A ÚLTIMA NOITE DE BORIS GRUSHENKO (Love and death, 1975, United Artists, 85min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Ghislain Cloquet. Montagem: Ron Kalish, Ralph Rosenblum. Figurino: Gladys de Segonzac. Direção de arte/cenários: Willy Holt. Produção executiva: Martin Poll. Produção: Charles H. Joffe. Elenco: Woody Allen, Diane Keaton. Estreia: 10/6/75
Quando se assiste aos primeiros filmes de Woody Allen - basicamente estruturados em uma narrativa à base de piada atrás de piada - dificilmente se pode imaginar que, por trás de seu humor iconoclasta e neurótico, existe uma profunda admiração por Dostoievski e Ingmar Bergman. Cada um a seu modo, o escritor russo e o cineasta sueco são grandes influências na obra de Allen, o que ficou óbvio quando ele iniciou uma jornada por filmes mais dramaticamente densos, como "Interiores" (78) e "Setembro" (87) - que dividiram a crítica - ou com reflexões mais pessimistas, como "Crimes e pecados" (89) e "Match point" (2005) - ambos grandes sucessos. Um sinal de seu apreço pelas questões que viria a abordar futuramente é "A última noite de Boris Grushenko", um filme que ainda seguia seu estilo anárquico de fazer cinema mas que já apontava para um caminho mais sofisticado de contar histórias - que culminaria com os Oscar de filme, roteiro e direção para "Noivo neurótico, noiva nervosa" (77), seu trabalho seguinte. Carregado de referências culturais e históricas - mas nem por isso pedante ou presunçoso - "A última noite de Boris Grushenko" é um dos melhores filmes da fase pré-Oscar de Allen, com um equilíbrio perfeito entre o humor visual debochado e diálogos brilhantes que beiram o surreal.
Escrito durante um bloqueio criativo de Allen - que emperrou no meio daquele que se tornaria, anos mais tarde, "Um misterioso assassinato em Manhattan" (95) - e inspirado na leitura de um livro sobre a história da Rússia, "A última noite de Boris Grushenko" apresenta o diretor na pele do personagem-título, um pacifista intelectual deslocado em uma família pouco afeita a livros e atividades culturais. Apaixonado por uma prima, a bela Sonja (Diane Keaton), que não tem o menor interesse em seus desejos, nem mesmo depois de rejeitada por seu irmão - e prefere entregar-se a uma sucessão de amantes do que envolver-se com ele - o pacífico Boris se vê obrigado a partir para a guerra e impedir o avanço das tropas de Napoleão Bonaparte (James Tolkan). Com o tempo, ele se descobre um inusitado conquistador e acaba, por obra e graça do destino, como a principal peça de um plano para assassinar o líder francês - ao lado de sua amada Sonja.
Filmado na Hungria e na França, "A última noite de Boris Grushenko" teve uma saudável cota de problemas durante sua produção - o mais grave deles o sério problema intestinal do produtor Charles H. Joffe graças à comida de Budapeste - mas, surpreendentemente, é um dos filmes mais felizes da carreira de Woody Allen em seus primeiros anos. Ainda que apoiado em uma avalanche de piadas de todo tipo, o roteiro do diretor tem uma coesão e uma linha narrativa menos solta que seus trabalhos anteriores, o que viria a se refinar ainda mais nas obras seguintes, quando ele finalmente conseguiu reunir seu genial senso de humor com a linguagem cinematográfica de forma a equilibrar os dois fatores. Com uma fotografia caprichada do belga Ghislain Cloquet - que explora admiravelmente o clima dos cenários naturais para enfatizar o tom épico/histórico/romântico da trama - e uma edição enxuta que jamais deixa o ritmo cair, o filme não é apenas indicado aos fãs do cineasta, mas consegue a façanha de fazer rir até mesmo o mais renitente espectador. Tudo mérito das micagens de Allen e Keaton, em excepcional dueto que remete aos grandes momentos de Chaplin, Irmãos Marx e Bob Hope. Certeiro em suas observações perspicazes sobre a vida, a morte, o amor e outras considerações filosóficas, Allen não apenas faz rir: ele presta sinceras homenagens a alguns de seus maiores ídolos.
Em um dos diálogos mais geniais de sua filmografia, Allen faz com que seu personagem receba a visita de seu pai, na prisão, e receba dele notícias sobre alguns de seus conhecidos: surge então, de maneira brilhante, citações a "Crime e castigo", "Os irmãos Karamazov", "O idiota", "O jogador", "O duplo" e outras obras de Dostoievski. Em outras sequências, ele brinca com imagens e conversas que remetem a filmes do sueco Ingmar Bergman, como "Quando duas mulheres pecam" (66) e "O sétimo selo" (57), e até mesmo o título original do filme ("Amor e morte") é uma tentativa de evocar outros romances russos, como "Guerra e paz", de Tolstoi, e o já citado "Crime e castigo". Nenhum detalhe escapa à visão cínica de Allen, que arranca gargalhadas sem precisar deixar de lado a inteligência e comprova que ser erudito não necessariamente significa ser chato ou pedante. Uma pequena obra-prima de humor e sofisticação que ainda precisa ser redescoberto como um dos mais completos de seu realizador.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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