O cineasta Robert
Wiene teve a sorte e o azar de assinar, em 1919, um dos filmes seminais do
chamado expressionismo alemão, o cultuado “O gabinete do Dr. Caligari”. Sorte
porque a produção tornou-se pedra angular do cinema de horror e um dos mais
estudados e influentes produtos cinematográficos da história. Azar porque,
depois de ver seu nome associado ao filme, nunca mais conseguiu repetir a
proeza, tornando-se um diretor cujo nome é virtualmente desconhecido pelo
grande público – e até mesmo pela crítica, que praticamente ignorou seus
trabalhos posteriores. Porém, apesar desse revés artístico, Wiene tem pelo
menos outro filme digno de nota no currículo. No mínimo nos últimos oitenta
anos pouca gente ouviu falar – e menos gente ainda assistiu – ao surpreendente
“As mãos de Orlac”, uma mistura bastante interessante de drama romântico,
policial e suspense que demonstra que Weine poderia muito bem conduzir um filme
independentemente da mão firme do produtor E. Pommer (por muitos considerado o
verdadeiro autor de “Caligari”).
Baseado em um romance de Maurice Renard,
“As mãos de Orlac” possui elementos clássicos do suspense e brinca com as
possibilidades do sobrenatural ao contar a trágica história de Paul Orlac
(Conrad Veidt, o sonâmbulo assassino de “Caligari”): pianista
internacionalmente famoso, Orlac está viajando de volta para casa e os braços
da amorosa esposa Yvonne (Sorina) quando sofre um violento acidente de trem que
o deixa à beira da morte. O médico que acompanha o caso, Dr. Serral (Homma),
salva sua vida, mas para impedir que ele perca suas tão valiosas mãos, apela
para uma experiência ainda em fase de testes: um transplante. É assim que Orlac
passa a ter, depois de uma cirurgia, as mãos de Vasseur, um homicida executado
com a pena capital. Traumatizado com a tragédia, Orlac passa a ter visões do
assassino e sentir que ele está influenciando seus pensamentos. Com medo de
transformar-se também em um criminoso, ele implora a seu médico que lhe
arranque as mãos – mas o que ele nem sequer desconfia é que não passa da vítima
inocente de uma trama muito bem urdida – que envolve outras pessoas próximas.
Apesar de um
início que insinua que seu filme irá percorrer um caminho sobrenatural que
flerta com sua obra mais famosa, Wiene surpreende a plateia com uma série de
reviravoltas. Ao contrário do que se poderia imaginar, porém, tais artifícios
não diluem a tensão da trama principal, apenas acrescentando a ela camadas
dramáticas que sustentam a tensão até seus minutos finais. Desviando do caminho
fácil da imitação do que já deu certo, o cineasta deixa de lado boa parte das
características de “Caligari” e aposta em uma trama mais sólida: a fotografia
ainda surge como fator de extrema importância na narrativa (enfatizando o tom
de pesadelo kafkiano do roteiro) mas a história e os personagens acabam por
mostrar-se tão essenciais quanto as imagens. Mesmo que algumas cenas
impressionem pelo apuro visual – em especial o resgate dos feridos no desastre
de trem nos primeiros minutos – o que mais chama a atenção em “As mãos de
Orlac” é seu enredo, repleto de emoções as mais variadas, que percorrem desde o
drama até o medo. E para isso, é claro, Wiene conta com um elenco mais do que
adequado a suas intenções e um roteiro inspirado.
Conrad Veidt deixa de lado o marcante
papel do assassino Cesar no filme mais conhecido do diretor para alcançar outro
registro de interpretação na pele do atormentado Paul Orlac – seu desespero é
palpável e sua relação com a sofrida esposa é mostrada com grande verdade pelas
câmeras, que por sua vez passeiam pelos cenários sombrios não como agentes
ativos, mas como testemunhas silenciosas dos fatos. Conforme a trama vai se
desenrolando diante dos olhos do público – e novos fatos vão transformando a
ideia inicial – Weine demonstra senso de ritmo e inteligência ao transformar um
drama romântico em um filme de terror e, mais tarde, transmutá-lo em um
policial sem que sua essência e seu nervosismo sejam diluídos. Quando toda a
trama que cerca o protagonista, sua mulher, sua criada e seu pai (com quem
mantém uma relação no mínimo conturbada) à plateia cabe apenas perceber que
está diante de um desfecho dos mais originais, ainda que muito imitado
posteriormente (como qualquer coisa realizada à época). É muito mais do que se
poderia esperar de um filme assinado por alguém injustamente relegado a uma
nota de rodapé na história do cinema como um cineasta menor de um dos
movimentos mais influentes da trajetória da sétima arte. “As mãos de Orlac” é
um filme que merece ser redescoberto.
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