O cinema
policial de hoje – seja de Hollywood ou em qualquer parte do mundo – tem nos
psicopatas e serial killers uma matéria-prima que já beira o clichê. Em 1931,
porém, as coisas não eram bem assim, e quando o austríaco Fritz Lang lançou “M
– O vampiro de Dusseldorf”, o impacto foi tanto que respingou até nos grandes estúdios
norte-americanos: fascinado com o trabalho de Lang, o todo-poderoso Irving
Thalberg (então no comando da MGM) chegou a fazer uma reunião com todos os seus
roteiristas e cineastas cobrando deles filmes com o mesmo compromisso com a
realidade e com as inovações que começavam a chegar à indústria. É difícil
imaginar, no entanto, que um grande estúdio de Hollywood tivesse a coragem –
especialmente em tempos bem menos liberais – de contar a história apresentada
por Lang em seu filme. Não apenas por tratar sem moralismo de um assunto
polêmico e desagradável (assassinato de crianças) mas por ousar fazer de seu
protagonista – até prova em contrário um vilão cruel – um personagem dotado de
alma e sentimentos. Ao fugir do maniqueísmo que se poderia esperar, “M”
pavimentou seu caminho rumo a um lugar inarredável da lista dos melhores filmes
da história do cinema.
Banido pelo governo de Adolf Hitler
em 1934, três anos depois de sua estreia, “M” foi tido por muitos como uma obra
que refletia, em seu tom cru e um tanto cínico, a rápida escalada do nazismo na
Europa. O tempo mostrou que Lang tinha razão em temer tal avanço: metade judeu,
ele testemunhou, estarrecido, a filiação de sua própria esposa (e colaboradora
artística), Thea von Harbou, ao partido nacional-socialista, e abandonou a Alemanha em 1933, após ter
recusado o convite de Goebbels para dirigir a indústria cinematográfica do
país. Separado de Thea durante as filmagens de “O testamento do Dr. Mabuse”
(33) – além de nazista, ela revelou-se também infiel – Lang fez uma escala na
França antes de ser abraçado por Hollywood, onde assinou obras de gêneros
variados, como o western “O diabo feito
mulher” (51), com Marlene Dietrich, e o policial “Um retrato de mulher” (44).
Nenhum de seus filmes, no entanto, atingiu o mesmo grau de brilhantismo do que
a trágica história do aparentemente inofensivo Franz Beckert.
Em uma interpretação fabulosa de Peter Lorre – até então um ator basicamente de comédias – Beckert é um homem que esconde, por trás de seu ar bonachão e simples, uma alma atormentada: ele é o responsável por uma série de assassinatos de crianças da pequena cidade de Dusseldorf. A polícia local, na figura do Inspetor Karl Lohmann (Otto Wernicke), não consegue pistas para a captura do monstro, que chega ao requinte de mandar cartas para a imprensa, comentando seus crimes. Porém, quando as investigações começam a atrapalhar o desenvolvimento de outras atividades ilegais da cidade, os contraventores locais criam uma espécie de associação informal com o objetivo de acabar com os homicídios. É aí que Beckert, que seduz suas vítimas com presentes banais como doces e balões, acaba sendo finalmente ameaçado – e, depois de aprisionado, passa a lutar por sua vida em um julgamento improvisado pela escória de Dusseldorf.
Atrevendo-se a fazer de Beckert uma
espécie de vítima de sua própria condição psicológica – o que acaba por
despertar uma certa compaixão da plateia – Fritz Lang acerta em praticamente
todos os pontos do filme. A narrativa é elegante e sutil, evitando explicitar
os atos homicidas e substituindo-os por símbolos inequívocos (balões voando
soltos, bolas abandonadas). A utilização do som é exemplar – a música que
Beckert assobia não apenas é sua apavorante marca registrada mas também serve
de inteligente elemento dramático (um vendedor cego acaba por ser uma
testemunha importante do caso justamente por reconhecê-la). A fotografia em
preto-e-branco de Fritz Arno Wagner (de “Nosferatu, uma sinfonia de horror”)
capta com perfeição as sombras dos becos e das ruas de Dusseldorf de forma a
torná-los ameaçadores. E, em um toque de mestre, o cineasta escalou, para a
climática cena do julgamento do protagonista, criminosos verdadeiros, que
emolduram o grande momento de Lorre – que, logo após o filme, também abandonou
a Alemanha por medo de Hitler (e anos mais tarde marcou presença no clássico
“Casablanca”). Com uma interpretação que desperta pavor, repulsa e até mesmo
comiseração, ele acaba sendo a alma de um filme nunca menos que impressionante.
Se foi ou não inspirado em fatos
reais – Lang sempre negou que tivesse se baseado na história verdadeira do
serial killer Peter Kurten, que aterrorizou a Alemanha nos anos 20 – não faz
diferença. O que importa é que “M, o vampiro de Dusseldorf” é um dos mais
impactantes e geniais filmes jamais realizados: inteligente, forte, ousado,
plasticamente deslumbrante e politicamente relevante. Para ver e rever sempre –
e descobrir sempre coisas novas!
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