crianças são poupadas de suas ousadias. O
clímax – o embate entre criador e criatura no alto de um penhasco – também é
digno de nota, por inaugurar uma tendência que se mantém atual no cinema
comercial: por frente a frente herói e vilão (ainda que nesse caso a divisão
não seja assim tão óbvia).
Executado de forma brilhante,
“Frankenstein” é do tipo de filme que não sai da cabeça do espectador mesmo
depois de muito tempo. Suas imagens, fortes e concebidas com o claro intuito de
encantar e assustar ao mesmo tempo, são uma prova inconteste do talento de seu
diretor, que consegue a façanha de sobrepujar um roteiro um tanto superficial
com ideias fascinantes e inteligentes. Se Boris Karloff é o corpo do filme –
que acabou por transformar-se em uma espécie de marca registrada sua – Whale é
sua alma. Sua união é responsável por um dos clássicos absolutos do cinema,
capaz de encantar mesmo nos cínicos dias de hoje.
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